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Mandado de segurança contra cotas no vestibular

Mandado de segurança contra cotas no vestibular

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Petição inicial de mandado de segurança contra o reitor da Universidade Federal da Bahia, em virtude de norma que reserva 45% das vagas no vestibular para afrodescendentes e indodescendentes.

EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR(A) JUIZ FEDERAL DA VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DA BAHIA, EM SALVADOR

VICTOR LEÃO SAMPAIO LEITE, brasileiro, solteiro, estudante, portador de documento de identidade tipo RG nº xxxxxx, inscrição no CPF de nº xxx.xxx.xxx-xx, residente e domiciliado na xxxxx, nºxx, , Aptºxx, xxx, nesta capital, pelo advogado ao final assinado, constituído segundo os termos do instrumento de outorga de mandato judicial anexo (Doc. 01), o qual possui endereço para intimações na Rua xxxx, nºxx, Ed. xx, Sala xx, Salvador, Bahia, vem, com a devida vênia e fulcro na previsão normativa constante dos Art. 5º, caput inciso LXIX, bem como nos artigos 1º e seguintes da Lei nº 1.533/51 interpor perante esse MM Juízo o presente


Mandado de Segurança com pedido de liminar

em face de ato administrativo, a seguir descrito, da lavra do Magnífico Reitor da Universidade Federal da Bahia, autoridade administrativa com domicílio na End: Rua Augusto Viana, s/nº - Canela - Palácio da Reitoria, CEP 40110-060, nesta capital, notoriamente caracterizado como abuso de poder, consubstanciador de violação de direito líquido e certo do Impetrante assegurado pela norma Constitucional de regência, causando-lhe prejuízo de incerta reparação, justificador do pedido de Segurança formulado a seguir, com espeque nas razões de fato e de direito adiante aduzidas.


Dos fatos

1.Exercendo direito que lhe assegura o ordenamento jurídico positivo o Impetrante se inscreveu e participou do Concurso Vestibular 2005.1, destinado à seleção de alunos para uma das 200 vagas oferecidas pela Universidade Federal da Bahia para o Curso de Direito, nos termos do Edital que o órgão, chefiado pelo Impetrado fez publicar. Bem sucedido em ambas as fases do certame, logrando obter, na primeira, o escore de 8.324,7 pontos e na segunda 7.348,0 o que totalizou um Escore Global de 15.672,7, o Impetrante alcançou a 160ª posição no ranking da seleção, suficiente, portanto, à sua aprovação.

2.Sucede que, em que pese a excelência do seu desempenho o situe em patamar classificatório suficiente ao seu aproveitamento, foi surpreendido com a informação de que não seria aproveitado por inexistência de vaga. Como explicação para essa negação ao seu direito, que contradiz com o número de vagas anunciado, lhe foi dito que, com base nos termos da Resolução nº 01/04 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal da Bahia, das 200 vagas disponibilizadas, 45% (quarenta e cinco por cento) estariam "reservadas" a candidatos privilegiados em razão de sua etnia e condição social. Nos termos da norma suso referida, 43% (quarenta e três por cento) estariam destinadas a candidatos que cursaram todo o ensino médio e pelo menos uma série entre a quinta e a oitava do ensino fundamental em escola pública, sendo que, dentre estes, pelo menos 85% (oitenta e cinco por cento) que se tenham declarado, no momento da inscrição, "pretos" ou "pardos". Ainda de acordo com essa norma, em não havendo preenchimento desse percentual as vagas remanescente seriam preenchidas com candidatos que, embora provenientes de escolas particulares por ocasião da inscrição, se hajam declarado "pretos" ou "pardos". Os 2% (dois por cento) restantes da cota de privilegiados foram reservados a estudantes que se hajam declarado "indo-descendentes" e que tenham cursado, desde a quinta série do ensino fundamental até a conclusão do ensino médio em escola pública. À hipótese de não preenchimento desses dois por cento, as vagas remanescentes seriam assumidas pelos demais candidatos, incluídos nos 55% (cinqüenta e cinco por cento) do universo dos demais de inscritos, não compreendidos nas situações apontadas, ou seja, aos concorrentes que (1) não são (ou não se auto-declararam) afro-descendentes, (2) não (ou não se auto-declararam)são indo-descendentes (3) nem estudaram em escola pública. Numa inusitada ode ao racismo e incompreensível xenofobia em relação a determinado segmento racial e social do universo de candidatos, a norma explicitamente giza no Art. 5º que esse percentual de vagas seria destinado ao contingente de candidatos de "qualquer etnia e procedência escolar", sendo-lhe aplicáveis as regras exclusivas de seleção relativas ao desempenho acadêmico revelado nas provas do Vestibular, clara alusão à não aplicação dessas regras aos contemplados pelo "sistema de cotas".

3.Isso significa que, praticamente, a metade das vagas oferecidas pela UFBA foi reservada, de antemão, para determinado grupo ou categoria de candidatos, o que entra em testilha frontal com o preceito constitucional do Art. 5º da Constituição da República, que preconiza a igualdade absoluta entre brasileiros, notadamente quando em jogo estão bens públicos ou serviços custeados pelo Erário e, por via transversa, pelos contribuintes de todas as etnias de classes sociais. Por menos nã fez em relação ao PactoInternacional sobre Direitos civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembléia Geral das nações Unidas, realizada em 16 de dezembro de 1966 e incorporada ao Ordenamento jurídico pátrio por conduto da entrada em vigor do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, em cujo Art. 26 consta que:

Decreto nº 592,de 6 de julho de 1992 – Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Artigo 26. "Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação".

4.Como se fosse possível ao Reitor dispor das vagas como se tratasse de algo que lhe pertencesse, a metade das vagas reservada aos estudantes oriundos de escolas públicas e integrantes de etnias descendentes de negros e índios foi excluída da regra geral de acesso ao ensino universitário, ou seja, essa facção das vagas não foi disponibilizada para todos os candidatos, mas apenas para os beneficiários eleitos pelo Impetrado através de singela Resolução, sem respaldo de Lei ou de Emenda Constitucional que excepcione os claros termos da Constituição da República para estabelecer a absoluta igualdade de direitos entre os brasileiros e a vedação de distinções.

5.A absurda Resolução 01/04 cria regalia em favor dos candidatos ao vestibular que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas — federais, estaduais ou municipais — situadas no Estado da Bahia, garantindo-lhes, por via transversa, a reserva de vagas, mesmo sabendo que nosso Estado, é o campeão do analfabetismo em todo o País [1], o que dá a exata medida da ‘seriedade’ com que a Educação é encarada por estas plagas e põe em realce o autêntico surrealismo da medida discriminatória. Com a odiosa medida, alheando-se ao fato de que o que o País necessita é de profissionais competentes e que essa excelência se forja nas Universidades, cria-se, assim, um odioso privilégio – verdadeiro pacto de mediocridade - para os estudantes da rede pública baiana, sabidamente menos preparados na medida em que foram prejudicados por absoluta incúria do Poder Executivo Estadual em lhes prover uma formação humanística e propedêutica decente, em detrimento de estudantes oriundos do ensino médio particular, demonizando, portanto,o conhecimento oriundo de estabelecimentos particulares comprometidos com o ensino, em prol de uma rede pública de ensino falida.

6.Quanto à discriminação étnica, o absurdo é ainda maior, pois o raciocínio subjacente é que a Universidade Pública, paga por todos, é ‘loteada’ entre os que possuem ascendência derivada dos indivíduos da raça negra e índios, o que é um despautério num Estado em que, como pela primeira vez foi enxergado e declarado por Darcy Ribeiro, a miscigenação é a palavra de ordem, afirmando que "o Brasil é um país de mulatos". Segundo o sociólogo Waldir de Freitas Oliveira, discernir quem é branco e quem é preto no Brasil é tarefa impossível. Depondo na página da Internet do SciELO - Scientific Electronic Library Online FAPESP, em entrevista, afirma o mencionado estudioso, respondendo à indagação que lhe foi feita a respeito do panorama racial no Brasil não saber, na realidade, "quem é branco e quem é preto, no Brasil". "Se formos adotar o princípio norte-americano de que negro é quem possui um oitavo de sangue negro", afirma, "vamos cair na mesma esparrela que eles caíram. Se formos apurar aqui as ascendências de cada um, acabaremos por endossar a tese de Gilberto Freyre, de que toda história de família brasileira passa, obrigatoriamente, pela beira do rio ou pela cozinha. Dizendo, porém, que sempre existirá, nessa história, lugar para uma lavadeira mulata ou preta, ou uma cozinheira mulata ou preta, não será por aí que poderemos avaliar a situação. Quem deve se definir como negro, branco, mulato ou afro-descendente é o próprio indivíduo".

7.A prosperar o absurdo perpetrado pelo Impetrado – na verdade, como a seu tempo será demonstrado, um crime - além de serem ‘culpados’ por não serem negros, os candidatos de pele clara(ou seja aqueles cuja miscigenação se dissimula no tom da tez, mas transparece, traindo-se no formato dos lábios, do nariz, tipo de cabelos e outros caracteres secundários) também são discriminados pelo fato de, evitando a baixíssima qualidade do ensino público, haverem optado, com sacrifício próprio ou de seus pais, por realizar seus estudos em escolas particulares, o que, em absoluto implica em não possuírem a condição de carentes,em que pese hajam realizado seus estudos em escolas pagas. Como se sabe, há no Brasil inteiro, escolas particulares — laicas ou confessionais, com ou sem finalidade lucrativa — que atendem a uma parcela da população de baixa renda que não consegue ser absorvida pela rede pública, mas,nem por isso, cobram preços somente possíveis às camadas da classe média alta da população, donde o despautério de associar o fato de haverem realizado seus estudos fora da rede pública à sua condição de ‘ricos’. Tão pobres quanto os de pele escura, esses candidatos são duramente discriminados pelo mecanismo de acesso à Universidade Federal da Bahia criado pelo Impetrado à revelia do ordenamento jurídico sem falar, é claro, da manifesta discriminação em relação aos estudantes de classe média oriundos da rede de ensino particular que não são considerados carentes,em relação aos quais inexiste razão de direito que autorize seu alijamento de algo que, por Lei lhes pertence, na medida em que é custeada com dinheiro público. Não bastasse, cria-se um paradoxo, pois todos sabem que o Estado da Bahia investe menos do que o que deveria em educação, dessa realidade sendo indiciária o fato de ser o ‘campeão em analfabetismo’, batendo os demais Estados em todo o País. A esse respeito estatísticas do IBGE apontam níveis de analfabetismo nas plagas baianas superiores aos dos demais rincões pátrios os quais não decorrem de nenhum cataclisma ou fatalismo histórico. O que existe é falta de investimento, falta de seriedade e equivocada distribuição de recursos por parte dos políticos que são os ‘donos da Bahia’, que preferem privilegiar programas populistas e eleitoreiros como a famigerada "Cesta do Povo" a propiciar os meios para uma Educação decente. Num quadro como este, privilegiar os que realizaram sua formação propedêutica nas péssimas condições em que o ensino fundamental e médio é praticado nas escolas públicas baianas em detrimento dos que se desvelaram, mercê do suor dos seus pais para concluir o segundo grau em estabelecimentos particulares é uma ignominiosa discriminação em prol de uma vaga noção de ‘igualdade social’.

