Petição Destaque dos editores

Mandado de segurança contra cotas no vestibular

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03/05/2005 às 00:00
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O direito

1.Como é cediço, em homenagem à ampla acessibilidade de todos os cidadãos brasileiros às vagas nas Universidades mantidas mediante os tributos pagos pelos contribuintes, aos quais, desde que preencham as exigências legais, estão, em linha de princípio, sem exceção, disponíveis todas elas, as regras de seleção de candidatos ao seu preenchimento são tributárias da mais absoluta legalidade na sua realização. Essa legalidade se deve iniciar com inclusão nos Editais dos requisitos para o acesso aos cargos constantes de lei em sentido estrito (cf. Art. 37-I da Constituição Republicana) e prosseguir mediante normas editalícias claras, inequívocas e referendadas tanto pela Lei Maior quanto por Lei ordinária.

2.A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo conjunto de valores para a sociedade brasileira, dentre os quais incluem-se a valorização dos direitos humanos e o combate a todos os tipos de discriminação, conforme preceituado já no preâmbulo da Lei Maior: "nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)". Em outra passagem o texto é ainda mais explícito, senão vejamos:

Constituição da República, Art. 3º. "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

3.Com efeito, da leitura preliminar do texto constitucional relativo à vedação de discriminação entre brasileiros pode-se inferir que até mesmo ao legislador ordinário seria vedado instituir preconceito de raça ou cor, sendo, portanto, patente a incompatibilidade entre a Constituição e uma "lei de cotas" que, hipoteticamente, viesse a ser aprovada em nível federal (pois como se sabe, a competência para legislar a esse respeito é exclusiva da União), eis que, em o fazendo, consagraria uma discriminação por motivo de raça e condição social (outra forma de discriminação). Ora, considerando que se tal lei existisse seria inconstitucional, o que não dizer de uma mera Resolução interna de um mero órgão de segundo escalão de um Ministério? Além desse aspecto vinculado à ilegalidade da regra que discriminou o Impetrante, há outro princípio constitucional de enorme valor por ele posto em xeque, que é o direito constitucional à igualdade.

4.Louvam-se os acólitos desse regime discriminatório de raciocínio simplista, que existe desde Aristóteles e é formulado nos seguintes termos: "se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes de desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais). [2]" é a antiga cantilena de que, "tratar desiguais de forma desigual é um pressuposto de justiça". Sob o influxo dessa espécie de cogitação, "o filho de uma empregada doméstica, moradora de favela, e o filho de um desembargador, morador da zona sul, serem tratados em igualdade plena, seria uma teratologia jurídica e moral". Entretanto, há que por um grão de sal nesse discurso populista e ‘filosofia barata’ de botequim, que, logo de saída se choca com o preceito constitucional que preconiza a igualdade plena, sem ressalva de qualquer natureza: o que garante aos legisladores que o filho da empregada não poderá, com esforço realizar seus estudos e alçar a condições sociais importantes, já que inexiste qualquer óbice ‘oficial’ à sua ascensão? Não é neste País que um ex-retirante nordestino, pouco escolarizado, ex-metalúrgico se tornou Presidente da República sem se valer de cotas? De outro lado, quem assegura que o filho do rico, descambando para as drogas e o epicurismo desenfreado não vá terminar na sarjeta? Mais. Quem assegura que o filho do pobre é, necessariamente negro ou pardo e o filho do desembargador, branco, já que existem desembargadores e até um Ministro do STF negros? Ora, não há tal garantia, e disto resulta a primeira grande questão das normas que instituem sistemas de cotas. Sendo uma norma criada para criar maiores oportunidades aos economicamente desprivilegiados, o tiro pode acabar saindo pela culatra: haverá um duplo privilégio para o negro ou pardo abastado pari passu com uma dupla discriminação para os pobres de pele clara, principalmente se seus pais, acreditando no stablishment, se desvelaram para colocar seus filhos, mulatos claros ou brancos (ou nipônicos) em escolas particulares.

