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Mandado de segurança contra cotas no vestibular

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03/05/2005 às 00:00
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Sobre a ilegitimidade do discrímen da cota da escola pública

1.Em matéria racial, é até possível afirmar que existe uma responsabilidade social difusa pela reparação devida, uma vez que a ascensão social do negro permanece obviamente mais lenta que a do branco, embora contra esta observação profligue a constatação de que inexistem barreiras ‘oficiais’ à ascensão dos cidadãos afro-descendentes. Se assim não fosse como explicar a presença de seus representantes no Congresso, no STF, no STJ e nos Tribunais de Justiça, país afora? O mesmo porém, não se aplica à fixação de cota para os candidatos egressos de estabelecimentos públicos de ensino situados no Estado da Bahia. A razão é simples: consiste na observação de que a insuficiência do ensino público da Bahia não é culpa da sociedade, mas sim, do próprio Poder Público. Com efeito, se nas últimas décadas houve deterioração do ensino público municipal e estadual de primeiro e segundo graus no Rio de Janeiro, não cabe a qualquer categoria social a responsabilidade direta por esse fato. Ao contrário, a sociedade como um todo — e os mais pobres em particular — pagam o preço da decadência que não provocou, mas é por ela responsável, na medida em que continua a votar nos mesmos políticos mesquinhos, míopes e caudilhistas de sempre.

2.Como é óbvio, a educação dos filhos não é uma opção dos pais — a escolha da escola, talvez. Na ausência de escolas públicas suficientes e razoáveis, os pais farão o possível para prover a educação dos filhos em escolas privadas sendo esta prioritária em relação a qualquer outro investimento familiar. Em outras palavras, manter o filho numa escola particular nada tem a ver com uma visão elitista do ensino. Nesta ordem de idéias, é desumano e paradoxal que quem procura suprir as falhas da educação oficial seja penalizado com a exclusão do acesso à Universidade pública.

3.Ora, partindo-se da perspectiva da classe pobre, a educação é o instrumento por definição da ascensão social e econômica. Se a escola pública for disponível, ela será a primeira escolha. Se não for, a família fará um esforço para pagar a escola privada mais barata. Na classe média de baixa renda, o sonho da família é ver o filho "doutor", o que no quadro de insuficiência do ensino público significa o esforço de pagar uma escola privada de melhor qualidade. A injustiça e o absurdo do sistema de cota adotado pela Universidade Federal da Bahia fica evidente quando se acompanha o itinerário "clássico" percorrido por um aluno de classe média de baixa renda: (a) ensino fundamental na escola pública; (b) ensino médio na escola privada, se não houver escola pública disponível; (c) ensino superior na universidade pública. A prosperar a lógica perversa do Impetrado, a família de classe média de baixa renda estará sendo penalizada POR QUE FEZ SACRIFÍCIO ADICIONAL PARA EDUCAR OS FILHOS!


As cotas e a proporcionalidade de "negros" e "pardos’ no concerto populacional, segundo o IBGE

1.As únicas fontes cientificamente seguras de pesquisa populacional são os recenseamentos decenais e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada anualmente, ambos pelo IBGE. No tema da "cor", são oferecidas aos pesquisadores as seguintes opções: "branco", "preto", "pardo" e "amarelo", e mais a categoria "indígena". As tabulações dos Censos de 1991 e 2000 mostram, em termos percentuais, a seguinte distribuição por cor/raça:

19912000

Branca51,6%53,4%

Preta5,0%6,1%

Parda42,4%38,9%

Amarela0,4%0,5%

Indígena0,2%4,1%

Ignorado 0,4%0,7%

Fonte: IBGE, Censos demográficos 1991 e2000

2.O professor SIMON SCHWARTZMAN, que presidiu o IBGE, aponta, em estudo [21], a dificuldade técnica de, a partir desses dados, se tirar conclusões confiáveis sobre o grau de percepção a respeito de raça e origem étnica. Aponta também os problemas que adviriam da adoção de um critério de classificação semelhante ao norte-americano, em que a categoria "preto" (black) abrange os afro descendentes de um modo geral, eliminando-se a categoria "pardos", tendo em vista o grau de miscigenação no Brasil. Apesar da insatisfação com essas categorias, não se logrou até hoje conceber um critério de classificação mais eficaz. Uma das hipóteses mencionadas por SCHWARTZMAN foi levantada em obra clássica de ORACY NOGUEIRA [22] para quem, nos Estados Unidos, o que define um "negro" seria sua ascendência africana e escrava, sua origem, e não a coloração da pele; no Brasil, ao contrário, seria a cor da pele, mais do que sua origem, que definiria as pessoas socialmente, e serviria de base para preconceitos e discriminações. Como tentativa de aperfeiçoar o quesito raça ou cor, o IBGE inseriu um conjunto de quesitos no PNAD de 1998. O resultado mostra a rejeição das pessoas em se classificarem como pretas, pardas e principalmente indígenas, e revela uma preferência pela expressão "morena" que tem conotação positiva e "reflete bem o caráter das linhas de divisão étnicas e raciais no Brasil". Os Quadros organizados indicam a variedade de autodefinição de cor fora dos padrões convencionais podendo ser visto que, na pergunta sobre "origem", 64,5% das pessoas se consideram de origem "brasileira" — um dado que não demonstra apego a antecedentes raciais ou étnicos.

