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Reparação de danos ajuizada pelo Município contra ex-prefeito

impossibilidade

Reparação de danos ajuizada pelo Município contra ex-prefeito: impossibilidade

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Município propôs ação de indenização contra ex-prefeito em virtude de prejuízos causados em decorrência de convênio. A sentença sobre a polêmica questão entende que o ato não pode ser imputado à pessoa física do ex-prefeito, mas somente ao próprio Município.

PROCESSO Nº 0010 01 015072-9

AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS

AUTOR: O MUNICÍPIO DE BOA VISTA

RÉU: BARAC DA SILVA BENTO

SENTENÇA

RELATÓRIO

Trata-se de ação de reparação por perdas e danos, proposta pelo Município de Boa Vista contra o ex-prefeito Barac da Silva Bento.

Alega o requerente que quando da gestão do réu foi assinado o convênio nº 040/92, entre a Prefeitura e a Fundação Nacional de Saúde. Em março de 1993 recebeu a então nova administração municipal a informação sobre a liberação de valores para execução de drenagem pluvial.

Salienta ainda o autor que, por causa do referido convênio, encontrava-se, à época da propositura da ação, na iminência de ter que estornar a quantia recebida e que, em face de prestação de contas, encontra-se incluído em lista de inadimplentes, não podendo, pois, contrair qualquer espécie de convênio com a Administração Federal.

Entende ter havido "irresponsabilidade e má-fé do réu, quando omitiu documentos necessários ao bom e fiel desempenho da nova administração", pelo que deve responder por perdas e danos frente ao Município.

Requer a condenação do réu ao pagamento da importância recebida do Convênio nº 040/92, acrescida de juros e correção monetária, além de danos e demais verbas sucumbenciais.

Em contestação, o requerido levanta preliminares de ilegitimidade ativa e passiva ad causam, falta de interesse de agir e impossibilidade jurídica do pedido, inépcia da inicial por falta de nexo entre a narração dos fatos e o pedido.

Requer a denunciação da lide da prefeita Maria Teresa Saenz Surita Jucá.

No mérito, afirma, em suma, ter agido, quando prefeito, em estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular do direito e sustenta, ainda, que o autor não logrou demonstrar a real ocorrência de dano.

Às fls. 43/67, há reconvenção pedindo-se a condenação do reconvindo ao pagamento de indenização por danos morais em face de propositura de ação temerária.

Réplica do Município de Boa Vista às fls. 72/74.

Contestação à reconvenção às fls. 76/81.

O Ministério Público foi devidamente intimado, tendo participado dos atos processuais.

Face ao desinteresse da União em integrar o feito, afastou-se a competência da Justiça Federal, assentando-se, por conseqüência, a competência da Justiça Estadual para o processo e julgamento do feito.

Em audiência, decidiu-se que "as preliminares de ilegitimidade ativa e passiva, falta de interesse de agir, impossibilidade jurídica do pedido e inépcia da inicial se confundem com o próprio mérito que será analisado na sentença. A denunciação da lide igualmente, deve ser rejeitada posto que não se encontra presente nenhuma das circunstâncias previstas no art. 70 do CPC e, além do mais, a denunciação não foi apresentada na forma correta, qual seja em petição separada com todos os requisitos previstos no art. 282 do CPC. Quanto à preliminar trazida às fls. 76, em contestação da reconvenção, igualmente não merece prosperar por se confundir com o próprio mérito".

Reconheceu-se ainda que se trata de hipótese de julgamento antecipado da lide, eis que todas as provas já se encontram nos autos (fls. 186).

É o relatório. Passo a decidir.


FUNDAMENTAÇÃO

Quanto às preliminares levantadas pelas partes, tanto na contestação e na reconvenção, como na réplica e na contestação da reconvenção, ratifico as razões de decidir expostas pelo MM. Juiz que presidiu a audiência (fls 185), nos seguintes termos: "as preliminares de ilegitimidade ativa e passiva, falta de interesse de agir, impossibilidade jurídica do pedido e inépcia da inicial se confundem com o próprio mérito que será analisado na sentença. A denunciação da lide igualmente, deve ser rejeitada posto que não se encontra presente nenhuma das circunstâncias previstas no art. 70 do CPC e, além do mais, a denunciação não foi apresentada na forma correta, qual seja em petição separada com todos os requisitos previstos no art. 282 do CPC. Quanto à preliminar trazida às fls. 76, em contestação da reconvenção, igualmente não merece prosperar por se confundir com o próprio mérito".

Afastadas as preliminares, passo à análise do mérito da presente demanda.

