DA CONTRAÇÃO DE UMA OBRIGAÇÃO
O artigo 5° da Constituição Federal, em seu inciso II, assegura, verbis:
CF – art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Como visto, as obrigações, normalmente, surgem como decorrência da adequação do sujeito de direito à regra estabelecida em lei, ou como conseqüência de sua declaração de vontade, manifestando, validamente, o desejo de assumi-las espontaneamente, o que se torna lei entre as partes.
Conforme já visto, em tópico anterior, é necessário que a manifestação de vontade seja livre e sua execução se dê de boa-fé, vinculando, a partir de então, a pessoa obrigada, ou a que se obrigou, de modo que, sua eventual recusa no cumprimento daquilo a que se autocompromissou faz surgir para seu credor a faculdade de compeli-lo, por via do Poder Judiciário, ao cumprimento a que se negou espontaneamente.
No caso sob análise, constatamos que não existe lei que obrigue o empregador-consulente a se ressarcir de modo incompleto na concessão de vale-transporte aos seus empregados. Pelo contrário. Conforme acima demonstrado, a lei lhe confere direito ao reembolso completo. Assim, concluímos que inexiste obrigação decorrente da lei, como resultado da análise de nossa primeira hipótese.
Quanto à segunda hipótese, qual seja, a de que haveria, para a empresa consulente, obrigação de se ressarcir a menor como resultado de sua inequívoca manifestação de vontade, fato que transformaria tal declaração em lei entre as partes, ou seja, entre ela e seus empregados, temos a ponderar:
01– A empresa consulente desenvolve política de Gestão de Pessoas da qual faz parte a concessão de benefícios vários, cerca de 10 (dez), a seus empregados, todos eles, benefícios, delineados em seus contornos, definidos em seus conteúdos e expressamente assumidos por inequívoca e manifesta declaração de vontade, como se verifica, por exemplo, com o serviço de assistência médica.
Não consta, do manual que reúne os benefícios assumidos pela empresa, nenhuma menção à assunção de parcela de custo sobre os tickets de vale-transporte, por menor que seja, acima do que estabelecem as leis que regulamentam aquele instituto. Quando quis assumir determinadas obrigações, cujos custos se revelam, até, muito acima do valor descontado a menor pelo vale-transporte, a consulente o fez. Se assim não agiu relativamente ao vale-transporte, para incluí-lo no rol de benefícios acima descritos, conclui-se que não foi, nem é sua intenção fazê-lo.
02- O mesmo se pode afirmar quanto ao contrato individual de trabalho celebrado entre a empresa e cada um de seus empregados, ou seja, não se encontra em seu corpo nenhuma cláusula que se afigure declaração de vontade direcionada para a redução, ou do percentual de 6%, ou da base salarial mensal com que devem contribuir para a composição de custos do vale-transporte.
A empresa não declarou vontade expressa no sentido de fazer qualquer tipo de concessão ou alteração, para menor, nos parâmetros estabelecidos na legislação para a utilização do vale-transporte. Então, pode-se afirmar que a consulente, a contrario sensu, declarou vontade tácita no sentido de fazer prevalecer, quanto à composição de custos e utilização do vale-transporte, estritamente o que prevê a lei.
Não se pode confundir o direito ou obrigação contida na vontade declarada com o modo concebido para exercita-lo ou cumpri-la.
Resta claro, conclusivamente, que a vontade declarada tacitamente e a obrigação assumida pela consulente quanto à concessão de vale-transporte aos seus empregados vão ao limite do que estabelece a lei, de modo que aos empregados restou a obrigação de reembolsar o empregador, também no limite da lei, no percentual, tantas vezes já mencionado, de 6% sobre seus salários básicos. Ainda que concedido de modo inconsciente, o valor descontado a menor de cada empregado revela feição de liberalidade, conceito que de forma nenhuma pode ser confundido com o de obrigação.
Aliás, é de memória relativamente recente, de forma especial para o segmento de supermercados e o comércio de forma geral, os fatos havidos em 1.986, por ocasião do implemento do Cruzado como moeda de curso forçado, quando houve congelamento dos preços de todos os produtos por quase um ano.
