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O procedimento de restauração de autos no processo penal

O procedimento de restauração de autos no processo penal

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A destruição, extravio, inutilização, desaparecimento ou subtração do processo impõe a restauração como matéria de ordem pública e de interesse da Justiça.

Resumo: O estudo tem como objetivo enfrentar a problemática teórica sobre o procedimento de restauração de autos no processo penal, apresentando um passo a passo na condução dos feitos. Desenvolve-se a partir da constatação, na prática diária, do escasso interesse doutrinário que desperta nos meios especializados. Neste propósito, a investigação tenta sintetizar regras e princípios balizadores. Além disso, foi empreendida a tentativa, a cada momento, de colacionar o entendimento mais atual dos tribunais a respeito da matéria.

Palavras-chave: Restauração de autos. Procedimento. Legitimação. Finalidade.

Abstract: The study aims to address the theoretical problem of the restore procedure in case of criminal proceedings, outlining a step by step in the conduct of deeds. It develops from the observation in daily practice, the doctrine which arouses little interest in specialized areas. In this regard, the research attempts to summarize the rules and guiding principles. Moreover, the attempt was undertaken at each moment, collated from the most current understanding of the courts regarding the matter.

Keywords: Restore file. Procedure. Legitimation. Goal.


Sumário: 1- Introdução. 2- Restauração por iniciativa oficial. 3- Restauração total ou parcial. 4- Procedimento. 4.1- Intimação das partes. 4.2- Audiência de restauração. 4.3- Diligências complementares. 4.4- Surgimento dos autos originais. 4.5- Aplicação analógica das disposições do Código de Processo Civil. 5- Finalidade da restauração. 6- Legitimação para propor o incidente de restauração. 7- Reconstituição direta ou indireta da denúncia. 8- Sentença condenatória em execução. 9- Impossibilidade material de restauração. 10- Sentença de restauração. 11- Conclusões. Bibliografia.


1- Introdução

No processo, tanto civil quanto penal, os autos do processo, a documentação dos fatos ocorridos, do que foi produzido e feito ao longo da instrução, constituem um instrumento fundamental para a jurisdição. Tanto é assim que a sua destruição, extravio, inutilização, desaparecimento ou subtração impõe a restauração como matéria de ordem pública e de interesse da Justiça.

A importância do tema guarda uma proporcionalidade direta com a sua excepcionalidade, refletindo-se na escassa bibliografia produzida. Os manuais e tratados sobre processo penal não se detêm sobre a temática (com honrosa exceção para os nossos doutrinadores clássicos), fazendo rápidas referências, a vol d'oiseau, sem a preocupação de descer a pormenores obscuros ou polêmicos sugeridos pela prática forense.

Essa situação combinada com casos práticos carentes de substrato teórico motivou a presente abordagem.


2- Restauração por iniciativa oficial

O procedimento de restauração de autos no processo penal é um incidente processual e pode ocorrer por iniciativa oficial ou a requerimento das partes (Ministério Público/querelante ou réu). O mesmo ocorre no processo civil (Miranda, 1977, p. 156), embora a redação da lei possa suscitar algumas dúvidas (CPC, art. 1.063: "Verificado o desaparecimento dos autos, pode qualquer das partes promover-lhes a restauração") [01].

Os autos do processo [02] têm a natureza de documento público e constituem instrumento para o exercício da jurisdição. Sua restauração, portanto, é matéria de ordem pública e de interesse da Justiça. Daí a legitimidade que tem o juiz para determinar, ex officio, a restauração. Mas o processo de restauração só tem realmente início regular quando as partes são intimadas. É fórmula essencial, cuja inobservância gera nulidade absoluta (cf. tópico 4).


3- Restauração total ou parcial

A restauração pode ser total, nos casos de perda ou destruição completa e definitiva dos autos. E pode ser parcial, quando houver extravio ou destruição de algum elemento material do processo, ou inutilização de algumas peças ou documentos dos autos (Espínola Filho, 2000, p. 427).

Neste caso (perda parcial), não há pressuposto válido para a restauração dos autos, pois os autos não precisam ser reconstituídos, mas apenas alguns dos seus elementos. Desse modo, a restauração é instaurada como incidente nos próprios autos remanescentes, hipótese em que a decisão final que declara a restauração possui a natureza de decisão interlocutória [03], desafiando recurso próprio e não apelação.


