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O tratamento da tortura no direito internacional e no direito interno: criminalização e a jurisprudência brasileira na dimensão da Justiça reparadora.

Breves considerações

O tratamento da tortura no direito internacional e no direito interno: criminalização e a jurisprudência brasileira na dimensão da Justiça reparadora. Breves considerações

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Sumário:1. INTRODUÇÃO. 2. A TORTURA NO PLANO INTERNACIONAL. 3. A TORTURA NO DIREITO INTERNO. CRIMINALIZAÇÃO E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA NA DIMENSÃO DA JUSTIÇA REPARADORA. BREVES CONSIDERAÇÕES. 4. CONCLUSÃO

Palavras chaves: Tortura. Direito. Interno. Internacional. Justiça. Punitiva. Reparadora.

Key words: Torture – Law – Domestic – International – Justice – Punitive – Restorative.

Resumo: Este artigo tem como escopo tecer algumas considerações acerca do tratamento conferido à tortura no direito internacional e no ordenamento jurídico brasileiro. Serão expostos breves comentários sobre a disciplina concebida pelas Leis 9.455/97 e 9.140/95 que tratam, respectivamente, da criminalização e da reparação às vítimas de atos de perseguição e de tortura praticados durante o regime de exceção democrática.

Summary: This article has the aim to bring a few comments about the treatment given to torture in international and Brazilian laws. Brief comments will be exposed about the discipline brought by Laws 9.455/97 and 9.140/95, legal instruments that deal respectively with the torture criminalization and model of restorative justice to victims of persecution and torture practiced during the ditatorial regime.


1.INTRODUÇÃO

Em 12 de dezembro de 1997, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou oficialmente o dia 26 de junho como o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura. Nas palavras de KOFI ANNAN, ex-Secretário Geral da ONU e ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2001, em discurso proferido exatamente naquela data do ano de 2006:

"...A proibição da tortura está profundamente enraizada. É absoluta e inequívoca. Aplica-se em todas as circunstâncias, quer em tempo de guerra quer em tempo de paz. Também não é permitida a tortura que se oculta por detrás de outros nomes: castigos cruéis e não habituais são inaceitáveis e ilícitos, independentemente dos nomes que lhes queiram atribuir [01]..."

Acerca da prática degradante em comento, a Corte Suprema Brasileira, no HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, já se manifestou nos seguintes termos:

"...o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade...A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo..."


2.A TORTURA NO PLANO INTERNACIONAL. BREVES CONSIDERAÇÕES

A proibição da tortura está consolidada no direito internacional consuetudinário e nos tratados internacionais. Trata-se de prática execrada por todos os povos. Mesmo os países sobre os quais recaem fortes indícios em torno do cometimento de tal atrocidade - segundo informes da Anistia Internacional -, acabam, esses Estados, adotando uma postura pública de não-aceitação e repúdio, afirmando que executam medidas voltadas à erradicação da aludida prática, o que reforça o reconhecimento universal de que o tratamento desumano por intermédio da tortura apresenta-se intolerável em qualquer comunidade, nação ou cultura.

A vedação do ato desumano em exame, conforme já dito, encontra-se bem sedimentada no direito internacional costumeiro como jus cogens, tendo em vista que constitui norma imperativa internacional [02] o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, dentre os quais a não-violação de sua dignidade. E esta violação se verifica quando não se assegura à pessoa, dentre outros direitos, o respeito à sua integridade física ou moral. Nas palavras de Celso D. de Albuquerque Mello, citando CARRILLO SALCEDO, são normas de jus cogens, dentre outras, os direitos fundamentais do homem (MELLO, p. 75). Trata-se de reconhecer a existência de que alguns direitos são inatos, universais, inalienáveis e imprescritíveis, impondo-se aos Estados a obrigação não só de respeitá-los, mas também de assegurar que sejam respeitados.

No plano dos tratados internacionais, impõe-se destacar, inicialmente, a previsão do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem [03] cujo comando proibitivo encontra-se assim exarado: "Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.".

