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Considerações preliminares sobre o direito islâmico ("Shariah").

Visões acadêmicas, históricas, culturais e suas influências na sociedade internacional

Considerações preliminares sobre o direito islâmico ("Shariah"). Visões acadêmicas, históricas, culturais e suas influências na sociedade internacional

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1.INTRODUÇÃO GERAL

Atualmente, verificam-se diversos desequilíbrios na Sociedade Internacional. No alvorecer do século XXI, convive-se freqüentemente com ações perpetradas por organizações terroristas organizadas em âmbito global, as quais ameaçam a segurança de diversos Estados, e conseqüentemente de seus bens e cidadãos. Grande parte dos estudiosos internacionalistas afirmam que as nações de nosso planeta se encontram agrupadas em organizações intergovernamentais, e que o Direito Internacional Público se desenvolveu de tal forma, principalmente com a ampliação e intensificação das relações internacionais realizadas em tais organizações (tais como a ONU, OEA, etc.), que não vislumbramos mais a grande e derradeira ameaça de um conflito com proporções globais, tal como ocorreu ao longo do século XX com as Grandes Guerras e com a denominada Guerra Fria entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), cujo derradeiro término teve por conseqüência o retorno do multilateralismo nas relações internacionais. Entretanto, máxime se afirmem tais expectativas, crê-se que, com a massiva ampliação do número de organizações terroristas e criminosas em âmbito global, um perigo maior espreita a humanidade, tão potencialmente prejudicial quanto os grandes medos do precedente século.

A maioria das atuais organizações terroristas em funcionamento possui cunhos político-religiosos, e grande parte provêm de países do Médio Oriente, ou que adotem como religião oficial o Islamismo (v.g. Indonésia, na atualidade). Preliminarmente, cabe ressaltar que existem grandes divergências entre os conceitos de Estados Árabes, Estados Muçulmanos e Estados Islâmicos, as quais serão devidamente tratadas mais adiante nesta obra.

Mantendo a linha de raciocínio anterior, devido a grande parte das organizações criminosas terroristas possuírem ligações com o Islamismo, muitos são os que levianamente interligam a religião islâmica (também denominada muçulmana) com as ações realizadas por tais grupos, determinando diversas prenoções acerca dos adeptos do Islamismo. Porém, na maioria dos casos infelizmente não podemos denominar aqueles de ignorantes preconceituosos, visto que tais grupos armados abertamente denominam-se islâmicos e muitos possuem fortes ligações, notoriamente comprovadas, com diversos governos localizados no Oriente Médio e em outras nações muçulmanas.

Logo após tal constatação surge a dúvida se é devida a consideração de que os Estados que adotam esse modelo cultural e teológico possam ser considerados zonas de risco para todo o restante da humanidade. A título de exemplificação sobre esta assertiva, o governo dos Estados Unidos da América (EUA), no início do corrente século, expediu uma lista de Estados cujos governos e grupos dominantes do poder foram considerados potencialmente prejudiciais para toda a Sociedade Internacional. Popularmente denominada como lista do "Eixo do Mal", diversos dos países constantes localizam-se no Oriente Médio e possuem como religião oficial o Islamismo. Muitos foram aqueles que concordaram com a conclusão tirada pelo governo desse Estado ocidental; vários foram os países que reduziram seu relacionamento com aqueles que integravam tal lista, e até os dias atuais Estados como o Irã mantêm sérias divergências com o restante da Sociedade Internacional devido às suas intransigentes atitudes, constantemente demonstradas nas Conferências realizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O presente estudo possui como temática algo extremamente questionado em toda a Sociedade Internacional, mas raramente discutido, notadamente na cátedra brasileira. Corrente se torna a crítica realizada aos Estados que adotam a religião islâmica, e esta se amplia mais quando são postos em discussão os países que adotam o sistema islâmico de organização jurisdicional e solução de conflitos (denominado no ocidente de Direito Islâmico). Muitos são aqueles que, através de inflamados discursos, promovem a depreciação de tal sistema judiciário, sob o simplório argumento de que enseja a anulação absoluta dos Direitos Fundamentais (cuja terminologia, a fim de adequar melhor o presente trabalho acadêmico à realidade do Direito Internacional Público, será a de Direitos Humanos). Reflexões acadêmicas acerca de tal tema, quando são encontradas, remetem-se comumente a autores dotados de uma dantesca parcialidade, ora pendendo para a direção completamente favorável ao referido modelo, ora para uma opinião absolutamente destrutiva e denegatória do Direito Islâmico. Infelizmente, estudos tendenciosos não prosperam em uma comunidade democrática de idéias.

Portanto, serão realizadas reflexões críticas acerca do sistema de proteção regional dos Direitos Humanos em Estados que adotem o modelo judiciário Islâmico, personificado pela Shariah (cuja definição veremos adiante). O principal objetivo do presente estudo é o de analisar, de forma crítica e na visão de formação ocidental que o autor possui, os mecanismos existentes no Direito Islâmico que resguardam as garantias fundamentais do indivíduo e da coletividade, certamente existentes em suas legislações religiosas, mesmo que de forma embrionária. Tenciona-se, com a conclusão do referido trabalho, demonstrar ao leitor a posição de tais Estados frente ao comportamento da Sociedade Internacional no tocante as ações estatais pautadas de acordo com os Direitos Fundamentais do Indivíduo, e que mesmo em suas realidades culturais deve ser observado o ordenamento internacional garantidor dos Direitos Humanos, representado pelas resoluções expedidas nas organizações intergovernamentais das quais esses Estados são membros, muito embora a Sociedade Internacional se caracterize por sua descentralização e ausência de autoridade suprema e permanente que esteja disposta a coagir os Estados Nacionais a pautar pela observância de suas normas, tal como expõe logo no início de sua consagrada obra acadêmica o eminente advogado e ex-ministro da Corte Internacional de Justiça (CIJ), Francisco Rezek:

