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Ação exige devolução em dobro de multas a maior

Ação exige devolução em dobro de multas a maior

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Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Santa Catarina exigindo que concessionária de energia elétrica devolva em dobro as multas por atraso no pagamento exigidas em percentual superior ao teto de 2% estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor.

EXCELENTÍSSIMA SENHORA JUÍZA DE DIREITO DA COMARCA DE MODELO

            O Ministério Público do Estado de Santa Catarina, pelos Promotores de Justiça ao final assinados, com fundamento nos arts. 127 e 129, III, da Constituição da República, bem como nos arts. 42, parágrafo único; 82, I; e 91 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 5º da Lei nº 7.347/85, propõe AÇÃO CIVIL PÚBLICA, em defesa dos direitos e interesses dos consumidores, em face de:

            COOPERATIVA DE ELETRIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO RURAL VALE ARAÇÁ - CERAÇÁ, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 83.086.603/0001-85, domiciliada na rua Miguel Couto, 245, Saudades/SC.


1. Objetivo da ação

            Esta ação civil pública tem por objetivo obter provimento jurisdicional que condene a requerida à devolução em dobro das multas cobradas abusivamente de seus consumidores desde a data da publicação da Lei nº 9.298/96, que limitou a multa moratória em 2% sobre o valor da obrigação.

            Tem também por objetivo vê-la condenada ao pagamento de danos extrapatrimoniais coletivos, em valor que faça frente à gravidade da lesão e ao desrespeito à ordem jurídica perpetrado pela requerida.


2. Competência

            Dispõe o art. 93 do Código de Defesa do Consumidor ser competente para ações coletivas o juízo de direito do local do dano, no caso de dano local (inciso I), ou o da capital do Estado ou o Distrito Federal, quando o dano tiver caráter regional ou nacional (inciso II).

            No caso dos autos, no entanto, o dano não chega a ser regional, porque afeta apenas quatro comarcas da região Oeste do Estado de Santa Catarina, totalizando dez cidades. Para efeitos de analogia, o dano não engloba sequer o conceito de "regional" utilizado na divisão administrativa do Governo Estadual [01].

            Nessa situação, em que não há dano meramente local, mas também não há dano regional, ensina a doutrina que a competência é fixada por prevenção, na comarca afetada em que ocorrer a primeira citação válida (art. 219 do Código de Processo Civil).

            Vale transcrever o entendimento de Álvaro Luiz Valery Mirra: "Nas hipóteses de degradações ambientais que, apesar de ultrapassarem os limites territoriais de uma comarca ou de um Estado Federado, não tenham abrangência estadual ou nacional, a regra a ser aplicada é a do art. 2º da Lei nº 7.347/85, considerando-se como competentes os juízes de cada um dos foros cujos territórios se encontram sujeitos ao dano, com a fixação, em concreto e em definitivo, da competência de um deles para conhecer e julgar a demanda pela prevenção" [02].

            Ada Pelegrini Grinover tem posicionamento semelhante: "No entanto, não sendo o dano de âmbito propriamente regional, mas estendendo-se por duas comarcas, tem-se entendido que a competência concorrente é de qualquer uma delas".

            Assim, não havendo até o momento ação proposta em qualquer das outras comarcas atingidas, não há óbice ao conhecimento da causa na Comarca de Modelo.


3. Síntese fática

            A Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento Rural Vale do Araçá – Ceraçá – tem por objetivo o fornecimento de energia elétrica nas áreas rurais dos municípios de Saudades, Pinhalzinho, Maravilha, Modelo, Nova Erechim, São Carlos, Cunha Porã, Serra Alta, Sul Brasil e São Miguel da Boa Vista.

            Como prestadora do serviço de energia elétrica que é, atua normalmente na geração, construção, manutenção, operação de linhas e distribuição de energia elétrica, mediante contrato com seus consumidores.