5.Ora, o fato de ser negro, pardo ou branco, por si só, não é um fator que define a condição econômico-social do cidadão. É claro que a população negra e parda tem um histórico de marginalidade muito maior que a população branca, mas isso não significa que se possa fazer generalização, ainda mais quando se toca num aspecto tão delicado das sociedades democráticas, qual seja, a igualdade entre os cidadãos. A opinião dos doutrinadores sobre o princípio da igualdade segue este mesmo raciocínio. Veja-se a esse respeito, escólio de ALEXANDRE DE MORAES, um dos grandes constitucionalistas brasileiros:

"a desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos". [3]

De forma mais direta, diz ele: "o que se veda são diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas". [4] Nesse sentido, é perfeitamente admissível que a lei faça discriminações desde que calcada em justificativa objetiva e razoável, observados os juízos valorativos normalmente aceitos, bem como a relação de proporcionalidade entre meios e fins a ser atingidos. Exempli gratia, o concurso público para a Polícia Militar faz discriminação relativa à altura, peso e idade. Pergunta-se tal sorte de discrímen é justa? é razoável? A resposta só pode afirmativa! Em primeiro lugar, por se tratar de acesso a uma função publica para a qual é imprescindível a boa forma física, a qual é característica fundamental para o profissional que lida com a criminalidade. Um policial incapaz de correr ou um bombeiro afetado por excesso de peso será quase que completamente inútil numa situação de risco. Diante de tal perspectiva, havendo discriminação nesse concurso, é perfeitamente razoável que tal se faça, mas é consenso que ela não atenta contra a ordem constitucional, porquanto calcada em ostensiva razoabilidade. Não é o que se passa em relação a vagas na Universidade Pública, já que discriminação imposta a nenhum objetivo de interesse público serve. Se investigada a razoabilidade da portaria do Impetrado que estabeleceu o regime de cotas, as conclusões serão diversas das encontradas no exemplo anterior: a justificativa para sua criação, em tese, é nobre, por tratar de medida de combate à desigualdade, mas não é objetiva, nem razoável, nem legal. A pedra de toque para extinguir o baixo acesso dos socialmente desvalidos consistiria em elevar o nível do ensino nas escolas públicas e não em reduzir o nível de exigência para o ingresso no ensino superior, dentre outras razões, pelo fato de nas Universidades vir a se formar a elite pensante e dominante do futuro, o que, num mundo competitivo e globalizado como o atual, exige cada vez mais pessoas preparadas para o desafio do futuro: de nada adianta um País ter um Presidente que veio dos estratos sociais inferiores se, à testa de suas elevadas funções de primeiro magistrado da Nação, sendo monoglota, pouco instruído, mal-informado, desprovido, enfim, daquele descortino intelectual, típico dos líderes mundiais que somente o amor aos livros e a vivência acadêmica podem propiciar, terá um desempenho medíocre e completamente aquém do que o grandioso destino do País exige. É refletir e indagar: o que garante que negros ou pardos, oriundos de péssimos colégios – públicos, diga-se de passagem - conseguirão subir socialmente ao cursar uma universidade pública? Não há essa garantia, pois o só-fato de ingressar numa Universidade não assegura a ninguém o condão de se tornar um profissional, capaz de adquirir destaque social por sua excelência: não é um prêmio de loteria, não é uma ‘convocação’ para o Big Brother. Não. Há a trajetória a cumprir, as dificuldades naturais do curso, e, com ele a lida acadêmica, para cujo aproveitamento é imprescindível o hábito da leitura, o domínio dos fundamentos do conhecimento propedêutico, enfim a base teórica que os privilegiados pelo sistema de cotas em tese não possuem, pois, se assim não fosse, teriam sido aprovados sem essa benesse. Também não é razoável, pois que, como já dito, características físicas, como cor de pele ou raça, não têm quaisquer relações comprovadas com características sociais.

