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Prisão em flagrante delito por militar das Forças Armadas em razão de crime comum

Prisão em flagrante delito por militar das Forças Armadas em razão de crime comum

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Qual a responsabilidade dos militares das Forças Armadas quanto aos crimes comuns eventualmente praticados nas proximidades das suas organizações militares, em local não sujeito à Administração Militar?

RESUMO

Dever jurídico de agir dos militares das Forças Armadas de evitar ou não a ocorrência de crimes comuns. Competência da Segurança Pública. Interpretação sistemática do art. 243 do CPPM. Inexistência de dever jurídico de agir dos militares da Forças Armadas, não sendo obrigados a realizar a Prisão em Flagrante Delito de pessoas que não estejam praticando crimes militares. Exercício especial da Polícia Judiciária Militar estritamente para apurar os crimes militares.


1. INTRODUÇÃO

As grandes cidades nos dias atuais sofrem com a crescente onda de criminalidade. Os meliantes aproveitam para se instalar e se camuflar nas favelas, uma vez que essas comunidades não dispõem de organização nas suas edificações, muitas vezes localizadas em morros. A falta de estrutura e de apoio do Poder Público contribui para dificultar o acesso das polícias de segurança, dando azo à ocorrência de infrações penais, notadamente expostas na mídia.

Cediço também que muitas organizações militares das Forças Armadas são circundadas por essas comunidades carentes, onde atuam os meliantes com suas atrocidades rotineiras. Nesse contexto, sempre haverá a possibilidade de que os militares, em serviço ou não, se deparem com a prática de crimes de natureza comum, portanto, fora do âmbito de competência da Polícia Judiciária Militar.

Diante desse cenário, pretende-se realizar uma análise dos aspectos jurídicos, quanto à responsabilidade dos militares das Forças Armadas na evitação ou não de crimes comuns, eventualmente praticados nas proximidades das suas organizações militares, em local não sujeito à Administração Militar, bem como verificar possíveis medidas jurídicas para o pessoal de serviço atuar nessas ocasiões, já que o Código de Processo Penal Militar no seu art. 243 dispõe da seguinte forma:

Art. 243 – Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.

Impende verificar se a norma estampada no CPPM deve ser interpretada extensivamente para abarcar as hipóteses de crimes não militares, uma vez que a índole desse diploma legal se dirige à instrução e julgamento dos crimes militares, submetidos à jurisdição militar.

No caso de dever jurídico de agir, a obrigação deve ser entendida no exercício da competência da polícia ostensiva ou judiciária.

Por outro lado, o conflito, na nossa análise, cinge-se mais à competência da polícia judiciária militar nas hipóteses de crimes comuns, uma vez que a competência da polícia ostensiva se apresenta mais nítida, pois essa qualidade verifica-se concretamente, já que não encontramos os militares das Forças Armadas, em situação de rotina, patrulhando as ruas da cidade, senão, em algumas ocasiões aquelas próximas aos quartéis, o que contribui para inibir a ocorrência de crime comum.


2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEGURANÇA PÚBLICA

A Constituição Federal no art. 144 estabelece que a segurança pública visa a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; e, V- polícias militares e corpos de bombeiros militares.

A segurança pública consiste na preservação ou restabelecimento da convivência social, para permitir que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbações de outrem. Na sua dinâmica, é uma atividade de vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas.1

A segurança pública é exercida por meios dos órgãos policiais mencionados, e divide-se em polícia administrativa e de segurança. A polícia de segurança compreende a polícia ostensiva e a judiciária.

A polícia ostensiva tem por objetivo a preservação da ordem pública e adota medidas preventivas que julga necessárias para evitar o dano ou o perigo para as pessoas. 2

O sistema de apuração e investigação das infrações penais e a indicação da autoria é competência da polícia judiciária, para fornecer elementos necessários à propositura da ação penal, pelo Ministério Público.

Os órgãos e agentes que compõem a modalidade de polícia de segurança têm o dever jurídico de efetuar a prisão em flagrante de qualquer pessoa que seja encontrada cometendo crime, conforme dispõe o art. 301 do Código de Processo Penal.