8.O mais grave é que, não obstante haja estabelecido um ‘loteamento’ das vagas, a metodologia da avaliação não foi modificada. Ou seja, o nível de exigência das provas foi comum a todos, mas a interpretação dos rendimentos, diferente, o que fez com que os erros e acertos de um ‘privilegiado’ tenha sido considerado de modo diferente pelos escrutinadores. Segundo informação prestada pelo pró-reitor de graduação da Ufba, MAERBAL MARINHO em entrevista concedida ao Jornal A TARDE, publicada na edição de 28 de março do corrente ano, manteve-se o mesmo nível de exigência das questões para todos. Apenas na correção das provas e na convocação, procedeu-se à discriminação racial e social, o que põe em destaque a absoluta injustiça das regras. "Para tirar qualquer tipo de dúvida", fez questão, a esse respeito, o pró-reitor, de informar, "a universidade ‘rodou o ponto de corte’, calculado pelo computador, como todos os anos, sem nenhuma interferência". ‘Só foi inserida outra faixa de classificação para os cotistas, que – desse modo - obtiveram médias acima do ponto de corte’, explicou Marinho". Em outras palavras, o grau de dificuldade foi comum a todos os candidatos, porém os acertos dos privilegiados valeram mais; seus erros,valeram menos e o resultado é o que foi ilustrado pela mesma reportagem, a partir da situação de dois vestibulandos, escolhidos como ilustração para a surrealista realidade criada pela malsinada norma interna do Impetrado:

"Os dois são da classe média e com renda familiar em torno de R$ 4 mil. Com estilos de vidas semelhantes, as histórias de MATHEUS COTRIN e IVANA SANTOS se cruzam exatamente no vestibular. Tudo por causa do polêmico sistema de cotas criado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). IVANA sempre estudou em colégio particular. O esforço da mãe, que tira da massoterapia o sustento da casa, visava realizar o sonho da filha de cursar direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA). IVANA não decepcionou. Obteve um bom desempenho no vestibular e ficou na 139ª colocação das 200 vagas oferecidas. Realizaria seu sonho, não fosse a política de cotas da universidade, que reserva 45% das vagas para estudantes de escolas públicas, considerando-se também a etnia. "Fiquei indignada. Foi a mesma coisa que rasgar a Constituição. A UFBA acabou com a igualdade de direitos", acusa IVANA SANTOS, que já acionou um advogado para entrar com um processo na Justiça contra a universidade. Completa: "Agora quero reunir mais colegas do cursinho onde estudei para entrar com uma causa coletiva". Apesar de ser afro-descendente, Ivana não pôde entrar no critério das cotas porque sempre estudou em escola particular. "Acho isso errado. A gente passa a vida toda pagando colégio para entrar numa universidade de qualidade como a Federal e termina perdendo a vaga assim", lamenta. "Também não vou mais tentar a UFBA. Até porque acho que pela Justiça eu passei", consola-se. Resta a IVANA continuar cursando direito na Universidade Católica, onde não considera ter um ensino de qualidade".

"A indignação de IVANA está do mesmo tamanho que a alegria de MATHEUS. Apesar de levarem vidas parecidas, MATHEUS estudou desde a quinta série do ensino fundamental no Colégio Militar, do ensino público. Ele conseguiu apenas a 360ª posição no mesmo vestibular, mas ficou com uma das vagas reservadas. Ele foi um dos selecionados pelas cotas. "Eu posso até ter tirado outras pessoas que se classificaram melhor, mas acho que a culpa não é minha. O sistema de cotas é justo para uns e injusto para outros", observa MATHEUS. Ao contrário do que diz Ivana, MATHEUS não tem medo de sofrer preconceito dentro da universidade. "Tenho nariz grande, boca grande, cabelo crespo e não tenho preconceito nem medo. Acho que entrar numa universidade federal já é um estímulo a mais para estudar. Vou receber o mesmo ensino que meus colegas e não tem motivo para eu aprender menos", assegura. Em situação semelhante à de MATHEUS COTRIN está JOÃO GABRIEL ARAÚJO. Filho de policial aposentado, ele sempre estudou no Colégio da Polícia Militar. Um dos 8.427 pardos provenientes do ensino público inscritos no vestibular, Gabriel ficou em 337º e foi beneficiado pelas cotas. "Eu sei de uma coisa: se não tivesse as cotas eu não passaria. Mas se eu tivesse estudado em um bom colégio particular talvez eu passasse do mesmo jeito. É questão de igualdade de oportunidades", diz".

ou seja, o princípio da igualdade de todos ante o princípio da valorização dos mais aptos foi completamente relegado a esquecimento, pois pessoas menos qualificadas foram reputadas mais aptas, tendo sido aprovadas, ao passo que candidatos, como o Impetrante, de melhor desempenho, foram alijados da seleção. Artificial, esse critério, ao invés de levar o aluno à Universidade, levou a Universidade ao aluno tornando lícito supor que produzirá, em breve futuro, duas categorias de profissionais: engenheiros, médicos, advogados, juízes e promotores que lograram ingressar na Universidade sem mérito, o que pressupõe não contem com formação propedêutica suficiente ao acompanhamento do curso e os que o fizeram com mérito, sendo previsível a futura discriminação que os primeiros sofrerão mercê do baixo desempenho que terão em suas profissões, salvo se, também para as profissões for criado um ‘sistema de cotas’. Se mais este absurdo for perpetrado, resta saber o que se poderá esperar desses profissionais resultantes do ‘apadrinhamento’ da era petista, em suas futuras profissões: quantos erros médicos sobrevirão, quantas vidas serão sacrificadas quantos edifícios, viadutos e prédios desabarão, quantas causas serão perdidas por inépcia de advogados incompetentes ou injustiças serão cometidas por profissionais do Direito despreparados para, em suas funções, dizerem o direito, apenas para citar alguns exemplos, lembrando que, no que respeita a esta categoria, sabe-se que, mesmo sem as ‘cotas’ os percentuais de aprovação nos Exames de Ordem da OAB são ínfimos. Imagine-se como o será quando os cotistas chegarem lá...

9.A norma restritiva do direito do Impetrante – mera diretriz inter corporis não respaldada por nenhuma lei em sentido estrito - contém a marca de evidente inconstitucionalidade. Basta observar que em prevendo o Art. 5º da Lex Legum que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade", a desobediência a esta norma que contém o sinete de cláusula pétrea implica em ominosa inconstitucionalidade, somente sendo possível através de uma Emenda Constitucional, jamais mediante norma de menor estatura. Sob outro aspecto, pelo fato de impor distinção de tratamento com base em critério étnico, incorre em verdadeiro crime de racismo, o qual é igualmente vedado pela Constituição da República. Por fim, implica em violação de outra norma constitucional, desta feita relativa ao acesso à educação, cujo teor alude à diretriz no sentido de que – "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família (...)" (arts. 205 e 227) – e significa que, em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206), em segundo, que ele tem que ampliar cada vez mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito, o que, por certo não é reduzindo o nível do ensino e, em terceiro lugar, que todas as normas da Constituição sobre educação e ensino, hão que ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização. Nesta ordem de idéias, se a denegação do acesso do Impetrante à vaga na Universidade pública - a qual, em sendo custeada pelos impostos de todos os brasileiros - não importa a cor de sua pele - não pode ser objeto de ‘loteamentos’, ‘reservas’ ou sectarismos de nenhum matiz – não decorre de Emenda Constitucional, nem de Lei em sentido estrito a denegação do Impetrante é ilegítima.

10.Sob esta interpretação, considerando que o Autor obteve classificação que o insere taxonomicamente na quantidade de vagas disponíveis – o que constitui direito líquido e certo seu à vaga pleiteada - evidencia-se o caráter odioso da medida restritiva e sua índole de abuso de direito, a justificar a presente impetração, colimando o restabelecimento do Estado Democrático de Direito e o reconhecimento do direito líquido e certo do Autor à matrícula no Curso para o qual foi aprovado, ensejando, à inexistência de outra via para fazer valer seu direito, a necessidade de interposição do presente writ of mandamus. Outrossim, considerando que as matrículas para o segundo semestre ainda não foi iniciada, mas o planejamento acadêmico inadmite solução de continuidade, nessa circunstância será justificado o pedido, a seguir deduzido, de provimento liminar que promova a inclusão incontinenti do Acionante ao contingente de matriculados, evitando que o abusivo ato de eliminação sumária e imotivada que o alijou do certame concretize seus deletérios efeitos em sua esfera jurídica.


O direito

1.Como é cediço, em homenagem à ampla acessibilidade de todos os cidadãos brasileiros às vagas nas Universidades mantidas mediante os tributos pagos pelos contribuintes, aos quais, desde que preencham as exigências legais, estão, em linha de princípio, sem exceção, disponíveis todas elas, as regras de seleção de candidatos ao seu preenchimento são tributárias da mais absoluta legalidade na sua realização. Essa legalidade se deve iniciar com inclusão nos Editais dos requisitos para o acesso aos cargos constantes de lei em sentido estrito (cf. Art. 37-I da Constituição Republicana) e prosseguir mediante normas editalícias claras, inequívocas e referendadas tanto pela Lei Maior quanto por Lei ordinária.

2.A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo conjunto de valores para a sociedade brasileira, dentre os quais incluem-se a valorização dos direitos humanos e o combate a todos os tipos de discriminação, conforme preceituado já no preâmbulo da Lei Maior: "nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)". Em outra passagem o texto é ainda mais explícito, senão vejamos:

Constituição da República, Art. 3º. "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

3.Com efeito, da leitura preliminar do texto constitucional relativo à vedação de discriminação entre brasileiros pode-se inferir que até mesmo ao legislador ordinário seria vedado instituir preconceito de raça ou cor, sendo, portanto, patente a incompatibilidade entre a Constituição e uma "lei de cotas" que, hipoteticamente, viesse a ser aprovada em nível federal (pois como se sabe, a competência para legislar a esse respeito é exclusiva da União), eis que, em o fazendo, consagraria uma discriminação por motivo de raça e condição social (outra forma de discriminação). Ora, considerando que se tal lei existisse seria inconstitucional, o que não dizer de uma mera Resolução interna de um mero órgão de segundo escalão de um Ministério? Além desse aspecto vinculado à ilegalidade da regra que discriminou o Impetrante, há outro princípio constitucional de enorme valor por ele posto em xeque, que é o direito constitucional à igualdade.

4.Louvam-se os acólitos desse regime discriminatório de raciocínio simplista, que existe desde Aristóteles e é formulado nos seguintes termos: "se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes de desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais). [2]" é a antiga cantilena de que, "tratar desiguais de forma desigual é um pressuposto de justiça". Sob o influxo dessa espécie de cogitação, "o filho de uma empregada doméstica, moradora de favela, e o filho de um desembargador, morador da zona sul, serem tratados em igualdade plena, seria uma teratologia jurídica e moral". Entretanto, há que por um grão de sal nesse discurso populista e ‘filosofia barata’ de botequim, que, logo de saída se choca com o preceito constitucional que preconiza a igualdade plena, sem ressalva de qualquer natureza: o que garante aos legisladores que o filho da empregada não poderá, com esforço realizar seus estudos e alçar a condições sociais importantes, já que inexiste qualquer óbice ‘oficial’ à sua ascensão? Não é neste País que um ex-retirante nordestino, pouco escolarizado, ex-metalúrgico se tornou Presidente da República sem se valer de cotas? De outro lado, quem assegura que o filho do rico, descambando para as drogas e o epicurismo desenfreado não vá terminar na sarjeta? Mais. Quem assegura que o filho do pobre é, necessariamente negro ou pardo e o filho do desembargador, branco, já que existem desembargadores e até um Ministro do STF negros? Ora, não há tal garantia, e disto resulta a primeira grande questão das normas que instituem sistemas de cotas. Sendo uma norma criada para criar maiores oportunidades aos economicamente desprivilegiados, o tiro pode acabar saindo pela culatra: haverá um duplo privilégio para o negro ou pardo abastado pari passu com uma dupla discriminação para os pobres de pele clara, principalmente se seus pais, acreditando no stablishment, se desvelaram para colocar seus filhos, mulatos claros ou brancos (ou nipônicos) em escolas particulares.