6.Um terceiro aspecto a ser considerado é o seguinte: a norma de cotas baixada pelo Impetrado é inviável, dados os termos em que a Constituição Federal aborda a questão. Se a Carta Magna diz que não pode haver preconceito, é porque assim deve ser, sem concessões de nenhuma espécie. A primeira medida, portanto, para tornar sem efeito um princípio constitucional estampado claramente no texto da Lei Maior e, desse modo, outorgar legitimidade à idéia das cotas é uma emenda à Constituição, não uma lei ordinária e muito menos, uma inútil Resolução universitária. Debalde pretender-se desrespeitar a Constituição e o Estado de Direito simplesmente porque os que detêm, momentaneamente, o poder, tendo provindo de camadas sociais inferiores, querem, com evidente propósito eleitoreiro, dar aos cidadãos que não possuem mérito para isso - de bandeja - a formação universitária que, não lograriam obter sob as regras ordinárias, "vingando-se" do sistema a que não tiveram acesso, embora nada, além de sua inapetência pelos estudos, os apartasse do objetivo da consecução de um diploma universitário. Nesta ordem de idéias, ainda que com a desculpa de visar objetivo nobre, não podem os que detêm o Poder de decisão, malferirem a Constituição. A esse respeito o prestigioso jurista LUÍS ROBERTO BARROSO, comentando a força normativa da Constituição, asseverou:

"Embora resultantes de um impulso político, que deflagra o poder constituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é documento jurídico. E as regras jurídicas, tenham ou não caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataformas políticas. [5]"

Isto significa que, se a Constituição não incluiu entre seus princípios a possibilidade de criação de privilégios sob nenhum pretexto, atos normativos como a Resolução nº 01/04 da Universidade Federal da Bahia não podem adquirir foro de cidadania, principalmente porque instituem o racismo entre nós, a pretexto de promover a presença de determinado segmento étnico ter assento nos bancos acadêmicos.

7.Conforme já disse JOSÉ AFONSO DA SILVA, o conhecido constitucionalista, a Constituição estava atenta ao problema do racismo, mas não para incentivá-lo e sim para extirpar de vez a possibilidade dessa chaga social. Não foi por outro motivo que assegurou PARA TODOS os cidadãos o direito à educação. Se a idéia das ações afirmativas houvesse animado o Constituinte, por certo a dicção constitucional acenaria com essa possibilidade, não o tendo feito pela previsível decorrência de instigação de ódios raciais caudatários da segregação, algo que jamais integrou – pelo menos antes do mandarinato petista que ora detém o poder – integrou o ideário dos legisladores brasileiros. Assim, já que o acesso ao ensino é direito subjetivo público, então para quê o texto constitucional instituiria o sistema de cotas? Colacione-se, portanto, a lição do referido constitucionalista sobre o acesso à educação:

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(...) a norma, assim explicitada – "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família (...)" (arts. 205 e 227) -, significa, em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206); que ele tem que ampliar cada vez mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito; e, em segundo lugar, que todas as normas da constituição, sobre educação e ensino, hão que ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização. (p. 316) [6].

Como se não bastasse a simples e evidente constatação da inconstitucionalidade da Resolução que, espuriamente, inaugurou o sistema de cotas, a metodologia adotada para aferição dos candidatos negros e pardos é simplesmente pífia. Na verdade, a regra não beneficia os negros ou pardos, mas sim os auto-declarados negros ou pardos, e entre estes e aqueles existe um grande abismo, aberto aos aproveitadores. Em suma, ao dar azo para a fraude, a Resolução causa sérios danos aos estudantes que efetivamente se dedicaram para a realização das provas do vestibular.

A esse respeito, em excelente ensaio sobre a posição dos afro-brasileiros na educação brasileira, o sociólogo AHYAS SISS já constatava a impossibilidade jurídica para o sistema de cotas:

"Na nossa última Constituição Federal, muito embora esteja estabelecido ser o racismo um crime inafiançável e imprescritível, não incorporou o princípio da ação afirmativa (ou assistência compensatória, na versão americana) através do qual reconhecia-se que os afro-brasileiros, "submetidos à exploração e a dominação, eram credores de uma assistência especial por parte do Estado [dito] democrático para igualarem-se aos brancos na raia da competição". [7]