            Em 6 de fevereiro de 2007, no entanto, por provocação do Promotor de Justiça Miguel Luís Gnigler, que passava férias com familiares em Cunha Porã, percebeu-se que vinha a Ceraçá cobrando indevidamente multa moratória no percentual de 10% do valor do débito, em afronta à legislação vigente.

            Instada a se manifestar sobre a ilegalidade pelo Centro de Apoio Operacional do Consumidor, a Cooperativa informou que em março de 2007 reduziu a multa para 2%, "tendo em vista adequação ao artigo 52, §1º, do Código de Defesa do Consumidor".

            Evidentemente, não bastaria apenas se adequar para futuras ocorrências. Os consumidores do serviço distribuído pela requerida têm direito, conforme disposição expressa do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor à devolução em dobro de todos os valores cobrados abusivamente durante todo o período contratual.

            De posse dos dados, instaurou-se na Promotoria de Justiça desta Comarca de Modelo procedimento investigativo que confirmou que a Cooperativa Ceraçá jamais respeitou o limite fixado pela Lei nº 9.298/96, que deu nova redação ao §1º do art. 52 do Código de Defesa do Consumidor para limitar a multa moratória ao percentual de 2% sobre o valor do débito.

            Em avaliação preliminar, estimou-se o valor cobrado a mais nos meses de janeiro a março de 2007 em R$ 5.267,86, o que, considerando hipoteticamente a constância de inadimplemento e do número de consumidores, permite estimar o valor cobrado a mais em aproximadamente R$ 210.000,00 [03].

            Propôs-se, então, a assinatura de Compromisso de Ajustamento de Conduta (minuta anexa), constituindo a Ceraçá na obrigação de devolver em dobro os valores cobrados indevidamente, em prazo razoável a ser negociado entre o Ministério Público e a empresa.

            A Cooperativa, no entanto, negou-se a firmar o Compromisso de Ajustamento de Conduta, motivo pelo qual não resta outra opção à obtenção do direito dos consumidores da micro-região em que opera a Cooperativa se não a propositura desta ação civil pública.


4. Direito

            4.1. Vulnerabilidade do consumidor

            Com a edição da Lei nº 8.078/90 adotou o direito brasileiro o princípio da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), verdadeira "espinha dorsal" [04] do sistema protetivo e princípio sobre o qual se assenta toda a linha filosófica do movimento que culminou com a edição do Código de Defesa do Consumidor.

            De fato, não há outra forma de encarar atualmente as relações entre consumidor e fornecedor sem se atentar para o fato de que o consumidor é a parte mais fraca das relações de consumo. É, dito de outro modo, a parte que se apresenta frágil e impotente diante do poder econômico, técnico e até mesmo político do fornecedor.

            Pautado por este princípio é que o Código de Defesa do Consumidor definiu como direitos básicos do consumidor o direito "à efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" (art. 6º, VI).

            E, além da disposição genérica, para casos especiais, em que além do mero dano patrimonial houvesse cobrança indevida, sempre atento à singular vulnerabilidade do consumidor, previu a Lei nº 8.078/90 a obrigação de devolução em dobro do valor cobrado em excesso, acrescido de correção e juros legais. A regra consta literalmente no parágrafo único do art. 42 do Código: "O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável".

            Na verdade, o art. 42 do Código de Defesa do Consumidor, além de equilibrar as forças do jogo econômico, tem função dissuasora evidente. Ou o fornecedor acerca-se de todas as garantias ao cobrar uma dívida de consumidor ou, como é corrente no mundo todo, será apenado pela devolução do dobro do que recebeu.

            3.2. Cobrança indevida

            No caso dos autos, os documentos obtidos pelo Ministério Público comprovam que de fato houve cobrança excessiva de multa moratória. A própria requerida reconhece este fato, tanto é que, instada a prestar informações a respeito, de imediato limitou a multa ao disposto no §1º do art. 52 do Código de Defesa do Consumidor.