5.Ora, o fato de ser negro, pardo ou branco, por si só, não é um fator que define a condição econômico-social do cidadão. É claro que a população negra e parda tem um histórico de marginalidade muito maior que a população branca, mas isso não significa que se possa fazer generalização, ainda mais quando se toca num aspecto tão delicado das sociedades democráticas, qual seja, a igualdade entre os cidadãos. A opinião dos doutrinadores sobre o princípio da igualdade segue este mesmo raciocínio. Veja-se a esse respeito, escólio de ALEXANDRE DE MORAES, um dos grandes constitucionalistas brasileiros:

"a desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos". [3]

De forma mais direta, diz ele: "o que se veda são diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas". [4] Nesse sentido, é perfeitamente admissível que a lei faça discriminações desde que calcada em justificativa objetiva e razoável, observados os juízos valorativos normalmente aceitos, bem como a relação de proporcionalidade entre meios e fins a ser atingidos. Exempli gratia, o concurso público para a Polícia Militar faz discriminação relativa à altura, peso e idade. Pergunta-se tal sorte de discrímen é justa? é razoável? A resposta só pode afirmativa! Em primeiro lugar, por se tratar de acesso a uma função publica para a qual é imprescindível a boa forma física, a qual é característica fundamental para o profissional que lida com a criminalidade. Um policial incapaz de correr ou um bombeiro afetado por excesso de peso será quase que completamente inútil numa situação de risco. Diante de tal perspectiva, havendo discriminação nesse concurso, é perfeitamente razoável que tal se faça, mas é consenso que ela não atenta contra a ordem constitucional, porquanto calcada em ostensiva razoabilidade. Não é o que se passa em relação a vagas na Universidade Pública, já que discriminação imposta a nenhum objetivo de interesse público serve. Se investigada a razoabilidade da portaria do Impetrado que estabeleceu o regime de cotas, as conclusões serão diversas das encontradas no exemplo anterior: a justificativa para sua criação, em tese, é nobre, por tratar de medida de combate à desigualdade, mas não é objetiva, nem razoável, nem legal. A pedra de toque para extinguir o baixo acesso dos socialmente desvalidos consistiria em elevar o nível do ensino nas escolas públicas e não em reduzir o nível de exigência para o ingresso no ensino superior, dentre outras razões, pelo fato de nas Universidades vir a se formar a elite pensante e dominante do futuro, o que, num mundo competitivo e globalizado como o atual, exige cada vez mais pessoas preparadas para o desafio do futuro: de nada adianta um País ter um Presidente que veio dos estratos sociais inferiores se, à testa de suas elevadas funções de primeiro magistrado da Nação, sendo monoglota, pouco instruído, mal-informado, desprovido, enfim, daquele descortino intelectual, típico dos líderes mundiais que somente o amor aos livros e a vivência acadêmica podem propiciar, terá um desempenho medíocre e completamente aquém do que o grandioso destino do País exige. É refletir e indagar: o que garante que negros ou pardos, oriundos de péssimos colégios – públicos, diga-se de passagem - conseguirão subir socialmente ao cursar uma universidade pública? Não há essa garantia, pois o só-fato de ingressar numa Universidade não assegura a ninguém o condão de se tornar um profissional, capaz de adquirir destaque social por sua excelência: não é um prêmio de loteria, não é uma ‘convocação’ para o Big Brother. Não. Há a trajetória a cumprir, as dificuldades naturais do curso, e, com ele a lida acadêmica, para cujo aproveitamento é imprescindível o hábito da leitura, o domínio dos fundamentos do conhecimento propedêutico, enfim a base teórica que os privilegiados pelo sistema de cotas em tese não possuem, pois, se assim não fosse, teriam sido aprovados sem essa benesse. Também não é razoável, pois que, como já dito, características físicas, como cor de pele ou raça, não têm quaisquer relações comprovadas com características sociais.

6.Um terceiro aspecto a ser considerado é o seguinte: a norma de cotas baixada pelo Impetrado é inviável, dados os termos em que a Constituição Federal aborda a questão. Se a Carta Magna diz que não pode haver preconceito, é porque assim deve ser, sem concessões de nenhuma espécie. A primeira medida, portanto, para tornar sem efeito um princípio constitucional estampado claramente no texto da Lei Maior e, desse modo, outorgar legitimidade à idéia das cotas é uma emenda à Constituição, não uma lei ordinária e muito menos, uma inútil Resolução universitária. Debalde pretender-se desrespeitar a Constituição e o Estado de Direito simplesmente porque os que detêm, momentaneamente, o poder, tendo provindo de camadas sociais inferiores, querem, com evidente propósito eleitoreiro, dar aos cidadãos que não possuem mérito para isso - de bandeja - a formação universitária que, não lograriam obter sob as regras ordinárias, "vingando-se" do sistema a que não tiveram acesso, embora nada, além de sua inapetência pelos estudos, os apartasse do objetivo da consecução de um diploma universitário. Nesta ordem de idéias, ainda que com a desculpa de visar objetivo nobre, não podem os que detêm o Poder de decisão, malferirem a Constituição. A esse respeito o prestigioso jurista LUÍS ROBERTO BARROSO, comentando a força normativa da Constituição, asseverou:

"Embora resultantes de um impulso político, que deflagra o poder constituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é documento jurídico. E as regras jurídicas, tenham ou não caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataformas políticas. [5]"

Isto significa que, se a Constituição não incluiu entre seus princípios a possibilidade de criação de privilégios sob nenhum pretexto, atos normativos como a Resolução nº 01/04 da Universidade Federal da Bahia não podem adquirir foro de cidadania, principalmente porque instituem o racismo entre nós, a pretexto de promover a presença de determinado segmento étnico ter assento nos bancos acadêmicos.

7.Conforme já disse JOSÉ AFONSO DA SILVA, o conhecido constitucionalista, a Constituição estava atenta ao problema do racismo, mas não para incentivá-lo e sim para extirpar de vez a possibilidade dessa chaga social. Não foi por outro motivo que assegurou PARA TODOS os cidadãos o direito à educação. Se a idéia das ações afirmativas houvesse animado o Constituinte, por certo a dicção constitucional acenaria com essa possibilidade, não o tendo feito pela previsível decorrência de instigação de ódios raciais caudatários da segregação, algo que jamais integrou – pelo menos antes do mandarinato petista que ora detém o poder – integrou o ideário dos legisladores brasileiros. Assim, já que o acesso ao ensino é direito subjetivo público, então para quê o texto constitucional instituiria o sistema de cotas? Colacione-se, portanto, a lição do referido constitucionalista sobre o acesso à educação:

(...) a norma, assim explicitada – "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família (...)" (arts. 205 e 227) -, significa, em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206); que ele tem que ampliar cada vez mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito; e, em segundo lugar, que todas as normas da constituição, sobre educação e ensino, hão que ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização. (p. 316) [6].

Como se não bastasse a simples e evidente constatação da inconstitucionalidade da Resolução que, espuriamente, inaugurou o sistema de cotas, a metodologia adotada para aferição dos candidatos negros e pardos é simplesmente pífia. Na verdade, a regra não beneficia os negros ou pardos, mas sim os auto-declarados negros ou pardos, e entre estes e aqueles existe um grande abismo, aberto aos aproveitadores. Em suma, ao dar azo para a fraude, a Resolução causa sérios danos aos estudantes que efetivamente se dedicaram para a realização das provas do vestibular.

A esse respeito, em excelente ensaio sobre a posição dos afro-brasileiros na educação brasileira, o sociólogo AHYAS SISS já constatava a impossibilidade jurídica para o sistema de cotas:

"Na nossa última Constituição Federal, muito embora esteja estabelecido ser o racismo um crime inafiançável e imprescritível, não incorporou o princípio da ação afirmativa (ou assistência compensatória, na versão americana) através do qual reconhecia-se que os afro-brasileiros, "submetidos à exploração e a dominação, eram credores de uma assistência especial por parte do Estado [dito] democrático para igualarem-se aos brancos na raia da competição". [7]


Sobre "ação afirmativa" e "regime de cotas": a experiência americana

1.Pedindo vênia para alongar ainda mais esta exposição, por presumir que, inelutavelmente, a discussão a ser iniciada com a presente ação resvalará para o tema das ‘ações afirmativas’ impende dedicar algumas linhas a esta faceta o fenômeno em estudo. Pesquisadores e estudiosos como FLÁVIA PIOVESAN a estas se reportam, gizando que

"Diversamente dos EUA, que, desde a década de 60, iniciaram o processo de adoção de políticas afirmativas nas esferas do trabalho e da educação, no Brasil o tema é ainda inovador. As ações afirmativas em favor dos afro-descendentes passaram a compor a agenda política nacional especialmente com a Conferência da ONU contra o Racismo, Xenofobia e outras formas de Intolerância correlata, em Durban, realizada em setembro de 2001. O documento oficial do Estado Brasileiro à conferência defendia a adoção de tais políticas no trabalho e na educação. Após Durban, as primeiras iniciativas de ação afirmativa foram desenhadas no Brasil, por exemplo, por meio de decreto de 13 de maio de 2002, que criou no âmbito da Administração Pública Federal o Programa de Ação Afirmativa, bem como por meio de iniciativas no plano educacional, com a adoção de cotas para afro-descendentes em Universidades dos Estados da Bahia, Rio de Janeiro e, recentemente, na UnB (a primeira Universidade Federal a fazê-lo) [8].

, o que constitui ledo – e ivo - engano.

2.A expressão "ação afirmativa", comumente usada no contexto do combate a diferentes formas de exclusão ou discriminação social, é de uso recente no Brasil. Trata-se de tradução literal da expressão "affirmative action" adotada pela primeira vez, em 1961, pelo Presidente John F. Kennedy em momento histórico que marcava o início da histórica campanha pelos direitos civis. Nesse sentido, a primeira providência de Kennedy foi um decreto executivo [9] por meio do qual mandou incluir nos contratos de fornecimento governamentais cláusula por cujo intermédio o fornecedor se comprometia a não discriminar seus empregados e candidatos a empregos, em razão de raça, credo, cor ou origem. Além disso, o fornecedor obrigava-se a adotar "ação afirmativa" para evitar qualquer forma de discriminação na relação de emprego ou nos critérios de seleção de candidatos a emprego. Nos anos seguintes, o conceito de ação afirmativa ganharia maior densidade e abrangência. Em 1964, o Estatuto dos Direitos Civis (Civil Rights Act of 1964) determinou que ninguém poderia ser discriminado ou excluído da participação nos benefícios de qualquer programa ou atividade que recebesse assistência financeira federal, em razão de raça, cor ou origem [10]. No ano seguinte, o presidente Lyndon B. Johnson afirmou em discurso na Universidade de Howard que o que se buscava com a política de direitos civis não era apenas "igualdade como um direito e uma teoria, mas igualdade como um fato e igualdade como resultado" [11]. Em 1971, no governo Richard M. Nixon, o Ministério do Trabalho norte-americano determinou que todos os que contratassem com o governo deveriam desenvolver "programas de ações afirmativas aceitáveis", o que implicava na "análise das áreas em que o contratante fosse deficiente na utilização de grupos minoritários ou mulheres". [12] Observa-se, portanto, que o que se chamou de "ação afirmativa" nos Estados Unidos não teve, na origem, o caráter erga omnes típico da intervenção estatal direta e impositiva do poder público. Na realidade, o governo federal norte-americano valeu-se do seu "poder de compra" para impor aos contratados políticas anti-discriminatórias.

