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Habeas corpus em processo criminal por falsificação

mudança na capitulação do crime

Habeas corpus em processo criminal por falsificação: mudança na capitulação do crime

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A paciente, denunciada por falsificação de documento público, em virtude de ter adulterado data de certidão negativa de débito da Previdência Social, requer a desclassificação do delito para certidão ou atestado ideologicamente falso.

Excelentíssimo Senhor Desembargador Federal Presidente do Tribunal Regional Federal da 2a Região

            THIAGO BOTTINO, advogado, inscrito na OAB/RJ sob o no 102.312, com escritório na Av. xxxxxxxx, Rio de Janeiro, vem a Vossa Excelência, nos termos do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, e artigos 647 e seguintes do Código de Processo Penal impetrar a presente ordem de

H A B E A S C O R P U S

            rogando a concessão de LIMINAR para suspender o andamento da ação penal até o julgamento deste writ, impetrado em favor de FULANA, brasileira, casada, desempregada, portadora da carteira de identidade nº xxxxxxxxx, residente na xxxxxxxxxxxxxxx, denunciada nos autos da ação penal de número xxxxxxxxxxxxx, em trâmite perante o juízo da 5a Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, ora apontado como autoridade coatora.


I – PRELIMINARMENTE

Da intimação para sustentação oral

            O Impetrante manifesta a intenção de sustentar oralmente a ordem pleiteada, requerendo, para tanto, sua intimação por publicação, na forma dos artigos 174 e 175 do Regimento Interno desse Egrégio Tribunal Regional Federal. Trata-se de medida que mais se coaduna com o princípio constitucional da ampla defesa e o pleno exercício do múnus público do Impetrante (art. 133, CF).

            A importância da sustentação oral para a amplitude da defesa, bem como o entendimento de que a supressão dessa faculdade é caracterizadora de constrangimento ilegal, já foi proclamada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, como se vê dos acórdãos abaixo.

            "HABEAS-CORPUS. RECURSO ORDINÁRIO.

            - Ordem concedida para que a Corte de origem proceda a novo julgamento da causa, assegurada ao recorrente a sustentação oral.

            (STJ – RHC 10.932-SP – 6a Turma – Rel. Min. Fontes de Alencar – DJ 01/04/2002)

            "RECURSO DE HABEAS-CORPUS. Cerceamento de defesa. SUSTENTAÇÃO ORAL OBSTADA.

            1. Embora a sustentação oral seja mera faculdade deferida à defesa, se o defensor manifesta expressamente seu interesse em valer-se desse ato facultativo e tal oportunidade lhe é obstada, tem-se configurado o cerceamento de defesa. Precedentes.

            2. Recurso de habeas-corpus provido.

            (STF – RHC 79.783-1 – 2a Turma – Rel. Min. Maurício Corrêa – DJ 12/05/2000)


II – DOS FATOS

            A Paciente foi denunciada por suposta prática do delito tipificado no art. 297, do Código Penal (Doc. nº 1), sendo a inicial recebida pela autoridade coatora, que designou interrogatório para o dia 13 de agosto de 2002 (Doc. nº 2).

            FULANA foi funcionária (por cerca de dez anos) da empresa XXXXX Ltda. Essa empresa contratou com o ENTE PÚBLICO "TAL" a venda de produtos e serviços de informática. O contrato estabelecia que os produtos adquiridos seriam pagos imediatamente, enquanto os serviços prestados seriam pagos mês a mês, logo após a respectiva prestação (Doc. nº 3, fls. 5/6).

            Iniciados em janeiro de 1999, os serviços foram regularmente prestados durante seis meses, ininterruptamente. Já a contra-prestação do ENTE PÚBLICO "TAL" caracterizou-se pela impontualidade; o atraso no pagamento (descumprimento da obrigação contratual) ocorreu em todas as parcelas, como se vê na tabela abaixo.