4- Procedimento

Extraviados, destruídos (por inundações, fogo ou outra causa), inutilizados, desaparecidos, subtraídos ou escondidos, e não havendo cópia autêntica ou certidão do processo, os autos originais de processo penal serão restaurados no juízo onde tramitou o feito em competência originária [04]. Se estiver em grau de recurso no Tribunal e for extraviado, a restauração dar-se-á na primeira instância. Se se tratar, todavia, de ação originária de competência da segunda instância (Tribunal de Justiça), a restauração far-se-á no respectivo Tribunal (Mirabete, 1994, p. 617).

A rigor, restaurar é consertar, recuperar, repor em bom estado. Pode restaurar-se, por exemplo, um documento estragado pela chuva ou chamuscado pelo fogo. No caso de total destruição ou extravio seria mais apropriado falar em nova produção, isto é, em reprodução. Mas é claro que a lei empregou o vocábulo restauração em sentido amplo, abrangente da renovação (Tornaghi, 1981, pp. 294-295).

Os autos do processo são, em princípio, substituíveis. Quer dizer: a desaparição ou destruição dos autos não é irremediável. Juridicamente, põe-se, como enunciado de ciência, que o processo é, existe, ainda sem autos. Mas note-se bem: restaura-se, não se inova, nem se reforma; instaurou-se, desapareceu, restaura-se. O que desapareceu foram os autos, o corpo do processo e é isso que se restaura (Miranda, 1977, p. 154).

Se existirem autos suplementares (cópia autêntica – CPP, art. 232) ou certidão do processo, um ou outro substituirá os autos originais, prosseguindo o processo. Não existindo nem uma coisa nem outra (autos suplementares ou certidão do processo), o juiz, de ofício ou atendendo a requerimento de qualquer das partes, deverá adotar as seguintes providências preliminares:

I- determinar que o escrivão certifique o estado do processo, segundo a sua lembrança (a chamada "certidão de lembrança"), e reproduza o que houver a respeito em seus protocolos e registros;

II- requisitar cópias do que constar a respeito no Instituto Médico-Legal, no Instituto de Identificação e Estatística ou em estabelecimentos congêneres, repartições públicas, penitenciárias ou cadeias;

III- determinar citação pessoal das partes, ou, se não forem encontradas, por edital, com o prazo de dez dias, para o processo de restauração dos autos.

4.1- Intimação das partes

Uma das providências preliminares de importância fundamental é a "citação" das partes. A ausência de tal medida é causa de nulidade absoluta ab initio, aplicando-se o art. 564, III, "e", do Código de Processo Penal [05]. Embora o Código faça referência à citação das partes, o ideal é falar em intimação, pois se trata de um chamamento para participar de um procedimento incidental e não na formação de uma nova relação processual, visando à condenação de alguém. A intimação por edital é possível unicamente para o réu e para o ofendido, quando este for parte, pois o Ministério Público é sempre localizado pessoalmente (Nucci, 2008, p. 883).

4.2- Audiência de restauração

Na data designada para a audiência de restauração, as partes são ouvidas e podem apresentar certidões, reproduções que tenham sobre o processo, expor o que se recordam do processo e apresentar testemunhas (para provar o teor dos autos desaparecidos). Tudo deve ser reduzido a termo, especificando-se os pontos em que estiverem de acordo.

A contribuição das partes para o procedimento de restauração é fator decisivo, incumbindo-lhes, além da obrigação de apresentar certidões e cópias que possuam, o dever de, sincera e lealmente, controlarem a reconstituição, por memória, dos pontos não documentados, e o de colaborarem, seriamente, nesse trabalho (Espínola Filho, 2000, p. 430).

Onde houver concordância entre as partes, dá-se como incontroverso e certo o fato ou o ato, consignando-se no termo, que passará a compor os autos restaurados. Os documentos apresentados pelo escrivão (como a "certidão de lembrança", por exemplo) e por outras autoridades podem ser contrasteados pelas partes.

Nesta audiência, pode o juiz determinar algumas diligências: reinquirição de testemunhas (caso não tenha sido proferida sentença nos autos originais), exames periciais, prova documental (por meio de cópia autêntica ou de testemunhas que conheçam o teor do documento), inquirição de autoridades, serventuários [06], peritos e outras pessoas que tenham funcionado no processo original etc.