3.Essa forma oblíqua de tratamento da discriminação foi uma decorrência inevitável do modelo de federalismo "fraco" norte- americano, fundado, de um lado, no alto grau de autonomia dos estados- membros, e, de outro, na aversão da sociedade ao big government - o governo intervencionista e centralizador. Desde então, coube ao Judiciário em geral e à Suprema Corte em particular expandir ou restringir, em uma série de casos concretos, o conceito de ação afirmativa. Mas, ao contrário da percepção brasileira leiga a respeito da extraordinária experiência norte-americana, as ações afirmativas: não se limitaram ao estabelecimento de cotas compulsórias. Na realidade, como se demonstrará a seguir, o sistema de cotas sempre esteve no centro da polêmica, na medida em que elas próprias podem constituir forma de discriminação. Em 1978, a Suprema Corte americana concluiu, no julgamento do Caso Bakke [13], por estreita maioria (cinco votos a quatro) que o sistema de cotas (16% das vagas) adotado pela Escola de Medicina da Universidade da Califórnia para admissão de alunos oriundos de minorias étnicas (negros, chicanos [14], asiáticos e índios americanos), que também preenchessem o requisito de desvantagem econômica ou educacional, violava a Cláusula da Proteção Igualitária da Constituição (Décima Quarta Emenda). Ou seja, o critério adotado – tal como se dá na espécie vertente - na opinião majoritária da Corte, implicou em discriminação de candidatos brancos. Não obstante, a Corte também entendeu que em determinadas circunstâncias — no caso a diversidade de ensino — seria possível levar em conta o fator racial. Neste ponto, pelo voto em separado de quatro juízes, definiu-se como ação afirmativa o objetivo de superar a sub-representação racial em determinada atividade, sempre porém sob estrito controle judicial. Sobressai, assim, o repúdio do Judiciário norte-americano em relação ao uso de ações afirmativas baseadas tão-somente em sistema de cotas raciais ou étnicas.

4.Nos 25 anos seguintes, o precedente estabelecido no caso Bakke e o voto do Justice Lewis E. POWELL JR. foram interpretados e reinterpretados sempre no sentido de que o fator racial somente pode ser levado em conta em conjunto com outros fatores — jamais como um fim em si mesmo — mas como meio de assegurar a "diversidade" do ensino. Finalmente, em 2003, a Suprema Corte voltou a enfrentar o tema no caso Grutier versus Boilinger et al [15]. no contexto da política de seleção de candidatos para o curso de graduação da Escola de Direito da Universidade de Michigan. Com vistas assegurar a diversidade do ensino jurídico, a Escola de Direito da Universidade de Michigan alega levar em conta fatores tais como competência acadêmica, talento, notas escolares e o resultado de teste específico de admissão às Escolas de Direito nos Estados Unidos. Argumenta ainda que diversidade acadêmica não é definida somente em termos raciais ou étnicos, se bem que faça referência específica à inclusão de afro-americanos, hispânicos e indígenas. Sem jamais referir- se a cotas ou percentagens, a Universidade afirma que o objetivo da diversidade exige formação de "massa crítica", ou seja, de um número significativo de estudantes recrutados em minorias sub-representadas. Mais uma vez por estreita maioria (cinco votos contra quatro), a Suprema Corte americana entendeu, pelo voto da Justice SANDRA O’CONNOR, válida a política de seleção da Universidade de Michigan, sob os seguintes argumentos: (a) o uso do critério racial foi o estritamente necessário (narrowly tailored) para alcançar os benefícios decorrentes de um corpo discente diversificado; (b) nem toda decisão influenciada por fator racial é passível de objeção, desde que esteja, como no caso, sob estrito controle judicial; (c) o conceito de "massa crítica" integra o objetivo de interesse público de um corpo discente diversificado (patentemente inconstitucional seria o uso do conceito de massa crítica apenas para justificar a fixação de determinado percentual de candidatos de um grupo específico apenas em razão de raça ou origem étnica); (d) a política adotada não isola os candidatos em categorias que evitem submetê los à concorrência com todos os demais candidatos. Verifica-se, portanto, que em Grutter versus Boilinger a Corte norte-americana não cria nem subtrai nenhuma das condições enunciadas no caso Bakke que permitem considerar o fator racial apenas um plus, rigidamente concebido e controlado, vedado o estabelecimento de cotas ou percentuais.

5.No Brasil, talvez em razão do baixo conhecimento a respeito do ambiente histórico em que se processou a evolução da política dos direitos civis nos Estados Unidos, a ação afirmativa tem sido usada como sinônimo do sistema de cotas algo, que, no fundo, foi o que fez o "legislador" universitário no caso concreto. Ora, nada mais equivocado, como esclareceu o historiador JOSÉ MURILO DE CARVALHO, em artigo doutrinário:

"Grande confusão semântica entrava o debate sobre políticas voltadas para as minorias sociais. Trata-se do uso dos termos cota e ação afirmativa como se fossem sinônimos... . Defende- se ação afirmativa na presunção de se estar defendendo cota. São coisas diferentes. Cota é apenas uma forma de ação afirmativa, entre inúmeras outras modalidades possíveis. Ação afirmativa é gênero, cota é espécie. Ação afirmativa é toda política voltada para a correção de desigualdades sociais geradas ao longo do processo histórico de cada sociedade. Baseia-se na convicção de que a justiça social exige que a igualdade não seja apenas legal e formal e que, portanto, é legítimo, e mesmo mandatário, que o poder público tome medidas para reduzir a desigualdade entre cidadãos".

6.Essa límpida definição de ação afirmativa mostra que ela não tem uma conotação jurídica, mas um sentido essencialmente político. A ação afirmativa é uma estratégia de enfrentamento de desigualdades que certamente influenciará decisões govemamentais, orientará o processo de elaboração legislativa e inspirará novas formas de interpretação das leis. São exemplos recentes de ações afirmativas, o Programa Fome Zero, o Programa Bolsa-Escola, os programas de assentamentos rurais e outros tantos que visam tornar efetivos direitos até agora tratados como abstrações constitucionais, os quais somente se têm como plausíveis porque beneficiam os reputados necessitados sem privar os demais dos seus direitos constitucionais. No caso do acesso às Universidades, legítima seria uma ação afirmativa que incrementasse o ensino público (pagando melhor aos professores, dotando as escolas de bibliotecas, laboratórios de pesquisa, redes de computadores, etc.), de molde a torná-lo competitivo e a fazer com que os alunos dele egressos conquistassem o direito de acesso ao ensino superior por puro mérito e não porque o governo do Partido dirigidos por simplórios ‘facilitou as coisas’ para eles, sem atentar para o fato de que a Universidade é o esteio da cultura e intelligtenzia de um povo, e tal como se dá nos sistemas de vasos comunicantes da Física, quanto mais baixo o nível acadêmico dos seus próceres, menos evoluída será a nação.

7.O mais preocupante é que a adesão atabalhoada e incondicional ao sistema de cotas não é fruto apenas da falta de informação. Decorre, também, de uma tentativa de uniformizar a questão da discriminação, de simplificá-la para fins de combate, ainda que passando por cima dos processos históricos e deixando de lado as raízes sociais, culturais e religiosas de cada povo. Não se trata, entretanto, aqui, de entrar na interminável e sempre "preconceituosa" discussão de se a discriminação social, racial, étnica ou religiosa no Brasil é menor ou maior do que nos Estados Unidos. Basta anotar, para fins de análise, que os processos históricos evoluem de maneira diversa e qualquer tentativa de reducionismo só poderá comprometer a qualidade da decisão política da questão. Nesse sentido, a análise comparativa ajuda a compreender as diferenças e a rejeita as equiparações simplistas. A escravidão negra é, por certo, o dado comum aos dois países. Lá o racismo deita raízes na própria concepção da República. Leia- se o que diz o Justice BRENNAN na abertura do seu voto no Caso Bakke:

"nossa Nação foi fundada no princípio de que ‘todos os homens são criados iguais’. No entanto, a franqueza exige que se reconheça que os autores da nossa Constituição, ao fundir as treze colônias numa Nação, claramente comprometeram esse princípio de igualdade com a sua antítese: escravidão." [16]

8.Em outras palavras, a República norte-americana, ao contrário da República brasileira, nasceu oficialmente escravagista. A abolição da escravatura, nos Estados Unidos, passa por uma guerra civil que custou 600.000 vidas — algo desconhecido na história brasileira. Finda a guerra, o ódio racial instalou-se no Sul em razão da miséria a que foi reduzida a população branca em conseqüência da terrível devastação provocada pela guerra. Comparativamente, em nenhum momento o Brasil conheceu a segregação racial nos transportes e nas escolas públicas; jamais enfrentamos a separação oficial - separate but equal - referendada pela Suprema Corte americana; nunca tivemos que conviver com a intolerância religiosa – pelo contrário, cedo praticamos o sincretismo e as festas populares de Salvador são um alegre caldeirão de mitos cristãos e pagãos; e nosso perfil racial foi marcado, desde os primórdios da colonização, por intensa miscigenação, o que não ocorreu no Estados Unidos.

9.É possível até que a discriminação social fundada na pobreza seja maior aqui do que lá, mas nada autoriza o reducionismo histórico com que o Impetrado tratou o assunto, criando, oficialmente, o regime de racismo à brasileira, e,inadvertidamente, praticando o crime previsto na Lei nº. 7.716 de 1989 [17], em cujo Art. 6º resta consignado que é crime punido com pena de reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos, agravado de um terço se for praticado contra menor de 18 (dezoito) anos, a conduta de "recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau", por motivo de discriminação racial.

10.Importar a tal ‘ação afirmativa’ da forma atabalhoada pela qual o Impetrado o fez é o mesmo que comparar a discriminação racial americana e brasileira com o moderno ódio religioso e étnico do Leste da Europa. A esse respeito, o educador EDGAR FLEXA RIBEIRO [18] ao criticar a tentativa de se erigir a cota racial como a ação afirmativa por excelência, refere-se ao "servilismo cultural" como "uma das mais óbvias e típicas manifestações de dependência das sociedades periféricas que, no afã de se mostrarem mais próximas do centro a que estão submetidas, imitam canhestramente o que entendem ou pensam entender que está se passando por lá". E exemplifica:

"... Ninguém ignora a discriminação no Brasil. Mas a história do negro brasileiro, sua posição e trajetória são iguais à do negro norte-americano? São diferentes em vários e importantes aspectos, a começar do fato de que a partir da abolição da escravatura não se conheceu aqui o que nos Estados Unidos veio a ser um regime institucionalizado de segregação racial. Nunca houve [no Brasil] um bonde para branco e outro bonde para negro. Houve escola em que o negro não era aceito ou à qual não tinha acesso por uma infinidade de razões, inclusive — mas não exclusivamente — raciais. Mas a rede pública de ensino, por exemplo, já desde o final do Império não discriminava brancos e negros. O nível de alfabetização não era medido diferentemente para negros e brancos, e ninguém foi barrado por ser negro para exercício de cargos ou funções públicas."

11.Isto faz com que a informação da referida FLÁVIA PIOVESAN, no artigo antes citado, no sentido de que

"No último dia 23 de junho, a Suprema Corte dos EUA decidiu pela constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, ao julgar caso da Universidade de Michigan em que se questionava o sistema de admissão da Faculdade de Direito orientado ao favorecimento de minorias raciais. A Faculdade de Direito de Michigan tem 3500 candidatos para 350 vagas. Sem a adoção das ações afirmativas, os negros comporiam 4% do corpo de alunos, ao passo que, com as ações afirmativas, passam a compor 14,5%. A decisão irradiará impacto para situações semelhantes em escolas particulares e no mercado de trabalho".

à qual a referida autora pretende atribuir conotação de exemplaridade, nenhum significado possua em relação à nossa realidade.

