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Agravo contra liminar que deferiu inscrição provisória em licitação pública

Agravo contra liminar que deferiu inscrição provisória em licitação pública

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Um juiz concedeu, liminarmente, a inscrição de um licitante que não se enquadrara em diversos itens do edital. O agravo aborda, além de vários assuntos processuais, o tema da livre concorrência nas licitações públicas.

EXMº. SR. DES. PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

EMPRESA MUNICIPAL DE VIGILÂNCIA S/A – GUARDA MUNICIPAL, já devidamente qualificada nos autos do processo de Mandado de Segurança n.º 98.001.196527-6, em que é impetrante AVA INDUSTRIAL S/A, vem, por seu representante legal, interpor, nos termos do art. 524 e seguintes do CPC

AGRAVO DE INSTRUMENTO

da decisão de fl. 193/194, pelos fatos e fundamentos que passa a aduzir.


Exmo. Sr. Relator

Colenda Câmara

1. Trata-se de recurso impetrado contra decisão que concedeu liminar para habilitar a Empresa/Agravada no certame promovido pela Empresa/Recorrente. O ato, supostamente considerado abusivo pela decisão ora recorrida, praticado pela Presidente da Comissão Permanente de Licitações, considerou inabilitada a Empresa/Agravada por vários motivos, todos adstritos aos princípios constitucionais e legais que regem a conduta do administrador público, como passa-se a sustentar.


DAS QUESTÕES PREJUDICIAIS

2. A Lei 4.348/64, que estabelece as normas processuais relativas ao mandado de segurança, não previu expressamente a possibilidade de se formar, em sede mandamental, o litisconsórcio passivo necessário. Não obstante, doutrina e jurisprudência passaram a reconhecer a necessidade de se admitir, ao contraditório, as pessoas que sofram diretamente os efeitos das decisões proferidas.

3. Tal entendimento surgiu como conseqüência das demandas envolvendo concursos públicos, onde se permite o ingresso, no feito, dos demais candidatos aprovados, quando a decisão possa afetar a ordem de classificação da competição.

4. No caso em tela, afigura-se semelhante hipótese, já que o processo licitatório já foi concluído, tendo sido adjudicado o objeto do certame à Empresa vencedora (v. publicação do D.O.Rio em anexo).

5. Se a licitação for anulada, a Empresa vencedora será evidentemente prejudicada, pois já despendeu uma enorme soma na disponibilização do material a ser adquirido pela recorrente (v. doc. apresentado por aquela, em anexo). Tal fato acarretaria, à Administração, a responsabilidade de suportar todos os ônus decorrentes da anulação, conforme art. 59, da Lei 8666/93.

6. Desta forma, torna-se imperiosa a formação do litisconsórcio passivo necessário, sob pena de se ferir os limites subjetivos da coisa julgada, bem como de se causar um prejuízo incalculável à Administração, fruto da responsabilidade legal supracitada.

7. Além desta causa prejudicial, existe outra: a decisão perdeu seu objeto, ou melhor, já nasceu inexeqüível. Como mencionado, o certame foi concluído há mais de 2 meses (v. D. O. Rio, p. 6, de 13/11/98, em anexo), o que torna o dispositivo da decisão ora impugnada desprovido de efeito. Em outras palavras: o mandamus está claramente prejudicado, por perda de interesse processual.

8. Observe-se a seguinte passagem da r. decisão ora atacada: "...reconheço que a AVA Industrial S.A. está habilitada à apresentação da Proposta [...]" – assim o MM Juízo a quo decidiu o pleito liminar. Não se pode considerar a Empresa/Agravada habilitada a apresentar proposta pois os envelopes já foram abertos e o processo concluído. Por óbvio que a decisão não se conforma com a atual situação fática.