Mês da prestação do serviço

Data da nota fiscal

Data do pagamento

Tempo de atraso no pagamento

Janeiro/99

21/01/99

22/03/99

60 dias (Doc. nº 3, fls. 25)

Fevereiro/99

02/03/99

28/04/99

60 dias (Doc. nº 3, fls. 57)

Março/99

22/03/99

28/04/99

30 dias (Doc. nº 3, fls.57)

Abril/99

23/04/99

24/06/99

60 dias (Doc. nº 3, fls.75)

Maio/99

21/05/99

28/07/2000

1 ano e 2 meses

Junho/99

21/06/99

28/07/2000

1 ano e 1 mês

            Por exemplo, a nota fiscal emitida em 21/01/99, referente aos serviços executados no mês de janeiro (Doc. nº 3, fls. 21) somente foi paga com um atraso de dois meses (Doc. nº 3, fls. 25). Vale frisar, ainda, que os softwares revendidos ao ENTE PÚBLICO "TAL", no valor total de R$ 36.700,00 (trinta e seis mil e setecentos reais), também foram pagos com atraso de dois meses (Doc. nº 3, fls. 20 e 25).

            Para o recebimento dos valores junto ao ENTE PÚBLICO "TAL", a empresa deveria apresentar, na data do recebimento, determinados documentos, entre eles uma certidão negativa de débito do INSS, a qual é conferida àqueles que se encontram em situação regular perante a autarquia, tendo validade de seis meses a partir da emissão.

            A empresa XXXXX Ltda. estava em situação regular até o dia 28 de março de 1999 (certidão emitida regularmente em 28 de setembro de 1998, Doc. nº 3, fls. 09), portanto em condições de receber as parcelas referentes aos meses de fevereiro e março. Ocorre que tais parcelas deixaram de ser pagas pelo ENTE PÚBLICO TAL na data aprazada, de modo injustificado, impedindo a empresa de receber pelos serviços prestados há dois meses.

            Quando o numerário foi enfim disponibilizado, tendo sido a empresa avisada por meio de telefonema, verificou-se que estava vencida aquela certidão, de forma que seria necessário requerer a emissão pelo INSS de uma nova CND.

            Porém, devido ao período de dificuldades financeiras que já vinha atravessando há algum tempo (que se comprova pelos extratos de conta bancária da empresa, Doc. nº 4), a empresa estava impossibilitada de obter tal certidão naquele mês de abril de 1999, pois não tivera condições materiais de manter o pagamento ao INSS em dia. Frise-se que a dificuldade na situação financeira da empresa fora, definitivamente, agravada pela falta de pontualidade nos pagamentos do ENTE PÚBLICO "TAL".

            Precisando receber os valores que lhe eram devidos pelos serviços já prestados, a Paciente apresentou, em nome da empresa, uma certidão materialmente adulterada. A adulteração consistiu na modificação da data de expedição da certidão, estendendo sua validade de 28 de março para 28 de abril de 1999. Em razão da apresentação da certidão adulterada, a empresa finalmente logrou receber os valores devidos há quase três meses e que eram tão necessários ao restabelecimento do equilíbrio financeiro da empresa.

            A primeira providência da Paciente, responsável pela administração financeira da sociedade, foi justamente regularizar a situação da empresa junto ao INSS, o que pode ser constatado pelo seguinte fato: o ENTE PÚBLICO "TAL" efetuou pagamento no dia 28/04/1999, e a empresa (que não estava regular junto ao INSS até então) obteve uma nova CND em 05 de maio de 1999 (Doc. nº 3, fls.69/71), sete dias depois. Foi esse documento permitiu à empresa receber, de modo regular, a parcela vincenda de abril/99 (Doc. nº 3, fls.65/66; 79).

            Quando constatada a adulteração do documento utilizado (em consulta ao site da Previdência na Internet, Doc. nº 3, fls.71), as parcelas devidas remanescentes (referentes aos meses de maio e junho de 1999) foram abruptamente suspensas pelo ENTE PÚBLICO "TAL", apesar da empresa reunir as condições para o recebimento dos valores, sendo instaurado um procedimento administrativo para apurar o fato.