12.Não obstante, o exemplo norte-americano no combate à segregação de minorias — não necessariamente apenas pelo regime de cotas — certamente ajuda a compreender a complexidade do problema. No Caso Bakke, já referido, a Suprema Corte americana enfrentou a questão das cotas raciais nos seguintes termos:

"Pode-se assumir que a reserva de um número específico de vagas em cada turma para indivíduos de grupos étnicos a que se dê preferência contribuiria para alcançar considerável diversidade étnica no corpo docente. Mas o argumento [da Universidade] de que é o único meio efetivo de servir ao interesse da diversidade é seriamente falho. No sentido mais fundamental, o argumento é equivocado sobre a natureza do interesse do estado que justamente consiste em levar-se em conta as raízes raciais e étnicas. Não se cogita de um simples interesse na diversidade, em razão da qual é garantido um percentual especifico de alunos selecionados de grupos étnicos e o percentual restante destinado outros grupos. A diversidade que interessa ao estado abrange um conjunto muito mais amplo de qualificações e interesses, dentro os quais a origem racial ou ética é apenas um elemento, ainda que importante. O programa de admissão [da Universidade] focado apenas na diversidade étnica mais inibe do que promove a genuína diversidade" [19].

13.Não se discute, a dívida social e moral em relação a minorias discriminadas — especialmente em uma sociedade que sofre de graves desequilíbrios econômicos e regionais não pode ser abstraída. Há quem vislumbre na instituição dos programas de cotas um alegado ‘resgate’ da condição social dos afro-descendentes e indo-descendentes, redimindo-os de sua pouco expressiva presença nos postos de destaque da sociedade por imperativo de consciência, pelo ‘mal’que lhes teriam causado nossos antepassados. É um duplo equívoco. Em primeiro lugar, se algum culpado há pela escravatura – isto é, se é que se pode admitir que a baixa participação dos cidadãos de pele escura se deva a essa circunstância histórica – essa culpa é dos colonizadores, e não dos colonizados. Afinal, o escravagismo ocorreu por deliberação da Corte Portuguesa e não do povo brasileiro, àquela altura sequer organizado como nação. Em segundo, há a considerar que ao privilegiar determinada etnia, termina-se por restringir o direito das demais, com a agravante de que, no caso das Universidades públicas, seu custeio é suportado por todos os contribuintes, não importa a sua origem étnica. Assim, se não fosse evidente inconstitucionalidade seria rematada injustiça privar os brasileiros de pele clara do pleno acesso à Universidade com a desculpa de ‘fazer justiça social’.

14.Nesse afã, dificuldades se colocam quando o Estado assume, ele próprio, o encargo de dosar o tamanho e o tempo da reparação, sem atentar para as conseqüências de fragilizar a reserva de cérebros pensantes do País, apenas em nome do objetivo de propiciar para as futuras gerações ‘um País de todos’, segundo slogan da propaganda oficial. É o caso do acesso à universidade, como bem descreve o professor e constitucionalista LUIZ ROBERTO BARROSO [20]:

" Posta a questão racial, veja-se agora o problema da universidade. O ensino superior tem por função principal a produção e a transmissão de conhecimento, formando profissionais que possam atender, com qualidade, às demandas da sociedade em áreas diversas: tecnológica, humanidades, ciências médicas. Para desempenhar adequadamente a sua missão, a universidade procura recrutar os melhores talentos, aferidos, na medida do possível, por critérios objetivos e impessoais. O populismo nessa matéria leva à mediocridade e ao colapso da educação de nível superior. (...) A questão é em si complexa, antes mesmo de se adicionar o complicador de quem, afinal, deve ser considerado negro ou pardo. Existem dois valores socialmente relevantes em contraposição: a) a necessidade de reparação histórica à comunidade negra; e b) a necessidade de preservar ensino de qualidade e sistema do mérito na universidade. Quando esse tipo de conflito ocorre, o moderno direito constitucional determina a utilização de uma técnica denominada de ponderação de valores: o intérprete deve fazer concessões recíprocas entre eles, preservando o núcleo mínimo de cada um, com base no princípio da razoabilidade".

15.Na realização de políticas ditas "afirmativas", melhor andou o Itamaraty. Como é sabido, o Brasil jamais teve um diplomata negro. Com vistas a sanar tal situação, o Ministério das Relações Exteriores concedeu várias bolsas de estudos para que negros fizessem as provas nas mesmas condições que os brancos, solução que teve em linha de consideração o fato de que, por se tratar de uma área estratégica nacional, não se pode simplesmente abrir vagas para despreparados. Este, na verdade é o caminho ideal, e, se o raciocínio funcionou tão bem para o MRE, porque não o seria igual para a universidade? Fica a pergunta.


Sobre a ilegitimidade do discrímen da cota da escola pública

1.Em matéria racial, é até possível afirmar que existe uma responsabilidade social difusa pela reparação devida, uma vez que a ascensão social do negro permanece obviamente mais lenta que a do branco, embora contra esta observação profligue a constatação de que inexistem barreiras ‘oficiais’ à ascensão dos cidadãos afro-descendentes. Se assim não fosse como explicar a presença de seus representantes no Congresso, no STF, no STJ e nos Tribunais de Justiça, país afora? O mesmo porém, não se aplica à fixação de cota para os candidatos egressos de estabelecimentos públicos de ensino situados no Estado da Bahia. A razão é simples: consiste na observação de que a insuficiência do ensino público da Bahia não é culpa da sociedade, mas sim, do próprio Poder Público. Com efeito, se nas últimas décadas houve deterioração do ensino público municipal e estadual de primeiro e segundo graus no Rio de Janeiro, não cabe a qualquer categoria social a responsabilidade direta por esse fato. Ao contrário, a sociedade como um todo — e os mais pobres em particular — pagam o preço da decadência que não provocou, mas é por ela responsável, na medida em que continua a votar nos mesmos políticos mesquinhos, míopes e caudilhistas de sempre.

2.Como é óbvio, a educação dos filhos não é uma opção dos pais — a escolha da escola, talvez. Na ausência de escolas públicas suficientes e razoáveis, os pais farão o possível para prover a educação dos filhos em escolas privadas sendo esta prioritária em relação a qualquer outro investimento familiar. Em outras palavras, manter o filho numa escola particular nada tem a ver com uma visão elitista do ensino. Nesta ordem de idéias, é desumano e paradoxal que quem procura suprir as falhas da educação oficial seja penalizado com a exclusão do acesso à Universidade pública.

3.Ora, partindo-se da perspectiva da classe pobre, a educação é o instrumento por definição da ascensão social e econômica. Se a escola pública for disponível, ela será a primeira escolha. Se não for, a família fará um esforço para pagar a escola privada mais barata. Na classe média de baixa renda, o sonho da família é ver o filho "doutor", o que no quadro de insuficiência do ensino público significa o esforço de pagar uma escola privada de melhor qualidade. A injustiça e o absurdo do sistema de cota adotado pela Universidade Federal da Bahia fica evidente quando se acompanha o itinerário "clássico" percorrido por um aluno de classe média de baixa renda: (a) ensino fundamental na escola pública; (b) ensino médio na escola privada, se não houver escola pública disponível; (c) ensino superior na universidade pública. A prosperar a lógica perversa do Impetrado, a família de classe média de baixa renda estará sendo penalizada POR QUE FEZ SACRIFÍCIO ADICIONAL PARA EDUCAR OS FILHOS!


As cotas e a proporcionalidade de "negros" e "pardos’ no concerto populacional, segundo o IBGE

1.As únicas fontes cientificamente seguras de pesquisa populacional são os recenseamentos decenais e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada anualmente, ambos pelo IBGE. No tema da "cor", são oferecidas aos pesquisadores as seguintes opções: "branco", "preto", "pardo" e "amarelo", e mais a categoria "indígena". As tabulações dos Censos de 1991 e 2000 mostram, em termos percentuais, a seguinte distribuição por cor/raça:

19912000

Branca51,6%53,4%

Preta5,0%6,1%

Parda42,4%38,9%

Amarela0,4%0,5%

Indígena0,2%4,1%

Ignorado 0,4%0,7%

Fonte: IBGE, Censos demográficos 1991 e2000

2.O professor SIMON SCHWARTZMAN, que presidiu o IBGE, aponta, em estudo [21], a dificuldade técnica de, a partir desses dados, se tirar conclusões confiáveis sobre o grau de percepção a respeito de raça e origem étnica. Aponta também os problemas que adviriam da adoção de um critério de classificação semelhante ao norte-americano, em que a categoria "preto" (black) abrange os afro descendentes de um modo geral, eliminando-se a categoria "pardos", tendo em vista o grau de miscigenação no Brasil. Apesar da insatisfação com essas categorias, não se logrou até hoje conceber um critério de classificação mais eficaz. Uma das hipóteses mencionadas por SCHWARTZMAN foi levantada em obra clássica de ORACY NOGUEIRA [22] para quem, nos Estados Unidos, o que define um "negro" seria sua ascendência africana e escrava, sua origem, e não a coloração da pele; no Brasil, ao contrário, seria a cor da pele, mais do que sua origem, que definiria as pessoas socialmente, e serviria de base para preconceitos e discriminações. Como tentativa de aperfeiçoar o quesito raça ou cor, o IBGE inseriu um conjunto de quesitos no PNAD de 1998. O resultado mostra a rejeição das pessoas em se classificarem como pretas, pardas e principalmente indígenas, e revela uma preferência pela expressão "morena" que tem conotação positiva e "reflete bem o caráter das linhas de divisão étnicas e raciais no Brasil". Os Quadros organizados indicam a variedade de autodefinição de cor fora dos padrões convencionais podendo ser visto que, na pergunta sobre "origem", 64,5% das pessoas se consideram de origem "brasileira" — um dado que não demonstra apego a antecedentes raciais ou étnicos.

3.O que se pode facilmente concluir, diante dessas informações técnicas e estatísticas, é que o critério de cota racial adotado pelo Impetrado, em fixar a ‘cota’ racial em 85% dos 43% do universo de candidatos carece de base científica capaz de justificar uma "ação afirmativa" dessa magnitude e que, por definição, discrimina parcelas ponderáveis de outras minorias éticas e sociais.


Da inconstitucionalidade da norma que subsidia o ato abusivo da autoridade coatora – do fundamento para o pedido de declaração incidental a esse respeito

1.Sabe-se que é faculdade reconhecida aos magistrados, a declaração incidental de inconstitucionalidade sempre que a tanto autorizarem as circunstâncias estampadas na matéria à sua jurisdição afeta. Nos itens seguintes serão apresentados os fundamentos para a declaração de inconstitucionalidade da norma que subsidiou o ato abusivo da autoridade coatora. Em não entendendo, todavia, tratar-se de caso que o justifique, roga o Impetrante que a exposição adiante apresentada seja acolhida como fundamento jurídico do pedido de segurança ora anelado.


Da usurpação de competência legislativa privativa da União Federal (art. 22, XVIV, da CF) pela Resolução do Impetrado – da infringência do princípio da reserva legal

1.A norma atacada sofre de vício formal de inconstitucionalidade insanável, já que invade, espuriamente, matéria afeta à reserva de Lei em sentido estrito. O Magnífico Reitor, ao instituir o "sistema de cotas" para o acesso ao ensino universitário, acabou, na verdade, extrapolando os limites de sua competência, passando a "legislar" sobre tema (políticas compensatórias para o ingresso no ensino superior) nitidamente vinculado às diretrizes e bases da educação nacional. Ora, matérias relativas às diretrizes e bases da educação nacional só podem ser tratadas pela legislação federal, conforme determina o artigo 22, inciso XXIV, da Constituição, desse modo, verbis:

"Art. 22. Compete privativamente à União Federal legislar sobre:

(..)