A atividade de segurança pública é exercida exclusivamente pelos órgãos policiais elencados no art. 144 da Constituição Federal, dispondo que a responsabilidade é de todos, no sentido de envolver os cidadãos na participação e elaboração de políticas públicas a respeito da segurança.

Nesse contexto de exclusividade de atuação direta na ordem pública, não se inserem as Forças Armadas e seus membros, visto que na repartição das funções administrativas, conforme o consignado no texto constitucional, a atividade de segurança pública foi atribuída às Forças Armadas de forma especial, quando deve atuar na defesa da lei e da ordem (parte final do art. 142, da CF), cujas regras são previstas na Lei Complementar nº 97/1999; na intervenção federal (inciso III do art. 34); no estado de defesa (art. 136) e no estado de sítio (art. 138).

A missão primária e privativa das Forças Armadas consiste na defesa da Pátria e na garantia dos Poderes Constitucionais.3

A primeira análise que se faz é que os membros das Forças Armadas não estão obrigados a intervir em situações que violem a ordem pública, fora dos limites previstos nos dispositivos acima, regimes especiais de intervenção federal, por isso não há dever jurídico que imponha qualquer atuação dos militares das Forças Armadas na repressão de crimes comuns, conforme se depreende do §§4º e 5º do art. 144 da Constituição Federal, como segue:

Art. 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

...

§4º – Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§5º – Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

De forma especial as Forças Armadas exercem a atividade de Polícia Judiciária Militar, exclusiva também, mas especialmente, na apuração e investigação dos crimes militares, definidos no Código Penal Militar.


3. CRIME MILITAR E CRIME COMUM

Crime Militar - É toda violação acentuada ao dever militar e dos valores das instituições militares, que afeta a organização, a administração e o patrimônio destinado à sua finalidade e a outros bens sujeitos à administração militar. São as infrações definidas na legislação penal militar (Código Penal Militar - CPM, Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de dezembro de 1969).

Crimes Militares Próprios - São os crimes cuja prática não seria possível senão por pessoa que possua o status de militar, porque essa qualidade do agente é essencial para que o fato delituoso se verifique (deserção, insubordinação, abandono de posto, etc.).

Crimes Impropriamente Militares – São os crimes que estão definidos tanto no CPM como no Código Penal Comum e, que, se inseridos numa das hipóteses do inciso II ou III do art. 9º do CPM, são considerados infrações militares impróprias. São delitos comuns que se revestem de caráter militar por ferirem ou exporem a perigo de lesão algum interesse militar, praticado por civil ou por militar (homicídio, roubo, furto, etc.).

Bens Jurídicos Protegidos pelo Direito Penal Militar – A autoridade, a disciplina, o serviço, o dever, a ordem e o patrimônio militar, conforme se verifica do art. 9º do CPM.

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

- autor sempre militar da ativa.

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

- por militar da ativa X contra militar da ativa.

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

- por militar da ativa, em lugar sujeito à administração militar X contra qualquer pessoa;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

- por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar , ou em formatura, em qualquer lugar X contra qualquer pessoa.

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

- por militar durante o período de manobras ou exercício X contra qualquer pessoa.

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

- por militar da ativa X contra o patrimônio sob administração militar, ou a ordem administrativa militar.

f) revogada. (Vide Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

- por qualquer pessoa, exceto o militar da ativa.

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior. 4

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996).

Crime Comum – São os previstos no Código Penal Comum (CP) e nas leis penais extravagantes, e devem ser verificados por exclusão, uma vez que os crimes militares são considerados especiais em relação aos crimes comuns e algumas definições do CPM são idênticas às do CP, observando-se o art. 9º do CPM.

Assim, para definir o crime militar deve-se observar:

a) a lei penal militar – art. 124 da CF;

b) a qualidade militar do agente - essencial à existência do crime militar, quando há violação de um dever militar; e

c) a qualidade militar do fato - lesão ou perigo de lesão a algum interesse militar (local ou serviço).


4. POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR

O dever jurídico de agir para efetuar a prisão em flagrante decorre da competência prevista na Constituição Federal. O seu art. 144 relaciona os órgãos responsáveis pela Polícia Ostensiva e Judiciária.

A finalidade da polícia judiciária militar é uma das modalidades de polícia de segurança, só exercida pelas Forças Armadas em caráter especial e especificamente para investigar as infrações penais militares e apurar a respectiva autoria, para fornecer ao Ministério Público Militar os elementos necessários à propositura da ação penal militar. Essa função não consta explicitamente configurada na Constituição.

A previsão da Polícia Judiciária Militar verifica-se pelo confronto e exame do art. 124 e da parte final do §4º do art. 144 da Constituição. O art. 124 prevê o julgamento dos crimes militares pela Justiça Militar e o §4º do art. 144, exclui da competência da polícia civil e federal, a apuração das infrações penais militares.

No CPPM as regras são estabelecidas no Capítulo Único do Título II e Capítulo Único do Título III, que tratam, respectivamente, da Polícia Judiciária Militar e do Inquérito Policial Militar. O art. 8º desse diploma legal dispõe sobre a competência para a apuração dos crimes militares.

As normas do CPPM regem todo o Processo Penal Militar e devem ser consideradas nesta condição, cujo objetivo é a instrução e julgamento dos crimes militares.

Assim, não poderiam essas normas criar preceitos voltados para o processo comum, que dispõe de instrumento próprio e geral. É princípio basilar de direito que as normas especiais prevalecem sobre as gerais e devem ser apreciadas no âmbito da especialidade para as quais foram editadas. Por esse motivo as situações que não caracterizam crime militar não devem ser apuradas pela polícia judiciária militar.

O §3º do art. 10 do Código de Processo Penal Militar (CPPM), expressa o seguinte: "Se a infração penal não for, evidentemente, de natureza militar, comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator..."

A interpretação literal desse dispositivo pode conduzir ao entendimento de que o militar deve efetuar prisão em flagrante da pessoa que comete crime comum, e conduzi-la ao órgão policial em razão da expressão: "comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem apresentará o infrator. ..".

O dispositivo está inserido nas regras atinentes ao inquérito policial militar e estabelece a apresentação de pessoa indiciada em IPM, não trata de infrator preso.

Por outro lado, extrai-se dessa regra que à autoridade militar não cabe analisar o crime comum.

A apresentação do infrator é dispensável, se não há prisão, posto que, quando a autoridade militar concluir o IPM deve remetê-lo à Justiça Militar, que enviará os autos para a Justiça Comum, se concordar com a classificação quanto à infração penal de natureza comum, pois pode ocorrer a instauração de IPM e no seu desenvolvimento cogitar-se da existência de infração penal comum, mas inicialmente teria sido instaurado por indício de crime militar.

A norma estampada no §3º do art. 10 do CPPM não revela qualquer obrigação para o militar realizar prisão por crime comum. No entanto, existe a faculdade do militar agir dessa forma, efetuando a prisão em flagrante delito por crime comum, na qualidade de cidadão. Nessa situação não estará atuando como autoridade policial militar, no exercício da função de polícia judiciária.

O §2º do art. 247 do CPPM, que trata da prisão em flagrante, também menciona a entrega do preso à autoridade competente, quando a infração não tiver natureza militar, nos seguintes termos:

Nota de culpa

Art. 247 – Dentro em vinte e quatro horas após a prisão, será dada ao preso nota de culpa assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas.

Relaxamento da prisão

§2º Se, ao contrário da hipótese prevista no art. 246, a autoridade militar ou judiciária verificar a manifesta inexistência de infração penal militar ou a não participação da pessoa conduzida, relaxará a prisão. Em se tratando de infração penal comum, remeterá o preso à autoridade civil competente.

O art. 246, assim dispõe:

Recolhimento à prisão. Diligências

Art. 246. Se das respostas resultarem fundadas suspeitas contra a pessoa conduzida, a autoridade mandará recolhê-la à prisão, procedendo-se, imediatamente, se for o caso, a exame de corpo de delito, à busca e apreensão dos instrumentos do crime e a qualquer outra diligência necessária ao seu esclarecimento.