Trata-se de ação de reparação por danos morais e materiais movida pelo Município contra ex-prefeito, sob o fundamento de que este, ao ter firmado convênio que importou em gasto de vultuosa quantia, agiu de má-fé, causando perdas danos consistentes em inclusão do autor em lista de inadimplentes.

Em casos que tais, para que haja a obrigação de indenizar, há que se demonstrar os seguintes pressupostos:

a)ação ou omissão ilícita do agente;

b)dolo ou culpa;

b)nexo causal e

c)dano.

Nos termos específicos dos autos, para que o ex-prefeito Barac da Silva Bento tivesse a obrigação de indenizar o Município de Boa Vista pelas alegadas perdas e danos, seria necessário restar comprovado que, ao ter celebrado o convênio nº 040/92 agiu de forma ilícita, dolosa ou culposamente e, com isso, causou danos à Administração Pública.

As pessoas jurídicas, tanto de direito público como de direito privado, não tendo existência própria, não podem manifestar sua vontade senão indiretamente através de uma ou mais pessoas naturais investidas de poderes para tanto.

Pela teoria da presentação, de Pontes de Miranda, os agentes públicos, tais como, no caso, o prefeito municipal, agem em nome do órgão público – fragmentos da pessoa jurídica de direito público - e não em seu próprio nome. Assim o fazem para manifestar a vontade da pessoa jurídica ou órgão, vez que esses não podem, de outra maneira, demonstrar sua vontade.

O ex-prefeito Barac da Silva Bento, ao firmar convênio, fé-lo como representante legal da pessoa jurídica de direito público, eleito pelo povo. Não agiu como pessoa física, mas como representante de uma pessoa jurídica. Nesse sentido, oportuno transcrever escólio da professora MARIA HELENA DINIZ19 que assevera, verbis:

"Sendo o Estado uma pessoa jurídica, não pode ter vontade nem ação próprias, logo se manifestará por meio de pessoas físicas, que ajam na condição de seus agentes, desde que revestidos desta qualidade. Esses agentes públicos, desde as mais altas autoridades até os mais modestos trabalhadores que atuam pelo aparelho estatal, tomam decisões ou realizam atividades da alçada Estado, pois estão prepostas no desempenho de funções públicas. Logo, a relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado, por isso tal relação é orgânica.

"Assim sendo, o que o agente público quiser ou fizer entende-se que o Estado quis ou fez. Nas relações externas não se considerará se o agente obrou ou não, de acordo com o direito, culposa ou dolosamente, pois só importará saber se o Estado agiu (ou deixou de agir) bem ou mal."

Se atua nos limites de seus poderes de agente público, não há como se falar em responsabilidade do ex-prefeito por eventual dano decorrente de contrato de convênio firmado.

A responsabilidade pelas conseqüências dos atos, desde que o agente não tenha extrapolado suas funções, há de ser atribuída à própria pessoa jurídica de direito público.

Preciosa, na mesma esteira, é a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO20, que ora transcrevo:

"VIII - Os sujeitos que comprometem o Estado

"38. Como pessoa jurídica que é, o Estado, entidade real, porém abstrata (ser de razão), não tem vontade nem ação, no sentido de manifestação psicológica e vida anímica próprias. Estas, só os seres físicos as possuem. Tal fato não significa, entretanto, que lhe faltem vontade e ação, juridicamente falando. Dado que o Estado não possui, nem pode possuir, um querer e um agir psíquico e físico, por si próprio, como entidade lógica que é, sua vontade e sua ação se constituem na e pela atuação dos seres físicos prepostos à condição de seus agentes, na medida em que se apresentem revestidos desta qualidade.

"39. Assim como o Direito constrói a realidade (jurídica) ‘pessoa jurídica’, também constrói para ele as realidades (jurídicas) vontade e ação, imputando o querer e o agir dos agentes à pessoa do Estado.

"A relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é uma relação de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado. Esta é precisamente a peculiaridade da chamada relação orgânica. O que o agente queira, em qualidade funcional - pouco importa se bem ou mal desempenhada -, entende-se que o Estado quis, ainda que haja querido mal. O que o agente nestas condições faça é o que o Estado fez. Nas relações não se considera tão-só se o agente obrou (ou deixou de obrar) de modo conforme ou desconforme com o Direito, culposa ou dolosamente. Considera-se, isto sim, se o Estado agiu (ou deixou de agir) bem ou mal.

"Em suma: não se biparte Estado e agente (como se fossem representado e representante, mandante e mandatário), mas, pelo contrário, são considerados como uma unidade. A relação orgânica, pois, entre o Estado e o agente não é uma relação externa, constituída exteriormente ao Estado, porém interna, ou seja, procedida na intimidade da pessoa estatal."