            Como demonstra cópia da ata da reunião do Conselho de Administração da Cooperativa Ceraçá, até julho de 1996 a multa aplicada era de 20% sobre o valor do débito. Na ocasião, por conta de portaria do extinto DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, sucedido pela Aneel), a Cooperativa reduziu a multa moratória para 10%.

            No entanto, em 2 de agosto de 1996, já por conta da estabilização econômica promovida pelo Plano Real, entrou em vigor no Brasil a Lei nº 9.298/96, que promoveu a alteração do §1º do art. 52 do Código de Defesa do Consumidor para fixar como limite à multa moratória o percentual de 2%.

            A partir desta data, portanto, deveria a Cooperativa Ceraçá adequar-se à legislação regente e reduzir a multa ao índice fixado na legislação. Preferiu, ciente das implicações decorrentes deste fato, arriscar, como é infelizmente comum no Brasil, e manteve a multa no patamar fixado até os dias de hoje.

            Todos os seus consumidores, assim, foram cobrados em quantias indevidas desde então. Os cálculos constantes dos autos, realizados pela própria empresa em atendimento a requisição do Ministério Público, demonstram a gravidade da situação. Multas que deveriam ser de no máximo R$ 8,15, para se tomar exemplo aleatório, passaram, pelo comportamento da Cooperativa, a R$ 40,74, como é o caso do senhor Egon Schwertz. Centenas de outros consumidores encontram-se na mesma situação.

            Mesmo que não considerasse a Cooperativa aplicável à época o limite de multa imposto pelo Código de Defesa do Consumidor, ainda assim a cobrança era considerada excessiva pelos próprios atos normativos aplicáveis ao setor de distribuição de energia elétrica.

            Como determinou a Portaria nº 438, de 4 de dezembro de 1996, do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, departamento federal ao qual estava subordinada a Cooperativa, "a multa por atraso de pagamento da fatura de energia elétrica de que trata o art. 73 da Portaria nº 222, de 22 de dezembro de 1987, estará limitada ao percentual máximo de 2% para todos os consumidores de energia elétrica" (cópia anexa).

            Veja-se, portanto, que não só o Código de Defesa do Consumidor previa o limite de 2%, como também a Portaria nº 438/96/DNAEE.

            E – vale recordar – embora tenha a Ceraçá demonstrado grande atenção às portarias do DNAEE, já que reduzira de 20% para 10% a multa por força da Portaria nº 210/96, o mesmo não fez com relação à Portaria nº 438/96, que determinou a redução da multa para 2%.

            O quadro abaixo demonstra a sucessão dos eventos:

            Data

            Ato

            Conteúdo

            13 de junho de 1996

            Portaria nº 210/DNAEE

            Fixa máximo da multa ao consumidor de energia elétrica em 10%

            11 de julho de 1996

            Ata nº 273/CERAÇÁ

            Reduz multa aplicada aos consumidores de energia elétrica para 10%

            2 de agosto de 1996

            Lei nº 9.298/96

            Altera Código de Defesa do Consumidor e fixa máximo da multa em 2%

            4 de dezembro de 1996

            Portaria nº 438/DNAEE

            Fixa máximo da multa ao consumidor de energia elétrica em 2%

            6 de março de 2007

            Ofício não numerado – Ceraçá

            Informa ter reduzido a 2% o valor da multa ao consumidor de energia elétrica

            3.3. Engano injustificável

            A sucessão de atos normativos aplicáveis à Ceraçá por si só já demonstra o quão injustificável foi sua conduta. Não só o Código de Defesa do Consumidor, mas também atos normativos do DNAEE obrigavam-na a limitar a multa moratória em 2%. E isso já em 1996!

            Não se tem "engano", portanto, mas ato dolosamente contrário à legislação pertinente praticado deliberadamente pela Cooperativa, tudo voltado única e exclusivamente para o fim de auferir maior rendimento com a atividade, em detrimento do consumidor.