            Na defesa escrita oferecida no procedimento administrativo, a empresa confirmou a adulteração do documento, a qual foi feita pela Paciente em atitude desesperada, desinteressada e absolutamente destituída de má-fé (Doc. nº 3, fls.102/103). A conduta da Paciente deveu-se principalmente à premência de receber os valores devidos pelo ENTE PÚBLICO "TAL", que estavam atrasados e à inexistência de prejuízo para a Administração Pública.

            Foi pedido, ainda, que o TR ENTE PÚBLICO "TAL" E quitasse as parcelas devidas, o que só ocorreu após a conclusão do procedimento administrativo (mais de um ano depois da prestação dos serviços). Verifico-se, como é óbvio, que os serviços sempre foram regular e eficientemente prestados, não havendo razão para o ENTE PÚBLICO "TAL" continuar escusando-se do pagamento devido; e, ainda, que inexistira qualquer prejuízo para os cofres públicos.

            Após a confirmação da adulteração pela Paciente, foi instaurado inquérito policial com o escopo de averiguar se ela havia agido por sua própria iniciativa ou se o fez orientada por seus empregadores, questão que já tinha sido esclarecida na defesa administrativa, e que foi corroborada no inquérito (Doc. nº 5).


III – ATIPICIDADE DA CONDUTA IMPUTADA – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO.

            Conforme leciona MAURICIO RIBEIRO LOPES (Princípio da insignificância no direito penal. São Paulo: RT, 1997, p. 82), foi Claus Roxin quem primeiro enunciou o princípio da insignificância (geringfügigkeitsprinzip), segundo o qual os delitos de baixa ou nenhuma lesividade social devem ser objeto de intervenção mínima do direito penal.

            No Brasil, o princípio da insignificância é acolhido pela mais lúcida doutrina sobre o tema, valendo citar, por todos, o magistério do MINISTRO FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, (Princípios básicos de direito penal. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 133).

            "Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas".

            Tal construção doutrinária encontra guarida na jurisprudência pátria, inclusive dos Tribunais Superiores:

            "JUSTA CAUSA. INSIGNIFICÂNCIA DO ATO APONTADO COMO DELITUOSO.

            Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. A isto direcionam os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade". (STF - HC n° 77.033/PE. 2a Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. DJU 11/09/98)

            Especificamente no que tange aos delitos de falsidade, a aplicabilidade do princípio da insignificância não se altera, como se vê dos julgados promanados desse Egrégio Tribunal Regional Federal da 2a Região:

            "Penal – Crime de Falsidade Ideológica – Aplicação do Princípio da Insignificância

            1) Passaporte brasileiro apresentando características de adulteração, utilização com finalidade de conseguir ingresso em território estrangeiro para obtenção de trabalho.

            2) A ocorrência da deportação e a ausência de prejuízo justificar a aplicação do Princípio da Insignificância, com a conseguinte absolvição da ré.

            3) Apelo a que se dá provimento."

            (ACR nº 95.02.19393-8 – 3ª Turma – Rel. Des. Federal Valmir Peçanha – DJU 30.03.1998)

            Os mais ilustres doutrinadores, que examinaram o tema, também afirmam que a falsidade deve, necessariamente, caracterizar um resultado danoso, um prejuízo, ou uma vantagem ilícita, pois do contrário não haverá ofensa a qualquer bem jurídico.

            NELSON HUNGRIA, em sua obra mais consagrada (Comentários ao Código Penal, Vol IX, Forense: Rio de Janeiro, 1959, p. 257), leciona que a adulteração de documento não pode ser considerada criminosa quando desacompanhada da intenção de causar prejuízo, ou seja, de obter uma vantagem ilícita. Narra o doutrinador:

            "Se não existe falsum sem a consciência de que se cria o risco de conculcar uma relação jurídica em detrimento alheio, não pode ser ele reconhecido quando se procede, não de lucro captando, mas de damno vitando. Fixando a segunda das hipóteses acima, ponderam, convincentemente, Chaveau et Helie, depois de acentuarem que a falsidade é um meio, pelo menos in potentia, para prejudicar outrem: ‘... se ela visa a um fim que não é criminoso e não acarreta prejuízo a quem quer que seja, o crime falha em um de seus elementos, e não tem mais existência em face da lei. Em verdade, na espécie, a falsidade não é uma simples alteração material desacompanhada de fraude, desde que o credor procura obter o pagamento de seu crédito com um meio imoral, contra a vontade do devedor. Mas nem toda fraude é constitutiva do crime: cumpre que ela tenha o efeito de tornar possível um prejuízo. Ora, na hipótese de que se trata, depara-se com uma alteração material mas em vão se procuraria a possibilidade de causar um prejuízo, pois a falsidade aí apenas proporciona o reembolso de um débito legítimo.’" (Grifamos)

            No mesmo diapasão, ensina o jurista Sylvio Amaral, em premiada monografia exclusiva sobre o tema (Falsidade documental, 3a ed., RT: São Paulo, 1989, p. 69):

            "É que a alteração consumada, para fundamentar a figura delituosa, precisa ser de verdade juridicamente relevante para o agente ou para a vítima, ou para ambos. A falsificação inócua, sem qualquer repercussão na órbita dos direitos ou das obrigações de quem quer que seja, não constitui ilícito penal, embora contenha em si ostensivamente o requisito da alteração da verdade documental.

            O falso documental é crime contra a fé pública. Este sentimento de confiança coletiva só preocupa o Estado enquanto gira em torno de atos ou fatos capazes de gerar direitos e obrigações entre os cidadãos ou entre estes e o Estado, pois o exercício harmônico desses direitos pelos indivíduos é precisamente o escopo fundamental da organização política, que não colima, em última análise, senão o estabelecimento de um clima de respeito recíproco dos homens aos direitos de cada um.

            O malefício que não cria, não modifica, não perturba, nem extingue direito algum, não afeta a fé pública, no conceito de lei, ainda que realmente viole a crença de toda uma coletividade em torno de determinado documento. Mesmo no Direito anglo-americano, substancialmente diverso do nosso em tantos temas fundamentais, vige o princípio acolhido pelos sistemas de que deriva a lei brasileira, da indiferença do Estado perante a alteração dolosa da verdade que não produz conseqüências estimáveis." (grifamos)

            De fato, sendo inquestionável que a adulteração realizada pela Paciente não foi capaz de criar, alterar ou suprimir qualquer direito, bem como que de tal conduta não adveio nenhum prejuízo, seja para o ENTE PÚBLICO "TAL", seja para o INSS, fica evidente que a ausência de resultado material e de ofensa concreta a bem jurídico relevante tornam o fato atípico.


IV – INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA.

            Além da inexistência de resultado material, que afasta a tipicidade da conduta e não recomenda a ativação do aparelho repressivo estatal, verifica-se no caso concreto a presença de uma causa excludente de culpabilidade, também indicadora da falta de justa causa para a persecução criminal da Paciente. Leciona Miguel Reale Junior (Teoria do Delito. RT: São Paulo, 2000, p. 151/157) que a inexigibilidade de atuação conforme a lei surge quando o agente opta pela preservação de um bem jurídico em detrimento de outro.

            "Não há renúncia por parte do direito, mas uma revaloração deste, diante de uma situação em que estão presentes determinados requisitos objetivamente determinados. A não exigibilidade não se reduz às situações em que o instinto de conservação determina a ação, mas implica uma valoração acerca de um conflito de valores, o valor da norma e o valor posto como motivo de agir em determinada situação."

            O exercício de ponderação de bens que se faz sopesando o delito praticado e o bem jurídico que se quis proteger já foi várias vezes aplicada por esse Tribunal Regional Federal, como se vê do exemplo abaixo colhido:

            "Penal. Passaporte falso. Absolvição.Inexigibilidade de Conduta Diversa. Insuficiência de Provas

            1 – Não é punível a conduta do brasileiro que utiliza passaporte falso apenas para tentar livrar-se da marginalidade social e econômica a que está fadado no Brasil buscando melhores condições de vida em outro país, caracterizada, nesta hipótese, a inixigibilidade de comportamento diverso;

            2 – Inexistindo quaisquer outras provas, a simples confissão do co-réu não é suficiente para fundamentar uma condenação."