Esses dispositivos apenas revelam que autores de crimes podem ser presos em flagrante delito pela polícia judiciária militar ou por militares. Entretanto, não impõem aos membros das Forças Armadas o dever jurídico de efetuar a prisão, apenas informam quanto à possibilidade de prisão no caso de crime comum, não cogitando de exercício de dever legal, mas sim da faculdade conferida a qualquer pessoa pelo art. 243 do CPPM e pelo art. 301 do Código de Processo Penal Comum (CPP).

Art. 243 – Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.

Art. 301 – Qualquer de povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

O §2º do art. 247 do CPPM, ainda determina o relaxamento da prisão, quando o fato não caracterizar crime militar. Entende-se por relaxamento a desconstituição da prisão por motivo de ilegalidade.

O professor José da Silva Loureiro Neto ensina que, sendo configurada a infração penal comum, a autoridade militar deve relaxar a prisão, por constituir-se constrangimento ilegal e, em seguida, deve cumprir o previsto no §2º do art. 247 do CPPM, ou seja, realizar a entrega do infrator à autoridade policial competente.5

Se houvesse dever jurídico de agir imposto ao militar para efetuar a prisão em flagrante por crime comum, a retenção da pessoa sob sua guarda, não representaria um constrangimento, conforme registrado pelo professor José da Silva Loureiro Neto, e não haveria a necessidade de relaxamento da prisão, nem da necessidade de apresentação do preso à autoridade policial competente, mas sim, proceder a entrega à autoridade responsável pela custódia de presos, pois a prisão estaria sendo realizada por dever de ofício.

A análise superficial da expressão "os militares deverão prender", do art. 243 do CPPM, poderia indicar a existência de dever jurídico para os militares das Forças Armadas. Entretanto, o exame deve ser considerado no contexto do processo penal militar, cuja norma pretende regulamentar.

A alínea "b", do §2º do art. 2º do CPPM, fixa que a interpretação literal dos seus dispositivos processuais não deve ser empregada quando desvirtuar a natureza do processo penal militar, trata-se, portanto, de autêntica interpretação sistemática.

Considerando que a polícia judiciária militar tem o propósito de instrumentalizar o processo penal militar, com o escopo de apurar as infrações penais de natureza militar, nas situações elencadas no art. 9º do CPM, não seria adequado extrair o sentido da norma exposta no art. 243 do CPPM, utilizando-se da interpretação gramatical, pois a simples leitura leva ao entendimento de que o militar tem o dever de realizar a prisão de quem estiver em estado de flagrância, independente da natureza do crime, o que não representa a índole do diploma adjetivo penal militar.

Conforme já mencionado, a atividade de polícia judiciária militar não é exercida pelas Forças Armadas como atividade precípua de sua missão constitucional. Essa tarefa decorre da necessidade de preservar a hierarquia e a disciplina, já que esses institutos sustentam sua organização e estrutura, e deve ser empregada apenas com essa finalidade.

Assim, se todo militar das Forças Armadas estivesse obrigado a efetuar a prisão em flagrante por crime comum, estaria realizando-a em detrimento de sua atividade principal e usurpando a atribuição exclusiva das polícias de segurança, constitucionalmente estabelecidas no art. 144. E, para tanto, deveriam organizar as suas estruturas e agentes para atender essa demanda, e se transformariam em verdadeiros órgãos de segurança pública, como são, os criados com essa finalidade. Certamente esse não é o objetivo do art. 243 do CPPM.

No caso em tela, a melhor e mais apropriada interpretação a ser aplicada é aquela que considera o sistema jurídico constitucional e o princípio federativo, posto que, segundo a Carta Política, a responsabilidade da segurança pública foi atribuída, em se tratando de infrações comuns, às polícias civis. Essas mesmas infrações ainda se dividem em federais ou estaduais, ou seja, umas devem ser apuradas pela polícia federal e outras pelas policiais civis dos Estados Membros, em que a União só pode intervir nos casos específicos, conforme mencionados no item 2.

