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Alteração unilateral do contrato de trabalho lesiva ao empregado e a teoria da incorporação no Direito do Trabalho brasileiro

Alteração unilateral do contrato de trabalho lesiva ao empregado e a teoria da incorporação no Direito do Trabalho brasileiro

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Parecer pela possibilidade de modificação da base para desconto do vale-transporte, para corrigir engano nos cálculos costumeiramente feitos pela empresa, implicando em redução do salário nominal dos empregados.

            Ref.: Consulta formulada pela Empresa X, por intermédio de seu Diretor Administrativo, quanto a possibilidade legal de alterar o modo como a consulente vem se reembolsando do custo referente ao vale-transporte, pelo que passaria a aplicar o percentual de 6% (seis por cento), sobre o salário básico (mensal) de cada um dos empregados beneficiários, conforme previsto no parágrafo único do art. 4° da lei n° 7.418/85 e no parágrafo único e inciso I do art. 9° do Decreto n° 95.247/87, tendo em vista que, há cerca de 10 anos, no ato de se ressarcir, vem utilizando base salarial variável, mas sempre menor que o limite legal, como decorrência de vir aplicando, de boa-fé, mas de modo incorreto, a legislação pertinente. Tal modificação, em tese, seria contrária aos princípios e à legislação sobre o Direito do Trabalho brasileiro, além de contrariar sua Jurisprudência atualizada, se configurando, portanto, alteração contratual unilateral lesiva, causadora de prejuízo; razões que estariam a impor a incorporação, do valor descontado a menor, ao salário ou à remuneração do trabalhador atingido pela medida.


            Versam os autos sobre consulta que formula a empresa X, por meio do seu Diretor Administrativo-Financeiro, visando a obter fundamentação técnico-jurídica que respalde, sua tomada de decisão quanto a adotar o salário básico mensal de cada empregado que utiliza o instituto do vale-transporte, fazendo sobre ele incidir o percentual de 6% (seis por cento) a que tem direito, no ato de se reembolsar das despesas mensais havidas, em conformidade com a legislação vigente. A presente consulta se justifica pelo fato de a consulente, em mais de uma opinião, da lavra de sua assessoria jurídica, haver sido comunicada da impossibilidade de proceder a modificação desejada em relação ao empregados que, de há muito, vêm sofrendo o desconto a menor, por iniciativa que se imputa, com exclusividade, à empregadora, posto que, na douta opinião daqueles juristas, tanto os princípios quanto a legislação brasileira afeta ao Direito do trabalho, assim como sua Jurisprudência atualizada adotam o princípio da impossibilidade de alteração contratual unilateral que direta ou indiretamente cause prejuízo ao empregado - ainda que este consinta - consubstanciado no art. 468 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, modo como conceituam a pretensão da empresa, ao que se adiciona o prevalecimento da regra que impõe a incorporação, ao salário de cada empregado identificado neste quadro fático, do valor mensal cobrado a menor, como conseqüência de aquele quantum, se ter aderido ao orçamento do trabalhador, gerando-lhe, caso se concretize a modificação desejada, prejuízo, conduta que seria, inevitavelmente, acoimada de ilegal pelo poder judiciário brasileiro, posto que lesiva e constitutiva, portanto, de passivo trabalhista para a consulente.


DOS FATOS

            A consulente, ao dar cumprimento às regras referentes à utilização do vale-transporte, tanto na concessão do benefício aos seus empregados, quanto na forma de se reembolsar em face desses mesmos empregados, buscou fazê-lo nos exatos limites em que estão aquelas estabelecidas, ou seja, no parágrafo único do art. 4° da lei n° 7.418-85, alterada pela lei n° 7.619-87, in verbis:

            Art. 4º - (...)

            Parágrafo único - O empregador participará dos gastos de deslocamento do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% (seis por cento) de seu salário básico.

            E, no parágrafo único e inciso I do art. 9° do Decreto n° 95.247/87, verbis:

            Art. 9° O Vale-Transporte será custeado:

            I - pelo beneficiário, na parcela equivalente a 6% (seis por cento) de seu salário básico ou vencimento, excluídos quaisquer adicionais ou vantagens;

            (...)

            Parágrafo único. A concessão do Vale-Transporte autorizará o empregador a descontar, mensalmente, do beneficiário que exercer o respectivo direito, o valor da parcela de que trata o item I deste artigo.

            Meridianamente clara a regra que estabelece a base sobre a qual deve o empregador fazer incidir o percentual de 6% (seis por cento), no ato de se reembolsar: o salário mensal básico, sem adicionais.

            A despeito de declarar, contratualmente, que assim pretende agir, ou seja, se reembolsar pelo máximo permitido em lei, entendeu o preposto do empregador, ao interpretar e aplicar a lei, que a maior base salarial passível de receber a incidência dos 6%, a serem descontados de cada empregado, seria equivalente ao número de dias no mês nos quais, efetivamente, cada trabalhador utilizaria, os vales-transporte para seu deslocamento.

            Assim, exemplificativamente, num mês de 30 (trinta) dias em que haja 26 (vinte e seis) dias de trabalho e 04 (quatro) dias de repouso semanal, se afigurou ao preposto que o salário mensal básico, dividido por 30 e multiplicado por 26, seria, nos limites exatos da lei, o valor sobre que se faria a retenção de 6%, de direito do empregador.

            Pensando estar atuando em consonância com o que declarou que deseja fazer, e respeitando o teto estabelecido pela lei quanto a se ressarcir pelo máximo possível, diminuía, indevidamente, a base salarial de cada empregado, para sobre essa base reduzida calcular os 6% a que tem direito, gerando, para o empregado, um ganho indevido, pelo desconto a menor (no valor retido, e não no percentual aplicado), e para si, um desembolso desnecessário, ou, para ficar mais claramente configurado o quadro, o reembolso com valor menor do que o que a lei autoriza.