Sobre "ação afirmativa" e "regime de cotas": a experiência americana

1.Pedindo vênia para alongar ainda mais esta exposição, por presumir que, inelutavelmente, a discussão a ser iniciada com a presente ação resvalará para o tema das ‘ações afirmativas’ impende dedicar algumas linhas a esta faceta o fenômeno em estudo. Pesquisadores e estudiosos como FLÁVIA PIOVESAN a estas se reportam, gizando que

"Diversamente dos EUA, que, desde a década de 60, iniciaram o processo de adoção de políticas afirmativas nas esferas do trabalho e da educação, no Brasil o tema é ainda inovador. As ações afirmativas em favor dos afro-descendentes passaram a compor a agenda política nacional especialmente com a Conferência da ONU contra o Racismo, Xenofobia e outras formas de Intolerância correlata, em Durban, realizada em setembro de 2001. O documento oficial do Estado Brasileiro à conferência defendia a adoção de tais políticas no trabalho e na educação. Após Durban, as primeiras iniciativas de ação afirmativa foram desenhadas no Brasil, por exemplo, por meio de decreto de 13 de maio de 2002, que criou no âmbito da Administração Pública Federal o Programa de Ação Afirmativa, bem como por meio de iniciativas no plano educacional, com a adoção de cotas para afro-descendentes em Universidades dos Estados da Bahia, Rio de Janeiro e, recentemente, na UnB (a primeira Universidade Federal a fazê-lo) [8].

, o que constitui ledo – e ivo - engano.

2.A expressão "ação afirmativa", comumente usada no contexto do combate a diferentes formas de exclusão ou discriminação social, é de uso recente no Brasil. Trata-se de tradução literal da expressão "affirmative action" adotada pela primeira vez, em 1961, pelo Presidente John F. Kennedy em momento histórico que marcava o início da histórica campanha pelos direitos civis. Nesse sentido, a primeira providência de Kennedy foi um decreto executivo [9] por meio do qual mandou incluir nos contratos de fornecimento governamentais cláusula por cujo intermédio o fornecedor se comprometia a não discriminar seus empregados e candidatos a empregos, em razão de raça, credo, cor ou origem. Além disso, o fornecedor obrigava-se a adotar "ação afirmativa" para evitar qualquer forma de discriminação na relação de emprego ou nos critérios de seleção de candidatos a emprego. Nos anos seguintes, o conceito de ação afirmativa ganharia maior densidade e abrangência. Em 1964, o Estatuto dos Direitos Civis (Civil Rights Act of 1964) determinou que ninguém poderia ser discriminado ou excluído da participação nos benefícios de qualquer programa ou atividade que recebesse assistência financeira federal, em razão de raça, cor ou origem [10]. No ano seguinte, o presidente Lyndon B. Johnson afirmou em discurso na Universidade de Howard que o que se buscava com a política de direitos civis não era apenas "igualdade como um direito e uma teoria, mas igualdade como um fato e igualdade como resultado" [11]. Em 1971, no governo Richard M. Nixon, o Ministério do Trabalho norte-americano determinou que todos os que contratassem com o governo deveriam desenvolver "programas de ações afirmativas aceitáveis", o que implicava na "análise das áreas em que o contratante fosse deficiente na utilização de grupos minoritários ou mulheres". [12] Observa-se, portanto, que o que se chamou de "ação afirmativa" nos Estados Unidos não teve, na origem, o caráter erga omnes típico da intervenção estatal direta e impositiva do poder público. Na realidade, o governo federal norte-americano valeu-se do seu "poder de compra" para impor aos contratados políticas anti-discriminatórias.