XUV — diretrizes e bases da educação nacional

(..),,

2.Com fulcro nessa autorização constitucional, a União legislou sobre diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei n° 9.394/96, que fixou as regras gerais que deverão ser observadas na educação nacional. E nela não quis o legislador federal criar sistema algum de acesso às universidades mediante "cotas" ou "reserva de vagas". Recentemente, no entanto, o legislador federal, sempre invocando sua competência para regular as diretrizes e bases da educação nacional, editou a Lei n° 10.558, de 13.11.02. Essa lei tratou justamente do "acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes e dos indígenas brasileiros" (art. 1° da Lei). Não foi porém instituído nenhum "sistema de cotas", o que serve de ilustração para a constatação de que essa odiosa discriminação não consta de nenhuma l;ei escrita, embora, se o quisesse o legislador, já o teria feito. Se não ousou a tanto é porque reconhece que somente uma Emenda Constitucional pode excepcionar a Constituição. Desse modo, fica bem claro que o tema "acesso às universidades de grupos socialmente desfavorecidos" inclui-se na expressão "diretrizes. e bases de educação nacional", razão pela qual o Impetrado nele não poderia adentrar, sob pena de usurpar — como de fato aconteceu — competência legislativa privativa da União.

3.Não bastasse, o tema sub judice é, sem dúvida alguma, de vocação nacional, e não regional ou estadual, muito menos meramente institucional. Fossem os Reitores de Universidades de Estados-membros da Federação autorizados a legislar sobre essa matéria, o caos normativo estaria estabelecido. Haveria Estados com "cotas" e Estados "sem cotas"; Estados com "cotas" de 50% e Estados com "cotas" de 10%; Estados com "cotas" apenas para pretos, outros com "cotas" tão-só para pardos, não sendo ainda de se descartar a hipótese de Estados com cotas até para brancos. É pois para evitar essa balbúrdia legislativa sobre o tema do acesso à universidade que o Impetrante, valendo-se desta oportunidade requer a declaração de inconstitucionalidade sob a modalidade difusa de controle do qual resultará a definição exata da competência legislativa exclusiva da União para tratar do tema em debate, fulminando-se assim, pelo vício formal de inconstitucionalidade, a norma interna baixada pelo Impetrado.

4.Nessa mesma linha, cabe ainda anotar que o vício formal apontado pelo Impetrante conta com o apoio da Procuradoria Geral da República. Na ADIn 2.858/RJ, o Procurador-Geral da República concluiu que o chamado "sistema de cotas" para o acesso às universidades tem vocação nacional, não podendo pois sobre ele dispor os Estados da Federação. Confira-se o pronunciamento do Chefe do Parquet federal

"Passando ao exame da constitucionalidade das leis em questão, manifesta-se, de pronto, o vício de inconstitucionalidade formal a acoimar aquelas leis estaduais, tendo em vista a regra de competência privativa da Unido Federal para legislar acerca de diretrizes e bases da educação nacional, prevista no art. 22, XXIV, da Constituição da República".

5.De notar que não existe lei complementar autorizando a quem quer que seja a legislar acerca de diretrizes e bases da educação nacional, hipótese em que seria permitido àqueles entes legislar sobre o tema, nos termos do par. único do art. 22, da Constituição da República. Nem se alegue que a estipulação de normas de acesso à Universidade não esteja compreendida em matéria de diretrizes e bases da educação nacional, reservada à competência da União Federal, e sim no âmbito da competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal, prevista no art. 24, 1X da Constituição da República. Veja-se que a Lei federal n° 9.394/96, que veio a estabelecer diretrizes e bases da educação nacional, define, em seu art. 1 °, que "a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais" porém, ressalva, no § 1 °, do mesmo art. 1 °, que a "educação escolar, que se desenvolve predominantemente por meio do ensino em instituições próprias’". Assim, a referida lei federal é clara em explicitar que, embora a educação possa ser compreendida em um campo amplo, que engloba família e trabalho, unicamente a educação escolar é por ela regulamentada, estipulando diretrizes e bases que, conquanto devam ser conformadas de acordo com características regionais, são de observância obrigatória no território nacional.

6.Note-se, por oportuno, que se encontra em tramitação o projeto de lei n° 650, de autoria do ex-Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Senador JOSÉ SARNEY, visando instituir "quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES)" nas instituições de educação dos três níveis de governo, federal, estadual, e municipal, estabelecendo a quota mínima de vinte por cento - no que realça o despautério do percentual de 45% estabelecido pelo devaneio do Impetrado - para a população negra.

7.Em termos normativos de lege lata, a Lei federal n° 10.558, de 13 de novembro de 2002, em vigor, ao criar o "Programa Diversidade na Universidade" com a finalidade de "implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes e dos indígenas brasileiros ", limita-se a prever a "transferência de recursos da União a entidades de direito público ou de direito privado, sem fins lucrativos, que atuem na área de educação e que venham a desenvolver projetos inovadores para atender a finalidade do Programa" NÃO ESTABELECENDO EM MOMENTO ALGUM SISTEMA DE COTAS PARA ACESSO À UNIVERSIDADES PÚBLICAS OU PRIVADAS.

8.A conferir, com a transcrição ipsis litteris da referida norma:

LEI Nº 10.558, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2002(DOU 14.11.2002) - Cria o Programa Diversidade na Universidade, e dá outras providências.

Faço saber que o Presidente da República adotou a Medida Provisória nº 63, de 2002, que o Congresso Nacional aprovou, e eu, Ramez Tebet, Presidente da Mesa do Congresso Nacional, para os efeitos do disposto no art. 62 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001, promulgo a seguinte Lei:

Art. 1º "Fica criado o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.

Art. 2º O Programa Diversidade na Universidade será executado mediante a transferência de recursos da União a entidades de direito público ou de direito privado, sem fins lucrativos, que atuem na área de educação e que venham a desenvolver projetos inovadores para atender a finalidade do Programa.

Parágrafo único. A transferência de recursos para entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que atendam aos requisitos do caput, será realizada por meio da celebração de convênio ou de outro instrumento autorizado por lei.

Art. 3º As transferências de recursos da União por meio do Programa Diversidade na Universidade serão realizadas pelo período de três anos.

Art. 4º Fica autorizada a concessão de bolsas de manutenção e de prêmios, em dinheiro, aos alunos das entidades a que se refere o parágrafo único do art. 2º.

Art. 5º Os critérios e as condições para a concessão de bolsas de manutenção e de prêmios serão estabelecidos por decreto.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".

Congresso Nacional, em 13 de novembro de 2002; 181º da Independência e 114º da República. Senador RAMEZ TEBET

9. Ressalte-se, ademais, que, conquanto caiba à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios organizar em regime de colaboração seus sistemas de ensino, à União cabe prioritariamente atuar no tocante ao ensino superior, conforme exegese que se extrai do art. 211, e § da Constituição da República, in verbis:

Constituição da República. Art. 211. "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

§ 1°. A União organizará o sistema federal de ensino e dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade de ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

§ 2°. Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional n° 14/9 6)

§ 3°. Os Estados e o Distrito Federal atuarão priorítariamente no ensino fundamental e médio. (Parágrafo acrescentado pela Emenda Constítucional n° 14/96)

§ 4°. Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório (Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional n° 14/96)".


Da ofensa ao artigo 5°, caput, da CF (princípios da isonomia e da interdição de discriminações)

1.Dispõe o artigo 5°, caput, da Constituição que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". A norma constitucional veicula o secular princípio da isonomia, também conhecido como princípio da equidade, contemplado na ordem jurídica brasileira com status de direito fundamental dos cidadãos. Sua proeminência no nosso sistema constitucional é manifesta, pois, como lembra MAREN TABORDA [23] ele penetra, informa e dá conteúdo aos demais direitos e garantias constitucionais.

2.O princípio isonômico suscita, todos sabem, infindáveis, acalorados e apaixonantes debates em diversos planos do conhecimento humano. A propósito, o Supremo Tribunal Federal tem contribuído para a exegese desse princípio fundamental, o qual já foi alvo de decisões da Corte. Entre outros julgados que enfrentaram o tema cabe invocar, pelo seu sentido objetivo e didático, a decisão do Tribunal proferida no RE n° 161.243-6, do Distrito Federal, relatado pelo Ministro CARLOS VELLOSO, um de nossos mais eminentes constitucionalistas (DJU de 19.12.97)

3.Tratava-se, nesse precedente, de saber se havia maltrato ao caput do artigo 5° da Constituição pelo fato de uma empresa francesa, no Brasil, dar tratamento diferenciado a trabalhadores de nacionalidade francesa, privilegiando-os em relação aos trabalhadores brasileiros. O Ministro VELLOSO assim delimitou o tema em debate: "A questão é, pois, puramente jurídica: seria possível, tendo em vista o princípio isonômico, que a um empregado da empresa francesa, em território nacional, não fosse aplicado o Estatuto Pessoal da Empresa, só pelo motivo de o empregado não ser francês?". A Corte entendeu que o discrímen imposto pela empresa, isto é, a nacionalidade do trabalhador, ofendia o princípio da igualdade inscrito no caput do artigo 5° da C.F. Para chegar a essa conclusão, o Tribunal enfrentou o tema da natureza jurídica do princípio da isonomia, dizendo, na palavra do Ministro, que "a discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc é inconstitucional". Lembrou ainda que a essa conclusão também chegara o STF no julgamento do AI n° 110.846 (AgRg) do Paraná, de relatoria do ilustre Ministro CÉLIO BORJA, assim ementado, verbis:

"Princípio da isonomia. Não é vuinerado quando a mesma parte, em causas idênticas e processos distintos julgados pelo mesmo Tribunal; recebe decisões diversas. A discriminação proibida é a que se funda em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do sujeito enunciados na Constituição, art. 153, § 1º (DJU de 05.09.86).

4.Resumindo: no plano jurídico, a exigência constitucional de igualdade de direitos (isonomia e equidade) confere a todos, homens e mulheres, o direito de ser tratado sem discriminação. A interdição constitucional da discriminação é pois direito subjetivo do cidadão.

5.No caso concreto, o Impetrado desrespeitou a interdição constitucional da discriminação. Em primeiro lugar porque criou distinção arbitrária em favor de concorrentes ao vestibular oriundos do ensino público médio ministrado por estabelecimentos escolares públicos em o fazendo, as normas impugnadas elegeram um discrímen fundado em atributo pessoal (a origem escolar), o que é vedado pela Lei Fundamental. Em segundo lugar, porque discriminam candidatos ao vestibular com base em característica extrínseca dos concorrentes — a cor da pele. Alunos carentes ou pobres que se auto-declaram "negros" levam vantagem sobre os carentes ou pobres "brancos" e "pardos", já que podem ingressar no ensino superior estadual com notas mais baixas do que estes últimos, em virtude de lhes terem sido destinadas vagas específicas e previamente reservadas. Aqui também a inconstitucionalidade da norma impugnada é de clareza meridiana -por conta da interdição constitucional da discriminação baseada no critério da cor dos cidadãos. Em suma: só, a Constituição pode estabelecer, em seu texto, exceções "relativizando" a aplicação dos princípios da isonomia e da vedação de discriminações. É o caso do artigo 37, inciso VIII, que criou um discrímen em favor das pessoas portadoras de deficiência, autorizando a criação de cotas para elas no acesso aos cargos e empregos públicos. Vale dizer, portanto, que se o Constituinte de 1988 quisesse estender esse mesmo discrímen ao ingresso do aluno deficiente na universidade, ele o teria feito no próprio texto da Constituição, na parte relativa à Educação (Título VIII, Capítulo III, Seção 1). Se quisesse criar distinção com base na cor ou na etnia do candidato ao vestibular, teria da mesma maneira assim disposto, excepcionando, no caso, os princípios da isonomia e da proibição de discriminação. E se pretendesse também privilegiar alunos da rede pública de ensino em detrimento daqueles oriundos do ensino particular, o legislador constituinte teria incluído na Carta Magna norma com esse alcance.