            Para que se perceba a diferença, procedemos aos cálculos com bases distintas:

            - Salário básico mensal: R$ 500,00 (quinhentos reais).

            Reembolso do empregador, corretamente aplicado:

            R$ 500,00 x 6% = R$ 30,00

            Reembolso do empregador, incorretamente aplicado:

            ((R$ 500,00 / 30) x 26) x 6% =

            (R$ 16,6667 x 26) x 6%=

            R$ 433,33 x 6% = R$ 26,00

            Ao efetuar os cálculos dessa maneira, no exemplo, o preposto reembolsou a empregadora com defasagem de, aproximadamente, 15% (quinze por cento) se cotejada com o que autoriza a lei, ou seja, em vez de se reembolsar no valor de R$ 30,00 (trinta) reais, a empregadora se ressarciu de R$ 26,00 (vinte e seis) reais, gerando e transferindo o, indevido, valor líquido de R$ 4,00 em favor do empregado, e a menor, para si.

            Tal anomalia, segundo a própria empregadora, se manteve em relação ao desconto efetivado de cada um de seus empregados que utilizam vale-transporte, pelo período aproximado de 120 (cento e vinte) meses.

            Apenas e tão-somente para que se apresente como subsídio à formulação de raciocínio futuro, a embasar o entendimento acerca da questão posta, qual seja, da legalidade, ou não, do que pretende a empregadora-consulente, calculamos aqui, o montante nominal recebido, a mais, em 10 anos, pelo empregado que aufira o salário de R$ 500,00, utilizado no exemplo:

            (R$ 4,00 x 12) x 10 =

            R$ 48,00 x 10 =

            R$ 480,00

            - Poder-se-ia argumentar que: alguém que hoje recebe R$ 500,00 (quinhentos reais) mensais, há dez anos e, provavelmente, até o ano passado, não recebia este salário, de modo que o cálculo acima não representaria o valor correto que este empregado teria recebido, a mais, nestes 10 anos. Contudo:

            - Não procedemos a correção monetária que incidiria, mês a mês, sobre as parcelas retidas a menor, nesses dez anos, de modo que, uma coisa compensa a outra.

            - Conclusivamente, importa constatar aqui que, seja qual for o valor em R$ a que se chegue, houve recebimento, a maior, indevido pelo empregado, durante todo o tempo em que vigorou tal irregularidade, ao mesmo tempo em que a empresa se reembolsou em valores aquém do que se permite em lei.


DO CONTEXTO EM QUE SE DARÁ A ANÁLISE DA MATÉRIA

            As regras relativas ao Direito do Trabalho e à sua Jurisprudência estão inexoravelmente vinculadas aos princípios que norteiam a formulação da ciência do Direito, de conteúdo milenar e universal, bem como ao Ordenamento Jurídico pátrio como um todo, de modo que, nega-se ao Direito do Trabalho, assim como a qualquer outro ramo, isoladamente, a possibilidade de formar um sistema estanque e independente, em relação aos ditames maiores do Direito, e do Ordenamento Jurídico vigente.

            Por isso, a dúvida suscitada na consulta não pode nem deve ser analisada tomando-se por base e parâmetros apenas os princípios e regras do ramo jurídico trabalhista. Devem-se analisar todos os princípios, ramos e institutos de, e do, Direito que tenham sido ou que sejam invocados tanto para fundar a resposta negativa, quanto a positiva, a fim de que o consulente, ainda que não versado na ciência do Direito, possa compreender o alcance da questão e o escopo da resposta.

            Assim procuraremos enfrentar as questões, de modo técnico, entretanto, inteligível para todos.


DOS PRINCÍPIOS E REGRAS DE DIREITO

            - Princípio, em Direito, pode ser definido como: um ponto de partida, um pressuposto, que se apresenta, via de regra, de forma sintética.

            - O ordenamento jurídico, ou dogmática jurídica, é a parte do Direito de caráter analítico. Vários são os instrumentos que compõem o ordenamento jurídico. O mais comum e familiar deles é a lei, entretanto, também o são os decretos, as medidas provisórias, as portarias etc.

            - O que importa compreender é que a máxima contida no princípio, se adotado na formulação de um código, deve ser respeitada e seus contornos atendidos pelo legislador, no momento de redigi-lo, de modo que a parte analítica do Direito, a lei, esteja sempre em absoluta harmonia com a parte sintética do Direito, o princípio.

            - Como exemplo, temos que o Direito brasileiro consagrou, constitucionalmente, o princípio da proteção incondicional da vida, ao afirmar que, com uma única exceção, não haverá pena de morte (CF, inciso XLVII, alínea "a").

            - Ora, se a Constituição consagra tal pressuposto, se impõe a toda e qualquer lei, medida-provisória, decreto, portaria etc., como condição para compor validamente o ordenamento jurídico, o respeito ao princípio de que não haverá pena de morte.

            Caso o Congresso Nacional aprove lei prevendo, para determinado crime, a condenação do agente à morte, esta será declarada inconstitucional. No caso, haverá inconstitucionalidade material, pois, a regra nova que estabeleça a pena de morte está inserindo para cumprimento da sociedade, regra sobre matéria que aquele princípio constitucional (não haverá pena de morte) veda. Este o papel dos princípios na elaboração da lei.

            Todo ramo do Direito seja Trabalhista, Constitucional, Tributário, Penal, Civil etc., possui seus próprios princípios que devem ser observados e respeitados pelo legislador quando edita novas regras acerca daquela matéria.

            Muitos dos princípios de Direito são aplicáveis a todos os ramos do Direito, não sendo exigíveis, portanto, somente a um ou alguns, deles, mas, à totalidade dos ramos de Direito.

            Então, existem princípios de direito que são aplicáveis, com exclusividade, a determinado ou a determinados ramos do Direito, bem como existem princípios de direito que se prestam como ponto de partida, ou pressuposto, concomitantemente, a todos os ramos do Direito.