DO MÉRITO

9. O ato praticado não se presta à invalidação pela via da ação mandamental, eis que não se vislumbra qualquer vício nos seus elementos constitutivos, quais sejam, objeto, motivo, forma, finalidade, competência. Cumpre analisar cada um deles:

  • o objeto – o conteúdo do ato administrativo é a inabilitação de um licitante em procedimento promovido por empresa de economia mista; por força do art. 173, § 1º, da Constituição Federal, as empresas públicas e de economia mista se submetem ao regime jurídico de direito privado, não praticando, assim, ato de autoridade, razão pela qual, ausente o requisito essencial para o ajuizamento da via eleita, que é inidônea para os fins almejados. Cabe, pois, a denegação da segurança por inépcia da inicial – CPC, art. 295, inc. I.
  • o motivo – o ato de inabilitação decorreu do não atendimento do edital em vários itens, a saber:

1) "A reclamante apresentou documentos às fls. 311 e 316 do processo 01/700 974/98 que não atendem aos itens 1 e 2, na forma como está exigido no Edital.

Ou os documentos emitidos pelas Secretarias de Fazenda Estadual do Amazonas e pela Secretaria de Fazenda Municipal de Manaus valem como prova de regularidade Fiscal ou como Certidão da Dívida Ativa. Haja vista que o Edital estabelece para a comprovação das exigências"

2) "A reclamante apresentou apenas um Balanço corretamente assinado.

As assinaturas comprovam a validade e a regularidade dos Balanços junto à fiscalização, conforme está citado na Lei 6404/76, que trata as Sociedades Anônimas.

Nas Sociedades Anônimas de Capital aberto, os Balanços estão sujeitos a Publicações obrigatórias. As de Capital fechado, sujeitas à aprovação por Assembléia Geral. Conforme foi verificado na Ata de Aprovação do Balanço do exercício de 1995, que mesmo não tendo sido solicitado no Edital, foi juntado pela Reclamante e examinado por esta Comissão, conforme determina a Legislação.

Os Balanços dos exercícios de 1995 (fls. 327/329) e de 1996/1997 não tem validade legal, por falta da assinatura do(s) Representante(s) legal(is) da S/A."

3) "A reclamante apresentou os Atestados sem reconhecimento da firma do emitente, conforme pedido no Edital."

4) "A Reclamante alega que o texto está mal redigido levando a interpretação dúbia.

A Lei 8666/93 e suas alterações é clara em seu art. 41 dando direitos ao licitante de IMPUGNAR, de APONTAR FALHAS, como este que a Reclamante alega ter dado dúbia interpretação. Se o Edital não estava claro caberia ao interessado questioná-lo e continuar a participar do certame até o trânsito em julgado da decisão (§ 3º do art. 41)."

5) "Ora, a certidão negativa de débitos para com a Fazenda não é mais abrangente que a certidão de dívida ativa como pretende sustentar o impetrante na inicial; conforme se vê do art. 39, § 2º, da Lei n.º 4.320/64, a dívida ativa abrange a Fazenda Pública, incluindo, assim, ao lado da Administração Direta, as autarquias; a dívida ativa pode ser tributária e não tributária, tais como multas de qualquer origem, foros, laudêmios, aluguéis, taxas de ocupação, preços de serviços públicos etc., débitos esses que devem ser escriturados em registros próprios (§ 1º);"

6) "O balanço social, por sua vez, para ser documento juridicamente válido, deve observar as formalidades legais, entre as quais a sua aprovação pelos administradores ou acionistas, conforme se depreende do art. 177, § 4º, c/c 122, III da Lei n.º 6.404/76, in verbis:

"Art. 177 – A escrituração da companhia será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo e registrar as mutações patrimoniais segundo o regime de competência.

§ 4º - As demonstrações financeiras serão assinadas pelos administradores e por contabilistas legalmente habilitados.

Art. 122 – Compete privativamente à assembléia geral:

III – tomar, anualmente, as contas dos administradores, e deliberar sobre as demonstrações financeiras por eles apresentadas;"

7) "Os atestados não demonstram autenticidade, eis que não vieram devidamente reconhecidos com a firma do emitente, alegando a licitante que a redação do instrumento convocatório apresentava-se dúbia, olvidando do fato de a Lei n.º 8.666/93 prever em seu artigo 41, § 2º, que o prazo para impugnação do edital, para o exemplo em tela, é até o segundo dia útil que anteceder a abertura dos envelopes de habilitação."