3.Essa forma oblíqua de tratamento da discriminação foi uma decorrência inevitável do modelo de federalismo "fraco" norte- americano, fundado, de um lado, no alto grau de autonomia dos estados- membros, e, de outro, na aversão da sociedade ao big government - o governo intervencionista e centralizador. Desde então, coube ao Judiciário em geral e à Suprema Corte em particular expandir ou restringir, em uma série de casos concretos, o conceito de ação afirmativa. Mas, ao contrário da percepção brasileira leiga a respeito da extraordinária experiência norte-americana, as ações afirmativas: não se limitaram ao estabelecimento de cotas compulsórias. Na realidade, como se demonstrará a seguir, o sistema de cotas sempre esteve no centro da polêmica, na medida em que elas próprias podem constituir forma de discriminação. Em 1978, a Suprema Corte americana concluiu, no julgamento do Caso Bakke [13], por estreita maioria (cinco votos a quatro) que o sistema de cotas (16% das vagas) adotado pela Escola de Medicina da Universidade da Califórnia para admissão de alunos oriundos de minorias étnicas (negros, chicanos [14], asiáticos e índios americanos), que também preenchessem o requisito de desvantagem econômica ou educacional, violava a Cláusula da Proteção Igualitária da Constituição (Décima Quarta Emenda). Ou seja, o critério adotado – tal como se dá na espécie vertente - na opinião majoritária da Corte, implicou em discriminação de candidatos brancos. Não obstante, a Corte também entendeu que em determinadas circunstâncias — no caso a diversidade de ensino — seria possível levar em conta o fator racial. Neste ponto, pelo voto em separado de quatro juízes, definiu-se como ação afirmativa o objetivo de superar a sub-representação racial em determinada atividade, sempre porém sob estrito controle judicial. Sobressai, assim, o repúdio do Judiciário norte-americano em relação ao uso de ações afirmativas baseadas tão-somente em sistema de cotas raciais ou étnicas.

4.Nos 25 anos seguintes, o precedente estabelecido no caso Bakke e o voto do Justice Lewis E. POWELL JR. foram interpretados e reinterpretados sempre no sentido de que o fator racial somente pode ser levado em conta em conjunto com outros fatores — jamais como um fim em si mesmo — mas como meio de assegurar a "diversidade" do ensino. Finalmente, em 2003, a Suprema Corte voltou a enfrentar o tema no caso Grutier versus Boilinger et al [15]. no contexto da política de seleção de candidatos para o curso de graduação da Escola de Direito da Universidade de Michigan. Com vistas assegurar a diversidade do ensino jurídico, a Escola de Direito da Universidade de Michigan alega levar em conta fatores tais como competência acadêmica, talento, notas escolares e o resultado de teste específico de admissão às Escolas de Direito nos Estados Unidos. Argumenta ainda que diversidade acadêmica não é definida somente em termos raciais ou étnicos, se bem que faça referência específica à inclusão de afro-americanos, hispânicos e indígenas. Sem jamais referir- se a cotas ou percentagens, a Universidade afirma que o objetivo da diversidade exige formação de "massa crítica", ou seja, de um número significativo de estudantes recrutados em minorias sub-representadas. Mais uma vez por estreita maioria (cinco votos contra quatro), a Suprema Corte americana entendeu, pelo voto da Justice SANDRA O’CONNOR, válida a política de seleção da Universidade de Michigan, sob os seguintes argumentos: (a) o uso do critério racial foi o estritamente necessário (narrowly tailored) para alcançar os benefícios decorrentes de um corpo discente diversificado; (b) nem toda decisão influenciada por fator racial é passível de objeção, desde que esteja, como no caso, sob estrito controle judicial; (c) o conceito de "massa crítica" integra o objetivo de interesse público de um corpo discente diversificado (patentemente inconstitucional seria o uso do conceito de massa crítica apenas para justificar a fixação de determinado percentual de candidatos de um grupo específico apenas em razão de raça ou origem étnica); (d) a política adotada não isola os candidatos em categorias que evitem submetê los à concorrência com todos os demais candidatos. Verifica-se, portanto, que em Grutter versus Boilinger a Corte norte-americana não cria nem subtrai nenhuma das condições enunciadas no caso Bakke que permitem considerar o fator racial apenas um plus, rigidamente concebido e controlado, vedado o estabelecimento de cotas ou percentuais.