            (ACR nº 98.02.07729-1 – 4ª Turma – Rel. Des. Rogério de Carvalho – DJU 22.10.1998)

            No caso concreto, a empresa XXXXX Ltda não era capaz de honrar seus débitos com a previdência social (dentre vários outros) por impossibilidade material. Vinha operando com endividamento e em situação periclitante, como comprovam os extratos bancários de contas da empresa. Por outro lado, era credora de valores do ENTE PÚBLICO "TAL", que, reconhecidamente devedor, deixava de honrar os compromissos.

            Inaplicável, em casos como este, a medida repressiva e punitiva do Direito Penal. É incoerente com os princípios que balizam e orientam o Direito Penal perseguir penalmente um agente que, diante de circunstâncias anormais, atuou de forma típica quando não se podia exigir um comportamento de acordo com a norma jurídica. Trata-se de situação em que o comportamento adotado pelo agente não pode ser reprovado pela norma jurídica, cujo conseqüência é a descaracterização da ilicitude da conduta.


V – DA INEXISTÊNCIA DE CRIME DECORRENTE DA FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA.

            Afirmou a Paciente em seu depoimento perante a autoridade policial, "que a interrogada, sem consultar a sócia da empresa, escreveu no computador a palavra ‘outubro’, recortou esta palavra, colou sobre uma outra CND do INSS autêntica e já vencida da empresa e tirou uma cópia".

            Trata-se de meio rudimentar e impróprio de adulteração. Com efeito, o simples cotejo dos documentos existentes no autos (Doc. nº 3, fls. 51 e 09) revelam tratar-se de adulteração grosseira.

            Consultado pela defesa técnica, o renomado perito Dr. Roberto de Freitas Villarinho, ex-Diretor do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), da Polícia Civil do Rio de Janeiro, emitiu parecer técnico que é contundente em afirmar que a adulteração realizada o foi de modo grosseiro (Doc. nº 6, fls. 9/10).

            "Qualquer pessoa afeita a tarefa de examinar documentos como o em tela estaria capacitada a imediatamente verificar a inidoneidade do mesmo, isso sem levar em conta que a certidão questionada apresenta os mesmos números de série e PCND, individualizadores do documento padrão, passíveis de fácil comprovação junto ao INSS

            Outro aspecto com bastante importância está estampado no prazo de validade da certidão. A certidão autêntica teria validade até 28 de março de 1999. Com a introdução do mês de ‘Outubro’, essa validade passou a vigorar até o mês de abril de 1999. Dessa forma, entende o perito que para fazer prova essa certidão negativa de débito, seria imprescindível a imediata visualização do mês inserto no documento e a contagem de seis meses adiante. Acontece, que por ocasião dessa visualização, se um leigo poderia observar a gritante diferença, certamente o local onde a mesma foi usada, onde não deve haver leigos, com certeza observaria a diferença que salta aos olhos, diferente, diversa do restante da impressão, não só da data como do preenchimento de toda a certidão." (grifamos)

            Sobre a falta de semelhança do documento adulterado com o original, bem como a grosseria na sua adulteração, a doutrina assim se pronuncia:

            "Segundo a precisa lição de Nelson Hungria, ‘não há falsidade sem a possibilidade objetiva de enganar... Não basta a immutatio veri; é também necessária a imitatio veri. Sem esta (ou seja, sem a potencialidade de engano), inexiste, praticamente, ofensa à boa fé pública ou possibilidade de dano (elemento condicionante do crime)... Se a imitação é grosseira ou reconhecível prima facie, e nada obstante, alcança êxito, dada a supina desatenção ou cega credulidade do lesado, o crime a identificar-se já não será o de falsidade, mas estelionato ou fraude patrimonial’ (cf. Comentários, IX/263-264)." (TJSP – Ap. 121.685/9 – 2a CC. Re. Des. Canguçu de Almeida – RT 701/303)

            Logo, diante da adulteração perceptível à vista do simples exame, não há que se falar em crime. Nesse diapasão, a jurisprudência dos tribunais é torrencial, valendo citar, por todos, os seguintes julgados do Tribunal Regional Federal da 2a Região.