"No plano internacional não existe autoridade superior nem milícia permanente. Os Estados se organizam horizontamente, e dispõem-se a proceder de acordo com normas jurídicas na exata medida em que estas tenham constituído objeto de seu consentimento". [01]

Devido à reduzida quantidade de estudos que cercam a presente temática, a presente obra se pautará em seu primeiro tomo pelo estudo de monografias colhidas em sítios virtuais ligados a instituições acadêmicas, aos tratados instituídos no âmbito de organizações internacionais relacionadas (como as resoluções expedidas pela Liga dos Estados Árabes), e em demais documentos extra-oficiais e históricos pesquisados em instituições que apregoam o Direito Islâmico e de propagação da pesquisa acadêmica, a fim de expor, de forma preliminar, uma visão geral acerca do Direito Islâmico e suas influências nos países que o adotam frente aos demais na Sociedade Internacional. Nesse primeiro tomo, a obra se concentrará no estudo histórico, político e cultural da Shariah, explicitará fundamentais noções do Direito Islâmico (como supracitada Shariah, Islam, Sunnah, dentre outros), exporá as fontes do sistema jurisdicional muçulmano e introduzirá o leitor na temática de forma imparcial e crítica, visto que poucas são atualmente as fontes de pesquisa e estudo confiáveis acerca da matéria em comento.

Em capítulos subseqüentes, aprofundar-se-á na temática apresentada, entretanto com norte voltado para o contexto do relacionamento internacional entre os Estados Islâmicos e entre estes e o restante da Sociedade Internacional. Para tanto, analisaremos os tratados constitutivos e as disposições relativas ás organizações intergovernamentais em que os referidos países se agregam (notadamente a Liga dos Estados Árabes), e utilizaremos o ordenamento jurídico-constitucional interno de alguns Estados que adotam o sistema jurisdicional islâmico como exemplo para a análise supracitada, sempre tencionando demonstrar que tais países podem ser inseridos de forma pacífica e sem quaisquer conflitos na Sociedade Internacional, desde que se observe o Princípio da Alteridade, tão necessário para a boa convivência entre Estados, e ao mesmo tempo tão escasso na realidade global.

Também não será olvidado o aspecto cultural interno de cada Estado, e a realidade dos que emigram de tais nações para se fixarem no ocidente. Nesse passo, uma profunda análise da realidade brasileira referente à imigração árabe será fundamental para que possamos traçar uma linha argumentativa de que o maior inimigo da humanidade não são os Estados Islâmicos e as Organizações Terroristas de cunho religioso-muçulmano, mas sim a falta de alteridade e tolerância dos demais Estados que compõem a Sociedade Internacional de aceitar a realidade político-cultural de cada um de seus membros.


2.NOTÍCIA HISTÓRICA, ANÁLISE CULTURAL E METODOLOGIA DO DIREITO ISLÂMICO NOS ESTADOS ADEPTOS

Antes da apresentação de uma notícia histórica do Islamismo e de seu sistema jurídico específico, necessário se constitui a introdução a determinadas terminologias, utilizadas com freqüência pelos leigos, entretanto que dificilmente correspondem à realidade vista sob um olhar técnico. Para que se possa desenvolver um estudo sério acerca da temática do Direito Islâmico, torna-se um imperativo o esclarecimento ao leitor que ainda não possui embasamento teórico e social acerca da cultura islâmica, mesmo porque a reduzida quantidade de publicações e a restrita bibliografia a respeito da matéria tornam mesmo o autor desta obra um ávido pesquisador, porém jamais conhecedor da verdadeira face muçulmana. Somente aquele que possui profundos vínculos religiosos e culturais com o Islamismo pode vislumbrar de forma completa seus preceitos, amplamente baseados no empirismo e personificados pela constante prática no cotidiano. Ou seja, apenas um islâmico pode conhecer sua própria cultura.

Eis um crasso erro terminológico: a confusão existente entre os termos Muçulmano, Islâmico e Árabe. Na realidade fática, encontramos diferentes meios midiáticos utilizando indiscriminadamente esses três termos. Eis suas principais diferenças, apresentadas esquematicamente a seguir. Recorde-se sempre que os conceitos supracitados caracterizam-se como um reflexo metodológico ocidental acerca da cultura islâmica. Ou seja, entre os povos que professam o islamismo como sua religião majoritária, não existem diferenciações: todos são adeptos, fiéis, devotos (a única divergência existente ocorre entre os grupos sectários Xiita e Sunita, pelo que se verificam adiante nesta obra tais diferenciações). Constitui-se, pois, como necessidade científica a divergência terminológica apresentada abaixo, dentro da óptica ocidental da matéria em comento. Enfim, passemos às divergências conceituais:

- Islâmico: todo aquele que professa a religião fundada por Muhamad Ibn Abdullah (conhecido no ocidente pelo nome Maomé), qual seja, o Islamismo. Em todo o globo terrestre, independentemente da nacionalidade do indivíduo e de seus vínculos culturais com o Oriente Médio, caso seja adepto da religião Islâmica, será considerado Islâmico e estará inserido dentro deste âmbito religioso. Pode-se citar como exemplo a comunidade islâmica brasileira, a qual mesmo separada do Oriente Médio pelo Oceano Atlântico, não deixa de pertencer à esfera cultural do islamismo.