ANÁLISE DA QUESTÃO, À LUZ DOS PRINCÍPIOS E REGRAS APLICÁVEIS AO DIREITO DO TRABALHO QUE FUNDAMENTAM A RESPOSTA AFIRMATIVA:

            A oferecer respaldo jurídico à resposta de que: É direito da consulente, portanto, absolutamente legal modificar a base de cálculo sobre que faz incidir 6%, nos limites da lei, no ato de se reembolsar, sem que tal ato se constitua alteração contratual unilateral lesiva; causadora de prejuízo para o empregado; fira direito por ele adquirido; que se constitua causa criadora de passivo trabalhista; ou que revele qualquer outro caráter de ilegalidade, passível de reparo, ainda que por via judicial, temos:


O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

            O princípio da boa-fé, durante muito tempo compôs o ordenamento jurídico brasileiro apenas por via da doutrina, já que não se encontrava em nenhuma lei brasileira a obrigação de respeito ao seu conteúdo, na celebração e durante o cumprimento dos contratos.

            O Código Civil de 2.002, contempla matéria acerca da obrigação de que as partes contratantes ajam ininterruptamente imbuídas do espírito de boa-fé em todas as etapas, desde às que antecedem a formulação, até às que exaurem o contrato por via de seu cumprimento, e mesmo nas que, eventualmente, o rompam antes do termo ajustado.

            Ao tratar dos negócios jurídicos, estatui nos arts. 112 e 113 o Código Civil de 2.002, verbis:

            CC – art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

            CC – art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

            Mais adiante, ao estabelecer regras relativas aos contratos em geral, encontramos no art. 422 do mesmo Código Civil de 2.002, in verbis:

            CC – art. 421. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé.

            No que respeita à aplicação do princípio da boa-fé aos contratos oriundos do Direito do Trabalho, encontramos excelente excerto, da lavra do notável Arnaldo Sussekind, em sua obra Instituições de Direito do Trabalho, 21ª edição, página 253 e seguintes, vazada nos termos a seguir:

            "Princípio da execução de boa-fé. O contrato de trabalho, como qualquer outro, deve ser executado de boa-fé. O princípio da execução de boa-fé, como salienta De Page, é um daqueles que constituem a base da sistemática jurídica em matéria de contrato. Sua origem remonta à distinção do Direito Romano entre contratos de direito estrito e contratos de boa-fé".

            Os primeiros eram de interpretação rigorosa, enquanto, em relação aos segundos, permitia-se ao juiz indagar livremente a intenção das partes, sem ficar preso à sua expressão literal. Hoje – diz De Page – "todos os contratos são de boa-fé". "Nas declarações de vontade" – era a regra geral do então vigente art. 85 do Código Civil – "se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem".

            Apesar de repetir, no art. 112, as disposições do art. 85 do Código anterior, o Novo Código Civil inovou ao não privilegiar apenas a vontade dos contratantes. Acertadamente, deu maior amplitude à avenca, ao conformar o contrato a uma função social, o que avulta em importância o poder do intérprete, não mais restrito apenas à vontade dos contraentes".

            (...)

            Ainda como decorrência da aplicação do mesmo princípio, todo contrato comporta, sem que as partes tenham necessidade de dize-lo expressamente, as conseqüências que, segundo sua natureza, advêm-lhe da equidade e dos usos. Como escreve De Page, "os usos se incorporam de pleno direito aos contratos, a menos que se tenha estipulado em sentido contrário, expressa ou tacitamente".

            Mas, o princípio da execução contratual de boa-fé tem, principalmente, um alto sentido moral. Daí o dever de colaboração do empregado. Mas esse dever, como diz Barassi, é bilateral. Cada contratante, escreve De Page, é obrigado, pelo fato mesmo do contrato, "a levar ao seu co-contratante toda a ajuda necessária para assegurar a execução de boa-fé do contrato. A solidariedade, estabelecida, em vista da utilidade social, pelo vínculo contratual, proíbe, a cada uma das partes, de se desinteressar pela outra. Ambas se devem, mútua e lealmente, fornecer todo o apoio necessário para conduzir o contrato a bom termo".

            Trazendo esta notável lição para a questão concreta que aqui analisamos, indaga-se: que ânimo moveu o empregador, consulente, ao se reembolsar, por longos anos, em quantias abaixo das que a lei o autoriza a realizar?

            Inegável que a única resposta possível é: A boa-fé. A boa-fé de estar cumprindo a lei.

            Até porque, ao se ressarcir de modo incompleto, pela inadequada aplicação da regra legal, o empregador gerou prejuízo financeiro exclusivamente para si.

            Ninguém, em sã consciência, age de má-fé, se autoprejudicando financeiramente durante uma década, sem visar nada como contrapartida.

            Nada mais justo, portanto, que, dando continuidade à execução dos contratos individuais que mantém com seus empregados, ainda se valendo da mesma boa-fé, possa o empregador parar de se autoprejudicar, passando a se ressarcir nos exatos limites estabelecidos na lei que regulamenta a concessão do vale-transporte, sem gerar NENHUM prejuízo para ninguém. Apenas deixará de gerar lucro indevido aos seus empregados.


DO EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO

            Ainda no Código Civil, vamos colher o ensinamento que determina não haver ilicitude, no exercício regular de um direito reconhecido. Tal verdade, sobre a qual procederemos a análise mais profunda, está inserida em nosso ordenamento jurídico por via do inciso I, do art. 188 do Código Civil de 2.002, in verbis:

            CC – art. 188. Não constituem atos ilícitos:

            I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.

            Ora, na análise dos fatos sobre que nos debruçamos, não há como negar que se reembolsar pela aplicação do percentual de 6% sobre o salário básico de cada um de seus empregados que utilizam o vale-transporte, a cada mês, é direito reconhecido do empregador, consubstanciado nos fundamentos já trazidos, mas que aqui se reproduzem para que não paire dúvida:

            No parágrafo único do art. 4° da lei n° 7.418-85, alterada pela lei n° 7.619-87, in verbis:

            Art. 4º - (...)