6.Assim, porém, não quiseram os autores da Constituição. Se excepcionaram os princípios da isonomia e da interdição de discriminação para o acesso aos cargos públicos das pessoas portadoras de deficiência, o mesmo não fizeram para o ingresso na escola, para o acesso enfim ao ensino, sobretudo o ensino superior ao qual se aplica a equidade em toda sua extensão e autoridade. O "legislador" acadêmico, entretanto, ignorou solenemente nosso regime constitucional de acesso ao ensino superior, para o qual vale, mutatis mutandis, a mesma observação feita por JORGE MIRANDA ao comentar as regras da Constituição portuguesa sobre o acesso ao ensino universitário — em tudo semelhantes às nossas —, nos seguintes termos, in verbis:

"Por certo, a primeira destas regras é a da igualdade, por decorrência do princípio geral, consagrado no art. 13°: ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado do direito ao acesso ao ensino superior ou isento de qualquer dever correlativo em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicção política ou ideológica, situação econômica, condição social ou de qualquer fator ou índice de diferenciação"( MIRANDA, Jorge, in "Manual de Direito Constitucional", Coimbra Editora, 38 edição, 2000, Tomo IV. pág. 445)


Sobre a transgressão do princípio democrático e republicano do mérito (artigos 206, inciso 1 e 208, inciso V, da CF)

1.Desde Aristóteles, na Ética a Nicômano, passando pelos filósofos cristãos da Idade Média, os racionalistas das grandes revoluções liberais até o moderno constitucionalismo, a idéia de Democracia e a de República sempre estiveram ligadas ao conceito do justo. Mas qual seria o melhor critério para o justo? O critério do mérito, da medição pessoal, responde Aristóteles, afirmando que os democratas e republicanos identificam esse mérito com a condição do homem livre; os partidários da oligarquia com a riqueza ou a nobreza de nascimento; e os aristocratas com a excelência. O princípio do mérito portanto é, desde a mais remota Antiguidade, a pedra angular da idéia de República. Só pelo mérito é possível alcançar o justo, dogma caro para republicanos e democratas. 42. A Constituição de 1988 acolheu a idéia de República e, com ela, incorporou, como imanentes à Lei Fundamental, todos os princípios que derivam do pensamento republicano, dos quais sem dúvida o mérito figura entre os maiores.

2.Está com efeito inscrito nos artigos 206, inciso 1, e 208, V, da Constituição, a idéia republicana de que a lei de acesso à escola, em todos os seus níveis, só será justa se, e somente se, não estabelecer privilégios entre os candidatos ao ingresso. Vale dizer: o mérito é a única medida capaz de garantir a igualdade de acesso ao ensino, sobretudo ao ensino superior onde o ingresso se faz por concurso público de provas. No caso que agora o Impetrante submete a juízo, o Impetrado ignorou o princípio republicano do mérito, violando assim expressamente o disposto nos artigos 206, inciso 1, e 208 inciso V, da Constituição. O "legislador" universitário, na verdade, por esse "sistema de cotas", aplicou um "golpe fatal na ideologia do mérito pessoal", transformando o sistema do mérito — que é absoluto e soberano nas Repúblicas democráticas — em princípio relativo, isto é, princípio que pode ou não ser aplicado ao sabor das circunstâncias.

3.Os exemplos desse abandono à principiologia constitucional relativa ao mérito são os inúmeros casos reportados pela imprensa ocorridos quanto a tentativa, ocorrida no Estado do Rio de Janeiro em 2000 de o legislador estadual impor uma Lei criando sistema de cotas, a qual conturbou, por completo o concurso vestibular daquele ano. Entre tantos casos dessa irreparável injustiça, a mídia se reportou ao episódio de candidato que obteve 49,25 pontos, menos portanto do índice mínimo de 50 pontos, e, não obstante, entrou na universidade beneficiado que foi pelo "sistema de cotas". Outro estudante que fez 85,50 pontos não ingressou na UERJ porque era branco e oriundo de escola particular. Se se auto-declarasse preto, ascenderia ao ensino universitário estadual com metade dessa nota, em virtude da reserva de vagas para essa categoria de candidatos. A imprensa também anotou que o melhor resultado, por exemplo, para o curso de engenharia mecânica, obtido entre os candidatos não beneficiados pelas "cotas", foi de 95,75 pontos, ao passo que para o mesmo caso o "sistema de reserva de vagas" registrou nota máxima muitíssimo inferior, de 44,25 pontos. A esse respeito, chamou a atenção o esquecer o drama do estudante Ricardo Menezes da Silva, igualmente relatado pela imprensa Embora se definisse como negro, como tal não se auto-declarou no momento da inscrição no vestibular; e apesar de ter obtido nota 74, não entrou na universidade, tendo sido preterido por candidatos de menor nota que se auto-declararam negros. É pois para restabelecer, em seu prol, a magnitude do princípio republicano do mérito no sistema de acesso às universidades públicas que o Impetrante pede a esse MM Juízo que lhe seja concedida a segurança pleiteada e, incidentalmente, seja declarada a inconstitucionalidade da norma interna da UFBA da qual provieram todas as mazelas enfrentadas pelo Autor e não somente por ele, mas, em igual medida por todos os demais injustiçados.

4.O mérito, como nos lembra DWORKIN [24], se legitima não porque favoreça os mais inteligentes; ele se legitima porque é considerado uma "pratica social útil" Cabe pois ao Poder Judiciário, como guardião da Constituição, preservá-lo enquanto tal, poupando-o dos ataques do legislador ordinário. (In "O Globo" de 26.02.03)


Do desrespeito ao princípio constitucional da proporcionalidade

1.Como anota CANOTILHO, em seu monumental Direito Constitucional [25] as leis interventivas que limitam ou restringem o gozo dos direito fundamentais do cidadão — e é o caso da norma ora impugnada em relação aos princípios constitucionais da isonomia, da interdição de discriminações, do mérito e da vedação de preferência entre Estados — devem atender, para se legitimarem, ao chamado princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, como designado pela doutrina constitucional alemã, ou ainda princípio da razoabilidade, expressão do constitucionalismo americano. Há precedentes da Corte Suprema acolhendo a aplicação do princípio que hoje já se considera definitivamente incorporado à nossa Lei Maior, como referencial para aferição da constitucionalidade das leis. GILMAR MENDES, hoje Ministro dessa egrégia Corte, cita várias ações diretas de inconstitucionalidade nesse mesmo sentido em obra de autoria coletiva intitulada "Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais" [26]. Dúvida pois não há sobre a dimensão normativa do princípio, isto é, sua referência constitucional. Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente na SS 1.320 (DJU de 14.4.99):

"A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, ajusta-se ao princípio do devido processo legal, analisado na perspectiva de sua projeção material (substantive due process of law). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencial,n ente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador." (ADIn 1.407-DF, Rei. Min CELSO DE MELLO). Conclui-se, portanto, que, se a norma revelar-se tisnada pelo vício da irrazoabilidade, restará configurado, em tal anômala situação, o excesso de poder em que incidiu o Estado, o que compromete a própria função constitucional inerente à atividade de positiva ção do Direito, pois o ordenamento jurídico não pode conviver com atos estatais revestido de conteúdo arbitrário."

2.A aplicação do princípio da proporcionalidade às normas infra-constitucionais, como a sub judice, que criam discriminações, resulta então em saber quais são os discrímens toleráveis, razoáveis, necessários, ponderáveis, enfim, proporcionais aos fins a serem atingidos. Também se diz que, pelo princípio em questão, pode-se avaliar se a restrição de direito fundamental (o tratamento discriminatório) é ou não o meio menos gravoso posto à disposição do legislador para atingir a finalidade desejada. Se há outro meio que sacrifique menos os direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade é invocável como medida de inconstitucionalidade da lei restritiva do direito fundamental. Do princípio da proporcionalidade, portanto, a doutrina, à unanimidade, extrai três sub-princípios, assim definidos por CARLOS BERNAL PULIDO [27], in verbis:

"1. Según ei subprincipio de idoneidad, toda intervención en los derechos fundamentales debe ser adecuada para contribuir a la obtención de un fim constitucionalmente legítimo.

2. De acuerdo con ei subprincipio de necesidad, toda medida de intervención en los derechos fundamentales debe ser la más benigna con el derecho intervenido, entre todas aquéllas que revisten por lo menos ia misma idoneidad para contribuir a alcanzar ei objetivo propuesto.

3. En fim, conforme ai subprincipio de proporcionalidad en sentido estricto, la importancia de los objetivos perseguidos por toda intervención en los derechos fundamenta/es debe guardar una adecuada relación con ei significado dei derecho intervenido. En otros términos, ias ventajas que se obtienen mediante la intervenclón en ei derecho fundamental deben compensar los sacrjflcios que ésta implica para sus titulares y para ia sociedad en general."

3.Se, em conseqüência, uma lei ordinária restringe, de alguma forma, o gozo de direitos fundamentais dos cidadãos, esta lei, como conclui em uníssono doutrina e jurisprudência, só será constitucional se — e somente se — cumprir todas as exigências desses três sub-princípios que compõem o princípio da proporcionalidade". Daí, por conseguinte, não haver dúvida alguma de que é absolutamente inconstitucional quaisquer normas restritivas de direitos fundamentais ao princípio da proporcionalidade e seus três sub-princípios. Realmente, os percentuais de vagas reservados pela 1egis1aç impugnada não são proporcionais e razoáveis; ao contrário, são excessivos e desarrazoados. Se as "cotas" pudessem ser admitidas em nosso sistema constitucional de acesso ao ensino universitário — e não o podem, como dito antes—, ainda assim ao legislador fluminense faltaria um mínimo de bom senso em relação aos percentuais de vagas previamente reservadas.

4.Basta, para tanto, conferir dois números percentuais de "cotas" previstos na norma impugnada, a saber: o percentual total mínimo das vagas reservadas (45%) e o percentual destinado aos que se auto-declaram negros (85%). Em relação ao número total das vagas submetidas ào "sistema de cotas" (45%), o legislador estadual extrapolou os limites da razoabilidade no trato dessa questão. Desviar a metade das vagas de seu método normal de preenchimento, reservando-as previamente apenas para alguns candidatos ao vestibular, não é atitude sensata. As "cotas", por sua absoluta excepcionalidade, assim devem ser tratadas, ou seja, como exceção à regra geral de preenchimento das vagas. Não podem pois se igualar (a metade) às "não-cotas". A exceção que se iguala à regra geral, deixa de ser excepcional — e não se pretende, é óbvio, que as "cotas" passem a ser a regra geral de acesso ao ensino superior. Quotas de 40% e de 50% são injustas e irrazoáveis porque: (a) não são adequadas a promover o fim violado, uma vez que sua conseqüência é a queda geral do nível de ensino, (b) violam em grau excessivo (e, por isso, ilegítimo) o princípio da igualdade; (c) acarretam um mal superior ao beneficio que possa eventualmente trazer.’ Por outro lado, relativamente ao percentual de vagas reservadas para os candidatos que se auto-declaram negros, aqui também o legislador estadual fixou um número (20%) que é totalmente desproporcional em relação aos fins a serem atingidos pelo ilegítimo "sistema de cotas".

5.Com efeito, no universo da população brasileira, vista sob o ângulo da cor da pele, como antes mencionado, diz o IBGE que os "negros" ou "pretos" somam 6,1%. Logo, reservar, como o fez a Autoridade coatora, 45% das vagas para pessoas com essa característica, importa, no fundo, em sobre-representá-las dentro do conjunto total dos candidatos ao vestibular. Se esta é a proporção fica difícil entender a razão da concessão de 85% das vagas "reservadas" para candidatos que representam apenas 6,1% da nossa população. Lembre-se ainda, nesse particular, que os defensores das "cotas" se apóiam numa soi disant "certeza estatística" de que os "pretos" ou "negros" são 64% da população pobre brasileira. O que simplesmente não é verdade. Para o IBGE eles são apenas 7% dos pobres não sendo assim razoável que num sistema de cotas lhes sejam reservadas 85% das vagas. Além da desproporcionalidade stricto sensu a norma impugnada impôs, desnecessariamente aos direitos fundamentais dos vestibulandos discriminados, gravame altíssimo que, todavia, poderia ser evitado se o legislador estadual optasse por outros meios, bem menos gravosos, para atingir as finalidades desejadas. Se o que se pretende é instituir, no nível estadual, políticas compensatórias de acesso ao ensino superior, melhor seria, como sugere JOSÉ MURILO DE CARVALHO, um mestre no assunto, adotar medidas menos gravosas:.