- Muçulmano: embora determinados especialistas em Geografia Política não vislumbrem divergências entre os termos Islâmico e Muçulmano, a posição adotada pelo autor desta obra baseia-se no aspecto dogmático da religião islâmica: literalmente, Muçulmano significa "submisso à vontade de Deus". [02] A uma primeira vista, os termos se equivalem; entretanto, verifica-se na realidade prática que o Muçulmano encontra-se muito mais ligado aos dogmas do Islamismo, pela própria significação do termo em comento. Logo, consideraremos para todos os efeitos Muçulmano como um grupo comunitário que segue fervorosamente sua fé islâmica e, conseqüentemente, aplica o Direito Islâmico em regime de supremacia às demais formas de Direito Material (Ex.: Estados Muçulmanos do Oriente Médio; Estados Muçulmanos Asiáticos, como a Indonésia). Normalmente, a figura do Muçulmano é vista com os olhos da prenoção, pois se acredita que Estados Muçulmanos (como a Arábia Saudita, por exemplo) não sejam capazes de adotar de forma completa e de acordo com os ditames da segurança jurídica normas relativas aos Direitos Humanos no âmbito interno de seus territórios (ou seja, estruturar um Sistema de Proteção Regional dos Direitos Humanos). Lembre-se sempre que, dentro do mundo islâmico, existem divergências ideológicas poderosas entre a vertente Xiita e Sunita (básica e superficialmente, Xiita é aquele que acredita na unicidade do Corão como oráculo sagrado do Islamismo, enquanto Sunita é aquele que também acredita em um conjunto de livros religiosos denominados Sunnah, caracterizando-se como uma vertente moderada do Islamismo clássico). Adiante, aprofundaremos na temática da análise de tais vertentes.

- Árabe: trata-se de termo mais ligado a critérios de ordem geográfica, pois Estados localizados na região geográfica do Oriente Médio, mais especificamente na Península Arábica, são chamados de árabes. Culturalmente também se encontram explicações para o termo, como etnia diversa da caucasiana (de origem européia), africana (originária a partir da África Central) e Asiática. E, curiosamente, no âmbito religioso também se encontram definições, visto que na mitologia proveniente da Bíblia cristã afirma-se que os povos árabes provieram do bastardo filho de Abraão, chamado Ismael, que fora expulso da casa do patriarca judaico-cristão por influência de sua esposa legítima, Sarah [03]. Entretanto, tal conceito não permanece absoluto, pois podemos verificar que nem todo Estado Árabe é muçulmano (ex.: Israel).

Feitas as devidas considerações de ordem terminológica, discorre-se a partir deste momento acerca da história do Islamismo, como forma de introduzir o leitor na realidade cultural dos povos muçulmanos, a fim de que se compreenda a essencial importância histórica do Direito Islâmico e seus reflexos nas relações internacionais dos Estados que o considera hierarquicamente superior em relação ao Direito Material Laico. Ressalte-se que ao final deste capítulo serão realizados maiores comentários acerca da metodologia do Direito Islâmico.

De acordo com a História Clássica, o Islamismo teve sua origem entre os séculos VI e VII da Era Cristã, no decorrer da denominada Alta Idade Média (Séculos V a IX após o nascimento de Jesus Cristo). Geograficamente, iniciou-se a partir da Península Arábica.

Constitui-se notório o conhecimento de que, dentro da realidade Européia, a Alta Idade Média foi fortemente marcada pela descentralização política a partir da criação de feudos; e pelo sistema sociológico estamental, caracterizado pela existência de três classes sociais envolvidas em uma estrutura estática (não ocorriam evoluções no decorrer da vida dos integrantes de cada estamento): a Nobreza Feudal, possuidora do poderio bélico no período; o Clero, corpo eclesiástico cristão; e a Plebe (ou Camponeses, dentro da realidade marcada pelo ruralismo da época). Durante este período, ocorreram ciclos de evolução, entretanto o massivo retrocesso tecnológico verificado após a queda do Império Romano Ocidental foi um fato inegável.

Na região da Península Arábica, as mudanças sociais, culturais e tecnológicas ocorridas no continente europeu não exerceram grande influência, pois os povos semitas não acompanharam de forma incisiva a evolução e queda da civilização romana, visto que sempre se constituíram como províncias relativamente lucrativas, porém sem disposição política para abraçar a cultura romana. Ou seja, as nações árabes mantiveram seu caráter cultural seminômade desde a Antiguidade. Poucos eram os grandes centros urbanos, porém neste período histórico existiam em quantidade maior do que no continente europeu (o qual sofreu grande descentralização e dispersão populacional na Alta Idade Média).

Nesta época, a cidade de Makkah (no Ocidente, denominada "Meca") era considerada uma das maiores aglomerações urbanas da Península Arábica. Ponto de encontro das nações árabes integradas (ressalte-se o uso de tal palavra, visto que a nação árabe não era unificada neste período). A estrutura principal desta cidade era um curioso cubo feito de pedra, com consideráveis dimensões, denominado Kaabah (ocidentalmente conhecida como "Caaba"). Tal monumento possui importância fundamental para a criação e difusão do Islamismo, e podemos considerá-lo essencial para nossos estudos sobre a História do Direito Internacional Público, mesmo porque tal estrutura personificava a manutenção de um tratado firmado neste período histórico.