            Parágrafo único - O empregador participará dos gastos de deslocamento do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% (seis por cento) de seu salário básico.

            E, no parágrafo único e inciso I do art. 9° do Decreto n° 95.247/87, verbis:

            Art. 9° O Vale-Transporte será custeado:

            I - pelo beneficiário, na parcela equivalente a 6% (seis por cento) de seu salário básico ou vencimento, excluídos quaisquer adicionais ou vantagens;

            (...)

            Parágrafo único. A concessão do Vale-Transporte autorizará o empregador a descontar, mensalmente, do beneficiário que exercer o respectivo direito, o valor da parcela de que trata o item I deste artigo.

            O exercício, pelo empregador, do direito de se ressarcir no limite permitido em lei, a qualquer momento que assim deseje, não pode ser negado, nem se pode reputar de ilícita sua pretensão, pois que, a regra que garante não se constituir ilícito o exercício regular de um direito vem, como demonstrado, em seu socorro.

            O máximo que se pode admitir como questionável é se isso pode acontecer sem que nenhuma obrigação ou nenhum ônus lhe seja legalmente imputado e, ainda assim, é inevitável concluir que não se sustenta, dita tese, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, conforme será demonstrado, a seu tempo, no desenvolvimento deste parecer.


DA CONTRAÇÃO DE UMA OBRIGAÇÃO

            O artigo 5° da Constituição Federal, em seu inciso II, assegura, verbis:

            CF – art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

            (...)

            II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

            Como visto, as obrigações, normalmente, surgem como decorrência da adequação do sujeito de direito à regra estabelecida em lei, ou como conseqüência de sua declaração de vontade, manifestando, validamente, o desejo de assumi-las espontaneamente, o que se torna lei entre as partes.

            Conforme já visto, em tópico anterior, é necessário que a manifestação de vontade seja livre e sua execução se dê de boa-fé, vinculando, a partir de então, a pessoa obrigada, ou a que se obrigou, de modo que, sua eventual recusa no cumprimento daquilo a que se autocompromissou faz surgir para seu credor a faculdade de compeli-lo, por via do Poder Judiciário, ao cumprimento a que se negou espontaneamente.

            No caso sob análise, constatamos que não existe lei que obrigue o empregador-consulente a se ressarcir de modo incompleto na concessão de vale-transporte aos seus empregados. Pelo contrário. Conforme acima demonstrado, a lei lhe confere direito ao reembolso completo. Assim, concluímos que inexiste obrigação decorrente da lei, como resultado da análise de nossa primeira hipótese.

            Quanto à segunda hipótese, qual seja, a de que haveria, para a empresa consulente, obrigação de se ressarcir a menor como resultado de sua inequívoca manifestação de vontade, fato que transformaria tal declaração em lei entre as partes, ou seja, entre ela e seus empregados, temos a ponderar:

            01– A empresa consulente desenvolve política de Gestão de Pessoas da qual faz parte a concessão de benefícios vários, cerca de 10 (dez), a seus empregados, todos eles, benefícios, delineados em seus contornos, definidos em seus conteúdos e expressamente assumidos por inequívoca e manifesta declaração de vontade, como se verifica, por exemplo, com o serviço de assistência médica.

            Não consta, do manual que reúne os benefícios assumidos pela empresa, nenhuma menção à assunção de parcela de custo sobre os tickets de vale-transporte, por menor que seja, acima do que estabelecem as leis que regulamentam aquele instituto. Quando quis assumir determinadas obrigações, cujos custos se revelam, até, muito acima do valor descontado a menor pelo vale-transporte, a consulente o fez. Se assim não agiu relativamente ao vale-transporte, para incluí-lo no rol de benefícios acima descritos, conclui-se que não foi, nem é sua intenção fazê-lo.

            02- O mesmo se pode afirmar quanto ao contrato individual de trabalho celebrado entre a empresa e cada um de seus empregados, ou seja, não se encontra em seu corpo nenhuma cláusula que se afigure declaração de vontade direcionada para a redução, ou do percentual de 6%, ou da base salarial mensal com que devem contribuir para a composição de custos do vale-transporte.

            A empresa não declarou vontade expressa no sentido de fazer qualquer tipo de concessão ou alteração, para menor, nos parâmetros estabelecidos na legislação para a utilização do vale-transporte. Então, pode-se afirmar que a consulente, a contrario sensu, declarou vontade tácita no sentido de fazer prevalecer, quanto à composição de custos e utilização do vale-transporte, estritamente o que prevê a lei.

            Não se pode confundir o direito ou obrigação contida na vontade declarada com o modo concebido para exercita-lo ou cumpri-la.

            Resta claro, conclusivamente, que a vontade declarada tacitamente e a obrigação assumida pela consulente quanto à concessão de vale-transporte aos seus empregados vão ao limite do que estabelece a lei, de modo que aos empregados restou a obrigação de reembolsar o empregador, também no limite da lei, no percentual, tantas vezes já mencionado, de 6% sobre seus salários básicos. Ainda que concedido de modo inconsciente, o valor descontado a menor de cada empregado revela feição de liberalidade, conceito que de forma nenhuma pode ser confundido com o de obrigação.

            Aliás, é de memória relativamente recente, de forma especial para o segmento de supermercados e o comércio de forma geral, os fatos havidos em 1.986, por ocasião do implemento do Cruzado como moeda de curso forçado, quando houve congelamento dos preços de todos os produtos por quase um ano.

            Experimentados, os comerciantes, após a revogação da medida, mas, temerosos de que pudesse voltar a qualquer momento, passaram a vender seus produtos com preços acima do normal. Na prática, as notas apresentavam o preço "oficial", mas concediam DESCONTOS a seus clientes, de modo tal que, caso houvesse novo congelamento de preços, poderiam, pela supressão dos descontos, praticar o "verdadeiro" preço de suas mercadorias, o que se constituiu uma forma legal de "driblar" a proibição de aumentar os preços.