            É que, como é evidente, a Cooperativa Ceraçá – e isso demonstram seus atos constitutivos e a relação de veículos de sua propriedade – é empresa suficientemente organizada, com setor jurídico e contábil hábeis o suficiente para terem identificado a irregularidade a tempo.

            Amolda-se analogicamente ao caso dos autos, portanto, o entendimento de Antônio Carlos Efing, para quem "em se tratando de instituição financeira, detentora de estrutura contábil e pessoal especializada em cálculos, não se pode admitir que incorra em ‘engano justificável’ quando cobra valor maior que o devido pelo consumidor. A regra do CDC quanto ao valor cobrado indevidamente é precisa, não comportando outra interpretação senão conferir ao consumidor, indevidamente cobrado (pessoa física ou jurídica), o direito de reaver tal valor, em dobro, atualizado e acrescido de juros legais, calculado até a data do efetivo pagamento" [05].

            Luiz Antônio Rizzatto Nunes entende que há ainda outras limitações à justificativa a ser apresentada pelo fornecedor. A justificativa só será válida: a) se não houve por parte do consumidor cobrança extrajudicial do valor a repetir; b) se, não tendo havido cobrança amigável e ao ser citado no processo, o credor deposita incontinenti o valor cobrado, ainda que no quantum singelo [06].

            No caso dos autos, houve sim tentativa de cobrança extrajudicial. O Ministério Público, como comprovam os autos, buscou através do instrumento pertinente – a tomada de compromisso de ajustamento de condutas – a repetição dos valores. No entanto, a Ceraçá preferiu se negar a aceitar o evidente e, contando com a natural morosidade do processo judicial, manter-se inerte no pagamento do devido. Veja-se que a Ceraçá sequer compareceu à audiência em que o Ministério Público lhe apresentaria a minuta do compromisso de ajustamento de conduta, demonstrando claramente sua intenção em não cumprir a lei (fl. 75).

            De qualquer forma, como lembra Rizzatto Nunes, "a prova da justificativa para o engano é, também, por evidência, ônus do credor [fornecedor]" [07].

            Outra solução mesmo não poderia haver. Se o consumidor, dada sua vulnerabilidade, tem a si deferido como direito básico "a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com inversão do ônus da prova, a seu favor" (art. 6º, VIII), não há como negar que também o ônus da prova da justificativa, se houver – o que não se acredita – é inteiramente do próprio fornecedor.

            Vale transcrever, por fim, precedentes jurisprudenciais que reforçam a validade da fundamentação até aqui exposta. Os casos demonstram que os tribunais brasileiros, no caso de cobranças irregulares por concessionárias de serviços públicos de telefonia, vêm obrigando as empresas à devolução em dobro, sem admitir qualquer excludente.

            No caso dos autos, com a mesma razão há de se dar idêntico tratamento, já que aqui se tem concessionária de serviço público que de forma livre, deliberada e consciente aplicou multa exorbitante a seus consumidores. Lembre-se que a Ceraçá acompanhava de perto as deliberações do DNAEE, que já em 1996 determinou a redução do valor da multa.

            CONSUMIDOR. INTERNET BANDA LARGA. AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO IMPLICA A INCONSTROVÉRSIA DOS FATOS ALEGADOS PELO AUTOR. SERVIÇO NÃO DISPONIBILIZADO. PAGAMENTO DE TRÊS COBRANÇAS REALIZADAS. RESTITUIÇÃO EM DOBRO, EX VI DO ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, CDC. A alegação da autora no sentido de que pagou três faturas atinentes ao fornecimento do serviço de ADSL, que nunca foi disponibilizado, tornou-se incontroversa na medida em que a ré não ofereceu contestação. É devida, portanto, a restituição dos valores indevidamente cobrados e pagos em dobro, ex vi do parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor. RECURSO IMPROVIDO [08].