A Kaabah abrigava 360 ídolos religiosos em seu interior, representando cada uma das 360 tribos árabes existentes na península. A tribo de maior importância na cidade de Makkah era a tribo Quraish, a qual era integrada pelos mercadores e indivíduos influentes da região. Ao abrigar 360 ídolos em seu interior, a Kaabah era um peculiar exemplo de monumento personificador da manutenção de um tratado de cunho comercial e religioso entre as 360 tribos árabes e a tribo Quraish, no qual estas possuiriam o direito de abrigar seus respectivos ídolos religiosos neste importante local de peregrinação cultual (o qual reza a mitologia semita ter sido construído pelas mãos do patriarca Abraão), ao passo que garantiriam a proteção militar das caravanas de mercadores da tribo Quraish, a fim de que pudesse ser viabilizado o comércio na Península Arábica. Tratado este internacional, na mais correta acepção da palavra (firmado entre diferentes nações), e multilateral em sua essência (por congregar a vontade de mais de 300 nações existentes na Península Árabe). Demonstra-se, de forma flagrante, o desenvolvimento comercial, o intercâmbio cultural e a aplicação de elementares noções do Direito Internacional Público entre os antigos povos árabes, em contrapartida aos europeus, que durante a Idade Média aprofundaram-se em um período de descentralização, desconfiança e incredulidade política e jurídica, principalmente em suas relações internacionais.

Neste ínterim, as palavras pronunciadas pelo profeta Muhamad em reunião com seus discípulos provocariam grande reviravolta política e religiosa entre as tribos árabes, invocando um espírito expansionista nunca antes vislumbrado entre os povos semitas, comparáveis apenas com a expansão do Cristianismo no cenário mundial. Isso seria extremamente incentivado pelo desenvolvimento tecnológico dos povos árabes, o qual, muito embora fosse inferior em relação ao da antiga civilização romana, certamente se constituía como superior frente ao baixo desenvolvimento oferecido pela dominação bárbara na Idade Média européia. Expansionismo religioso, cultural e militar, diga-se de passagem, visto que a doutrina teológica fundada por Muhamad convocava seus adeptos à tão conhecida (e polêmica, atualmente) "Guerra Santa", interpretada por alguns estudiosos como mera figura de linguagem, enquanto que pela esmagadora maioria dos Xeques compreendida de forma literal e autêntica.

Cremos que, para a evolução do presente ensaio, a fundamentação filosófica adentraria em terrenos pantanosos e obscuros do estudo das sociedades antigas, nos quais certamente nos destoaríamos da realidade temática fornecida a tal pesquisa. Trata-se de um estudo crítico a respeito do Direito Islâmico e de suas repercussões no Direito Internacional Público e nas Relações Internacionais dos Estados Muçulmanos. Logo, não iremos realizar comparações extensas acerca do desenvolvimento científico, tecnológico e cultural da civilização européia ocidental e da que se localizava na península arábica. Limitar-nos-emos a ressaltar o fato de que os estudos científico-filosóficos desenvolvidos entre os povos árabes, notadamente após sua unificação em prol do Islamismo, foram muito focados na práxis científica, na lógica e matemática; enquanto que os estudos filosóficos europeus desenvolvidos na Idade Média, fortemente influenciados pela Igreja Católica Apostólica Romana, foram baseados nas relações humanas, teologia e aprofundamento das produções de filósofos da Antiguidade, os quais ainda mantinham vivas suas chamas intelectuais pelo tranqüilo e paciente trabalho dos denominados "Monges Copistas". Seus maiores ícones, conhecidos de todos os estudiosos que cultivam a filosofia e pesquisam sua vertente medieval, são os consagrados Agostinho e Tomás de Aquino, os quais foram canonizados pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Verifica-se que, no ano 570 da Era Cristã, nasceu Muhamad Ibn Abdullah Ibn Abdul Mutalib Ibn Hashem, mais conhecido no ocidente como o profeta Maomé. Sua família pertencia à tribo dominante na cidade de Makkah, logo possuía determinada influência econômica na época. A partir de seus 40 anos de idade, Muhamad recebeu suas profecias e visões, e durante 23 anos dedicou-se à propagação de sua nova religião.

O Islamismo, desde o mais primitivo período de divulgação, possuía fortes tendências políticas como movimento religioso. Proclamava a unificação dos povos em torno da religião muçulmana, apregoava os conceitos da Jihad (Guerra Santa), a fim de derrotar a heresia e incredulidade e comumente aclamava líderes religiosos como chefes da comunidade islâmica local, exercendo papéis políticos naquele determinado grupo social. Portanto, devido a pressões políticas na cidade de Makkah, Muhamad deslocou-se para a cidade de Madina, iniciando o processo histórico conhecido como Hégira, ponto de partida do calendário islâmico utilizado até os dias atuais. Uma vez nesta, fundou uma Cidade-Estado islâmica, produzindo inclusive uma Constituição Escrita, preservada até a atualidade.

Deveras, tal documento legislativo trata-se de grande inovação jurídica, visto que o primeiro documento hodiernamente considerado como precursor do fenômeno do Constitucionalismo Ocidental foi a Magna Charta, em 1215, na Grã-Bretanha. Verifica-se, pois, que se torna necessária uma revisão histórica no estudo do Constitucionalismo Global a fim de que a Constituição da Cidade-Estado de Madina seja também estudada e analisada pelos constitucionalistas contemporâneos, como importante fonte histórica deste fenômeno. Enfim, explanaremos com maior ênfase a importância desta Carta Política no capítulo referente ao estudo científico dos fundamentos da Shariah.