            Por mais que perdurasse a prática comercial de concessão de descontos, por se tratar de liberalidade, e não obrigação, poderia ser abandonada a qualquer momento, sem que tal prática pudesse ser tachada de ilegal ou gerasse qualquer direito a indenização para aqueles que se beneficiaram enquanto ela vigeu.


CONCLUSÃO

            Considerando os fundamentos trazidos, parece-nos claro que se constitui direito inquestionável da consulente proceder a alteração do modo de realizar seu ressarcimento quanto às despesas decorrente da aquisição dos vales-transporte que transfere a seus empregados, por se adequar, perfeitamente, a nova maneira, ao que estabelece a legislação vigente, de modo especial à lei n° 7.418-85, com as alterações trazidas pela lei n° 7.619-87, e ao Decreto n° 95.247/87.

            Pode-se argumentar, diga-se desde já, sem razão, como demonstraremos, que a modificação pode ser feita, desde que se incorpore aos salários dos empregados, os valores descontados a menor, ou que, a eles, se pague indenização, para posterior supressão.

            Mas, ainda que essas providências fossem necessárias, delas não cuidamos neste ponto do parecer.

            Respondemos então que, com ou sem incorporação / indenização, é direito líquido e certo da consulente, modificar, nos limites da legislação que regulamenta o uso do vale-transporte, o modo de se ressarcir perante seus empregados, ainda que tal modificação implique em aumento da base sobre a qual se fará incidir o percentual de 6%.


ANÁLISE DA QUESTÃO, À LUZ DOS PRINCÍPIOS E REGRAS APLICÁVEIS AO DIREITO DO TRABALHO QUE FUNDAMENTAM A RESPOSTA NEGATIVA:

            Aqueles que afirmam ser ilegal a modificação pretendida pela consulente o fazem sob alguns fundamentos. Para demonstrar o equívoco em que incidem, além de já havermos demonstrado os fundamentos que permitem a modificação, analisaremos o conteúdo de tais afirmações, revelando em que ponto elas se afastam da verdade, em relação ao caso sob análise.


DA NATUREZA JURÍDICA DO VALE-TRANSPORTE

            Primeiramente, é necessário lembrar que o vale-transporte não possui caráter salarial, de modo que sobre seu valor não repercute nenhum direito, como por exemplo, décimo-terceiro salário, férias etc., para aquele que o utiliza, a teor do que reza o inciso I, do art. 6°, do Decreto n° 95.247/98, verbis:

            Art. 6°. O vale-transporte, no que se refere à contribuição do empregador:

            I – não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração do beneficiário para quaisquer efeitos.

            É preciso ter na lembrança que, ainda que declarada a vontade pelo empregador, incorporam-se à remuneração dos beneficiários de determinado direito, as parcelas que revelem caráter salarial, retributivo tais como, refeições, lanches, gratificações.

            Como se vê, aquilo por que pugnam os defensores da tese de que é necessário incorporar ou indenizar os empregados que sofreram descontos menores que os permitidos em lei, encontra obstáculo intransponível na própria lei, que, ao negar ao vale-transporte natureza salarial, veda expressamente sua incorporação à remuneração do empregado seja a que título for.


PRINCÍPIO DA INALTERABILIDADE CONTRATUAL LESIVA

            O princípio da inalterabilidade contratual lesiva está a serviço do princípio da proteção do empregado, verdadeiro sustentáculo do Direito do Trabalho no Brasil. Está inserido no ordenamento jurídico brasileiro por via do art. 468 da CLT, nos seguintes termos, in verbis:

            CLT – Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

            É verdade incontestável, conforme o fundamento acima, que o Direito do Trabalho, no Brasil, impede que o empregador altere unilateralmente o contrato individual de trabalho, mormente se a alteração levada a efeito for lesiva a qualquer direito do trabalhador, ou, direta ou indiretamente lhe causar algum prejuízo, ainda que, eventualmente, o empregado consinta, por celebrar termo aditivo ao contrato original, que, desde a assinatura estará eivado de nulidade.

            Porém, data maxima venia, afirmamos, com toda segurança, que nenhum dos termos que compõem a locução proibida pela legislação brasileira se faz presente no caso que analisamos; de modo que a ela não se aplicam, não se prestando, portanto, a subtrair da consulente o direito à modificação intentada, nos moldes em que a pretende concluir. Senão vejamos:

            Analisemos a hipótese, ante o caso em análise, de que, realizada a alteração, esta se afiguraria:

            - Alteração contratual unilateral -

            Não se reconhece na ação pretendida pela consulente, qual seja, a de utilizar o salário básico mensal de seus empregados no cálculo dos 6% a que tem direito como reembolso, ato que possa ser identificado tecnicamente como alteração unilateral (de cláusula) contratual.

            Conforme fartamente demonstrado acima, o contrato vigente entre a consulente e cada um de seus empregados, inclusive os que não utilizam o vale-transporte, está assentado na premissa de que a empresa, quanto à composição do custo do vale-transporte, declara que cumprirá, assim como os empregados, o que está previsto na lei.

            Ainda que, na prática, venha a empresa agindo de modo diferente, é inegável que, quando se cuida de averiguar o que consta no contrato individual de trabalho celebrado com cada empregado, ao qual se adicionam os princípios e regras de Direito, ainda que nele não expressamente inseridos, se impõe reconhecer a presença de cláusula tácita vigente, cujo teor e alcance são exatamente em conformidade com o que se afirma acima: a empresa, quanto à composição do custo do vale-transporte, declara que cumprirá o que está previsto na lei, tanto no que respeita às suas obrigações quanto aos seus direitos, cabendo aos empregados a mesma postura.

            Ora, desde o início do cumprimento dos contratos que celebrou, a consulente alterou unilateralmente o modo como se ressarciria, em desarmonia com a vontade declarada em contrato. Não houve alteração da cláusula contratual que, reafirmamos, continua a mesma, desde sua celebração.