            CONSUMIDOR. COBRANÇA DE SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS DE CONEXÃO DE INTERNET BANDA LARGA E DE ‘CHAMADA EM ESPERA’. INSISTÊNCIA NA COBRANÇA. PERTURBAÇÃO MORAL QUE DECORRE DIRETAMENTE DA CONDUTA IRREGULAR E ARBITRÁRIA DA EMPRESA DE TELEFONIA. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO, POIS EM CONSONÂNCIA COM O PATAMAR OBSERVADO PELA TURMA RECURSAL EM CASOS ANÁLOGOS. RESTITUIÇÃO EM DOBRO DO MONTANTE INDEVIDAMENTE PAGO, EX VI DO ARTIGO 42, PARÁGRAFO ÚNICO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Sentença confirmada por seus próprios fundamentos. Recurso improvido [09].

            APELAÇÃO CIVEL. NEGOCIOS JURIDICOS BANCARIOS. COBRANÇA. RESTITUIÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ILEGITIMIDADE PASSIVA. MAJORAÇÃO DE VERBA HONORÁRIA. - Ilegitimidade passiva. Em regra, tratando-se de cooperativa que tenha intermediado a negociação, atuando penas como `canal de desconto’ das parcelas na folha de pagamento, tem este Colegiado o entendimento de que não é ela parte legítima para responder a demanda. Contudo, necessário se faz, por parte da demandada, a demonstração de que realmente atuou apenas como intermediária, ônus que não se desincumbiu satisfatoriamente. - Restituição em dobro. Justificado a devolução em dobro dos valores descontados indevidamente, por aplicação do parágrafo único, do art. 42, do Código de Defesa do Consumidor. - Indenização por danos morais. A simples alegação da ocorrência do dano, não é suficiente para gerar a obrigação de indenizar. No caso, não restou comprovado o prejuízo sofrido. - Majoração de honorários. Manutenção dos honorários advocatícios conforme determinado na sentença. Apelo do demandante parcialmente provido e apelo da demandada desprovido [10].

            APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. INEXISTÊNCIA DE DÉBITO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. USUÁRIO DE SERVIÇO DE TELEFONIA FIXA. ILEGALIDADE NA COBRANÇA EXCESSIVA DE DÉBITOS DA CONTA TELEFÔNICA RECONHECIDA. ÔNUS DA PROVA. Em se tratando de relação de consumo, o ônus da prova incumbe à prestadora de serviço. E, neste fanal, não tendo a requerida demonstrado a legalidade dos débitos relativos aos meses de março e maio de 2005, impõe-se a devolução, em dobro, da quantia correspondente à fatura de março e readequação daquela relativa ao mês de maio de 2005. INSCRIÇÃO EM ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. Cuidando-se de exigência reconhecidamente ilegal da Companhia Telefônica, é de ser deferida a tutela para a imediata exclusão do nome do autor em bancos restritivos de crédito, sob pena de arcar com o dever de indenizar pelos prejuízos causados. Multa diária fixada para o caso de descumprimento da determinação. DANO MORAL. A tutela antecipada para obstaculizar a inserção do nome do autor em bancos restritivos de crédito não foi deferida, razão pela qual, em tese, não agiu ilicitamente a companhia telefônica, pois os débitos estavam em aberto e pendentes de pagamento. Ademais, simples transtornos decorrentes da relação mantida entre as partes, não ensejam indenização por dano moral, mormente quando havia dívida de R$ 85,70 a ser adimplida pelo usuário. CANCELAMENTO DOS SERVIÇOS DE TELEFONIA FIXA. Possibilidade de determinação judicial de cancelamento dos serviços prestados, diante da resistência da companhia em atender pedido do usuário. JUROS DE MORA E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Tratando-se de cobrança indevida, descabe a pretensão da demandada em fazer incidir juros moratórios sobre parcela dita como incontroversa, mormente quando a própria demandada não efetua correção dos valores estornados. Os honorários advocatícios estão fixados em consonância com a sucumbência recíproca, mas decaimento mínimo do autor. Apelação da demandada desprovida e parcialmente provido recurso do autor. Unânime [11].