Durante o restante de sua vida, o líder religioso Muhamad coordenou a divulgação e expansão da doutrina islâmica por toda Península Arábica. Após sua morte, o comando político do Islamismo ficou nas mãos dos denominados no Ocidente de Califas, os quais mantiveram o forte caráter expansionista da religião muçulmana. Os Mouros, com isso, evoluíram como povo e cultura até o continente europeu, tomando durante algumas centenas de anos todo o território em que se constituem atualmente os Estados de Portugal e Espanha. Entretanto, devido às guerras de Reconquista do antigo Condado Portucalense, e dos Reinos Espanhóis (vultoso evento histórico, notadamente para o estudo da História Lusitana), os Mouros (como eram denominados os povos árabes e muçulmanos convertidos) recuaram para o norte da África, onde se mantêm até os dias de hoje.

Enfim, em poucas linhas, a história do Islamismo é cercada por guerras, expansionismo, fé inabalável e uma intransigência incompreendida pela civilização ocidental. Não nos cabe, neste trabalho acadêmico, considerações teológicas, filosóficas ou antropológicas acerca da cultura islâmica. Ater-nos-emos apenas à juridicidade dos sistemas de regramento social deste povo. O leitor, pois, deverá retirar suas próprias conclusões sobre o tratamento dispensado aos povos Islâmicos no cenário internacional, frente aos fatos expostos na presente obra. Passemos neste momento a um estudo crítico de fundamentais pontos da Shariah.


3.FUNDAMENTOS DA SHARIAH

Neste capítulo, serão analisados de forma crítica e sistemática os fundamentos do Direito Islâmico Puro, personificado no diploma da Shariah, e nas diversas escolas doutrinárias instituídas ao longo dos anos no Médio Oriente. Como referida temática se constitui como amplamente complexa e carregada de elementos axiológicos, discorrer-se-á apenas o necessário para o enfoque oferecido ao presente trabalho acadêmico, ainda que peque por sua superficialidade. Para tanto, vamos apresentar alguns documentos legislativos redigidos ao longo da História Cultural Islâmica, a partir do significativo fenômeno da Hégira (Século VII da Era Cristã), quais sejam, o "Alcorão Sagrado", compêndio teológico da religião islâmica; a Constituição de Medina, como documento histórico e político que se constitui como fundamento para a análise do Islamismo como movimento político-religioso; e o Conceito de Islam, como introdução do leitor à realidade cultural dos Estados Muçulmanos, para que se possa compreender o motivo pelo qual os mesmos regem-se com dúplice sistema normativo (Sistema Jurídico-Teológico).

Inicialmente, podemos apontar o próprio Livro Sagrado da religião muçulmana, o Corão (ou Alcorão, como versão moura das referidas escrituras). Ao contrário dos demais livros teológicos dos principais troncos religiosos no mundo (Cristianismo, Judaísmo, Hinduísmo), o Corão não apresenta contos mitológicos ou reflexões históricas sobre as origens e desenvolvimento de uma civilização sob o ponto de vista místico. De forma pragmática, trata-se de um livro de regras e costumes sociais e religiosos, que devem ser estritamente observados a fim de agradar a divindade cultuada. Constitui-se, pois, como um código de regramento social e teológico, e não um compêndio histórico-cultural, em que reflexamente existem prescrições normativas e éticas, como na Bíblia Cristã, por exemplo. Para tanto, podemos citar determinadas passagens do Corão, denominados de Versos, constantes em "Suratas" (capítulos ou divisões metodológicas):

"Oh fiéis, sede firmes em observardes a Justiça, atuando de testemunhas, por amor a Deus, ainda que o testemunho seja contra vós mesmos, contra vossos pais ou contra vossos parentes, seja o acusado rico ou pobre, porque a Deus incumbe protegê-los. Portanto, não sigais os vossos caprichos, para não serdes injustos, e se falseardes o vosso testemunho ou vos recusardes a prestá-lo, sabei que Deus está bem inteirado de tudo quanto fazeis". (Capítulo 4, Verso 35).

"Deus designou a Kaabah como Casa Sagrada, como local seguro para os humanos. Também estabeleceu o mês sagrado, a oferenda e os animais marcados, para que saibais que Deus conhece tudo quanto há nos céus e na terra, e que é Onisciente". (Quinta Surata, Verso 97).

Verifica-se também marcados elementos de Direito Internacional Público no conjunto do Corão e na Shariah em geral, o que demonstra consciência jurídica dos povos islâmicos nesse sentido desde sua mais tenra época. Como se verifica no Alcorão:

"Quem se encaminha, o faz em seu benefício; quem se desvia, o faz em seu prejuízo, e nenhum pecador arcará com a culpa alheia. Jamais castigamos (um povo), sem antes termos enviado um mensageiro. E se pensamos em destruir uma cidade, primeiramente enviamos uma ordem aos seus habitantes abastados que estão nela corromperem os Nossos mandamentos; esta (cidade), então, merecerá o castigo; aniquilá-la-emos completamente". (Décima Sétima Surata, Verso 16).