            Se foi lícita a alteração no modo de efetuar o reembolso quando a consulente, mesmo contrariando sua declaração de vontade, o fez de forma prejudicial para si, e somente para si, por comezinha questão de justiça, há de ser lícita a alteração no modo de efetuar o reembolso quando ela pretendendo, apenas e tão-somente, não mais se autoprejudicar, passa a, finalmente, se ressarcir em conformidade com a declaração de vontade tácita, cláusula perceptível em todos os contratos individuais de trabalho que celebrou.

            Poder-se-ia argumentar, até com alguma propriedade, se a interpretação equivocada da lei, e a alteração no modo de aplica-la, não poderiam ter gerado, na prática, a alteração tácita do contrato, por iniciativa do empregador que não foi, nem seria, contestada, apesar de unilateral, porque, ao contrário de prejudicar, beneficiou o trabalhador, não sendo, portanto, passível de reparos.

            Ainda aqui, a resposta há de ser negativa, porque a regra-princípio que estabelece que os contratos devem ser firmados e executados de boa-fé, aplicada ao presente caso concreto, força concluir que, sempre que desejou assumir ou reduzir custos em favor de seus empregados, ou proporcionar-lhe algum benefício, a consulente o fez, e faz, por meio da instituição e prática de sólida política de concessão de benefícios que se consubstancia em detalhado manual, dado a conhecer a todos os empregados que a par de informar, presta-se como assumida e expressa declaração de vontade.

            Ou seja, quando se trata de assumir, total ou parcialmente, custos de responsabilidade de seus empregados, e/ou proporcionar benefícios ao seu corpo de trabalhadores, a empregadora consulente somente o faz por meio de declaração de vontade expressa, de modo que, de boa-fé, se conclui que ela nunca declarou nem declararia vontade, quanto a assumir custos e proporcionar benefícios, de modo tácito.

            O princípio da boa-fé, oriundo do Direito Romano, a que alude acima Arnaldo Sussekind, estabelece a necessidade de que se perquira o aspecto subjetivo do ato jurídico, ou seja, busca-se descobrir qual a verdadeira intenção do agente, no momento em que produziu o ato. Aqui, está claro que no modo como atuou, o preposto da empregadora nunca teve a intenção de alterar unilateralmente o contrato de trabalho que celebrou com seus empregados, mas sim, respeitar a lei ao cumprir a declaração de vontade inserida nesse contrato.

            Portanto, afastada definitivamente a hipótese de que, modificando o modo de realizar o cálculo de seu reembolso, esteja a empregadora alterando unilateralmente cláusula contratual.

            - Ao declarar a impossibilidade de que se proceda aquilo que na sua visão constitui alteração contratual unilateral, os defensores da tese negativa acrescentam:

            - Ainda mais que, no presente caso, a alteração efetuada seria LESIVA aos direitos dos empregados -

            É evidente que, tendo sido afastada a possibilidade de que tenha havido alteração contratual, não há como falar em lesão.

            Entretanto, ad argumentandum tantum, enfrentaremos a proposição, exclusivamente, por amor ao debate e à verdade.

            Ainda que se admitisse ter ocorrido, juridicamente, alteração unilateral do contrato, não há como consentir, no presente caso, que a eventual modificação da base de cálculo seria geradora de lesão ou prejuízo para os empregados.

            No exemplo que utilizamos acima, de um empregado com salário de R$ 500,00 mensais, vimos que, aplicada a lei de modo incorreto, temos como conseqüência um acréscimo indevido no valor líquido auferido por empregado, a cada mês.

            É preciso dizer com clareza que, conforme o exemplo demonstrou, houve uma transferência indevida de R$ 4,00 (quatro) reais, que pertencem à empregadora, para o empregado.

            Esse empregado, que, caso se aplique a lei de modo correto, tem direito a receber, aproximadamente, o valor líquido de R$ 280,00, passa a receber, sem ter direito, R$ 284,00.

            Ao longo de uma década, esse empregado teria recebido, sem ter direito, o quantum de R$ 480,00, ou seja, quase um salário mensal a mais.

            Ao corrigir o modo de se reembolsar, a empresa apenas retiraria do valor líquido percebido pelo empregado, o excesso indevido.

            Então, temos que ter consciência de que, durante 120 meses, nos casos que abranjam todo o período em que vigora a irregularidade, esse empregado auferiu receita indevida que agora será suprimido. Mas, mesmo ocorrendo essa supressão, sua situação será a de passar a receber estritamente o valor líquido a que, por contrato, tem direito.

            Pode-se afirmar que, durante 10 anos ele foi alvo de lucro indevido, o qual, a partir de então, deixará de existir, entretanto, entre o lucro e o prejuízo se encontra a neutralidade, e que esta se encontra exatamente no ponto em que, não mais auferindo lucro indevido, também não suportará nenhum prejuízo, uma vez que, o valor líquido a que faz jus pelo trabalho prestado ser-lhe-á pago integralmente.

            Pergunta-se: Onde se encontra o prejuízo, ou a lesão, ao direito do empregado?

            Antes de se consubstanciar numa questão de Direito, o raciocínio sobre a hipótese abriga um problema de lógica.

            Ora, se tínhamos um quadro fático dando conta de que a empresa gerava prejuízo desnecessário para si, no valor de R$ 4,00, que, automaticamente, se transferia como lucro indevido para o empregado, do mesmo valor, ou seja, R$ 4,00; à medida que restabeleço a verdade e a justiça, pela supressão dos R$ 4,00 em favor do empregado, canalizando tal valor para quem de direito, a empresa, chego, insofismavelmente, à neutralidade de que falamos acima.

            Perceba-se que, em momento nenhum, nessa operação, adentrou-se, para subtrair, nenhum centavo do valor líquido a que tem direito o empregado que, consoante o contrato de trabalho vigente, recebe integralmente o valor líquido fruto de seu trabalho.