É importante observar que a prova deve ser conduzida para reproduzir os autos perdidos e não para refazer a instrução sob outros enfoques (Nucci, 2008, p. 884). Tal postura é vedada ao juiz e às partes. As testemunhas, por exemplo, não poderão depor como se estivessem tomando parte da audiência na ação principal. Apenas deverão ser inquiridas sobre o que foi dito na audiência de que não se tem notícia (Junior/Andrade Nery, 2003, p. 1.199).

4.3- Diligências complementares

As diligências devem ser realizadas no prazo de vinte dias, salvo motivo de força maior. São de enumerar, como motivos de força maior, os impedimentos materiais, que não permitam obter a realização do ato nos vinte dias, quer porque as buscas dos documentos sejam difíceis e demoradas, quer porque tenha havido embaraços para encontrar as pessoas procuradas, ou para obter a sua ida a juízo (impossibilidades advindas de moléstia, falta de condução etc.), quer porque a ausência, de alguma delas, da sede do juízo, haja tornado necessária a expedição de precatórias (Espínola Filho, 2000, p. 434).

Após esse prazo ou sua dilatação justificada, os autos seguem ao juiz para julgamento. Nesta fase, no prazo de cinco dias, o juiz ainda pode realizar diligências complementares como, por exemplo, requisitar de autoridades ou órgãos públicos, outros esclarecimentos necessários para a restauração. Na verdade, o juiz pode a qualquer momento, no curso do processo, fazer uso dessa prerrogativa, pois insere-se no poder geral de produção de provas.

O prazo para a prolação da sentença é de dez dias (CPP, art. 800, I).

4.4- Surgimento dos autos originais

Se no curso da restauração aparecerem os autos originais, nestes continuará o processo, devendo ser apensos a eles os autos da restauração (CPP, art. 547, §único). E se os autos originais aparecerem após o julgamento da restauração? A sentença que julga restaurados os autos não faz coisa julgada (cf. tópico 10), pois as atribuições conferidas ao juiz, em sede de restauração de autos, têm índole administrativa e não judicial [07]. Assim, a qualquer momento, aparecendo os autos originais, nestes continuará o processo, sendo os autos restaurados apensados (Noronha, 1982, p. 319; Câmara Leal, 1942, p. 398). A explicação é simples: os autos originais são fidedignos, representando todos os atos em sua verdade primitiva, enquanto os restaurados constituem uma reprodução aproximada (e possível) da verdade. E neste ponto, a melhor redação é da lei processual civil quando prescreve (CPC, art. 1.067, §1º):

"Julgada a restauração, seguirá o processo os seus termos.

§1º Aparecendo os autos originais, nestes se prosseguirá sendo-lhes apensados os autos da restauração".

Mirabete (1997, p. 570) entende que "como os autos obtidos com a restauração têm como finalidade a substituição dos originais, deve-se concluir que, mesmo após o julgamento de restauração a preferência para a ultimação do processo recai sobre os autos originais desde que não tenham sido praticados ainda atos processuais nos autos restaurados".

E se os autos originais surgirem parcialmente deteriorados? Neste caso, dentro de particular cautela, o procedimento de restauração prossegue.

4.5- Aplicação analógica das disposições do Código de Processo Civil

As disposições do Código de Processo Civil que regem a ação de restauração dos autos (arts. 1.063 a 1.069) aplicam-se, por analogia, à restauração dos autos no processo penal [08], por força do art. 3º. do CPP: "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito".


5- Finalidade da restauração

Esse procedimento tem como única finalidade a restauração ou recomposição dos autos que substituirão os originais. Nele não é discutido o mérito da causa ou a identificação do culpado pela perda, destruição ou extravio. Mais precisamente, o objetivo da restauração dos autos é recolocar o processo no estado em que se encontrava, o mais próximo possível, antes de terem sido extraviados ou destruídos.

Não se reabrem questões ou disputas; apuram-se as soluções já dadas. É uma restauração dos autos: o procedimento tem essa finalidade; a eventual repetição de atos (depoimentos, perícias, diligências) é meio para conseguir a reposição dos autos, não é o fim do procedimento, como no processo cujos autos foram perdidos. Se, por exemplo, um perito apresentou um laudo nos autos extraviados e, depois, mudou de opinião, o que lhe cabe é repetir a conclusão antiga, e não apresentar a nova. Se uma testemunha, após haver prestado depoimento no processo cujos autos foram extraviados, vem a conhecer fatos novos, o que lhe cumpre é reproduzir apenas o depoimento anterior (Tornaghi, 1982, p. 295).