Preliminarmente pode-se confirmar a aptidão da civilização Islâmica no respeito aos princípios basilares do Direito Internacional, notadamente no Direito da Guerra e Humanitário, muito antes dos ensinamentos de Hugo Grotius, no século XVII. Portanto, mais uma vez reafirmamos nossa opinião no sentido de que deve ser revisto o tratamento dispensado aos Estados Islâmicos na conjuntura das relações internacionais. Como não nos cabe desenvolver essa tese no trabalho em exposição, limitar-nos-emos a denunciar tal espécie de tratamento, até mesmo pelo fato de, como demonstrado acima (e em muitos outros versos e suratas que não constarão no presente trabalho acadêmico, mas estão em diversas edições do Corão traduzido), os povos muçulmanos possuem noção e respeito literalmente religioso por princípios do Direito Internacional Público. Em caso de Inevitável Conflito Armado, um povo islâmico jamais utilizará unilateralmente a força: inicialmente, tentará firmar negociações com a nação em litígio visando ao respeito de suas prescrições religiosas e culturais; em caso contrário, recorrer-se-á ao conflito armado a fim de solucionar o inevitável litígio. Existe um mínimo respeito à solução pacífica dos litígios internacionais, pela obrigatoriedade de envio de mensageiro ao Estado contendor no conflito de interesses. Considerando-se que tal se apregoa desde o século VII d.C., até mesmo as palavras utilizadas no Corão, mesmo que de relance intransigentes, são carregadas de axiologia e hodiernamente são interpretadas de acordo com o período histórico respectivo. A prática demonstra que a religião Islâmica utiliza-se de seus textos sagrados adaptando-os ao seu cotidiano. Logo, desprovida de sentido se constitui a opinião midiática no sentido de impor um perfil intransigente aos Estados Muçulmanos. O que existe é um respeito aos textos sagrados, com a força social de norma. Trata-se, pois, da Efetividade Normativa do Texto Sagrado.

O segundo documento legislativo que pode ser referenciado como extremamente relevante para a compreensão da dogmática jurídica islâmica é a Constituição de Medina. Muito embora tal Carta Política tenha sido formulada no ano 622 da Era Cristã e atualmente possua mero aspecto histórico, possui grande importância axiológica para o Direito Islâmico, visto que a influência que tal Constituição exerceu na visão político-administrativa muçulmana se caracteriza como incomensurável. Basicamente, a Constituição da Cidade-Estado de Medina (ou Madina) fundamentou os pilares do relacionamento entre os Estados Islâmicos e seus habitantes, o que também reflete seriamente no âmbito das relações internacionais de tais Estados.

Em uma crítica análise do conteúdo de tal Carta Política, verifica-se que a mesma se constitui como relativamente moderna para a época (visto que no ano 622 nenhum povo havia dotado sua sociedade com uma Constituição). Entretanto, infelizmente se pode afirmar que o texto se encontra impregnado de referências ao Islamismo, traço típico dos documentos legislativos de tal cultura. Por exemplo, basicamente o conceito de cidadão para a Constituição de Medina é o de crente no Islamismo; o indivíduo somente se torna cidadão (e, portanto, merecedor dos direitos políticos, públicos e privados) após converter-se ao Islamismo.

Porém, não se pode tomar como base a intransigência dos textos muçulmanos na realização de análises acerca de suas condutas em âmbito interno e internacional. Como dito anteriormente, o pesquisador da Shariah, principalmente o ocidental, deve abrir sua mente a fim de que não recaia em juízos prévios sobre o sistema jurídico dos povos muçulmanos. O Islamismo, como veremos adiante no transcorrer da análise do conceito do Islam, não se constitui simplesmente como uma religião (cujo precípuo objetivo é promover a evolução espiritual de seus assistidos), mas sim um modo de vida individual e forma de conduta social, pelo que se estende à própria conduta dos Estados frente à Sociedade Internacional (objeto de nossa tese).

Por fim, mister se torna a referência ao conceito do Islam, a fim de que se possa compreender a dinâmica por detrás da afirmação religiosa presente no Direito dos Estados adeptos do Islamismo.

A palavra deriva do Árabe salam, que significa "submissão, pureza, obediência". No sentido teológico, indica a submissão voluntária à vontade da divindade e a obediência a seus preceitos morais. Para tanto, verifica-se a existência de seis requisitos para que o adepto siga à risca os mandamentos implícitos no conceito de Islam. São eles:

- Crença em um Deus Único (Allah). O Islamismo se caracteriza por ser uma religião predominantemente monoteísta, em nível radical. Não existe outra deidade, ou mesmo culto a outra personalidade. Não existem santos, ou Messias (como no Cristianismo);

- Crença na existência de Anjos, que não possuem qualquer caráter divino, mas apenas auxiliam o Deus Único;

- Admiração pelos profetas e mensageiros enviados pro Allah (são eles: Abraão, Ismael, Issac, Jacó, Moisés, Jesus e demais profetas existentes no Torá, no Evangelho, nos Salmos e no Alcorão, o que nos leva a concluir que todos estes compêndios teológicos são utilizados subsidiariamente no bojo da Shariah);

- Crença nos livros sagrados em que os profetas estão enumerados, pois, como já afirmado acima, os diplomas eclesiásticos presentes nas Religiões Cristã e Judaica, em parte, são utilizados subsidiariamente ao Islamismo e, conseqüentemente, ao Direito Islâmico;

- Crença na Predestinação, a qual se caracteriza pelo controle absoluto da divindade na vida e no futuro da humanidade. Segundo o Islamismo, Allah controla todos os caminhos dos seres vivos, e mesmo daqueles presentes no além-túmulo. Não nos cabe em tal trabalho aprofundar esta temática, de precípuo cunho religioso, e que encontra paralelos no Cristianismo com a doutrina de Agostinho.

- Crença no Juízo Final, evento também descrito no livro Apocalipse do Profeta João, presente na Bíblia Sagrada Cristã.