            Repita-se: Onde e como falar em prejuízo?

            O termo prejuízo só tem cabimento aqui para se afirmar que a empresa suportou prejuízo desnecessário durante uma década e que, por ser direito seu, cuidou para que tal situação se desfizesse.

            Quanto ao empregado, cabe afirmativa inversa, ou seja, auferiu lucro indevido, durante uma década, e, por ato de justiça, teve que suportar o desaparecimento do lucro indevido, mas não viu se configurar contra si a figura do prejuízo...

            Nenhuma verdade, portanto, há na afirmativa de que, no presente caso, levada a efeito a modificação pretendida pela consulente, haveria prejuízo ou lesão aos direitos dos empregados.

            Portanto, Não haverá, caso seja modificado o modo de cálculo pela empregadora, nem alteração contratual, nem muito menos, ainda que se admitisse ter ocorrido alteração, prejuízo ou lesão aos direitos dos empregados, direitos que continuam, consoante contrato, íntegros e integrais.


PRINCÍPIO DA INCORPORAÇÃO

            Outra afirmativa utilizada pelos juristas que entendem não ser possível a modificação desejada pela consulente é a de que, para os empregados que vêm se beneficiando pelo modo atual como a empregadora calcula seu reembolso, haveria a obrigação, desta, de incorporar a diferença média até aqui recebida, à remuneração daqueles trabalhadores, por considerar que o recebimento por período prolongado teria feito com que os trabalhadores tivessem adicionado tais valores aos seus orçamentos por responsabilidade exclusiva do empregador, de modo que a supressão repentina não pode se dar, sem que se ofereça tal compensação.

            Mais uma vez, data vênia, somos compelidos a divergir daqueles que proclamam esta necessidade.

            Simplesmente porque, a teoria da incorporação, em matéria de Direito do Trabalho, no Brasil, foi utilizada durante pequeno período se comparado com o tempo total de sua instituição, por via do Enunciado n° 76, do colendo TST, que rezava:

            TST – Enunciado n° 76. O valor das horas suplementares prestadas habitualmente, por mais de 02 anos, ou durante todo o contrato, se suprimidas, integra-se no salário para todos os efeitos legais.

            Este Enunciado deixou de compor a jurisprudência trabalhista brasileira ainda em 1.989, por via da Resolução Administrativa n° 01, que aprovou o Enunciado n° 291, do mesmo Tribunal, com o seguinte teor:

            TST – Enunciado 291. A supressão, do serviço suplementar prestado com habitualidade, durante pelo menos 1 (um) ano, assegura ao empregado o direito à indenização correspondente ao valor de 1 (um) mês das horas suprimidas para cada ano ou fração igual ou superior a seis meses de prestação de serviço acima da jornada normal.

            Lembra-se que os Enunciados esclarecem o entendimento da instância superior da Justiça do Trabalho sobre determinada questão. Norteiam, sem vincular, as instâncias inferiores e oferecem subsídios aos recursos das partes interessadas.

            As principais conseqüências trazidas, na prática, pela alteração do entendimento dos Tribunais Trabalhistas, quanto a este tema, são as seguintes:

            a)Restou reconhecido o direito de o empregador suprimir a realização de horas extraordinárias, sem que esteja obrigado a incorporar a média de horas extra habituais ao salário do empregado eventualmente atingido pela supressão, pois;

            b) a integração ao salário, por ocasião da supressão, prevista na redação do Enunciado nº 76, passa a ser devida na forma de indenização, em parcela única;

            Reitere-se por fundamental à compreensão do problema e de sua solução, que, em matéria de Direito do Trabalho, no Brasil, somente quanto a horas extras habitualmente prestadas, ainda assim, pelo tempo em que vigorou o conteúdo do Enunciado n° 76, do TST, se cogitou de incorporar ou fazer integrar seu valor médio ao salário do empregado atingido pela supressão, no momento de suprimir.

            Portanto, concluímos que a teoria da incorporação não foi abraçada pelo legislador brasileiro, quanto à matéria trabalhista, e, mesmo a jurisprudência, a utilizou por período relativamente pequeno, para abandona-la de vez, em 1.989, fazendo prevalecer, a partir daí, somente quanto a horas extras, a necessidade de se indenizar, em parcela única, o empregado que, vindo de realizar horas extras de forma habitual, as tivesse suprimidas de seu cotidiano.

            Para encerrar nosso raciocínio jurídico sobre o tema e, entendemos nós, sepultar definitivamente a dúvida suscitada pelos que defendem a teoria da incorporação, pedimos vênia para trazer à colação, parte do voto formulado, no dia 19.08.2004, próximo passado, pela Ministra Maria Cristina Peduzzi e adotado pela Subseção de Dissídios Individuais – 1 (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho ao afastar (não conhecer) embargos, em recurso de revista, interpostos por um ex-empregado que tinha por objetivo reformar decisão anterior da 4ª Turma do TST que lhe negou a percepção de horas extraordinárias correspondentes ao período em que exerceu mandato de dirigente sindical:

            "Como já foi decidido, a remuneração das horas extras não integra definitivamente a remuneração do trabalhador", considerou a relatora após lembrar que "há muito o TST, ao editar o Enunciado nº 291, cristalizou o entendimento de que a supressão do pagamento do valor das horas extras habitualmente prestadas acarreta tão-só o pagamento de indenização, não havendo de falar em recomposição pecuniária do período de supressão".

            Na primeira manifestação do TST sobre a causa, a 4ª Turma vedou o pedido do trabalhador:

            "Com efeito, a pretensão da parte poderia no máximo resumir-se a pedido de indenização pelas horas extras que deixou de receber, mas não a incorporação delas ao salário, para perpetuar seu pagamento sem a correspondente prestação de jornada suplementar", registrou o acórdão.