"Ações afirmativas menos problemáticas e mais eficientes são possíveis e viáveis. A mais óbvia já é aplicada por algumas ONGs: preparar estudantes de grupos minoritá rios para competir em pé de igualdade no vestibular. Os governos poderiam apoiar pesadamente esses esforços no sentido de multiplicar o número de candidatos bem preparados. As próprias universidades, sobretudo públicas, poderiam utilizar seus colégios de aplicação para a mesma finalidade e inventar modalidades novas de atuação. Poderiam também multiplicar as turmas noturnas e criar sistemas de bolsas, completas ou pelo menos de alimentação. Tais políticas poderiam ter efeito amplo e imediato, sem esperar pela sempre reclamada melhoria do ensino público fundamental e de segundo grau. E não teriam nenhuma das des vantagens das cotas. " (doc. n° 7)


Conclusão

1.Assente a noção de que há discriminação na sociedade, nada mais justo que tentar reduzi-la. Mas, se a discriminação existe e as políticas para amenizá-la são tão necessárias, como a reserva de vagas para negros e pardos conseguiu amontoar tantos opositores? É porque na política brasileira sempre se procura resolver as coisas da maneira mais fácil, de preferência de um jeito bastante populista, que renda votos. Se o Brasil tem fome, a solução são os restaurantes populares. Se inexiste poder aquisitivo para comprar fármacos, farmácias populares; se a criminalidade está em alta, a ordem é polícia aprisionar e matar marginais; por fim, se a Universidade Pública exige um bom nível do aluno, a solução consiste em fazer o nível baixar.

2.Esse é o primeiro erro da reserva de vagas: ela não leva o aluno à universidade, mas faz o contrário, leva a universidade ao aluno. Não é o aluno negro, carente, vindo de escolas ruins que melhorou o seu nível de aprendizado, mas a universidade que reduziu seus requisitos para colocar esse aluno lá. Trata-se de uma boa justificativa para uma péssima idéia: vamos acabar com a discriminação colocando, na marra, o aluno negro na universidade pública. A primeira conseqüência disto será a dificuldade em adequar esses novos estudantes ao ritmo da universidade pública, acostumada que está com alunos muito bons. Mas não se diga que a adequação deverá ser feita só pelos professores – e estes precisarão reavaliar seu projeto pedagógico -, os alunos terão sua parte nessa empreitada. Imaginemos que estranha sala será aquela onde se misturam alunos preparadíssimos e outros nem tanto. É mais ou menos como dar computadores de última geração a duas pessoas: uma delas tem inúmeros cursos de informática e a outra está acostumada com máquina de escrever, será que o resultado será o mesmo? Equivoca-se, portanto, o Impetrado ao achar que todo branco é rico e que todo negro é pobre. Equivoca-se, igualmente, por acreditar que colocar um negro na universidade pública será o passaporte para seu futuro melhor. Quando for percebido que o remédio escolhido para acabar com a discriminação não faz efeito, quando a formação universitária não for suficiente para garantir o sucesso pessoal de cada um – e, realmente, não é apenas a universidade que garante isso -, então vamos esperar que façam uma reserva de vagas para negros nas Assembléias Legislativas, nas vagas dos concursos para juízes, nos Exames de Ordem da OAB. Seria isso razoável?

3.O dever do Estado de acabar com a discriminação deveria percorrer o caminho óbvio e difícil, que é o de dar uma boa educação no ensino primário – aquele que não reprova – e no ensino médio – aquele onde os professores ganham uma miséria. Não é preciso mágica, tampouco gambiarras ou esmolas. Todos sabem: a boa educação global é o caminho mais viável para garantir a todos os cidadãos um futuro melhor. E a boa educação não começa no ensino superior, aí já é tarde demais. Ademais, a boa educação não deve ser um privilégio, seja de pobres ou ricos. Não é preciso ser um gênio para dizer que o bem mais precioso de cada cidadão é o seu conhecimento. E enquanto a política nacional de educação atropelar o conhecimento, acreditando que só o diploma salva, vamos precisar reservar muito mais do que vagas para que os excluídos tornem-se parte da mui igualitária sociedade brasileira.

4."Causas grandes e difíceis produzem más leis" disse o inexcedível justice OLIVER WENDELL HOLMES JR., em 1904. Isto porque, em tais circunstâncias, um interesse avassalador "apela aos sentimentos e distorce o julgamento". Ora, não há nada mais abominável e avassalador do que a injustiça da exclusão social que resulta da pobreza e do preconceito — racial, religioso, étnico ou qualquer outro. E nada apela mais ao sentimento do que a idéia de reparação dessa injustiça. No entanto, a indignação, por si só, não assegura que os meios concebidos para a reparação sejam necessariamente os mais corretos para se alcançar os fins visados.

5.Os objetivos da Resolução nº 01/04 da Universidade Federal da Bahia são certamente louváveis. Mas o instrumento jurídico concebido, sobre ser inconstitucional e ilegal é inaceitável e contraproducente. O "sistema de cotas" para o acesso ao ensino superior é, em última análise, um mecanismo de engenharia social que se legitimaria, segundo seus defensores, porque discrimina "positivamente" os cidadãos com o objetivo de alcançar a igualdade material. Ora, sabe-se que em determinadas áreas do conhecimento humano, como nas artes (musica), esportes, cultura etc, predominam e pontificam, não só no Brasil como nos demais países, como grandes nomes, pessoas de cor negra. Nem por isso se há que imaginar um "sistema de cotas", obrigando a que, nas ‘paradas de sucesso’, apareçam percentuais pré-estabelecidos de ‘músicas de brancos’. Nos esportes como o boxe, o futebol, o basquetebol, idem. E a razão é muito simples: TALENTO NÃO TEM COR, o mesmo podendo se dito quanto ao conhecimento. Paradoxalmente, porém, o "sistema de cotas" reproduz e perpetua as mesmas discriminações que pretende combater. Pior do que isso. Ampara em critérios raciais — ou étnicos — que, não obstante as boas intenções de seus defensores, acabam por engendrar novos modelos de "separação", de "segmentação" e de "classificações" da população com base na raça ou na etnia. Dai resulta o reaparecimento da "raciologia", de "especialistas" reunidos em "comissões de class racial", como é notório por força do caso da Universidade de Brasília (UnB), que também introduziu as "cotas". Ou seja, as "cotas", como conclui o antropólogo PETER FRY, "introduzem o racismo", "celebram e consolidam divisões raciais". Enfim, há sérios riscos de chegarmos à deflagração de algum tipo de ódio racial. Dirão, é certo, os defensores das cotas, que esse é o preço a pagar para alcançar a igualdade "real". Esse preço, todavia, é alto demais. Nossa Constituição não autoriza pagá-lo pois há, sem dúvida alguma, medidas menos dramáticas e menos estigmatizantes para alcançar a igualdade material.


Notas

1 Esse dado foi publicado pelo IBGE, com base no último censo do órgão, referente ao ano 2000. De acordo com as informações coligidas no Brasil há 16.294.889 analfabetos com mais de 15 anos e que a maior parte (7.939.568) tem mais de 50 anos de idade. O estado com maior número de analfabetos é a Bahia (2.057.907), seguido de São Paulo (1.810.618), o que, comparando a população dos dois Estados, revela a quantas anda a Educação neste Estado da Federação.

2 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Trad. de Pietro Nasseti - São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 109.

3 MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional – 11ª Edição – São Paulo: Atlas, 2002, p. 64

4 MORAES, op.cit. loc. cit.

5 BARROSO, Luís Roberto, O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades – 6ª Edição – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 60.

6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo – 19ª Edição – São Paulo: 2001, p. 227.

7 SISS, Ahyas. A educação e os afro-brasileiros: algumas considerações. In: Educação e Cultura: pensando em cidadania / Maria Alice Gonçalves (org.) – 1ª Edição – Rio de Janeiro: Quartet, 1999.

8 PIOVESAN, Flavia. STF e a Diversidade Racial. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 3 de março de 2005.

9 Executive Order 10. 925.

10 No original: "No person in the United States shall, on the ground of race, color excluded from participation in, be denied the benefits of or be subjected or activity receiving federal financial assistance".

11 "We seek not.. . just equality as a right and a theory but"

12 Stephen Cahn, The History ofAffirmative Action, 1995.

13 Regents of the University of California versus Bakke, 438(1978).

14 Descendentes de imigrantes de fala latina.

15 Gruiter v. Boilinger, 539 U.S. 306 2003.

16 No original: "Our Nation was founded on tire principle that ‘all men are created equal’. Yet candor requires acknowledgement that the Framers of our Constituition, to forge the 13 Colonies into one Nation, openly compromised this principle of equality with its aantithesis: slavery."

17 LEI 7.716 de 1989, de 5 DE JANEIRO DE 1989 [Define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor]

O Presidente da República, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:

Art. 1º. Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada ao artigo pela Lei nº 9.459, de 13.05.1997)

"Art. 1º. Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor."

Art. 2º. (Vetado).

Art. 3º. Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos: Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Art. 4º. Negar ou obstar emprego em empresa privada: Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Art. 5º. Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador: Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 6º. Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau: Pena: reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos. Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de 18 (dezoito) anos a pena é agravada de 1/3 (um terço).

(...)

Art. 16. Constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a 3 (três) meses.

Art. 17. (Vetado).

Art. 18. Os efeitos de que tratam os artigos 16 e 17 desta Lei não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença.

Art. 19. (Vetado).

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 1º. Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 2º. Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 3º. No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.

§ 4º. Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (Redação dada ao artigo pela Lei nº 9.459, de 13.05.1997)

Art. 21. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 22. Revogam-se as disposições em contrário.

JOSÉ SARNEY

18 "Imitação Barata", Folha Dirigida, RJ, 15.10.2002.

19 No original: "It may be assumed that the reservation of a specified number of seats in each class for individual from the preferred ethnic groups would contribute to the attainment of considerable ethnic diversity in the student body. But petitioner’s argument that this is the only effective means of serving the interest of diversity is seriously flawed. In a most fundamental sense, the argument misconceives the nature of the state interest that would justify consideration of race or ethnic background. It is not an interest in simple ethnic diversity, in which a specified percentage of the student body is in effect guaranteed to be members of selected ethnic groups, with the remaining percentage of undifferentiated aggregation of students. The diversity that furthers a compelling state interest encompasses afar broader array of qualifications and characteristics, of which racial or ethnic origin is but a single, though important, element. Petitioner‘s special admissions program, focused solely on ethnic diversity, would hinder, rather than further, attainment of genuine diversity."

20 BARROSO, "Racismo e papel da Universidade" Jornal do Brasil, 28.2.2003.

21 Cor, raça e origem no Brasil, 29.4.1999.

22 "Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem", em Tanto Preto Quanto Branco Estudos de Relações Sociais, S Paulo, T.A. Queiro z Editor, 1985.

23 In "O Princípio da Igualdade em Perspectiva Histórica: conteúdo, alcance e direções", RDA, Rio de Janeiro, 211:241-269,jan/mar. 1998.

24 In "Los derechos en serio", Barcelona, Anel, 1989, pp. 327/348.

25 Coimbra, Livraria Almedina, 1993

26 Brasília Jurídica, 2002, p. 251 e seguintes.

27 In "El principio de proporcionalidade y los derechos fundamentales", Madrid, CEPC, 2003, p.. 36



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARANHA, Roberto de Oliveira. Mandado de segurança contra cotas no vestibular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 667, 3 maio 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16618. Acesso em: 20 abr. 2024.