Verifica-se, pois, que a Shariah se constitui como uma "colcha de retalhos" legislativa, um sistema jurídico com diversos diplomas teológico-normativos, em que se conjugam aspectos da cultura dos povos do Médio Oriente, de sua Religião e de seu Ordenamento Social, pelo que se fecha um completo sistema normativo, sem que ocorram incoerências típicas da intervenção religiosa nas Ciências Jurídicas. É a antítese do modelo desenvolvido pelo jurista Hans Kelsen.


4.PRELIMINARES REFLEXÕES ACERCA DAS INFLUÊNCIAS DO DIREITO ISLÂMICO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Cabe-se agora apresentar uma análise relativamente profunda acerca das influências exercidas pelo sistema jurisdicional Islâmico (baseado na Shariah) no âmbito das relações existentes entre os membros da Sociedade Internacional. Tenciona-se, no presente capítulo, fundamentar a reflexão do leitor no que tange ao tratamento dispensado aos povos de cultura muçulmana em plano global, e de sua reação a tal comportamento.

Inicialmente, pode-se afirmar, como anteriormente foi apontado, que o Direito Islâmico prescreve a aplicação de princípios do Direito Internacional Público antes do desenvolvimento deste como ciência. Hodiernamente, considera-se que o jurista Hugo Grotius foi o primeiro estudioso a tratar do tema das Ciências Jurídicas aplicadas nas relações interestatais, em plano mundial. Qual seja, considera-se que Hugo Grotius foi o primeiro internacionalista moderno, o "Pai do Direito Internacional", como alguns especialistas de redação mais coloquial costumam enunciar. A principal obra deste jurista, traduzida como "Direito da Guerra e da Paz", foi escrita no período histórico Renascentista, aproximadamente no século XVII.

Também se afirmou que o sistema jurídico desenvolvido pelos povos islâmicos foi o primeiro a preceituar a estruturação de uma Lei Fundamental, qual seja, a denominada "Constituição da Cidade-Estado de Madina". No estudo do Direito Constitucional do ocidente, verifica-se na análise do fenômeno do Constitucionalismo Mundial que o primeiro documento legislativo limitador do poder absoluto dos Chefes de Estado, de forma significativa, foi a Magna Charta de 1215, na qual o monarca britânico João "Sem-Terra" dispõe de seu absoluto poder em favor de um comitê de barões, que futuramente viriam a se consolidar como o conhecido Parlamento Inglês.

Curioso é considerar que, em ambos os casos, o desenvolvimento de tais institutos e idéias se deu no período da Baixa Idade Média e alvorecer da Era Moderna, enquanto que no âmbito dos povos de cultura Islâmica tal se deu entre os séculos VII e IX. Ou seja, muito embora existam incautos estudiosos que afirmem a insipiência do sistema jurisdicional muçulmano, observa-se de forma cristalina que o desenvolvimento de condições básicas para o desenvolvimento das relações internacionais entre os Estados Islâmicos sempre esteve séculos à frente dos povos ocidentais, e nesse sentido as nações que adotavam o sistema jurisdicional islâmico observavam normas básicas de Direito Internacional e comumente eram dotadas de uma Lei Fundamental, elaborada de acordo com o modelo da "Constituição de Madina", esta tendo sido formulada pelo profeta Muhamad, no transcorrer da Hégira.

No que tange ao estudo do desenvolvimento histórico dos Direitos Humanos na experiência dos povos, observamos que grande parte dos especialistas afirma a influência religiosa das vertentes monoteístas na formulação de um arcabouço jurídico protetivo dos Direitos Fundamentais da espécie humana [04]. Entretanto, seja qual for o tronco cultural e religioso proveniente (Cristão, Budista, Hindu, etc.), certo é que a Religião exerce influência na concepção humanista e termina por conduzir a promoção dos Direitos Humanos ao longo da história. Com a civilização muçulmana não foi diferente: desde os primórdios personificados pela Constituição da Cidade-Estado de Madina, verifica-se que a preocupação com os cidadãos, considerados os muitos caracteres de identificação deste conceito ao longo dos séculos, foi uma determinante para a unidade dos diversos povos em torno de uma única manifestação religiosa. Pode-se afirmar categoricamente que o Islamismo, através da proteção conferida àqueles que professavam tal doutrina, terminou por instintivamente promover a disciplina dos Direitos Fundamentais no seio de suas nações componentes.

Deve-se considerar que, após a adoção do Islamismo pelos povos da África do Norte e do Oriente Médio, verifica-se uma expressiva mudança de atitudes, nos planos interno e externo, e se considera que esse conjunto de nações se reinventou, renasceram sob a égide da nova doutrina religiosa monoteísta. Logo, no decorrer do desenvolvimento tecnológico e cultural desses novos povos, pode-se apontar erros e acertos na evolução de uma doutrina dos Direitos Humanos, polêmica em sua raiz e complexa em seu transcorrer, notadamente do ponto de vista do modelo estandardizado de promoção dos Direitos Humanos desenvolvido pelo Ocidente. No entanto, verifica-se que o modelo acertado de determinados Estados terminou por conjugar noções e expectativas de ambas as vertentes: pode-se apontar, nesse desiderato, a eminência do Emirado de Dubai no alvorecer do terceiro milênio cristão como sujeito internacional de costumes islâmicos e adepto do sistema jurisdicional muçulmano, mas que interagiu de tal forma com o Ocidente que atualmente é visto como território próspero e promissor do ponto de vista socioeconômico pela Sociedade Internacional.