            "Se para condições normais a jurisprudência do TST é contrária à integração dessa parcela, não se pode admitir que no afastamento para o exercício de mandato sindical o empregado possa integrar as horas extras que não mais prestou",


DO SALÁRIO CONDIÇÃO

            Ao contrário do que se apregoa, o direito brasileiro se afastou da teoria da incorporação ou integração, para consagrar o conceito de salário condição.

            Salário condição é a parte da remuneração do trabalhador que se sobrepõe ao seu salário básico e com este não se confunde.

            Enquanto o salário básico, que não pode ser inferior ao mínimo legal, é devido ao empregado, independentemente de qualquer outro fato ou fator, além da prestação normal do trabalho, em consonância com o contrato de trabalho, pois "os riscos da atividade econômica" correspondem à empresa (art. 2° da CLT), o salário condição só pode ser aceito como sobre-salário, tornando-se devido ao empregado, além do salário básico, na medida em que se verifique causa que lhe dê suporte à existência, tal como: realização de horas extras; trabalho desenvolvido em ambiente de insalubridade; trabalhado realizado em condições de periculosidade, nos casos de transferência do local de trabalho do empregado, o adicional de transferência etc. etc.

            Exemplo claro e prático do que é o salário condição, encontramos no art. 10 da Lei n° 7.064, de 06/12/1.982, que dispõe sobre a situação dos trabalhadores contratados ou transferidos para prestar serviços no exterior.

            (...)

            Art. 10 - O adicional de transferência, as prestações "in natura", bem como quaisquer outras vantagens a que fizer jus o empregado em função de sua permanência no exterior, não serão devidas após seu retorno ao Brasil.

            Contudo, e aí vai a principal característica do salário condição, desaparecida ou suprimida a causa originária de pagamento do salário condição, imediatamente cessa a obrigação de pagar, não sendo devida nenhum incorporação ou indenização.

            É o que se verifica no art. 10 de Lei n° 7.064/82, ou seja, as vantagens a que faz jus o empregado somente são devidas enquanto este prestar serviços no exterior. Voltando ao Brasil, desaparecida a causa (prestação de serviços no exterior) que deu origem ao pagamento das vantagens, suprimido será o pagamento.

            Corrobora esse entendimento, a jurisprudência trabalhista brasileira atual, conforme a seguir:

            TST – Enunciado 80. A eliminação da insalubridade mediante fornecimento de aparelhos protetores aprovados pelo órgão competente do Poder Executivo exclui a percepção do respectivo adicional

            TST – Enunciado 248. A reclassificação ou a descaracterização da insalubridade, por ato da autoridade competente, repercute na satisfação do respectivo adicional, sem ofensa a direito adquirido ou ao princípio da irredutibilidade salarial.

            TST – Enunciado 265. A transferência para o período diurno de trabalho implica a perda do direito ao adicional noturno.

            TST – Enunciado 277. As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos.

            Comprova-se, assim, que, contrariamente ao que pode parecer ao analista perfunctório, vige no Brasil o entendimento de que o salário condição, uma vez suprimida a causa que o originou, deve ser suprimido sem que surja, para o empregado atingido, o direito a indenização ou incorporação.

            Ora, se esse é o entendimento dos Tribunais Superiores quanto ao pagamento, ainda que prolongado, de valor conceituado como salário, que dizer de um valor transferido ao empregado indevidamente, que, conforme a própria lei define, não possui caráter salarial, nem pode ser incorporado à sua remuneração para quaisquer efeitos?

            Haveria fundamento para que o Poder Judiciário determinasse a incorporação ou integração daquele valor ao salário dos empregados?

            Sobejamente provado está que NÃO!

            Vejamos caso recentíssimo, julgado em 03.08.2.004, pela Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em que determinada pessoa jurídica, agiu exatamente como pretende agir a consulente: suprimiu pagamento indevido que, de boa-fé, fazia a seus empregados havia meses.

            Detecta a irregularidade, consistente no pagamento de adicional de periculosidade a empregados que, efetivamente, não trabalhavam em local de risco, imediatamente suprimiu a empregadora, o pagamento de tal adicional.

            Determinado empregado que, nas mesmas condições dos que receberam irregularmente, não foi contemplado no período em que houve o pagamento indevido aos demais, ajuizou reclamação reivindicando o recebimento daquele adicional, no mesmo número de parcelas percebido pelos companheiros.

            A causa foi ter ao TST que, determinando fosse feito o pagamento ao ex-empregado preterido, na mesma quantidade de meses oferecida aos demais, em momento algum questionou a legalidade da supressão do pagamento em relação a todos, a partir do momento em que se percebeu que, de boa-fé a empresa pagava pelo que não devia, pois que a lei não obriga; nem vislumbrou, o TST, a obrigação de o empregador proceder à incorporação daquele valor aos salários dos empregados que o receberam, ainda que indevidamente, durante certo tempo, ou, finalmente, não condicionou, o TST, a supressão do pagamento, pelo empregador, ao oferecimento de indenização aos empregados que receberam o adicional irregular.


CONCLUSÃO

            Pelos fundamentos de Direito trazidos, conclui-se, de modo claro e pacífico, que a consulente, ante quadro consubstanciado no desconto, a menor, que efetua do valor a que tem direito como reembolso pelas despesas que suporta na aquisição do vale-transporte, ainda que durante prolongado lapso, tem direito de proceder a alteração da base salarial incorreta para a correta, sem que tal medida constitua alteração contratual unilateral lesiva aos interesses de seus empregados, nem que revista ato capaz de originar passivo trabalhista suscetível de sofrer correição judicial ordenadora de incorporação aos salários dos empregados atingidos, ou do pagamento de indenização.

            Não obstante nosso profundo respeito às opiniões em sentido contrário, assim como aos profissionais que as esposam, esta é a conclusão a que chegamos e que submetemos à douta apreciação superior.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO FILHO, Luiz Tomaz do. Alteração unilateral do contrato de trabalho lesiva ao empregado e a teoria da incorporação no Direito do Trabalho brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 758, 1 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16629. Acesso em: 19 abr. 2024.