Ao julgar restaurados os autos, não está o juiz a declarar que foram reconstituídos tais como se achavam no estado em que foram extraviados ou destruídos. A restauração, escreve Câmara Leal (1942, p. 398), por mais completa e perfeita que seja, nunca poderá sobrepujar os originais. Documentos terão sido irreversivelmente perdidos, sem chance de reconstituição. As testemunhas, reinquiridas, não reproduzirão fielmente suas declarações pretéritas, omitindo ou acrescentando novos matizes sugeridos pela imaginação para suprir a falibilidade mnemônica (Altavilla, 1981, pp. 47-48). A nova peritagem poderá se defrontar com situações de fato que, pelo transcurso temporal, já não serão as mesmas da peritagem anterior. Poderá haver controvérsia, que o juiz seja obrigado a dirimir, uma das partes afirmando, por exemplo, que a cópia de determinado documento não é autêntica.

O mérito da causa decidido no procedimento judicial de restauração apenas envolve a declaração de que os autos se encontram restaurados e o prosseguimento do processo fica restabelecido. Nele não cabe discussão sobre qualquer ponto de direito ou de fato da causa principal [09]. Se a parte quiser suscitar questão de fato e de direito que pertençam à causa principal deve aguardar o momento processual adequado que só ocorre após o julgamento da restauração e a retomada do processo em vias de recomposição [10].


6- Legitimação para propor o incidente de restauração

A lei processual penal fala que o processo de restauração dos autos pode ter início, de ofício, através do juiz ou por requerimento de qualquer das partes (CPP, art. 541, §1º.). No processo penal, tecnicamente, parte refere-se a quem pleiteia algo em juízo (autor) e àquele contra quem é deduzida uma relação de direito material-penal (réu). Sem uma delas não se forma a relação processual (Mirabete, 1997, p. 320).

Em outros termos, partes são os sujeitos que reclamam uma decisão judicial a respeito da pretensão discutida no processo, sendo o juiz ("el sujeto del juicio") o órgão encarregado de pronunciar-se a favor de quem tenha razão sobre a demanda de proteção jurídica a si dirigida (Alcala-Zamora y Castillo/Levene, 1945, p. 09). O conceito de parte liga-se intimamente, numa perspectiva mais teórica, com a doutrina da ação.

De um lado, temos a parte acusatória (Ministério Público – nas ações penais públicas – ou o próprio ofendido ou querelante – nas ações penais de iniciativa privada) e de outro, o acusado, que responde a uma imputação.

Portanto, de início temos três legitimados: 1- o juiz (iniciativa oficial); 2- o Ministério Público ou querelante; 3- o acusado.

O assistente de acusação tem legitimidade para propor o incidente de restauração? A lei é omissa a respeito, mas entendemos que nada impede requeira o assistente, desde que previamente habilitado nos autos originais (e comprove essa qualidade), a restauração dos autos. Não podemos esquecer o caráter de ordem pública a envolver a matéria, autorizando, inclusive, a atuação ex officio do juiz.

Além disso, dado o caráter de ordem pública que envolve a matéria, qualquer pessoa que tenha conhecimento de destruição ou perda de autos pode, e o escrivão e seus auxiliares devem, levar o fato ao conhecimento do juiz (Tornaghi, 1981, p. 296).


7- Reconstituição direta ou indireta da denúncia

Se, na restauração dos autos, não for possível a juntada de cópia da denúncia (devidamente protocolizada ou autenticada) deverá ser feita reconstituição indireta, mediante certidão de lembrança do Escrivão, supridas eventuais omissões mediante aditamento. Impossível será a oferta de nova denúncia, contemporânea à restauração, para ser somente então recebida [11].

O Supremo Tribunal Federal admite também a reconstituição direta da denúncia:

"Julgada a restauração, os autos respectivos valerão pelos originais. Não há, por conseguinte, como exigir, para validade da sentença, em autos restaurados na forma da lei, que deles conste o que materialmente não foi possível inserir, porque não foi encontrado. Omissão da denúncia nos autos restaurados; basta que se a reconstitua, direta ou indiretamente, para que inexista nulidade" (RTJ 74/250).

"Sendo materialmente impossível que conste do processo restaurado cópia da denúncia, que não foi encontrada, mas se acha provada por outras peças dos autos, não há que se falar em nulidade. Orientação do STF: RE 79.757 e RTJ 74/250(...)" (STF, HC 72871/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 02.02.1996, p. 852).