Experimentados, os comerciantes, após a revogação da medida, mas, temerosos de que pudesse voltar a qualquer momento, passaram a vender seus produtos com preços acima do normal. Na prática, as notas apresentavam o preço "oficial", mas concediam DESCONTOS a seus clientes, de modo tal que, caso houvesse novo congelamento de preços, poderiam, pela supressão dos descontos, praticar o "verdadeiro" preço de suas mercadorias, o que se constituiu uma forma legal de "driblar" a proibição de aumentar os preços.
Por mais que perdurasse a prática comercial de concessão de descontos, por se tratar de liberalidade, e não obrigação, poderia ser abandonada a qualquer momento, sem que tal prática pudesse ser tachada de ilegal ou gerasse qualquer direito a indenização para aqueles que se beneficiaram enquanto ela vigeu.
CONCLUSÃO
Considerando os fundamentos trazidos, parece-nos claro que se constitui direito inquestionável da consulente proceder a alteração do modo de realizar seu ressarcimento quanto às despesas decorrente da aquisição dos vales-transporte que transfere a seus empregados, por se adequar, perfeitamente, a nova maneira, ao que estabelece a legislação vigente, de modo especial à lei n° 7.418-85, com as alterações trazidas pela lei n° 7.619-87, e ao Decreto n° 95.247/87.
Pode-se argumentar, diga-se desde já, sem razão, como demonstraremos, que a modificação pode ser feita, desde que se incorpore aos salários dos empregados, os valores descontados a menor, ou que, a eles, se pague indenização, para posterior supressão.
Mas, ainda que essas providências fossem necessárias, delas não cuidamos neste ponto do parecer.
Respondemos então que, com ou sem incorporação / indenização, é direito líquido e certo da consulente, modificar, nos limites da legislação que regulamenta o uso do vale-transporte, o modo de se ressarcir perante seus empregados, ainda que tal modificação implique em aumento da base sobre a qual se fará incidir o percentual de 6%.
ANÁLISE DA QUESTÃO, À LUZ DOS PRINCÍPIOS E REGRAS APLICÁVEIS AO DIREITO DO TRABALHO QUE FUNDAMENTAM A RESPOSTA NEGATIVA:
Aqueles que afirmam ser ilegal a modificação pretendida pela consulente o fazem sob alguns fundamentos. Para demonstrar o equívoco em que incidem, além de já havermos demonstrado os fundamentos que permitem a modificação, analisaremos o conteúdo de tais afirmações, revelando em que ponto elas se afastam da verdade, em relação ao caso sob análise.
DA NATUREZA JURÍDICA DO VALE-TRANSPORTE
Primeiramente, é necessário lembrar que o vale-transporte não possui caráter salarial, de modo que sobre seu valor não repercute nenhum direito, como por exemplo, décimo-terceiro salário, férias etc., para aquele que o utiliza, a teor do que reza o inciso I, do art. 6°, do Decreto n° 95.247/98, verbis:
Art. 6°. O vale-transporte, no que se refere à contribuição do empregador:
I – não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração do beneficiário para quaisquer efeitos.
É preciso ter na lembrança que, ainda que declarada a vontade pelo empregador, incorporam-se à remuneração dos beneficiários de determinado direito, as parcelas que revelem caráter salarial, retributivo tais como, refeições, lanches, gratificações.
Como se vê, aquilo por que pugnam os defensores da tese de que é necessário incorporar ou indenizar os empregados que sofreram descontos menores que os permitidos em lei, encontra obstáculo intransponível na própria lei, que, ao negar ao vale-transporte natureza salarial, veda expressamente sua incorporação à remuneração do empregado seja a que título for.
PRINCÍPIO DA INALTERABILIDADE CONTRATUAL LESIVA
O princípio da inalterabilidade contratual lesiva está a serviço do princípio da proteção do empregado, verdadeiro sustentáculo do Direito do Trabalho no Brasil. Está inserido no ordenamento jurídico brasileiro por via do art. 468 da CLT, nos seguintes termos, in verbis:
CLT – Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
É verdade incontestável, conforme o fundamento acima, que o Direito do Trabalho, no Brasil, impede que o empregador altere unilateralmente o contrato individual de trabalho, mormente se a alteração levada a efeito for lesiva a qualquer direito do trabalhador, ou, direta ou indiretamente lhe causar algum prejuízo, ainda que, eventualmente, o empregado consinta, por celebrar termo aditivo ao contrato original, que, desde a assinatura estará eivado de nulidade.