Carlos Maximiliano Pereira dos Santos ensina que o processo sistemático de interpretação consiste na comparação do dispositivo examinado com outros que se referem ao mesmo objeto. 6

O jurista, explicando a interpretação no processo criminal, menciona que: "Como a exegese extensiva só se proíbe acerca de dispositivos que cominam pena ou agravam a criminalidade, segue-se que a forma rigorosa de interpretar concernente às leis penais não persiste relativamente ao Processo. Aplicam-se às prescrições de Direito Adjetivo as regras comuns de Hermenêutica; nem sequer o recurso à analogia é vedado (1). Entretanto o preceito não é absoluto: quando se tratar de exceções às regras gerais, bem como de limitação à liberdade individual, ao exercício de direitos ou a interesses juridicamente protegidos, o texto considerar-se-á taxativo, será compreendido no sentido rigoroso, estrito."7

Nesse sentido é que se examina o art. 243 do CPPM, sob a égide da interpretação sistemática, visto que a atuação das Forças Armadas e de seus membros na segurança pública se faz de maneira especial, exceção à regra. O comum, é tratar-se a segurança do ponto de vista das autoridades policiais, constucionalmente estabelecidas, quando a ocorrência indicar a prática de crime comum. De outra forma, como descreve Carlos Maximiliano, a prisão em flagrante delito é ato de constrangimento da liberdade individual, o que deve ser conduzido com as cautelas de restrições, taxativamente empregadas nas situações que a lei permite. Por esse motivo o art. 243 do CPPM, que trata de infrações militares, não poderia consubstanciar o crime comum.

Continuando com a interpretação sistemática, e conjugando a alínea "b", do §2º do art. 2º; o art. 8º e o §2º do art. 247 do CPPM; o art. 9º do CPM; e o art. 124 da CF, com o que prescreve o art. 243 do CPPM e os §4º, §5º e caput do art. 144 da Constituição Federal, que estabelece o exercício exclusivo da segurança pública pelos órgãos que relaciona, verifica-se que os militares das Forças Armadas NÃO estão obrigados a efetuar prisão em flagrante por crime comum, não havendo dever jurídico de agir, quando o fato não reflete crime de natureza militar.

José da Silva Loureiro Neto menciona também que a prisão em flagrante descrita no art. 243 do CPPM, "Justifica-se pelas relevantes razões de ordem pública e por constituir-se numa medida cautelar, pois representa garantia de colheita de elementos de convicção a respeito da prática delituosa e garantia posterior de aplicação da lei penal militar."8

O Promotor Jorge Cesar de Assis, membro do Ministério Público Militar da União e articulista do Direito Militar, definiu da seguinte forma:

O dever jurídico de agir frente ao estado de flagrância, para os militares federais, encontra-se no art. 243 do CPPM. Tal norma processual dirige-se aos crimes militares em geral e, em específico ao insubmisso e ao desertor. Sendo crime militar, o dever jurídico de agir (dever + poder agir), coloca o militar na posição de garante. Para os crimes comuns, existe norma correlata do CPP comum ( art.301), que é dirigida às autoridades policiais. Tanto em um caso como noutro, o cidadão comum, pode prender, sem ser garante de nada. Para o crime comum, o militar federal prende como cidadão comum. A exceção do militar para o crime comum é a do policial militar (também é autoridade policial em sentido amplo, mais a CF diz que a PM é responsável pela preservação da ordem pública. Logo, o PM que presenciar flagrante tem o dever jurídico de agir (ainda que muitas vezes não possa agir - não está armado, p.ex., ou está insuficientemente armado).9

Nesse sentido, não se verifica obrigação dirigida aos militares das Forças Armadas para efetuarem prisão em flagrante em razão de crime comum. A inexistência de dever jurídico de agir impede a responsabilização pela não evitação do resultado da infração penal praticada, conforme dispõe o §2º do art. 29 do CPM:

Art. 29. O resultado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

...

§ 2º A omissão é relevante como causa quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; a quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e a quem, com seu comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência.


