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Liminares que restringem a publicação de notícias.

Por que elas podem constituir censura judicial?

Liminares que restringem a publicação de notícias. Por que elas podem constituir censura judicial?

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A Constituição Federal e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos vedam não só a censura administrativa mas qualquer tipo de censura prévia.

Durante o regime militar, imperou no Brasil a censura administrativa, sendo comum a visita de integrantes da polícia federal às redações de jornais e revistas para determinar o que podia ou não ser publicado. Feita a transição para o regime democrático, a censura foi extinta pelo artigo art. 5°, inc. IX, da Constituição Federal, segundo o qual "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença."

Nada obstante, a concessão de liminares para impedir a publicação de notícias não vem sendo considerada como censura pelo Poder Judiciário brasileiro. Quando proferem estas decisões, os respectivos magistrados, explícita ou implicitamente, consideram que o conceito de censura abarca apenas a restrição prévia à liberdade de informação proveniente do Poder Executivo, distinguindo-a da daquela realizada pelo Poder Judiciário. Também subjaz à concessão destas liminares a idéia de que o dano à honra ou outro direito fundamental será irreparável se a notícia for divulgada, enquanto o dano ao jornal não será irremediável se, posteriormente, a decisão liminar for reformada.

O presente artigo pretende discutir se argumentos neste sentido encontram suporte na Constituição Federal, em Convenções Internacionais de Direitos Humanos ratificadas pelo Brasil ou na doutrina e jurisprudência internacional sobre o tema.

Assim como a Constituição Federal, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) não se refere especificamente à censura administrativa, mas a uma proibição geral a qualquer tipo de censura prévia. De acordo com o artigo 13.2 da CIDH, o exercício da liberdade de expressão "não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas." Por sua vez, o inciso 4 do mesmo dispositivo destaca que "a lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2."

Na opinião consultiva n° OC-5/85, a Corte Interamericana de Direitos Humanos dedicou-se pela primeira vez a interpretar o significado da vedação à censura prévia. Nessa ocasião, a Corte assinalou:

"o artigo 13.2 da Convenção define os meios pelos quais se podem legitimamente estabelecer restrições à liberdade de expressão. Estipula, em primeiro lugar, a proibição da censura prévia, que é sempre incompatível com a plena vigência dos direitos enumerados pelo artigo 13, salvo as exceções contempladas no inciso 4 referentes a espetáculos públicos, inclusive quando supostamente se trata de prevenir por este meio um eventual abuso à liberdade de expressão. Desta maneira, toda medida preventiva significa, inevitavelmente, o menoscabo da liberdade garantida pela convenção." [01]

Posteriormente, ao decidir o caso Olmedo Bustos y outros v. Chile, envolvendo a proibição da exibição do filme "A Ultima Tentação de Cristo" devido a uma medida judicial, a Corte Interamericana reiterou que apenas no caso de espetáculos públicos e com o fim de regular o acesso de crianças e adolescentes é possível a censura prévia. Em todos os outros casos, qualquer medida preventiva de restrição representaria uma ofensa à liberdade de pensamento e expressão. [02]

As decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos seguem no mesmo sentido. No caso Martorell v. Chile, que tratava de uma decisão judicial proibindo a publicação do livro "Impunidade Diplomática", a Comissão Interamericana afirmou que a proibição da censura prévia, com a exceção prevista no inciso 4 do artigo 13, é absoluta. Segundo a Comissão, a Convenção Interamericana, em relação à vedação de censura prévia, vai além da Convenção Europeia de Direitos Humanos e o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, que não contêm disposições similares. [03]

A jurisprudência indica que, para os órgãos do Sistema Interamericano, não há distinção conceitual entre restrição à liberdade de informação oriunda dos poderes executivo e judiciário, ambas podendo constituir censura. Ademais, de acordo com a interpretação conferida por estes órgãos à convenção, em caso de conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais como honra, a ponderação deste conflito de princípios deve ser feita por meio da responsabilização ulterior de eventual abuso cometido pelo jornal, e não através da restrição prévia à circulação da informação.

O direito americano é outro sistema jurídico onde a distinção conceitual entre censura administrativa e judicial é inexistente, pois decisões judiciais que eventualmente barrem a publicação de notícias também são tratadas como censura. Segundo a Suprema Corte, qualquer restrição prévia à publicação de notícias goza de forte presunção de inconstitucionalidade, tendo em vista os direitos garantidos na Primeira Emenda. [04]

Em casos relacionados a informações protegidas por segredo de justiça ou classificadas como sigilosas, a jurisprudência da Corte Americana é no mesmo sentido. Segundo a Corte, se um jornal obtém de maneira legal informação verdadeira sobre um assunto de interesse público, é mais apropriado presumir que o Estado falhou em utilizar meios mais apropriados para guardar a informação sigilosa do que tomar a medida extrema de punir ou impedir a publicação de fatos verdadeiros. [05]Nas palavras de Stone:

"Parece razoável considerar que o servidor público que revela informação sigilosa a um jornalista quebrou a confiança que lhe foi dada pelo Estado e possa ser punido. Ao contrário de funcionários públicos, no entanto, que concordam em ter restrições razoáveis impostas a sua liberdade de expressão ao tomar posse em cargo público, jornalistas e editores não concordaram em abrir mão de qualquer direito. No mais, o fato de o governo ter um interesse legítimo em proibir seus servidores de divulgar certo tipo de informação não significa que o interesse do governo em preservar o caráter sigiloso da informação sobreponha o interesse de que a informação seja publicada para contribuir para o debate público." [06]

Para o direito americano, não se deve confiar no julgamento de um homem para determinar o que as pessoas podem ou não ler. Assim, os tribunais acreditam ser melhor garantir a reparação de danos do que confiar a um juiz singular ou mesmo a um júri a possibilidade de impedir a disseminação de informações verossímeis. [07] De acordo com a Suprema Corte, danos podem ser especialmente grandes quando há restrição prévia sobre a publicação de notícias ou comentários sobre eventos atuais, pois a sincronia entre a prestação de informação e os acontecimentos dos eventos é algo essencial para que a imprensa possa cumprir o seu tradicional papel de prestar informações atuais sobre o Estado. O caráter temporário da restrição, portanto, não reduz o ônus de quem quer proibir a publicação de notícias. [08]

O entendimento da Corte Européia de Direitos Humanos é semelhante. No julgamento do caso Observer and The Guardian v. United Kingdom, a Corte declarou que restrições prévias à publicação de notícias podem impor um grave dano à mídia, que não consegue assim atender ao princípio da atualidade. "Notícias são bens perecíveis e atrasar a sua publicação, mesmo que por um curto período de tempo, pode significar a supressão de todo o seu valor." [09] Nesta mesma decisão, cinco juízes da Corte foram além, declarando que restrições prévias não seriam compatíveis com a Convenção Européia de Direitos Humanos, salvo em casos de emergência declarados na forma do art. 15 da Convenção. Atualmente, a Corte Européia admite restrições judiciais prévias em circunstâncias excepcionais, mas as submete "a mais criteriosa fiscalização" [10].

Finalmente, vale ressaltar as declarações conjuntas de 2004 e de 2006 do Representante para a Liberdade dos Meios de Comunicação da OSCE e dos Relatores Especiais para a Liberdade de Expressão da ONU e OEA. Segundo as declarações, são as autoridades públicas que têm a responsabilidade de proteger a confidencialidade de informação legitimamente classificada com tal. Outros indivíduos, incluindo jornalistas e representantes da sociedade civil, não podem ser sujeitos a punições por publicar ou disseminar esse tipo de informação, a não ser que tenham cometido alguma fraude ou crime para obtê-la. [11]

As liminares ultimamente concedidas pelo Poder Judiciário brasileiro parecem destoar da jurisprudência e doutrina internacional. Lá, prevalece o entendimento de que, se o governo falhou em proteger a disseminação de informação classificada como restrita, mas de interesse público, a imposição de sanções à imprensa por eventual publicação não é proporcional.

No caso brasileiro mais célebre, do Estado de São Paulo, a liminar para a restrição prévia da publicação foi requerida com base nos artigos art. 5°, X e XII, da CF, da disposição do art. 12 do CC, assim como da tipificação penal da violação e divulgação de dados sigilosos oriundos de interceptação telefônica autorizada judicialmente, de acordo com os artigos 8° e 10 da Lei federal 9.296/96, e o art. 153, § 1°-A, do CP. [12]

No que toca à aplicação das leis ordinárias ao caso concreto, não obstante, vale ressaltar que elas não podem sobrepor-se à aplicação da Convenção Interamericana, que, de acordo com o próprio Supremo Federal, possui hierarquia supralegal no ordenamento brasileiro. [13] Neste caso, a aplicação direta de regras clássicas de direito penal, como co-autoria, participação e mesmo receptação, significa o menoscabo do status supralegal conferido à Convenção e o desprezo à hierarquia constitucional concedida à liberdade de expressão e de imprensa.

Quanto à ponderação entre direitos da personalidade e o direito à liberdade de informação, ambos de hierarquia constitucional, torna-se importante analisar como outros sistemas judiciais de tradição democrática têm analisado situações semelhantes. Como visto, a solução encontrada concede ao Estado autoridade para, obedecida a razoabilidade, controlar servidores públicos e evitar vazamentos. Ao mesmo tempo, porém, garante-se à imprensa a possibilidade de publicar estas mesmas informações quando não houve ilegalidade cometida pelo jornal ou seus representantes.

Não se defende aqui que toda e qualquer informação verdadeira é publicável. Em se tratando de informações verdadeiras, a liberdade de imprensa é limitada pela proteção constitucional à intimidade. No entanto, em caso de figuras públicas, mesmo informações que integram a esfera íntima poderão ser divulgadas se estas repercutirem de alguma maneira na atividade pública ou na avaliação pública do caráter e valor pessoal da figura pública afetada pela notícia.