            "FALSIDADE DOCUMENTAL – Uso de documento falso – Atipicidade – Caracterização – Adulterações em passaportes incapazes de enganar as pessoas acostumadas a lidar com este tipo de documento – Falsificação absolutamente inidônea para o fim destinado – Trancamento da ação penal que se impõe.

            Ementa da Redação: Consignando o laudo pericial que as adulterações no passaporte eram incapazes de enganar pessoas acostumadas a lidar com este tipo de documento e, portanto, a falsificação era absolutamente inidônea para o fim destinado, embarque e posterior ingresso em território estrangeiro, tem–se que a conduta praticada é atípica, o que impõe o trancamento da ação penal.

            (RSE Nº 98.02.24112-1/RJ - Rel. Des. Federal Paulo Espírito Santo – DJU 06.04.1999.)

            "PENAL. USO DE DOCUMENTAL FALSO. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA.

            1. A falsificação grosseira do documento público, incapaz de configurar o falsum, afasta o delito descrito no art. 304 do Código Penal.

            2. Recurso provido."

            (ACR Nº 98.02.18655-4 – rel. Des. Federal Lana Maria Fontes Regueira – DJU 25.05.1999.)"


VI – ERRO NA CAPITULAÇÃO DA CONDUTA IMPUTADA.

            6.1 – Exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP)

            Como é curial, o réu defende-se dos fatos imputados, e não de sua classificação jurídica. Todavia, quando o erro na capitulação acarreta grave prejuízo para a defesa, impende que o Poder Judiciário corrija os excessos da acusação.

            Como se vê do trecho da denúncia abaixo transcrito, o Ministério Público admite a dívida do ENTE PÚBLICO "TAL" para com a empresa, admite o atraso no pagamento desta dívida, e admite, ainda, que a conduta da Paciente foi orientada para satisfazer essa pretensão legítima de receber os valores devidos. Logo, a conduta imputada que é descrita e imputada não preenche os requisitos do tipo penal da falsificação de documento público, mas sim o delito de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do Código Penal).

            "A denunciada fulana, funcionária responsável pela área administrativa da empresa xxxxxx LTDA., CGC nº 0000000000000, falsificou, em abril de 1999, cópia autenticada da Certidão Negativa de Débito – CND nº 0000000 – Série I, do INSS, inclusa à fl. 196, adulterando a sua data de emissão para 28 de outubro de 1998, e promoveu a sua utilização, em abril de 1999, perante o ENTE PÚBLICO "TAL", para fins de recebimento de parcela referente aos serviços prestados nos meses de fevereiro e março de 1999 (R$ 7.244,00 – sete mil, duzentos e quarenta e quatro reais- fl.73), decorrente de contrato celebrado entre o ENTE PÚBLICO TAL e a empresa em questão, com dispensa de licitação, conforme art.26, da Lei 8.666/93, para compra dos softwares XXXXXXXXXXXXX."

            Com efeito, o exercício arbitrário das próprias razões representa a conduta de "...quem, tendo ou acreditando ter o direito contra outra pessoa, em vez de recorrer à justiça, arbitrariamente satisfaz sua pretensão. Qualquer meio de execução pode ser empregado: violência, ameaça, fraude, subtração, etc." (DELMANTO, Celso et alii: Código Penal Comentado, 5a ed., Renovar: Rio de Janeiro, 2000, p. 628, grifamos).

            HUNGRIA (op. cit., p. 495) também exemplifica este delito na ação de quem emprega "meio fraudulento (ex. captar ardilosamente o dinheiro de devedor impontual, para pagar-se da dívida)" para satisfazer direito. Vemos, pois, que o exercício arbitrário das próprias razões pode ser praticado mediante diversas ações, que, acaso não fossem praticadas para satisfazer determinada pretensão, poderiam ser capituladas como outra espécie de delito.