5. SEGURANÇA ORGÂNICA

O contexto da criminalidade deve ser analisado também do ponto de vista da segurança das instalações das organizações militares, posto que a contenda externa pode ser fato simulado para provocar a desatenção do vigia no intuito de adentrar no quartel ou surpreendê-lo para roubar ou furtar suas armas, munições ou outros bens.

O militar de serviço que intervir deve se cercar de todos os cuidados necessários para não desguarnecer o seu posto de serviço, uma vez que pode estar infringindo a legislação penal militar no cometimento de crime de abandono de posto.10

Entendo, porém, que cada caso deve ser tratado da maneira mais adequada à situação concreta, pois, a despeito de não haver dever jurídico em adotar uma ação efetiva para evitar o crime, impedindo a agressão de que outrem esteja sendo vítima, sendo infração comum, deve-se vislumbrar a possibilidade de auxílio, desde que seja viável o oferecimento de ajuda, ou, de outra forma, o acionamento dos órgãos públicos competentes pode produzir resultado satisfatório.

Contudo, a atuação, dos militares das Forças Armadas, se for empregada, estará respaldada na legítima defesa, donde não surge responsabilidade para quem assim proceder.

As organizações militares normalmente dispõem de recursos humanos e materiais, sendo que algumas são compostas por grupo de militares a serem envolvidos no pronto atendimento de ocorrência contra a instituição. Esses mesmos recursos, a nosso ver, podem ser utilizados, com a cautela devida, no intuito de oferecer o auxílio a quem se encontre com a integridade física e a liberdade em risco, provocado por marginais.

Entretanto, a possibilidade do pronto emprego da tropa, deve ser visto com reservas, quanto à sua real e efetiva empregabilidade, posto que os bens são da União e devem ser utilizados no interesse militar.

Na Justiça Militar da União foi julgado um caso em que um automóvel enguiçou em frente a uma Guarita do 24º BIB, quartel do Exército Brasileiro, ato contínuo, aproximaram-se três meliantes num automóvel e anunciaram o roubo daquele veículo que estava avariado. O Sentinela percebeu a ação e interviu determinando que os meliantes se afastassem do local. Então, os marginais iniciaram os disparos contra a guarita que protegia o militar. O Sentinela revidou, ferindo dois bandidos, que empreenderam fuga do local. Posteriormente, dois marginais foram encontrados no hospital próximo, enquanto o terceiro conseguiu fugir.

O resultado foi o seguinte: o roubo foi evitado, dois meliantes presos, julgados e condenados pela tentativa de roubo na Justiça Comum; e, pela tentativa de homicídio contra o Sentinela, na Justiça Militar.

Na auditoria, um deles foi absolvido, mas acatando recurso do Ministério Público Militar, o Superior Tribunal Militar reformou a decisão e também o condenou.11

Na ocorrência acima o Sentinela não teve auxílio de nenhum outro militar da OM.

Há para os militares das Forças Armadas a faculdade de agir, posto que qualquer pessoa pode efetuar prisão em flagrante na condição de cidadão comum. Entretanto, acredito que raramente algum deles empreenderá reação, se não houver ordem superior para tanto.

Mantendo-se nesse patamar, a impressão que emerge é a da banalização da violência, sem embargo, já que não há obrigação de agir, mesmo, pelo menos aparentemente, em condições de prestar algum tipo de ajuda, diante de uma agressão a qualquer cidadão que esteja com sua vida em iminente risco, mas inexoravelmente, não há obrigação para atuar nesses casos e, o sistema de segurança das organizações militares deve servir aos interesses internos de proteção dos militares e bens da força.


6. LEGÍTIMA DEFESA

Por outro lado, constatada a veracidade dos fatos e a possibilidade de auxílio, este será revestido pelo manto da legítima defesa, ou na impossibilidade de agir em defesa da vítima, que seja comunicada a ocorrência à autoridade policial competente.

O conceito analítico de crime informa que sua estrutura se desdobra em fato típico, antijurídico e culpável. Só com a reunião desses elementos é que se pode afirmar a existência de infração penal.