4. Indenização por danos extrapatrimoniais

            Não basta, como é óbvio, a mera devolução em dobro dos valores cobrados, obrigação que na verdade é pena imposta pelo ordenamento civil ao fornecedor que extrapola os limites da cobrança.

            Na situação configurada nos autos, é preciso reparar integralmente os danos causados aos consumidores e, sob este aspecto, vale lembrar que o art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor, garante o direito básico do consumidor de obter "efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos".

            Isso porque, conforme se viu nos autos, a cobrança ocorreu durante mais de dez anos, dez anos durante os quais os honestos trabalhadores rurais da região, ainda que à custa de esforços pessoais, pagaram as multas que lhes foram cobradas, sem reclamações que tenham chegado ao conhecimento do Ministério Público.

            A conduta da requerida, por isso mesmo, gera o dever de indenizar, desta feita a título difuso. O dano causado é extrapatrimonial, porque flagrantemente lesionada a confiança [12] do consumidor, que tinha a expectativa de estar sendo cobrado apenas dentro dos limites legais.

            E, assentando-se o dano extrapatrimonial difuso justamente na agressão a bens e valores jurídicos que são inerentes a toda a coletividade, de forma indivisível, não há como negar que conduta como a da ré abala o patrimônio moral da coletividade, pois é coletivo o sentimento de ofensa e desrespeito que o cidadão e sua família acaba experimentando com a prática abusiva.

            Ao dissertar sobre o dano moral coletivo, o professor André de Carvalho Ramos assinalou com muita propriedade: "Devemos considerar que tratamento aos chamados interesses difusos e coletivos origina-se justamente da importância destes interesses e da necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal importância somente reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo lugar, no caso de dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade. Imagine-se o dano moral gerado pela propaganda enganosa ou abusiva, O consumidor potencial sente-se lesionado e vê aumentar seu sentimento de desconfiança na proteção legal do consumidor, bem como seu sentimento de cidadania" [13].

            O valor da indenização a ser pleiteada, também por esses motivos, deve levar em conta o desvalor da conduta, a extensão do dano e o poder aquisitivo da requerida.

            Não se pode conceber tenham lugar condutas como a da ré. Numa sociedade democrática, onde se espera e se luta pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que venham garantir ao cidadão o pleno exercício dos atributos da cidadania, ludibria o consumidor, auferindo lucros exorbitantes a partir de práticas nitidamente contrárias à legalidade. E sempre na esperaça, como se confirmou nestes autos, de que a resposta a ser dada pelo Judiciário fará valer a pena o risco.

            É dentro desse mesmo contexto que não se pode esconder a grande extensão do dano causado, pois além de agredir interesses garantidos por lei ao consumidor, o procedimento denunciado gerou sentimento de descrença e desprestígio da sociedade com relação aos poderes constituídos.

            A jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de condenação do responsável por danos extrapatrimoniais coletivos:

            DANO MORAL COLETIVO - POSSIBILIDADE - Uma vez configurado que a ré violou direito transindividual de ordem coletiva, infringindo normas de ordem pública que regem a saúde, segurança, higiene e meio ambiente do trabalho e do trabalhador, é devida a indenização por dano moral coletivo, pois tal atitude da ré abala o sentimento de dignidade, falta de apreço e consideração, tendo reflexos na coletividade e causando grandes prejuízos à sociedade [14].

            Assim, presente o dano extrapatrimonial, consistente na lesão da confiança depositada pelos consumidores no anúncio publicitário, e presente o nexo de causalidade entre o dano e a conduta da requerida, nasce o dever de repará-lo, cabendo indenização pelos danos causados.

            O Ministério Público, portanto, entende ser devida indenização aos consumidores que, embora não identificáveis, foram enganados pela publicidade da requerida.

