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A perícia criminal, o luminol e o ordenamento jurídico

A perícia criminal, o luminol e o ordenamento jurídico

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Nos últimos meses, alguns dos jornais e programas de televisão brasileiros exploraram à saciedade crimes que chocaram a população brasileira pelos requintes de crueldade com que foram praticados e pelas personagens envolvidas. Policiais, Promotores de Justiça, psicólogos e até psiquiatras discutiram por vários dias sobre os detalhes das investigações, os depoimentos das testemunhas, as conseqüências judiciais. Todavia, o ponto alto de todas as discussões foi a descoberta pela imprensa do luminol. Digo pela imprensa, porque o tema foi apresentado ao grande público como se se tratasse da última descoberta da ciência criminal quando, na verdade, esta substância há décadas é conhecida e utilizada pela polícia científica.

O luminol foi apresentado à população como a materialização de um produto de ficção científica extraído de seriados americanos do tipo CSI, capaz de desvendar os mais obscuros crimes. O luminol, na realidade, é uma substância química que, quando em contato com o sangue humano, reage com o ferro presente na hemoglobina e produz uma reação química de luminosidade azul-fluorescente. Desde há muito, as polícias científicas e os peritos de todo o mundo, utilizam o luminol quando pretendem verificar a existência de sangue em ambientes, roupas, armas, facas, cujos vestígios eventualmente os criminosos tentaram apagar. Mesmo quando o delinqüente lava o local do crime como o objetivo deliberado de ocultar sinais comprometedores de sangue da vítima, de despistar os investigadores, é possível detectar durante arealização de exame pericial, a presença de sangue, uma vez que a luz produzida brilha o suficiente para ser vista em um ambiente escuro.

A polícia da modernidade não prescinde de meios de investigação cada mais sofisticados e avançados, que permitem ao Estado obter sucesso em uma persecução penal pautada por comportamento investigativo garantista e comprometido com o Estado de Direito e a verdade real, de modo apropiciar à população a defesa do direito fundamental a segurança. Entretanto, o ordenamento jurídico, naturalmente conservador e pesado, quase nunca acompanha a rapidez da modernidade, seguindo na esteira das mudanças cada vez mais velozes. Este retardo legislativo exige, então, do aplicador do direito, verdadeiros malabarismos interpretativos que autorizem e legitimem a atuação dos orgãos da persecução penal, sobretudo em sua primeira fase, na esfera investigativa.

Recentemente, me vi às voltas com situação bastante peculiar que diz diretamente com o assunto que estamos a tratar: o emprego do luminol. Não foi a primeira, e certamente não será a última vez que a eficiente Polícia do Distrito Federal fez uso do agora popular reagente químico em uma das inúmeras investigações de homicídio que são desenvolvidas no DF. Em diversas outras ocasiões, quase sempre com absoluto sucesso, o teste foi positivo para a presença de sangue humano, mas sempre em exames periciais em locais de crime internos, no interior de residências ou de automóveis, onde a luminosidade do ambiente era controlada. Até que, certa feita, em uma destas investigações, a notícia obtida pelos investigadores apontou para um homicídio cuja execução teria ocorrido no quintal de uma residência, em área externa, de onde o corpo fora posteriormente removido e ocultado em zona de cerrado. O exame de local, mesmo decorridos vários dias da prática do delito, se fazia imprescindível para revelar a participação do proprietário do imóvel no crime de sangue.

Eis que surge então o obstáculo: como utilizar o luminol em uma área externa? Simples, disseram alguns, basta que a perícia seja realizada quando já se fizer noite. Esqueceram-se que a Constituição da República, no artigo 5º, inciso X, prevê categoricamente que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".

Uma vez estabelecido o conflito de interesses constitucionais, diante da necessidade de se coletar elementos de prova que no futuro, uma vez instaurado o devido processo penal, não viessem a ser acoimados de prova ilícita, de modo a colocar em risco todo o trabalho policial, não faltaram sugestões as mais variadas para obviar o impasse. A obtenção de mandado judicial para a realização da perícia, diante dos elementos até então coligidos, era certa, mas também nos limites da Constituição, vale lembrar, autorizando a entrada durante o dia, inviabilizando a realização da perícia específica pretendida. A área a ser coberta era considerável, o que desaconselhava a simples coleta de amostras de terra para perícia em laboratório. Também se mostrou inviável a idéia mais desesperada de se montar tendas escurecidas em todo o terreno, de forma a se obter a baixíssima luminosidade necessária à realização do exame.

O inusitado da situação desafiava a imaginação de todos e deixava alguns tentados a relativizar a garantia constitucional sob o argumento de que mesmo o legislador constituinte, na tipificação generalizante e abstrata da espécie, não pretendeu atingir caso tão excepcional, de forma que seria, sim, possível, a obtenção de mandado judicial autorizando a realização de perícia à noite. Outros, mais comedidos, garantistas a la Ferrajoli, se opunham virulentamente a esta possibilidade, encastelados no argumento de que se tratava de uma garantia absoluta do cidadão, com a qual não seria possível transigir, e, portanto, o Estado deveria ceder.

Se é verdade que em tema de direitos fundamentais o Estado não deve intervir desmesuradamente nos direitos dos cidadãos (proibição do excesso), não menos verdadeiro é que o Estado também não pode deixar de agir quando a natureza da agressão e o direito violado o exijam (proibição de proteção insuficiente), como ensina, dentre outros, Luciano Feldens.

A perícia foi realizada. Uma vez obtido o mandado judicial, os policiais ocuparam o imóvel antes das 18 horas, ainda durante o dia, e a perícia se prolongou até o anoitecer, quando foi possível o emprego bem sucedido do luminol. Como cediço, doutrina e jurisprudência admitem que a diligência estenda-se pela noite, desde que iniciada ainda durante o dia.

Certamente que muitos devem estar se questionando a respeito da legalidade do expediente empregado, argumentando como subterfúgio reprovável a saída pragmática que permitiu a obtenção, por via transversa, de resultado vedado pelo ordenamento. A criatividade do operador do direito no manejo de interpretações legitimamente admissíveis pelo ordenamento constitucional, mais do que nunca de matriz principiológica, não me parece vedada pelo sistema, principalmente quando lastreada por imprescindível juízo de proporcionalidade.

A imprensa, neste caso, não lançou seus holofotes sobre a investigação, já que o morto era mais um dos milhares de anônimos que têm seu passamento violento nesta guerra civil silenciosa que é travada diuturnamente em nossas capitais, órfãs de um Estado crescentemente neoliberal e omisso na implementação de políticas públicas. Mas certamente algum jornalista teria se interessado pela notícia caso constatasse essa "quase primeira derrota do luminol". Mas fica posta a discussão para enfrentamento dos que se disponham a sobre ela se debruçar: relativização, mutação constitucional, impedimento absoluto?



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHEGURY, Douglas Roberto Ribeiro de Magalhães. A perícia criminal, o luminol e o ordenamento jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2688, 10 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17800. Acesso em: 24 abr. 2024.