  • a forma – foi observada a forma escrita e pública, após o devido processo legal, por força do qual foi assegurado ao licitante o direito de recorrer.
  • a competência – o ato foi praticado nos termos do art. 51 da Lei n.º 8.666/93, que atribui à Comissão de Licitação, representada por seu Presidente, o julgamento da fase de habilitação dos licitantes;
  • a finalidade da inabilitação é dar cumprimento ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório previsto no art. 3º da Lei n.º 8.666/93, bem como ao disposto no art. 43, inc. II, que determina a devolução dos envelopes dos licitantes inabilitados após o julgamento dos recursos; por ser um procedimento formal, somente podem apresentar propostas os licitantes que atenderem aos requisitos constantes do edital, o qual sequer foi impugnado pelo impetrante.

10. Demonstrado que o ato observou todos os ditames legais, verifica-se que o impetrante, por não ter atendido aos requisitos exigidos no edital para habilitar-se na licitação, não tem direito, muito menos líquido e certo, a prosseguir no procedimento, com vistas à apresentação de sua proposta; nesse passo, cumpre averbar que, já tendo sido restituído o envelope contendo a proposta de preço, conforme determina o citado art. 43, II, da Lei n.º 8.666/93, não poderá o Judiciário determinar que seja feita nova entrega de envelope, cuja originalidade não se poderá atestar.

11. Toda a decisão recorrida baseou-se unica e exclusivamente na "razoabilidade". Este princípio vem sendo estudado há muito pouco tempo, e somente a doutrina européia (Frederich Müller e J. J. Gomes Canotilho, principalmente) conseguiu, até agora, propor um critério objetivo para sua aplicação. Na r. decisão ora impugnada, inadvertidamente o subjetivismo imperou.

12. Equivocou-se o MM Juízo a quo na análise do mencionado princípio. Para se aplicar a razoabilidade (ou proporcionalidade, como querem os europeus) concretamente, deve ser feito um exame decrescente, desde a Constituição, passando pela legislação pertinente, até se chegar ao objeto do estudo. Trata-se da aplicação da Teoria da Densificação dos Conceitos Jurídicos Abstratos, proposta pelo ilustre constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho.

13. Passo a passo, a aplicação desta teoria ao caso em tela segue o seguinte esquema:

  • Constituição da República, art. 37, XXI: as compras serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes;
  • Lei 8.666/93, art. 3º, caput: o princípio da isonomia é de observância obrigatória, e tem reflexos na fase de habilitação, onde todos os concorrentes devem apresentar os documentos no mesmo momento, sendo vedada a concessão de prazos diferenciados, conforme art. 43, §3º da Lei das Licitações;
  • CAF Municipal, art. 244: são vedadas todas as formas de tratamento diferenciado aos concorrentes, ratificado pelo art. 388 do RGCAF;
  • Edital do Certame em discussão, cláusula 4.1: todas as Empresas interessadas devem apresentar os envelopes de habilitação na mesma data.
  • Ato de desclassificação da Empresa/Agravada - motivação: ausência de apresentação de documento essencial no prazo estabelecido no edital (dentre outros motivos, conforme exposição retro).

14. Como demonstrado, não houve a inserção de nenhum elemento, em qualquer das fases, desde a norma constitucional até o ato impugnado, que seja desproporcional ou desarrazoado.

15. A decisão que ora se ataca, apesar de reconhecer "os estreitos limites da cognição sumária" não aponta os atos abusivos e nem justifica o porquê considerou-os assim. Limita-se, tão somente, a indicar alguns princípios.

16. A alegação de que o ato praticado pela autoridade coatora teria ferido o princípio da livre concorrência não procede. Doutrina e jurisprudência são uníssonas em asseverar que a isonomia é uma forma de se possibilitar a livre concorrência.