Em futuros estudos e fases desta pesquisa, tenciona-se analisar o desenvolvimento da integração regional de uma comunidade islâmica no transcorrer das eras. Não cabem aqui maiores explanações, visto que tal tema é deveras complexo, e para que possamos comprovar nossa tese de que os povos islâmicos foram os primeiros a promover uma política de integração regional organizada, teríamos de discorrer longamente acerca do referido assunto. Mas por aqui basta a afirmação de que os povos islâmicos apenas formalizaram, do ponto de vista político, seu processo de integração e cooperação com a criação da Liga dos Estados Árabes, em meados da década de 1950 da Era Cristã. Muito embora se afirme que, do ponto de vista institucional, a referida organização internacional não possui nível de complexidade política suficiente em relação a outras, como a OEA (Organização dos Estados Americanos), por exemplo, verifica-se que externamente à Liga Árabe existe grande interação entre os Estados Islâmicos, fenômeno histórico e contínuo na atualidade, e que durante séculos (notadamente na Idade Média e Idade Moderna, até o fenômeno do Neocolonialismo europeu do século XIX) envolveu matérias de natureza do Comércio Exterior e integração comercial entre as nações islâmicas, pelo que se pode afirmar (como o faremos no porvir) que o Processo de Integração Regional (na modalidade histórica de "Regionalismo Fechado") foi uma realidade entre os Estados Islâmicos até meados do século XIX, quando o movimento de colonização europeu promoveu uma cisão das relações internacionais entre as nações colonizadas ou em vias de se colonizar, com o intuito (historicamente comprovado) de facilitar o processo de domínio territorial.

Principalmente durante a Idade Média, a influência islâmica nas relações internacionais foi bastante expressiva, de forma notável durante o período de permanência dos mouros na Península Ibérica. A influência cultural islâmica em diversas províncias espanholas vista na atualidade, nesse desiderato, é significativa para demonstrar o fato supracitado. Além disso, vê-se que atualmente, com as grandes divergências existentes entre os Estados Ocidentais e Islâmicos na Sociedade Internacional, em seus diversos organismos (ONU como fundamento), a tensão política e social intensifica-se, com diversos movimentos de estrangeiros islâmicos em Estados Europeus, na formação de substanciais guetos em diversos países (França e Inglaterra como importantes exemplos), e na instituição de normas que violam o espírito da alteridade e os Direitos Fundamentais de liberdade de culto e expressão, em nome de uma pretensa "laicidade" do Estado. Tal se reflete nas relações internacionais de forma flagrante, com a indignação manifesta de Estados Islâmicos com o péssimo tratamento dispensado a seus ícones religiosos (também, em nome de uma pretensa "liberdade de expressão e associação", instituída de forma absoluta em Estados como os EUA) e adeptos estrangeiros em Estados Ocidentais laicos.

Eis a relevância desta atividade de pesquisa: verificar que, muito embora sejam desferidas inúmeras violações ao modelo Ocidentalizado de Direitos Humanos, constituído pela Organização das Nações Unidas, o Direito Internacional deve ser assentado sobre seus milenares princípios, provenientes do fenômeno das Relações Internacionais; e, dentre eles, o Princípio da Não-Intervenção deve ser figurado como o mais relevante do ponto de vista da aplicabilidade do DIP na seara do relacionamento interestatal. Para tanto, deve-se observar o espírito de Alteridade (e, nesse ponto, não apenas o Direito Internacional, mas a própria disciplina ética afirma que se deve respeitar as especificidades e a cultura do próximo) perante às práticas realizadas nos Estados Islâmicos. Não há diferenças entre as penas de morte aplicadas em Estados Ocidentais daquelas aplicadas em Estados Islâmicos (e, nesse específico ponto, estaciona-se nesta frase, pois se trata de mais uma complexa polêmica existente no Direito Internacional, a qual será abordada em produções posteriores). Enfim, durante esta fase da pesquisa, pode-se afirmar, em uma única frase, que o Direito Islâmico (Shariah), deve ser observado com cautela e respeito pela Sociedade Internacional, como fenômeno jurídico-cultural e religioso presente em uma parcela de seus membros, o qual fundamenta uma série de prescrições de ordem ética e convergentes com a Disciplina dos Direitos Humanos, guardadas as devidas considerações supramencionadas.


BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

REZEK, Francisco, Direito Internacional Público – Curso Elementar, 11ª Edição, Editora Saraiva, Rio de Janeiro, 2008.

COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro, Editora Saraiva, 2010;

HASINI, Zuhra Mohd El, Noções de Direito Islâmico (Shariah), Monografia Realizada para a Universidade da Região da Campanha, 2007;

Bíblia Sagrada do Cristianismo, Editora Unipro;

Alcorão Islâmico, Tradução e Edição do Centro Cultural Beneficente Árabe Islâmico de Foz do Iguaçu, sítio virtual http://www.islam.com.br


Notas

  1. REZEK, Francisco, Direito Internacional Público – Curso Elementar, 11ª Edição, Editora Saraiva, Rio de Janeiro, 2008, página 1.
  2. HASINI, Zuhra Mohd El, Noções de Direito Islâmico (Shariah), Monografia Realizada para a Universidade da Região da Campanha, 2007.
  3. Livro de Gênesis, Pentateuco, Bíblia Sagrada do Cristianismo.
  4. COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro, Ed. Saraiva, 2010.

Autor

  • Divo Augusto Cavadas

    Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Considerações preliminares sobre o direito islâmico ("Shariah"). Visões acadêmicas, históricas, culturais e suas influências na sociedade internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2689, 11 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17802. Acesso em: 26 abr. 2024.