5.No Brasil, talvez em razão do baixo conhecimento a respeito do ambiente histórico em que se processou a evolução da política dos direitos civis nos Estados Unidos, a ação afirmativa tem sido usada como sinônimo do sistema de cotas algo, que, no fundo, foi o que fez o "legislador" universitário no caso concreto. Ora, nada mais equivocado, como esclareceu o historiador JOSÉ MURILO DE CARVALHO, em artigo doutrinário:

"Grande confusão semântica entrava o debate sobre políticas voltadas para as minorias sociais. Trata-se do uso dos termos cota e ação afirmativa como se fossem sinônimos... . Defende- se ação afirmativa na presunção de se estar defendendo cota. São coisas diferentes. Cota é apenas uma forma de ação afirmativa, entre inúmeras outras modalidades possíveis. Ação afirmativa é gênero, cota é espécie. Ação afirmativa é toda política voltada para a correção de desigualdades sociais geradas ao longo do processo histórico de cada sociedade. Baseia-se na convicção de que a justiça social exige que a igualdade não seja apenas legal e formal e que, portanto, é legítimo, e mesmo mandatário, que o poder público tome medidas para reduzir a desigualdade entre cidadãos".

6.Essa límpida definição de ação afirmativa mostra que ela não tem uma conotação jurídica, mas um sentido essencialmente político. A ação afirmativa é uma estratégia de enfrentamento de desigualdades que certamente influenciará decisões govemamentais, orientará o processo de elaboração legislativa e inspirará novas formas de interpretação das leis. São exemplos recentes de ações afirmativas, o Programa Fome Zero, o Programa Bolsa-Escola, os programas de assentamentos rurais e outros tantos que visam tornar efetivos direitos até agora tratados como abstrações constitucionais, os quais somente se têm como plausíveis porque beneficiam os reputados necessitados sem privar os demais dos seus direitos constitucionais. No caso do acesso às Universidades, legítima seria uma ação afirmativa que incrementasse o ensino público (pagando melhor aos professores, dotando as escolas de bibliotecas, laboratórios de pesquisa, redes de computadores, etc.), de molde a torná-lo competitivo e a fazer com que os alunos dele egressos conquistassem o direito de acesso ao ensino superior por puro mérito e não porque o governo do Partido dirigidos por simplórios ‘facilitou as coisas’ para eles, sem atentar para o fato de que a Universidade é o esteio da cultura e intelligtenzia de um povo, e tal como se dá nos sistemas de vasos comunicantes da Física, quanto mais baixo o nível acadêmico dos seus próceres, menos evoluída será a nação.

7.O mais preocupante é que a adesão atabalhoada e incondicional ao sistema de cotas não é fruto apenas da falta de informação. Decorre, também, de uma tentativa de uniformizar a questão da discriminação, de simplificá-la para fins de combate, ainda que passando por cima dos processos históricos e deixando de lado as raízes sociais, culturais e religiosas de cada povo. Não se trata, entretanto, aqui, de entrar na interminável e sempre "preconceituosa" discussão de se a discriminação social, racial, étnica ou religiosa no Brasil é menor ou maior do que nos Estados Unidos. Basta anotar, para fins de análise, que os processos históricos evoluem de maneira diversa e qualquer tentativa de reducionismo só poderá comprometer a qualidade da decisão política da questão. Nesse sentido, a análise comparativa ajuda a compreender as diferenças e a rejeita as equiparações simplistas. A escravidão negra é, por certo, o dado comum aos dois países. Lá o racismo deita raízes na própria concepção da República. Leia- se o que diz o Justice BRENNAN na abertura do seu voto no Caso Bakke:

"nossa Nação foi fundada no princípio de que ‘todos os homens são criados iguais’. No entanto, a franqueza exige que se reconheça que os autores da nossa Constituição, ao fundir as treze colônias numa Nação, claramente comprometeram esse princípio de igualdade com a sua antítese: escravidão." [16]

8.Em outras palavras, a República norte-americana, ao contrário da República brasileira, nasceu oficialmente escravagista. A abolição da escravatura, nos Estados Unidos, passa por uma guerra civil que custou 600.000 vidas — algo desconhecido na história brasileira. Finda a guerra, o ódio racial instalou-se no Sul em razão da miséria a que foi reduzida a população branca em conseqüência da terrível devastação provocada pela guerra. Comparativamente, em nenhum momento o Brasil conheceu a segregação racial nos transportes e nas escolas públicas; jamais enfrentamos a separação oficial - separate but equal - referendada pela Suprema Corte americana; nunca tivemos que conviver com a intolerância religiosa – pelo contrário, cedo praticamos o sincretismo e as festas populares de Salvador são um alegre caldeirão de mitos cristãos e pagãos; e nosso perfil racial foi marcado, desde os primórdios da colonização, por intensa miscigenação, o que não ocorreu no Estados Unidos.