            Tal indenização, como é natural em sede de direitos difusos, deverá reverter ao fundo de reconstituição de bens lesados (art. 13 da Lei nº 7.347/85). Em Santa Catarina, o Fundo para Reconstituição dos Bens Lesados foi criado pelo Decreto nº 1.047, de 10 de dezembro de 1987.

            A jurisprudência tem abonado a tese de que a indenização por danos morais independe da devolução em dobro do valor cobrado abusivamente, já que as causas são diferentes: na devolução em dobro aplica-se pena e ocorre parcialmente o ressarcimento do dano material causado; na indenização por danos morais, protege-se outra esfera de direitos, os direitos extrapatrimoniais, que devem igualmente ser tutelados.

            Os precedentes abaixo colacionados amoldam-se por analogia ao caso dos autos. Nas situações ali observadas, empresas de telefonia cobraram indevidamente por serviços não fornecidos a consumidores, situação evidentemente extremamente próxima à dos autos.

            RELAÇÃO DE CONSUMO. CONTRATAÇÃO DO SERVIÇO DE INTERNET DE ALTA VELOCIDADE - ADSL. FALHA NO SERVIÇO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA AFASTADA. 1. Tendo em vista a violação da fornecedora do serviço ao dever de informação e a configuração da falha na sua execução, impõe-se o dever de indenizar, forte do artigo 14 DO CDC. 2. O pagamento por serviço não prestado merece ser integralmente ressarcido, sob pena de enriquecimento ilícito, o que é vedado no ordenamento jurídico. Admite-se na hipótese, ainda, a restituição do montante em dobro, nos termos do artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. 3. Danos morais que se aplicam visando ao caráter dúplice do instituto, qual seja, compensatório, pela desconsideração à pessoa do consumidor, cobrado por serviço não usufruído, e dissuasória, evitando, assim, que conduta futura semelhante seja novamente praticada. Verba indenizatória que merece, todavia, ser minorada, devendo ser proporcional à lesão sofrida sem representar enriquecimento indevido da parte. Recurso parcialmente provido [15].

            TELEFONIA FIXA. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO C/C REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. COBRANÇAS RELATIVAS A SERVIÇOS NÃO CONTRATADOS DE INTERNET BANDA LARGA. 1. Decisão liminar que fixou multa diária para o caso de descumprimento da obrigação de não fazer imposta. Demonstrado o efetivo descumprimento da ordem judicial por parte da empresa, é aplicável a multa. Quantum que deve, todavia, ser reduzido, evitando desproporção com a obrigação principal e enriquecimento injustificado da parte autora. 2. Fornecedora que não se desincumbiu do ônus de comprovar a contratação ou a efetiva utilização dos serviços. Restituição em dobro dos valores indevidamente cobrados já determinada pelo juízo de origem. Ausência de irresignação da parte ré. 3. Dano moral caracterizado ante o infortúnio imposto mensalmente ao consumidor por longo período de tempo, somado ao descaso da ré frente às reclamações administrativas do cliente e ao descumprimento da determinação judicial de suspensão das cobranças. Patamar indenizatório fixado em R$ 2.000,00 [16].


5. Pedidos

            Pelo exposto, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina requer:

            a) o recebimento e processamento da presente ação civil pública;

            b) a publicação de edital nos termos do art. 94 do Código de Defesa do Consumidor, determinando-se à Rádio Nova FM, de Pinhalzinho [17] e à Rádio Modelo AM [18] que divulguem a propositura desta ação, para possibilitar que os interessados, querendo, através de advogado intervenham no processo como litisconsortes;

            c) a citação da requerida para, querendo, apresentar a defesa que entender pertinente;

            d) a inversão do ônus da prova, por ocasião do ingresso na fase probatória [19], se houver, nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor;