3.O que se pode facilmente concluir, diante dessas informações técnicas e estatísticas, é que o critério de cota racial adotado pelo Impetrado, em fixar a ‘cota’ racial em 85% dos 43% do universo de candidatos carece de base científica capaz de justificar uma "ação afirmativa" dessa magnitude e que, por definição, discrimina parcelas ponderáveis de outras minorias éticas e sociais.


Da inconstitucionalidade da norma que subsidia o ato abusivo da autoridade coatora – do fundamento para o pedido de declaração incidental a esse respeito

1.Sabe-se que é faculdade reconhecida aos magistrados, a declaração incidental de inconstitucionalidade sempre que a tanto autorizarem as circunstâncias estampadas na matéria à sua jurisdição afeta. Nos itens seguintes serão apresentados os fundamentos para a declaração de inconstitucionalidade da norma que subsidiou o ato abusivo da autoridade coatora. Em não entendendo, todavia, tratar-se de caso que o justifique, roga o Impetrante que a exposição adiante apresentada seja acolhida como fundamento jurídico do pedido de segurança ora anelado.


Da usurpação de competência legislativa privativa da União Federal (art. 22, XVIV, da CF) pela Resolução do Impetrado – da infringência do princípio da reserva legal

1.A norma atacada sofre de vício formal de inconstitucionalidade insanável, já que invade, espuriamente, matéria afeta à reserva de Lei em sentido estrito. O Magnífico Reitor, ao instituir o "sistema de cotas" para o acesso ao ensino universitário, acabou, na verdade, extrapolando os limites de sua competência, passando a "legislar" sobre tema (políticas compensatórias para o ingresso no ensino superior) nitidamente vinculado às diretrizes e bases da educação nacional. Ora, matérias relativas às diretrizes e bases da educação nacional só podem ser tratadas pela legislação federal, conforme determina o artigo 22, inciso XXIV, da Constituição, desse modo, verbis:

"Art. 22. Compete privativamente à União Federal legislar sobre:

(..)

XUV — diretrizes e bases da educação nacional

(..),,

2.Com fulcro nessa autorização constitucional, a União legislou sobre diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei n° 9.394/96, que fixou as regras gerais que deverão ser observadas na educação nacional. E nela não quis o legislador federal criar sistema algum de acesso às universidades mediante "cotas" ou "reserva de vagas". Recentemente, no entanto, o legislador federal, sempre invocando sua competência para regular as diretrizes e bases da educação nacional, editou a Lei n° 10.558, de 13.11.02. Essa lei tratou justamente do "acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes e dos indígenas brasileiros" (art. 1° da Lei). Não foi porém instituído nenhum "sistema de cotas", o que serve de ilustração para a constatação de que essa odiosa discriminação não consta de nenhuma l;ei escrita, embora, se o quisesse o legislador, já o teria feito. Se não ousou a tanto é porque reconhece que somente uma Emenda Constitucional pode excepcionar a Constituição. Desse modo, fica bem claro que o tema "acesso às universidades de grupos socialmente desfavorecidos" inclui-se na expressão "diretrizes. e bases de educação nacional", razão pela qual o Impetrado nele não poderia adentrar, sob pena de usurpar — como de fato aconteceu — competência legislativa privativa da União.

3.Não bastasse, o tema sub judice é, sem dúvida alguma, de vocação nacional, e não regional ou estadual, muito menos meramente institucional. Fossem os Reitores de Universidades de Estados-membros da Federação autorizados a legislar sobre essa matéria, o caos normativo estaria estabelecido. Haveria Estados com "cotas" e Estados "sem cotas"; Estados com "cotas" de 50% e Estados com "cotas" de 10%; Estados com "cotas" apenas para pretos, outros com "cotas" tão-só para pardos, não sendo ainda de se descartar a hipótese de Estados com cotas até para brancos. É pois para evitar essa balbúrdia legislativa sobre o tema do acesso à universidade que o Impetrante, valendo-se desta oportunidade requer a declaração de inconstitucionalidade sob a modalidade difusa de controle do qual resultará a definição exata da competência legislativa exclusiva da União para tratar do tema em debate, fulminando-se assim, pelo vício formal de inconstitucionalidade, a norma interna baixada pelo Impetrado.

