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O e-mail como prova no Direito brasileiro

O e-mail como prova no Direito brasileiro

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O e-mail é inseguro e sua autoria é difícil de provar, levantando questões sobre a validade probatória e a segurança na comunicação digital.

Il bit è mobile,

qual piuma al vento.

muta d´accento

e di pensiero...

(La donna è mobile, ária do Rigoletto, de Verdi)


1. A TRANSIÇÃO PARA UM MUNDO DIGITAL

Uma irreversível mudança se processa. O que ontem era um grão de areia amanhã será uma praia. Devido a essa mudança, em vez dos átomos que estamos acostumados a pegar, passaremos a manipular bits que não podemos pegar e que estão se tornando mais influentes em nossas vidas a cada dia.

Mas... ¿o que é um bit?

Um bit é algo que, como a água, não tem cheiro, não tem gosto e não tem cor. Porém seus (não) atributos s mais que esses. Um bit, como complementa NEGROPONTE, também, não tem tamanho ou peso e é capaz de viajar à velocidade da luz. Ele é o menor elemento atômico do DNA da informação. É um estado: ligado ou desligado, verdadeiro ou falso, para cima ou para baixo, dentro ou fora, branco ou preto - e é fragílimo...

Pode estar em tudo que for relativo à informação, eis que, a princípio, toda informação (escritos, desenhos, sons e imagens) é passível de ser digitalizada e, por conseqüência, transformada em bits.

Todavia os profissionais do direito não abriram seus olhos para essa decisiva revolução que está tendo vez, notadamente nos mares da internet. É surpreendente que a exuberância das forças da transição não se façam avaliadas, apesar de sua brutal ação em nossas vidas.

Posto que discutiremos sobre a validade probatória dos e-mails, ¿como deixar de considerar os bits, que são os autorizadores da existência do "papel" e da "tinta" que os compõem? Justificado isso, prossigamos.


2. E-MAIL: UM POPULAR E INSEGURO MÉTODO DE COMUNICAÇÃO

Há alguns anos os idealizadores da ARPANET (que se transformou na conhecida internet) não imaginariam que o correio eletrônico, o popular e-mail, tomaria as proporções que tomou. E várias foram as razões a justificar sua popularização: rapidez, baixo custo (a transmissão de uma longa mensagem custa menos que um vigésimo de centavo), desnecessidade de remetente e destinatário estarem simultaneamente disponíveis et cœtera.

Entrementes, a par das vantagens apontadas, o correio eletrônico é um meio de comunicação bastante inseguro. Antes de u´a mensagem eletrônica chegar a seu destino ela realiza uma longa e tortuosa viagem. Parte do computador remetente para o computador do servidor de acesso à internet e, na seqüência, passa por incontáveis outros servidores até alcançar o destinatário. Portanto, em primeiro lugar, vemos que os administradores (webmasters) dos provedores de acesso podem, facilmente, vasculhar o conteúdo dos e-mails que retransmitem.

Além dos que têm acesso direto às mensagens eletrônicas, outros podem interceptá-las em seu curso. É que a mensagem enviada passa por centenas de pontos no Planeta - aleatórios e sempre novos - antes de alcançar seu destinatário. Daí a facilidade de ser adulterada, acrescendo-se-lhe ou excluindo-se-lhe texto ou mesmo a suprimindo. Afinal os bits (aquelas "coisas" que não são "coisas") se misturam sem qualquer esforço ¡e raramente deixam rastros!


3. COMO PROVAR A EXISTÊNCIA DE UM E-MAIL

Já que um e-mail é apenas um amontoado de bits que nada são no Mundo dos Átomos, ¿como provar sua existência e sua autoria no recanto tridimensional que nos foi reservado para passarmos a nossa existência?

Consoante os direitos processuais civil e penal brasileiros, dispomos de, grosso modo, cinco meios para que sejam provadas as alegações em juízo: a) a confissão, b) a prova documental, c) a prova pericial, d) a inspeção judicial e e) a prova testemunhal. Analisêmo-los.

A) A Confissão

Através da confissão pode ser comprovada a existência da autoria e do conteúdo de um e-mail. Mas para que haja a confissão (judicial ou extrajudicial, espontânea ou provocada, escrita ou verbal), o confitente (aquele que confessa) tem que admitir como verdadeiro um fato contrário ao seu interesse e favorável ao adversário (artigo 348 do Código de Processo Civil). Isso no juízo civil, porque no juízo criminal, caso a infração não deixe vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, não podendo supri-lo a confissão do acusado (artigo 158 do Código de Processo Penal).

Ademais, sua validade não é absoluta, haja vista que o valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância (artigo 197 do Código de Processo Penal); qual seja, no juízo criminal ela somente se prestará para a condenação do réu se existirem outras provas.

Enfim, não é o e-mail que estará sendo reconhecido como documento, mas a confissão é que será considerada como prova.