Porém, data maxima venia, afirmamos, com toda segurança, que nenhum dos termos que compõem a locução proibida pela legislação brasileira se faz presente no caso que analisamos; de modo que a ela não se aplicam, não se prestando, portanto, a subtrair da consulente o direito à modificação intentada, nos moldes em que a pretende concluir. Senão vejamos:
Analisemos a hipótese, ante o caso em análise, de que, realizada a alteração, esta se afiguraria:
- Alteração contratual unilateral -
Não se reconhece na ação pretendida pela consulente, qual seja, a de utilizar o salário básico mensal de seus empregados no cálculo dos 6% a que tem direito como reembolso, ato que possa ser identificado tecnicamente como alteração unilateral (de cláusula) contratual.
Conforme fartamente demonstrado acima, o contrato vigente entre a consulente e cada um de seus empregados, inclusive os que não utilizam o vale-transporte, está assentado na premissa de que a empresa, quanto à composição do custo do vale-transporte, declara que cumprirá, assim como os empregados, o que está previsto na lei.
Ainda que, na prática, venha a empresa agindo de modo diferente, é inegável que, quando se cuida de averiguar o que consta no contrato individual de trabalho celebrado com cada empregado, ao qual se adicionam os princípios e regras de Direito, ainda que nele não expressamente inseridos, se impõe reconhecer a presença de cláusula tácita vigente, cujo teor e alcance são exatamente em conformidade com o que se afirma acima: a empresa, quanto à composição do custo do vale-transporte, declara que cumprirá o que está previsto na lei, tanto no que respeita às suas obrigações quanto aos seus direitos, cabendo aos empregados a mesma postura.
Ora, desde o início do cumprimento dos contratos que celebrou, a consulente alterou unilateralmente o modo como se ressarciria, em desarmonia com a vontade declarada em contrato. Não houve alteração da cláusula contratual que, reafirmamos, continua a mesma, desde sua celebração.
Se foi lícita a alteração no modo de efetuar o reembolso quando a consulente, mesmo contrariando sua declaração de vontade, o fez de forma prejudicial para si, e somente para si, por comezinha questão de justiça, há de ser lícita a alteração no modo de efetuar o reembolso quando ela pretendendo, apenas e tão-somente, não mais se autoprejudicar, passa a, finalmente, se ressarcir em conformidade com a declaração de vontade tácita, cláusula perceptível em todos os contratos individuais de trabalho que celebrou.
Poder-se-ia argumentar, até com alguma propriedade, se a interpretação equivocada da lei, e a alteração no modo de aplica-la, não poderiam ter gerado, na prática, a alteração tácita do contrato, por iniciativa do empregador que não foi, nem seria, contestada, apesar de unilateral, porque, ao contrário de prejudicar, beneficiou o trabalhador, não sendo, portanto, passível de reparos.
Ainda aqui, a resposta há de ser negativa, porque a regra-princípio que estabelece que os contratos devem ser firmados e executados de boa-fé, aplicada ao presente caso concreto, força concluir que, sempre que desejou assumir ou reduzir custos em favor de seus empregados, ou proporcionar-lhe algum benefício, a consulente o fez, e faz, por meio da instituição e prática de sólida política de concessão de benefícios que se consubstancia em detalhado manual, dado a conhecer a todos os empregados que a par de informar, presta-se como assumida e expressa declaração de vontade.
Ou seja, quando se trata de assumir, total ou parcialmente, custos de responsabilidade de seus empregados, e/ou proporcionar benefícios ao seu corpo de trabalhadores, a empregadora consulente somente o faz por meio de declaração de vontade expressa, de modo que, de boa-fé, se conclui que ela nunca declarou nem declararia vontade, quanto a assumir custos e proporcionar benefícios, de modo tácito.
O princípio da boa-fé, oriundo do Direito Romano, a que alude acima Arnaldo Sussekind, estabelece a necessidade de que se perquira o aspecto subjetivo do ato jurídico, ou seja, busca-se descobrir qual a verdadeira intenção do agente, no momento em que produziu o ato. Aqui, está claro que no modo como atuou, o preposto da empregadora nunca teve a intenção de alterar unilateralmente o contrato de trabalho que celebrou com seus empregados, mas sim, respeitar a lei ao cumprir a declaração de vontade inserida nesse contrato.
Portanto, afastada definitivamente a hipótese de que, modificando o modo de realizar o cálculo de seu reembolso, esteja a empregadora alterando unilateralmente cláusula contratual.