            e) a condenação da requerida a devolver a cada consumidor dos municípios de Saudades, Pinhalzinho, Maravilha, Modelo, Nova Erechim, São Carlos, Cunha Porã, Serra Alta, Sul Brasil e São Miguel da Boa Vista, o dobro dos valores cobrados ilegalmente a título de multa, fixando-se como data inicial o dia 2 de agosto de 1996;

            f) a condenação da requerida ao pagamento quantia não inferior a R$ 100.000,00 (cem mil reais) a título de danos extrapatrimoniais difusos, acrescida de juros legais e correção monetária desde a citação, valor este a ser revertido ao Fundo de Recuperação de Bens Lesados;

            g) a condenação da requerida em custas, despesas processuais e honorários advocatícios (estes conforme art. 4º do Decreto Estadual nº 2.666/04, em favor do Fundo de Recuperação de Bens Lesados do Estado de Santa Catarina).

            Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

            Modelo, 20 de junho de 2007

            Eduardo Sens dos Santos

            Promotor de Justiça – MODELO

            GUILHERME LUIS LUTZ MORELI

            PROMOTOR DE JUSTIÇA – PINHALZINHO


Notas

  1. Santa Catarina é dividida em 36 secretarias regionais de desenvolvimento, conforme informação contida na página www.sc.gov.br.
  2. Ação civil pública em defesa do meio ambiente: a questão da competência jurisdicional. Ação Civil Pública. – Lei nº 7.347/85 – 15 anos – Coordenação: Édis Milaré. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001. p. 73.
  3. Para a estimativa tomou-se o valor inicialmente estimado para três meses (R$ 5.267,86) e dividiu-se pelo número de meses para se ter o valor mensal de R$ 1.755,95. Este último valor foi multiplicado pelo número de anos em que está em vigor o limite de juros de 2% (dez anos), pelo número de meses de cada ano (doze).
  4. ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo : Saraiva, 2003. p. 15.
  5. EFING, Antônio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 216.
  6. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito material. São Paulo : Saraiva, 2000, p. 511.
  7. Idem, p. 511.
  8. Recurso Cível Nº 71001153287, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Maria José Schmitt Santanna, Julgado em 15/05/2007.
  9. Recurso Cível Nº 71001115443, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 12/04/2007.
  10. Apelação Cível Nº 70016040503, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dálvio Leite Dias Teixeira, Julgado em 15/03/2007.
  11. Apelação Cível Nº 70014224935, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mario Rocha Lopes Filho, Julgado em 16/03/2006.
  12. A confiança, ou boa-fé objetiva, é princípio da Política Nacional de Relações de Consumo, conforme prevê o art. 4º, III, in fine, do CDC. Para Luiz Antônio Rizzatto Nunes, "quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se no comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes" (NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo : Saraiva, 2000. p. 108).
  13. Revista de Direito do Consumidor nº 25. Editora Revista dos Tribunais, p. 82.
  14. TRT 8ª R. - RO 5309/2002 - 1ª T. - Rel. Juiz Luis José de Jesus Ribeiro - j. 17.12.2002.
  15. Recurso Cível Nº 71001122886, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 26/04/2007.
  16. Recurso Cível Nº 71001223098, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em 07/03/2007,
  17. Rádio 103,1 de Pinhalzinho Ltda, rua São Luiz, 1787, CEP 89870-000, Pinhalzinho.
  18. Rua do Comércio, centro, Modelo.
  19. Hugo Nigro Mazzilli entende que o momento adequado para a declaração da inversão do ônus da prova é o momento da produção da prova, e não o da sentença, como parte da doutrina tem apregoado, pois é ilógico que somente quando finda a instrução processual tenham as partes conhecimento da forma como devem conduzir a produção. MAZZILLI, Hugo de Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17ª ed. São Paulo : Saraiva, 2004. p. 164.

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SANTOS, Eduardo Sens dos; MORELI, Guilherme Luiz Lutz. Ação exige devolução em dobro de multas a maior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1930, 13 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16867. Acesso em: 18 abr. 2024.