A reconstituição direta da denúncia pode ocorrer, por exemplo, quando não detendo a cópia física do documento devidamente protocolizado, o Promotor recorre ao banco digital de dados onde se encontra armazenado arquivo contendo o referido documento com a narrativa dos fatos. Se o acusado não concordar, a questão será dirimida pelo juiz.


8- Sentença condenatória em execução

Durante a restauração dos autos é possível que já exista condenação e o réu esteja preso com base nesse título. Havendo prova da condenação (através da guia de recolhimento ou registros penitenciários), o sentenciado não é posto em liberdade.


9- Impossibilidade material de restauração

Se resultar impossível a restauração dos autos, o efeito jurídico mais consentâneo é a declaração de nulidade do processo original por violação aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. Isso porque o processo existe ainda que os autos não existam (Miranda, 1977, p. 153). Após o trânsito em julgado dessa decisão, é possível oferecer nova denúncia (ou queixa) e destravar a persecução penal, desde que o fato criminoso, pelo transcurso do tempo, não esteja acobertado pela prescrição ou outra causa extintiva da punibilidade (morte do acusado, por exemplo).

Mesmo existindo o processo e mantendo parte de sua eficácia, a despeito da desaparição dos autos, a sua validade é posta em xeque. Isso porque as partes não podem perseguir suas pretensões. E principalmente a defesa fica impossibilitada de conhecer a acusação em toda sua extensão e de usar todos os meios de defesa garantidos constitucionalmente. Fere os mais básicos princípios de justiça manter a ameaça de um processo criminal contra um indivíduo, sem que este tenha condições de contestá-lo ou envidar esforços para demonstrar sua inocência.

"A perda dos autos em 2ª. instância, caso seja impossível uma restauração condigna, acarreta a nulidade do processo por vertical ofensa ao amplo direito de defesa, a evidenciar a trágica inconstitucionalidade por desrespeito ao princípio do devido processo legal, vez que a presença dos dados e provas nele constantes se faz imprescindível para o regular julgamento de uma controvérsia, nos vários campos do direito aplicável seja ele estatal ou não" [12].


10- Sentença de restauração

O procedimento de restauração é posto fim através de sentença. A restauração depende do julgamento; portanto, de sentença que se pronuncie no incidente. Antes disso, por mais complexa que tenha sido a recomposição, nenhuma eficácia tem o que dos autos depende e só após serem restaurados, com o trânsito em julgado da sentença, se pode utilizar deles (Miranda, 1977, p. 157).

Nessa decisão é julgada a restauração dos autos e não o mérito da causa [13]. Não pode o juiz ao encerrar por sentença a restauração julgar simultaneamente o mérito da causa, sob pena de nulidade.

A sentença que julga restaurados os autos não faz coisa julgada material, pois aparecendo "os autos originais, nestes continuará o processo" (CPP, art. 547, §único). E tampouco interrompe a prescrição [14].

Ao final, com o trânsito em julgado da sentença, os autos restaurados valem pelos originais, restabelecendo-se o curso normal do processo, como se o feito não tivesse sido interrompido [15].

Contra a sentença cabe recurso de apelação (CPP, 593, II) e nesta somente será discutida, como é óbvio, a restauração feita, vedada a discussão do mérito da causa.


11- Conclusões

O incidente de restauração dos autos no processo penal apresenta alguns aspectos que merecem especial atenção para evitar nulidades absolutas. Dois desses aspectos merecem destaque: I- a intimação pessoal das partes para a audiência de restauração; II- a vedação de discutir sobre qualquer ponto de direito ou de fato da causa principal.

Ao julgador impõe-se a necessidade de conduzir o feito restaurativo de forma regular e observando os possíveis vícios capazes de gerar nulidade, pois como no curso do incidente não há interrupção da prescrição, boa parte dos acusados aproveita a ocasião para procrastinar a restauração de forma a alcançar essa causa extintiva de punibilidade.

Se ao cabo de todas as diligências restaurativas, resultar impossível a restauração dos autos, a decisão a ser proferida é a de declaração de nulidade do processo original, desde o início, por violação aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.


Bibliografia:

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ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. I. Tradução de Fernando de Miranda. Coimbra:Armênio Amado Editor, Coimbra, 3ª ed., 1981.