A legítima defesa exclui a ilicitude do fato tipicamente considerado como crime, ou seja, para fazer cessar uma agressão injusta, uma pessoa pode se valer de uma figura típica, pode praticar um fato descrito na lei penal como crime, exemplo do Sentinela que disparou contra os meliantes para impedir os disparos contra ele.

Agindo em legítima defesa fica suprimido do conceito analítico de crime o elemento da antijuridicidade, porque é lícito defender-se e, assim, não se completando aqueles elementos, não se pode falar na existência de crime.

Aquele que age em legítima defesa está se conduzindo legalmente, não comete crime, pois a lei penal não considera como infração penal a conduta que apresenta essa qualidade. Note-se que o Sentinela foi envolvido na ação penal como vítima.


7. CONCLUSÃO

Do exposto, com o emprego da interpretação sistemática dos dispositivos legais acerca da prisão em flagrante delito e da polícia judiciária militar no Código de Processo Penal Militar e na Constituição Federal; e confrontando a atribuição da Segurança Pública com a missão das Forças Armadas, conclui-se pela inexistência de dever jurídico de agir dos militares das Forças Armadas para efetuarem prisão em flagrante por crime comum, dever jurídico que incumbe às polícias civis e militares estaduais e à polícia federal, bem como a seus agentes, nos termos do art. 301 do CPP e §§4º e 5º do art. 144 da Constituição Federal.

O art. 243 do CPPM, que impõe dever jurídico aos militares para prenderem em flagrante, deve ser interpretado restritivamente, apenas para abranger os crimes militares.

Apesar de pugnar pela legítima defesa, mas sem adentrar na real possibilidade de agir em casos semelhantes, indico o uso do sistema de segurança do CIAA exclusivamente na segurança orgânica, como preceituam as normas administrativas, além de que as ocorrências dessa natureza sejam imediatamente comunicadas aos órgãos e agentes de segurança mais próximos.


 NOTAS

01. SILVA, JOSÉ AFONSO DA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", 2001, pág. 756.

2. Idem.

3. Art. 142 da Constituição da República Federativa do Brasil.

4. O Supremo Tribunal Federal julgou que a Polícia Naval é atividade secundária da Marinha e, os crimes praticados contra os militares durante esse serviço devem ser julgado pela Justiça Comum. Habeas Corpus nº 0068928-1/PA – Ministro Neri da Silveira, 1991.

5. NETO, JOSÉ DA SILVA LOUREIRO, Processo Penal Militar, 1992, pág. 89.

6. SANTOS, CARLOS MAXIMILIANO PEREIRA DOS, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1996, pág. 128.

7. Idem, pág. 329.

8. NETO, JOSÉ DA SILVA LOUREIRO, Processo Penal Militar, 1992, pág. 86.

9. ASSIS, JORGE CESAR DE, por e-mail, acessado em 2 de outubro de 2007.

10. Art. 195 do CPM.

11. Apelação (FO) nº 2003.01.049483-9 – RJ, julgada em 30 de junho de 2005, Relator Ministro Ten Brig Ar HENRIQUE MARINI E SOUZA.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar: comentários, doutrina, jurisprudência dos Tribunais Militares e Tribunais Superiores. 6ª ed., Curitiba: Juruá, 2007.

__________. Código de Processo Penal Militar Anotado: 1º volume (art. 1º ao 169). 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2007.

__________. Lições de Direito para a Atividade das Polícias Militares e das Forças Armadas. 6ª ed., Curitiba: Juruá, 2007.

__________. Direito Militar: Aspectos penais, processuais penais e administrativo. 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2007.

ASSUMPÇÃO, Roberto Menna Barreto de. Direito Penal e Processual Penal Militar: Teoria essencial do crime – doutrina e jurisprudência – Justiça Militar da União. Rio de Janeiro: Destaque, 1998.

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PENICHE, Walter Santos. Prisão em flagrante delito por militar das Forças Armadas em razão de crime comum. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2698, 20 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17854. Acesso em: 19 abr. 2024.