B) A Prova Documental

A prova documental, como o próprio nome explicita, é aquela que se baseia em um documento, que pode ser público ou particular. E aqui a questão: ¿um e-mail pode ser considerado um documento?

Entendemos que não.

Pro primo porque é da essência de um documento que o mesmo seja assinado (ressalvadas as hipóteses legais relativas a telegramas, radiogramas, livros comerciais e outras); pro secundo porque onde lhe falta a intrínseca materialidade de quaisquer documentos, sobra sua implícita e etérea essência.

Em suma: não apenas um e-mail é desprovido de assinatura (nos moldes em que a convencionamos materialmente) como, outrossim, compreende o mais vagos dos corpos.

C) A Prova Pericial

A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação (artigo 420 do CPC). Todavia o juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos (artigo 436 do CPC).

A perícia, a nosso ver, é o mais eloqüente e adequado meio de se fazer a prova judicial de um e-mail, des´que observadas as formalidades de procedimentos cautelares próprios.

D) A Inspeção Judicial

A inspeção judicial ocorre quando o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, inspeciona pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa (artigo 440 do CPC). Contudo, uma vez que um e-mail não é pessoa nem coisa, ¿como se admitir que venha a ser objeto de inspeção judicial?

E) A Prova Testemunhal

Sempre que um fato não for provado documentalmente, por confissão ou por perícia, é admissível a prova testemunhal.

Dest´arte, frente ao até aqui exposto, verificamos que a prova da autoria e da existência de um e-mail somente pode ser feita através de confissão ou perícia. Considerando-se que é bastante remota a hipótese da confissão - como nos ensina a vida profissional e como evidencia a praxis forense -, pragmaticamente podemos afirmar que a prova da existência e da autoria de um e-mail somente pode ser alcançada através de exame pericial.


4. A FASE PRÉ-PROBATÓRIA

Não nos olvidemos que um e-mail é sempre e apenas um amontoado de bits e, de per si, não é necessariamente a prova de sua original existência. Apenas um laudo decorrente de uma perícia pode, em tese, comprovar a existência da autoria, do destinatário, do momentum e dos endereços IP (protocolo de comunicação ou Internet Protocol) por onde passou a transmissão.

¡Sim! Para se provar a efetiva existência de um e-mail e de sua necessária integridade original necessária se faz uma perícia no local onde ela se originou, qual seja, no computador remetente.

Logo é conditio sine qua non que seja proposta u´a medida cautelar de busca e apreensão do computador daquele que suposta, virtual ou presumivelmente enviou o e-mail para que se constate se nele se encontram os bits nos quais se apoia a ação e que, por sua vez, serão objeto de perícia. Em lá existindo a mensagem gravada, ¡bingo! - pode ser deduzido, a priori, que provavelmente o e-mail talvez tenha existido. Mas... ¿e se ele houver sido efetivamente apagado? Aí dificilmente poderá ter alguma validade o eventual e-mail como evidência de prova no processo, vez que sequer pode ser objeto de um exame judicial...

Um e-mail nada prova, eis que podem ter sido introduzidas mudanças em seu texto original, durante a sua trajetória na grande rede de comunicações até o computador destinatário.

Se os grandes sistemas governamentais, financeiros e institucionais podem ser atacados por hackers (os piratas da informática), ¿o que dizer em relação ao usuário comum que não se vale da encriptação para o envio de suas mensagens e que não possui meios de defesa (firewalls) contra ataques promovidos por terceiros de má-fé?

Caso um usuário da grande rede de computadores não possua um eficiente sistema de proteção, um dos aludidos invasores poderá colocar, em seu disco rígido, a mensagem que bem lhes aprouver. Posto que essa hipótese é de fácil ocorrência, ¿como se admitir a eficácia de uma prova pericial?


5. CONCLUSÃO

Até que uma normatização seja feita relativamente à troca de correspondência eletrônica, não disporemos de nenhum meio seguro para determinar a efetiva origem e a inequívoca integridade de um e-mail.

Na legislação pátria já existem diversas leis (notadamente as relativas ao Mercosul) que aludem a documentos eletrônicos. Entretanto, até a presente data, não é de nosso conhecimento que sequer uma delas, ao menos, tenha sido regulamentada.

Com o tempo advirão a certificação digital, a assinatura digital e outros quejandos, certamente apoiados na biometria. Contudo, mesmo nesses casos, se eventualmente uma das partes não tiver uma identidade digital, de nada valerão os esforços envidados pelos legisladores.

Atenta Leitora e arguto Leitor: não mais imprimimos com as prensas de Gutenberg, como, tampouco, fazemos contas com os geniais ábacos. Conseqüentemente devemos atentar para a nova realidade que voluptuosamente se impõe, sob pena de naufragarmos não nos mares da internet, mas nos densos oceanos que são os processos judiciais.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, Amaro Moraes e. O e-mail como prova no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. -1652, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1785. Acesso em: 18 abr. 2024.