Vale lembrar que juristas e jornalistas, embora sejam ambos treinados para buscar a verdade, fazem isso de forma bastante distinta. Juízes e advogados estão acostumados a procurar a verdade nas salas dos tribunais, onde provas que não obedecem o devido processo legal devem ser descartadas e a apuração da verdade pode levar anos para ser obtida. Para jornalistas, ao invés, o princípio da atualidade da notícia é da maior importância e mesmo a divulgação de informações que seriam descartadas em juízo pode ser fundamental para a garantia de um público bem informado. Uma das maiores razões para a proteção constitucional da liberdade de imprensa, aliás, é justamente a possibilidade de produção de informações atuais sobre o governo e o mundo. Tendo isso em vista, exigir o trânsito em julgado de um processo judicial para que a imprensa possa divulgar informações de interesse público sobre a atividade pública de figuras públicas significa menoscabar a garantia à liberdade de imprensa.

A possibilidade de publicação de notícias e a obediência ao princípio da atualidade torna-se essencial para a preservação do acesso à informação, direito fundamental e de natureza instrumental para a participação do cidadão em assuntos de interesse público, a fiscalização do Estado pelo povo e o monitoramento da corrupção. A importância está na garantia de transparência, integridade e responsabilidade na condução dos assuntos públicos. Em uma sociedade onde os cidadãos têm tempo e recursos limitados para fiscalizar o governo, o papel da imprensa assume caráter fundamental. Ela foi protegida justamente para revelar os segredos do governo, da administração da justiça e informar as pessoas sobre as atividades de todos os Poderes da República.

O mais surpreendente é que, no Brasil, as liminares recentes vêm sendo concedidas para evitar a publicação de matérias que afetam o discurso político, núcleo essencial do direito fundamental à liberdade de expressão, ou para proteger a privacidade de pessoas públicas ou envolvidas diretamente em assuntos de interesse público. Se liminares que restringem a divulgação prévia de informação já gozam de fortíssima presunção de inconstitucionalidade, nestes casos, a demora para o julgamento do recurso interposto contra a decisão, inevitavelmente, representa violação direta aos artigos 5°, IX e LXXVIII, da Constituição da República e ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos


Notas

  1. Corte IDH. "La Colegiación obligatoria de periodistas (Arts. 13 y 29 Convención Americana sobre Derechos Humanos)". Opinión Consultiva OC-5/85 del 13 de noviembre de 1985, Serie A No. 5. Párr. 38.
  2. Corte IDH. Caso de "La Ultima Tentación de Cristo" (Olmedo Bustos y otros v. Chile). Sentencia del 5 de febrero de 2001, Serie C No. 73. Párr. 70.
  3. CIDH. Informe No. 11/96. Caso No. 11.230. Francisco Martorell. Chile. 3 de mayo de 1996. Párr. 56.
  4. US Supreme Court. New York Times Co v. United States; United States v. Washington Post Co. 403 U.S. 713 (1971)
  5. Id. Cf. também. US Supreme Court. The Florida Star v. B.J.F. 491 U.S. 524 (1989)
  6. STONE, Geoffrey R.. Government Secrecy v. Freedom of the Press, 1 Harv. L & Pol´y Rev. 185, 203-204 (2007), p. 5-6. Cf. também: Landmark Communications, Inc. v. Virginia, 435 U.S. 829 (1978) (o governo não pode punir a imprensa por publicar informação sigilosa, ainda que possa proibir os servidores públicos de divulgar essa informação);
  7. CHAFEE JR., Zechariah. Government and Mass Communications. a report on the Commission of Freedom of Press. Chicago: University of Chicago Press, 1947, p. 91-92.
  8. Nebraska Press Association v. Stuart, 427 U.S. 539 (1976) (o governo não pode impedir a imprensa de publicar informação sobre o acusado em um processo criminal, ainda que possa proibir servidores públicos de divulgar esta mesma informação para a imprensa)
  9. CEDH. Observer and The Guardian v. United Kingdom. Application no. 13585/88. Strasburg. 26 November 1991.
  10. "call for the most careful scrutinity". Alinak v. Turkey. Application no. 40287/98. Strasburg. 29 March 2005.
  11. Declarações Conjuntas. Veja em: http://www.cidh.oas.org/relatoria/docListCat.asp?catID=16&lID=2. Acesso em
  12. STF. Informativo n° 571. Brasília, 7 a 11 de dezembro de 2009.
  13. STF. HC n° 87.585-8/TO, Relator(a): Min. Marco Aurélio. Julgamento: 03/12/2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno, DJe-118 Divulgação 25-06-2009, Publicação 26-06-2009. Cf. também: STF. RE 466343/SP, Relator(a): Min. Cezar Peluso. Julgamento: 03/12/2008, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação, DJe-104, Divulgação 04-06-2009, Publicação 04-06-2009.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANKIEVICZ, Alexandre. Liminares que restringem a publicação de notícias. Por que elas podem constituir censura judicial?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2626, 9 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17369. Acesso em: 26 abr. 2024.