CÂMARA LEAL, Antônio Luiz da. Comentários ao Código de Processo Penal. Vol. III. Rio de Janeiro:Freitas Bastos, 1942.

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Vol. 5. Campinas:Bookseller, 2000.

FRANCO, Alberto Silva.; STOCO, Rui (Coords.). Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. 4. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2004.

JUNIOR, Nelson Nery.; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo:Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2003.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo:Atlas, 2ª. ed., 1994.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo:Atlas, 7ª. ed., 1997.

MIRANDA, Pontes de. Comentários ao novo Código de Processo Civil. v. 15. Rio de Janeiro:Forense, 1977.

NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo:Saraiva, 1982.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo:Revista dos Tribunais, 8ª. ed., 3ª. tir., 2008.

ROSA, Borges da. Comentário ao Código de Processo Penal. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1982.

TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. Vol. II. São Paulo:Saraiva, 2ª. ed., 1981.


Notas

  1. "Restauração por iniciativa oficial. Ainda que a lei reconheça legitimidade apenas às partes, nada obsta a iniciativa oficial quando o fato ocorreu por falha do próprio Poder Judiciário. Exegese do art. 1.063 do CPC" (Tribunal de Justiça do RS, 1ª. Câmara Cível, Rel. Des. Irineu Mariani, j. em 22.10.2008, in:http://br.vlex.com/vid/44851093).
  2. Segundo Rosa (1982, p. 612), autos são o conjunto de todas as peças (queixa ou denúncia, inquérito policial, auto de exame pericial, alegações, requerimentos, termos, certidões, documentos, decisões etc.) pertencentes a um processo ou feito, constituindo um ou mais volumes. Para Pontes de Miranda (1977, p. 153), os autos são a concretização gráfica do processo.
  3. TJSP, Agravo de Instrumento, 35ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Clóvis Castelo, j. 30.03.2009, in: http://br.vlex.com/vid/59965945.
  4. TJSP, JTJ 136/409.
  5. TJSC, in DJ, no. 9112, de 14-11-94, pág. 13; TACrimSP, RT 551/347; TJES, 2ª. CCrim., ACR 24010106383 ES, Rel. Sérgio Luiz Teixeira Gama, j. 30/04/2008, publ. 30/05/2008, in: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8298429/apelacao-criminal-acr-24010106383-es-024010106383-tjes;TACRSP, RT 551/347.
  6. Por exemplo, o escrevente que funcionou como auxiliar do juiz na audiência resconstituenda pode ser ouvido para reproduzir seu conteúdo (Junior/Andrade Nery, 2003, p. 1.199).
  7. TRF5, Pleno, Restauração de Autos 24 PE, Rel. Desembargador Federal Francisco Cavalcanti, j. 14/06/2005, publ. 23/06/2005, Diário da Justiça p. 744, n. 119.
  8. TJMG, Rec 1.0672.03.000167-7/001, Rel. Célio César Paduani, DJU 05.05.2004, in: Franco/Stoco, 2004, p. 651.
  9. TA/PR – 3ª C. Cív., Ap. Cív. nº 178116800/Curitiba, j. 16.10.2001, in: http://www.jurisite.com.br/jurisprudencias/civil/restauracao.html.
  10. TJ/RO – C. Cív., Ap. Cív. nº 03.002860-4/Porto Velho, Rel. Des. Sebastião T. Chave, julg. 02.09.2003, in: http://www.jurisite.com.br/jurisprudencias.
  11. RJDTACRIM, 2/144-5.
  12. TACRIM-SP, AP, Rel. Oliveira Ribeiro, RJD 17/146.
  13. "Neste procedimento, a sentença visa, apenas e tão-somente, declarar a restauração dos autos do processo principal, restando inapreciável qualquer questão que versem sobre o direito material" (TJAP, RA 505 AP, Câmara única, Rel. Des. Dôglas Evangelista, j. 30/10/2007, publ. DOE 4139, p. 10, de 29/11/2007).
  14. TJRJ, AP, Rel. Dorestes Baptista, RF 270/298.
  15. TJDF, 1ª Turma Criminal, RA 126413920098070000 DF, Rel. Edson Alfredo Smaniotto, j. 28/01/2010, publ. 11/02/2010, DJ-e Pág. 105.

Autor

  • João Gaspar Rodrigues

    Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. O procedimento de restauração de autos no processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2621, 4 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17335. Acesso em: 20 abr. 2024.