- Ao declarar a impossibilidade de que se proceda aquilo que na sua visão constitui alteração contratual unilateral, os defensores da tese negativa acrescentam:
- Ainda mais que, no presente caso, a alteração efetuada seria LESIVA aos direitos dos empregados -
É evidente que, tendo sido afastada a possibilidade de que tenha havido alteração contratual, não há como falar em lesão.
Entretanto, ad argumentandum tantum, enfrentaremos a proposição, exclusivamente, por amor ao debate e à verdade.
Ainda que se admitisse ter ocorrido, juridicamente, alteração unilateral do contrato, não há como consentir, no presente caso, que a eventual modificação da base de cálculo seria geradora de lesão ou prejuízo para os empregados.
No exemplo que utilizamos acima, de um empregado com salário de R$ 500,00 mensais, vimos que, aplicada a lei de modo incorreto, temos como conseqüência um acréscimo indevido no valor líquido auferido por empregado, a cada mês.
É preciso dizer com clareza que, conforme o exemplo demonstrou, houve uma transferência indevida de R$ 4,00 (quatro) reais, que pertencem à empregadora, para o empregado.
Esse empregado, que, caso se aplique a lei de modo correto, tem direito a receber, aproximadamente, o valor líquido de R$ 280,00, passa a receber, sem ter direito, R$ 284,00.
Ao longo de uma década, esse empregado teria recebido, sem ter direito, o quantum de R$ 480,00, ou seja, quase um salário mensal a mais.
Ao corrigir o modo de se reembolsar, a empresa apenas retiraria do valor líquido percebido pelo empregado, o excesso indevido.
Então, temos que ter consciência de que, durante 120 meses, nos casos que abranjam todo o período em que vigora a irregularidade, esse empregado auferiu receita indevida que agora será suprimido. Mas, mesmo ocorrendo essa supressão, sua situação será a de passar a receber estritamente o valor líquido a que, por contrato, tem direito.
Pode-se afirmar que, durante 10 anos ele foi alvo de lucro indevido, o qual, a partir de então, deixará de existir, entretanto, entre o lucro e o prejuízo se encontra a neutralidade, e que esta se encontra exatamente no ponto em que, não mais auferindo lucro indevido, também não suportará nenhum prejuízo, uma vez que, o valor líquido a que faz jus pelo trabalho prestado ser-lhe-á pago integralmente.
Pergunta-se: Onde se encontra o prejuízo, ou a lesão, ao direito do empregado?
Antes de se consubstanciar numa questão de Direito, o raciocínio sobre a hipótese abriga um problema de lógica.
Ora, se tínhamos um quadro fático dando conta de que a empresa gerava prejuízo desnecessário para si, no valor de R$ 4,00, que, automaticamente, se transferia como lucro indevido para o empregado, do mesmo valor, ou seja, R$ 4,00; à medida que restabeleço a verdade e a justiça, pela supressão dos R$ 4,00 em favor do empregado, canalizando tal valor para quem de direito, a empresa, chego, insofismavelmente, à neutralidade de que falamos acima.
Perceba-se que, em momento nenhum, nessa operação, adentrou-se, para subtrair, nenhum centavo do valor líquido a que tem direito o empregado que, consoante o contrato de trabalho vigente, recebe integralmente o valor líquido fruto de seu trabalho.
Repita-se: Onde e como falar em prejuízo?
O termo prejuízo só tem cabimento aqui para se afirmar que a empresa suportou prejuízo desnecessário durante uma década e que, por ser direito seu, cuidou para que tal situação se desfizesse.
Quanto ao empregado, cabe afirmativa inversa, ou seja, auferiu lucro indevido, durante uma década, e, por ato de justiça, teve que suportar o desaparecimento do lucro indevido, mas não viu se configurar contra si a figura do prejuízo...
Nenhuma verdade, portanto, há na afirmativa de que, no presente caso, levada a efeito a modificação pretendida pela consulente, haveria prejuízo ou lesão aos direitos dos empregados.
Portanto, Não haverá, caso seja modificado o modo de cálculo pela empregadora, nem alteração contratual, nem muito menos, ainda que se admitisse ter ocorrido alteração, prejuízo ou lesão aos direitos dos empregados, direitos que continuam, consoante contrato, íntegros e integrais.