9.É possível até que a discriminação social fundada na pobreza seja maior aqui do que lá, mas nada autoriza o reducionismo histórico com que o Impetrado tratou o assunto, criando, oficialmente, o regime de racismo à brasileira, e,inadvertidamente, praticando o crime previsto na Lei nº. 7.716 de 1989 [17], em cujo Art. 6º resta consignado que é crime punido com pena de reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos, agravado de um terço se for praticado contra menor de 18 (dezoito) anos, a conduta de "recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau", por motivo de discriminação racial.

10.Importar a tal ‘ação afirmativa’ da forma atabalhoada pela qual o Impetrado o fez é o mesmo que comparar a discriminação racial americana e brasileira com o moderno ódio religioso e étnico do Leste da Europa. A esse respeito, o educador EDGAR FLEXA RIBEIRO [18] ao criticar a tentativa de se erigir a cota racial como a ação afirmativa por excelência, refere-se ao "servilismo cultural" como "uma das mais óbvias e típicas manifestações de dependência das sociedades periféricas que, no afã de se mostrarem mais próximas do centro a que estão submetidas, imitam canhestramente o que entendem ou pensam entender que está se passando por lá". E exemplifica:

"... Ninguém ignora a discriminação no Brasil. Mas a história do negro brasileiro, sua posição e trajetória são iguais à do negro norte-americano? São diferentes em vários e importantes aspectos, a começar do fato de que a partir da abolição da escravatura não se conheceu aqui o que nos Estados Unidos veio a ser um regime institucionalizado de segregação racial. Nunca houve [no Brasil] um bonde para branco e outro bonde para negro. Houve escola em que o negro não era aceito ou à qual não tinha acesso por uma infinidade de razões, inclusive — mas não exclusivamente — raciais. Mas a rede pública de ensino, por exemplo, já desde o final do Império não discriminava brancos e negros. O nível de alfabetização não era medido diferentemente para negros e brancos, e ninguém foi barrado por ser negro para exercício de cargos ou funções públicas."

11.Isto faz com que a informação da referida FLÁVIA PIOVESAN, no artigo antes citado, no sentido de que

"No último dia 23 de junho, a Suprema Corte dos EUA decidiu pela constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, ao julgar caso da Universidade de Michigan em que se questionava o sistema de admissão da Faculdade de Direito orientado ao favorecimento de minorias raciais. A Faculdade de Direito de Michigan tem 3500 candidatos para 350 vagas. Sem a adoção das ações afirmativas, os negros comporiam 4% do corpo de alunos, ao passo que, com as ações afirmativas, passam a compor 14,5%. A decisão irradiará impacto para situações semelhantes em escolas particulares e no mercado de trabalho".

à qual a referida autora pretende atribuir conotação de exemplaridade, nenhum significado possua em relação à nossa realidade.

12.Não obstante, o exemplo norte-americano no combate à segregação de minorias — não necessariamente apenas pelo regime de cotas — certamente ajuda a compreender a complexidade do problema. No Caso Bakke, já referido, a Suprema Corte americana enfrentou a questão das cotas raciais nos seguintes termos:

"Pode-se assumir que a reserva de um número específico de vagas em cada turma para indivíduos de grupos étnicos a que se dê preferência contribuiria para alcançar considerável diversidade étnica no corpo docente. Mas o argumento [da Universidade] de que é o único meio efetivo de servir ao interesse da diversidade é seriamente falho. No sentido mais fundamental, o argumento é equivocado sobre a natureza do interesse do estado que justamente consiste em levar-se em conta as raízes raciais e étnicas. Não se cogita de um simples interesse na diversidade, em razão da qual é garantido um percentual especifico de alunos selecionados de grupos étnicos e o percentual restante destinado outros grupos. A diversidade que interessa ao estado abrange um conjunto muito mais amplo de qualificações e interesses, dentro os quais a origem racial ou ética é apenas um elemento, ainda que importante. O programa de admissão [da Universidade] focado apenas na diversidade étnica mais inibe do que promove a genuína diversidade" [19].