Para que se possa falar em responsabilidade direta do ex-prefeito por ato que praticou no exercício de suas funções teria que ser provado, de forma clarividente, que este agiu com dolo ou culpa, extrapolando seus poderes de presentação.

Não é o caso vertente no presente caso. Com efeito, em momento algum o autor logrou demonstrar que o ex-prefeito, que figura como réu neste feito, agiu extrapolando seus poderes legitimamente conferidos pelo povo ou, ainda, como dolo ou culpa, no sentido de gerar perdas e danos ao ente administrativo.

Ora, a regra sobre a distribuição do ônus da prova, esculpida no art. 333 do Código de Processo Civil Brasileiro é clara, e determina, no inciso I, que o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito.

Em suma, entendo não ter havido ato ilícito por parte do ex-prefeito Barac da Silva Bento ao ter firmado o convênio nº 040/92. Apenas agiu como representante da pessoa de direito público, agente público, não tendo que se falar em responsabilidade pessoal sua.

Por outro lado, ainda que a análise dos demais pressupostos para a configuração da responsabilidade civil esteja prejudicada a partir do momento em que se verifica que o primeiro desses requisitos não se encontra, por amor à argumentação, hei de afirmar que não se comprovou, em momento nenhum, ter havido dano por parte do Município.

Há apenas alegações esparsas no sentido de que o Município encontra-se no rol dos inadimplentes do SIAFI, sem contudo se demonstrar que a causa para tanto tenha sido a celebração do supra mencionado convênio.

Não procede, pois, o pedido do autor para que seja o réu condenado a pagar aos cofres municipais a importância recebida do convênio, até porque tal importância não reverteu em favor do réu.

Pelo contrário, resta demonstrado que os recursos destinados ao convênio foram depositados diretamente em conta corrente específica mantida pelo Município de Boa Vista (fls. 105).

Da reconvenção

Há reconvenção do réu, pleiteando indenização por danos morais, fundada na responsabilidade objetiva do Estado, "pela propositura da ação temerária que deu origem ao presente processo, em cuja petição inicial se contêm calúnias, difamações e injúrias..." (fls. 67).

Em contestação à reconvenção, o Município de Boa Vista sustenta o não cabimento de reconvenção para haver reparação de dano moral, o que só seria admissível em outra ação.

Sustenta ainda que o Procurador do Município, ao ter incidido na alegada ofensa imputada, agiu coberto de causa excludente de ilicitude, invocando a imunidade do advogado, de acordo com o Estatuto da Advocacia. Entende, pois, ser o reconvinte carecedor da ação.

Com efeito, a reconvenção não merece prosperar, pois o simples fato da demanda revela o exercício regular de um direito constitucionalmente assegurado a todo cidadão que acredita ser legítima a sua pretensão. Assim, não há que se falar em indenização por dano de qualquer natureza pelo simples exercício do direito de ação. Na hipótese da conduta processual se configurar litigância de má-fé, seria cabível a aplicação de sanções pecuniárias previstas no art. 18 do CPC. Mas no caso vertente a conduta do autor não se enquadra em nenhuma das hipóteses do art. 17 do mencionado estatuto, não se justificando a imposição de qualquer sanção.

Assim, julgo improcedente a reconvenção, por não existir conexão desta com a ação principal ou com o fundamento da defesa, requisitos exigidos pelo art. 315, do Código de Processo Civil.


DISPOSITIVO

Face ao exposto, julgo improcedente o pedido da ação de reparação por perdas e danos movida pelo Município de Boa Vista contra o ex-prefeito Barac da Silva Bento.

Custas ex lege. Estribada nos parâmetros delimitados pelo art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil, fixo os honorários advocatícios em R$ 1.000,00 (hum mil reais).

Quanto ao pedido reconvencional, julgo-o improcedente, deixando, no entanto, de condenar o reconvinte em custas e honorários por força da incidência do disposto no art. 20, § 1º c/c art. 21, parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil.

Sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição necessário, em face do art. 475, inciso I, do Código de Processo Civil. Remetam-se, pois, os presentes autos, ao Egrégio Tribunal de Justiça de Roraima.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Boa Vista, 21 de fevereiro de 2003.

GEILZA FÁTIMA CAVALCANTI DINIZ

JUÍZA DE DIREITO SUBSTITUTA



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Reparação de danos ajuizada pelo Município contra ex-prefeito: impossibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16569. Acesso em: 20 abr. 2024.