17. Salienta-se que o documento não apresentado na oportunidade própria foi juntado nos autos do Mandado de Segurança, e esta apresentação intempestiva foi considerada "eficaz" pelo Juízo a quo, o que privilegiou a Empresa/Agravada, violando, aí sim, a livre concorrência e a par conditio dos competidores.

18. Permitir que se cumpra uma exigência, aposta no edital, por via transversa e judicial, após a homologação do procedimento e da adjudicação do objeto, seria admitir o que a lei veda, ou seja, a apresentação de documento fora do prazo, conforme art. 43, §3º, da Lei 8.666/93. Tal tolerância além de ir de encontro à legalidade, também desrespeita a obrigatoriedade da originalidade das propostas.


DO PERICULUM IN MORA INVERTIDO E
DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA DE MÉRITO

19. A r. decisão ora recorrida não respeitou a necessária verificação do periculum in mora invertido, assim considerada pela unanimidade da jurisprudência, a exemplo da decisão, em semelhante hipótese, prolatada pelo Ilustre Dr. Jessé Torres, Titular da 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, no processo de n.º 7.260/98:

"...nos requerimentos de liminar contra atos do Poder público, que nascem com a presunção de legitimidade, vale dizer, de aptidão para atender ao interesse público, não devem bastar, para justificar a intervenção do Judiciário, a presença cumulada do relevante fundamento jurídico (fummus boni iuris) e do risco de perecimento do direito (periculum in mora). É mister verificar-se, invertendo-se o risco a que alegadamente estivesse sujeito o titular, ou titulares, do direito tido por ameaçado, não haveria risco maior para o interesse público caso sobrestado o certame ou impedida a contratação dele resultante [...]" (grifou-se).

20. No caso em discussão, o prejuízo da recorrente e da população do Município do Rio de Janeiro é mais que evidente, já que o certame destina-se à compra de motocicletas para a patrulha das ruas da cidade. A Empresa/Agravante pode ser responsabilizada nos moldes do art. 59, § único, da Lei 8.666/93; a sociedade carioca está sendo privada de uma sensível melhoria de seu sistema de segurança; e ainda, a Empresa vencedora enfrenta enormes prejuízos pelo capital empatado nos bens.

21. Ademais, a doutrina especializada ( J. E. Carreira Alvim e L. G. Marinoni, por exemplo) já se manifestou no sentido de que a liminar no mandado de segurança, assim como nas ações possessórias, tem natureza de antecipação da tutela satisfativa de mérito. Na decisão ora impugnada, a liminar concedida se traduz em tutela antecipada, porque a medida obsta a celebração do contrato. Em outras palavras: estaria adiada a aquisição dos bens sine die, o que equivale à imposição, desde logo, de obrigação de não fazer, o que se confunde com o pedido final constante da inicial.

22. Demonstrada a evidente antecipação do mérito, verifica-se que estão ausentes os pressupostos para o seu deferimento, conforme art. 273 do CPC: a decisão não se respalda em verossimilhança e é completamente irreversível, como já demonstrado.


PEDIDOS DE EFEITO SUSPENSIVO

23. Destarte, requer a Empresa/Agravante que se atribua efeito suspensivo ao presente recurso, tendo-se em vista não só a presunção de legalidade do ato, mas principalmente a plena comprovação, conforme razões expostas, da adequação desse aos princípios constitucionais e legais vinculadores da Administração. Acresce-se ainda o fato de que o pedido de liminar formulado pela Empresa/Agravada e concedido na decisão ora impugnada não se conforma com os rigorosos limites impostos pelo art. 273 do CPC, nem tampouco é exeqüível, face a atual fase do processo licitatório.

24. Requer também seja, ao final, revogada a r. decisão concessiva da liminar, por ser o que melhor se afina com a proteção do interesse público.

25. Finalmente, requer seja intimada a Empresa/Agravada para querendo, responder ao presente recurso.

Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1999.

Raphael Augusto Sofiati de Queiroz
OAB/RJ 92.075


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de. Agravo contra liminar que deferiu inscrição provisória em licitação pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 30, 1 abr. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16123. Acesso em: 26 abr. 2024.