            A jurisprudência traz exemplos diversos em que se opera a desclassificação da conduta supostamente típica, depois de dirimido o conflito de normas entre exercício arbitrário das próprias razões e o outro eventual delito, tais como: ameaça (RT 398/277); constrangimento ilegal (RT 393/321); cárcere privado (RT 512/423); apropriação indébita (JUTACRIM 12/306); dano (RT 419/390); extorsão (RT 422/300); extorsão mediante seqüestro (RT 507/449); furto (RT 498/324 e 554/377); roubo (RT 486/326); redução à condição análoga a de escravo (RJD 5/95), etc.

            Especificamente com relação aos delitos de falsidade, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:

            "EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES – PARTILHA – SIMULAÇÃO DE DÍVIDA.

            A simulação de dívida objetivando alcançar de imediato a meação de certo bem configura não o crime de falsidade ideológica, mas o do exercício arbitrário das próprias razões. A simulação, a fraude, ou outro qualquer artifício utilizado corresponde a meio de execução, ficando absorvido pelo tipo do art. 345 do Código Penal no que tem como elemento subjetivo o dolo específico, ou seja, o objetivo de satisfazer pretensão legítima ou ilegítima.

            (HC nº 74.672 – STF, 2a Turma – Rel. Min. Marco Aurélio. DJU 11/04/97)

            "Crime de estelionato; inexiste sem injusta locupletação. Não há confundir-se o dito crime com o de exercício arbitrário das próprias razões, onde não existe o animus lucri captandi; senão o animus damni vitandi. Extensão do habeas corpus a co-réus"

            (HC nº 38.202 – STF, Pleno – Rel. Min. Nelson Hungria. DJU 7/8/61)

            Note-se, ainda, que o direito arbitrariamente exercido não precisa ser legítimo, bastando que o agente assim o considere, como se vê da parte final da ementa do HC nº 74.672 (citado acima), e ainda como preleciona HUNGRIA (op. cit, p. 496):

            "É pressuposto do crime uma pretensão, a que deve corresponder um direito de que o agente é ou supõe ser titular. Pretensão é a direção da vontade para o exercício de um direito, seja este autêntico (caso de pretensão legítima) ou meramente putativo (caso de pretensão supostamente legítima)."

            Esse entendimento já foi esposado pelo Tribunal Regional Federal da 2a Região, como se vê da ementa transcrita.

            "Apelação criminal. Condenação por estelionato contra a Previdência Social. Identificação de acidente em serviço.

            Se o crime tivesse havido, seria o de exercício arbitrário das próprias razões. Falta, porém, de caracterização de conduta antijurídica."

            (ACR nº 89.02.11626-3/RJ – 2ª Turma – Rel. Des Federal D’Andréa Ferreira – DJU 12.07.1990)

            Assim, se houvesse uma ação delituosa, ela estaria caracterizada no exercício arbitrário de um direito legítimo. Finalmente, é imperioso destacar que se for acolhido o pedido para adequar a capitulação da conduta imputada ao delito do art. 345, CP, já teria ocorrido a prescrição da pretensão punitiva do Estado, eis que o fato (cuja pena máxima é de um mês) foi praticado em abril de 1999, tendo transcorrido mais de dois anos, portanto.

            6.2 – Falsificação de atestado ou certidão (art. 301, § 1º, CP)

            Não acolhidos os argumentos acima expendidos (o que se admite apenas para efeito de argumentação), é imperioso constatarmos que a acusação também equivoca-se quando capitula a conduta imputada como o delito do art. 297, CP. Com efeito, tal artigo trata de documento público genérico, sendo certo que existe previsão de punição autônoma e diferenciada para a falsificação de certidão (art. 301, § 1º, CP).