4.Nessa mesma linha, cabe ainda anotar que o vício formal apontado pelo Impetrante conta com o apoio da Procuradoria Geral da República. Na ADIn 2.858/RJ, o Procurador-Geral da República concluiu que o chamado "sistema de cotas" para o acesso às universidades tem vocação nacional, não podendo pois sobre ele dispor os Estados da Federação. Confira-se o pronunciamento do Chefe do Parquet federal

"Passando ao exame da constitucionalidade das leis em questão, manifesta-se, de pronto, o vício de inconstitucionalidade formal a acoimar aquelas leis estaduais, tendo em vista a regra de competência privativa da Unido Federal para legislar acerca de diretrizes e bases da educação nacional, prevista no art. 22, XXIV, da Constituição da República".

5.De notar que não existe lei complementar autorizando a quem quer que seja a legislar acerca de diretrizes e bases da educação nacional, hipótese em que seria permitido àqueles entes legislar sobre o tema, nos termos do par. único do art. 22, da Constituição da República. Nem se alegue que a estipulação de normas de acesso à Universidade não esteja compreendida em matéria de diretrizes e bases da educação nacional, reservada à competência da União Federal, e sim no âmbito da competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal, prevista no art. 24, 1X da Constituição da República. Veja-se que a Lei federal n° 9.394/96, que veio a estabelecer diretrizes e bases da educação nacional, define, em seu art. 1 °, que "a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais" porém, ressalva, no § 1 °, do mesmo art. 1 °, que a "educação escolar, que se desenvolve predominantemente por meio do ensino em instituições próprias’". Assim, a referida lei federal é clara em explicitar que, embora a educação possa ser compreendida em um campo amplo, que engloba família e trabalho, unicamente a educação escolar é por ela regulamentada, estipulando diretrizes e bases que, conquanto devam ser conformadas de acordo com características regionais, são de observância obrigatória no território nacional.

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6.Note-se, por oportuno, que se encontra em tramitação o projeto de lei n° 650, de autoria do ex-Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Senador JOSÉ SARNEY, visando instituir "quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES)" nas instituições de educação dos três níveis de governo, federal, estadual, e municipal, estabelecendo a quota mínima de vinte por cento - no que realça o despautério do percentual de 45% estabelecido pelo devaneio do Impetrado - para a população negra.

7.Em termos normativos de lege lata, a Lei federal n° 10.558, de 13 de novembro de 2002, em vigor, ao criar o "Programa Diversidade na Universidade" com a finalidade de "implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes e dos indígenas brasileiros ", limita-se a prever a "transferência de recursos da União a entidades de direito público ou de direito privado, sem fins lucrativos, que atuem na área de educação e que venham a desenvolver projetos inovadores para atender a finalidade do Programa" NÃO ESTABELECENDO EM MOMENTO ALGUM SISTEMA DE COTAS PARA ACESSO À UNIVERSIDADES PÚBLICAS OU PRIVADAS.

8.A conferir, com a transcrição ipsis litteris da referida norma:

LEI Nº 10.558, DE 13 DE NOVEMBRO DE 2002(DOU 14.11.2002) - Cria o Programa Diversidade na Universidade, e dá outras providências.

Faço saber que o Presidente da República adotou a Medida Provisória nº 63, de 2002, que o Congresso Nacional aprovou, e eu, Ramez Tebet, Presidente da Mesa do Congresso Nacional, para os efeitos do disposto no art. 62 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001, promulgo a seguinte Lei:

Art. 1º "Fica criado o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.

Art. 2º O Programa Diversidade na Universidade será executado mediante a transferência de recursos da União a entidades de direito público ou de direito privado, sem fins lucrativos, que atuem na área de educação e que venham a desenvolver projetos inovadores para atender a finalidade do Programa.

Parágrafo único. A transferência de recursos para entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que atendam aos requisitos do caput, será realizada por meio da celebração de convênio ou de outro instrumento autorizado por lei.

Art. 3º As transferências de recursos da União por meio do Programa Diversidade na Universidade serão realizadas pelo período de três anos.

Art. 4º Fica autorizada a concessão de bolsas de manutenção e de prêmios, em dinheiro, aos alunos das entidades a que se refere o parágrafo único do art. 2º.

Art. 5º Os critérios e as condições para a concessão de bolsas de manutenção e de prêmios serão estabelecidos por decreto.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".

Congresso Nacional, em 13 de novembro de 2002; 181º da Independência e 114º da República. Senador RAMEZ TEBET

9. Ressalte-se, ademais, que, conquanto caiba à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios organizar em regime de colaboração seus sistemas de ensino, à União cabe prioritariamente atuar no tocante ao ensino superior, conforme exegese que se extrai do art. 211, e § da Constituição da República, in verbis:

Constituição da República. Art. 211. "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.

§ 1°. A União organizará o sistema federal de ensino e dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade de ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

§ 2°. Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional n° 14/9 6)

§ 3°. Os Estados e o Distrito Federal atuarão priorítariamente no ensino fundamental e médio. (Parágrafo acrescentado pela Emenda Constítucional n° 14/96)

§ 4°. Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório (Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional n° 14/96)".

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARANHA, Roberto Oliveira. Mandado de segurança contra cotas no vestibular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 667, 3 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16618. Acesso em: 25 abr. 2024.

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