13.Não se discute, a dívida social e moral em relação a minorias discriminadas — especialmente em uma sociedade que sofre de graves desequilíbrios econômicos e regionais não pode ser abstraída. Há quem vislumbre na instituição dos programas de cotas um alegado ‘resgate’ da condição social dos afro-descendentes e indo-descendentes, redimindo-os de sua pouco expressiva presença nos postos de destaque da sociedade por imperativo de consciência, pelo ‘mal’que lhes teriam causado nossos antepassados. É um duplo equívoco. Em primeiro lugar, se algum culpado há pela escravatura – isto é, se é que se pode admitir que a baixa participação dos cidadãos de pele escura se deva a essa circunstância histórica – essa culpa é dos colonizadores, e não dos colonizados. Afinal, o escravagismo ocorreu por deliberação da Corte Portuguesa e não do povo brasileiro, àquela altura sequer organizado como nação. Em segundo, há a considerar que ao privilegiar determinada etnia, termina-se por restringir o direito das demais, com a agravante de que, no caso das Universidades públicas, seu custeio é suportado por todos os contribuintes, não importa a sua origem étnica. Assim, se não fosse evidente inconstitucionalidade seria rematada injustiça privar os brasileiros de pele clara do pleno acesso à Universidade com a desculpa de ‘fazer justiça social’.

14.Nesse afã, dificuldades se colocam quando o Estado assume, ele próprio, o encargo de dosar o tamanho e o tempo da reparação, sem atentar para as conseqüências de fragilizar a reserva de cérebros pensantes do País, apenas em nome do objetivo de propiciar para as futuras gerações ‘um País de todos’, segundo slogan da propaganda oficial. É o caso do acesso à universidade, como bem descreve o professor e constitucionalista LUIZ ROBERTO BARROSO [20]:

" Posta a questão racial, veja-se agora o problema da universidade. O ensino superior tem por função principal a produção e a transmissão de conhecimento, formando profissionais que possam atender, com qualidade, às demandas da sociedade em áreas diversas: tecnológica, humanidades, ciências médicas. Para desempenhar adequadamente a sua missão, a universidade procura recrutar os melhores talentos, aferidos, na medida do possível, por critérios objetivos e impessoais. O populismo nessa matéria leva à mediocridade e ao colapso da educação de nível superior. (...) A questão é em si complexa, antes mesmo de se adicionar o complicador de quem, afinal, deve ser considerado negro ou pardo. Existem dois valores socialmente relevantes em contraposição: a) a necessidade de reparação histórica à comunidade negra; e b) a necessidade de preservar ensino de qualidade e sistema do mérito na universidade. Quando esse tipo de conflito ocorre, o moderno direito constitucional determina a utilização de uma técnica denominada de ponderação de valores: o intérprete deve fazer concessões recíprocas entre eles, preservando o núcleo mínimo de cada um, com base no princípio da razoabilidade".

15.Na realização de políticas ditas "afirmativas", melhor andou o Itamaraty. Como é sabido, o Brasil jamais teve um diplomata negro. Com vistas a sanar tal situação, o Ministério das Relações Exteriores concedeu várias bolsas de estudos para que negros fizessem as provas nas mesmas condições que os brancos, solução que teve em linha de consideração o fato de que, por se tratar de uma área estratégica nacional, não se pode simplesmente abrir vagas para despreparados. Este, na verdade é o caminho ideal, e, se o raciocínio funcionou tão bem para o MRE, porque não o seria igual para a universidade? Fica a pergunta.

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ARANHA, Roberto Oliveira. Mandado de segurança contra cotas no vestibular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 667, 3 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16618. Acesso em: 25 abr. 2024.

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