            Especificamente acerca da falsificação de certidão negativa de débito expedida pelo INSS, esse Tribunal Regional Federal já declarou, por diversas vezes, que essa conduta constitui o delito do art. 301, § 1º, CP. Senão vejamos:

            "Revisão criminal. Falsificação de certidão negativa de débito – CND. Condenação com base no art.297 do Código Penal. Pedido de desclassificação para o art. 301, § 1º, do mesmo diploma. Princípio da especialidade. Procedência da revisão, com declaração da extinção da punibilidade pela prescrição de pretensão punitiva do Estado.

            1) Ação ajuizada para a desclassificação de condenação a 03 anos de reclusão com no art.297 do código Penal pela falsificação de Certidão Negativa de Débito do extinto IAPAS.

            2) O tipo do art.301, § 1º, do Código Penal é crime comum quanto ao sujeito, não se tratando de crime próprio de funcionário público, podendo, conseqüentemente, ser cometido por qualquer pessoa.

            3) Tratando ali de certidão, é especial em relação aos demais tipos constantes dos arts. 297 e 299 do Código Penal, limitando-os quanto a tal documento.

            4) Procedência do pedido para desclassificar a falsificação de Certidão Negativa de Débito – CND do art.297 para o 301, § 1º, do Código Penal, reconhecendo-se a extinção de punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva do Estado, por maioria."

            (Revisão Criminal nº 98.02.025909-7 – Rel. Des. Federal Julieta Lunz – DJU 05.06.2001)

            No mesmo sentido: ACR nº 96.02.13461-5/ES Rel. Des. Federal Frederico Gueiros – DJU 17.04.1997; RCCR nº 92.02.15715-4-RJ; ACR nº 92.02.09995-2-RJ;

            Portanto, acolhida essa tese e reclassificada a conduta imputada para o delito previsto art. 301, §1º, CP, seria necessário o trancamento da ação penal, eis que se trata de infração de menor potencial ofensivo, devendo o Ministério Público, antes de oferecer nova denúncia, manifestar-se acerca da eventual proposta de transação penal, na forma da lei nº 10.259/01.


VII – CONCLUSÃO

            Por todo o exposto, serve a presente para requerer o trancamento da ação penal com base nos seguintes fundamentos, isolados ou conjuntamente:

            1) atipicidade da conduta imputada em virtude da insignificância do ato apontado como delituoso e da ausência de resultado material lesivo ao bem jurídico protegido;

            2) ausência de justa causa para a persecução penal por estar configurada causa excludente de culpabilidade consubstanciada na inexigibilidade de conduta diversa;

            3) caracterização do crime impossível devido ao fato da adulteração praticada ser grosseira, característica incompatível com os delitos de falsidade;

            4) prescrição da pretensão punitiva em razão da desclassificação para o delito tipificado no art. 345, do CP;

            5) rejeição da denúncia em razão da desclassificação para o delito tipificado no art. 301, § 1º, do CP, que por ser infração de menor potencial ofensivo exige a manifestação do Ministério Público acerca da propositura de transação penal.

            Termos em que,

            P. Deferimento.

            Rio de Janeiro, 09 de agosto de 2002.

            Thiago Bottino

            OAB/RJ nº 102.312

            RELAÇÃO DOS DOCUMENTOS EM ANEXO

            - Doc. nº 1 – Denúncia ofertada em face da Paciente.

            - Doc. nº 2 – Decisão de recebimento da denúncia, com designação de data para interrogatório.

            - Doc. nº 3 – Processo administrativo com trâmite perante o ENTE PÚBLICO "TAL" que versa sobre o contrato firmado entre a empresa XXXXX Ltda. e o ENTE PÚBLICO "TAL".

            - Doc. nº 4 – Extratos bancários de contas da empresa.

            - Doc. nº 5 – Depoimentos prestados no curso do inquérito policial.

            - Doc. nº 6 – Parecer técnico documentoscópico sobre a falsificação grosseira.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Thiago Bottino do. Habeas corpus em processo criminal por falsificação: mudança na capitulação do crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 808, 19 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16637. Acesso em: 4 maio 2024.