Posteriormente à aludida Declaração Universal, a proibição da tortura e outros maus-tratos foi incorporada na enorme rede de tratados internacionais sobre direitos humanos tal como, e.g., na Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [04], no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos [05], na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos [06], na Convenção Americana sobre Direitos Humanos [07], na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura [08] e na Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Convenção contra a Tortura [09]).

A tortura, considerada crime contra a humanidade, também funciona como norma fundamental para o direito internacional humanitário (DIH) que rege a conduta das partes durante os conflitos armados. No âmbito do DIH, sobreleva o dever de proteger a vida, a saúde e a segurança dos civis e demais pessoas que não estejam em combate, o que inclui soldados rendidos ou capturados que se encontram, de um ou de outro modo, sob autoridade da parte adversa. Para o direito internacional humanitário, o tratamento desumano em apreço apresenta-se, de igual modo, inaceitável [10].


3. A TORTURA NO DIREITO INTERNO. CRIMINALIZAÇÃO E A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA NA DIMENSÃO DA JUSTIÇA REPARADORA. BREVES CONSIDERAÇÕES.

Por força do artigo 4º da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Convenção contra a Tortura), todos os Estados que aderiram à Convenção são obrigados a tipificar os atos de tortura no âmbito da legislação nacional. No Brasil, embora o País já fosse signatário de diversos tratados e convenções que tratam do tema, e a despeito ainda da previsão constitucional de vedação da prática em comento (artigo 1º, inciso III e 5º, incisos III, XLIII, e XLIX da CR/88), apenas em 1997 surgiu uma lei (Lei 9.455/97), criminalizando a conduta em diversas modalidades conforme a motivação subjacente à prática do ato ilícito [11].

Registre-se ainda o fato de que, no Brasil, a prática da tortura, além de ser equiparada a delito hediondo, é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

De acordo com o artigo 2º da Lei 9.455/97, referido diploma se aplica ainda que o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira. O artigo em questão traz hipóteses de extraterritorialidade de aplicação da lei brasileira. A primeira hipótese, sendo a vítima brasileira, configura a modalidade de extraterritorialidade incondicionada. Diz-se incondicionada pelo fato de que a aplicação da Lei 9455/97 não depende do concurso de nenhuma condição, bastando que a vítima seja brasileira, independentemente da nacionalidade do sujeito ativo, de o fato também ser punível no país em que foi praticado etc. A segunda representa a extraterritorialidade condicionada, caso em que a aplicação da Lei 9.455/97, não sendo a vítima brasileira, fica sujeita ao ingresso do agente, estrangeiro ou não, em local sob jurisdição nacional.

A previsão da 2ª parte do artigo 2º da Lei em comento ("encontrar-se o agente em local sob jurisdição brasileira") ajusta-se ao quanto disposto no artigo 7º, inciso II, alínea ‘a’ do Código Penal que, adotando o princípio da justiça universal (ou cosmopolita), determina a aplicação da lei brasileira aos crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir, ainda que cometidos fora do território nacional. A diferença é que a extraterritorialidade condicionada da Lei 9.455/97 só se subordina a um requisito: encontrar-se o agente em local sob jurisdição brasileira. Não se aplicam as demais condições previstas no § 2º, do art. 7º do CP tendo em vista que a extraterritorialidade condicionada do delito de tortura está disciplinada de forma especial na própria Lei sob exame que exclui, sobre o tema, as demais exigências do Código Penal [12].

O Brasil, portanto, ao tipificar o crime de tortura, honrou o compromisso que assumiu na ordem internacional quando ratificou, dentre outros tratados, a Convenção contra a Tortura, punindo o ilícito penal onde quer que tenha sido perpetrado.

Paralelamente ao modelo de justiça punitiva, ou melhor, antes mesmo da Lei 9.455/97, já havia sido editada uma lei reconhecendo como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1988 [13]. Trata-se da Lei 9.140/95 [14]. Com fundamento nesse diploma, parentes de pessoas perseguidas pelo regime de exceção recorreram ao Poder Judiciário, pleiteando indenização para compensação de danos morais, o que ensejou, nas lides instauradas, divergências jurídicas de ordem processual e material, conforme se exporá, adiante, ao menos em linhas gerais.

Antes, contudo, cabe uma reflexão preliminar. A Lei em exame objetiva tão-somente reparar uma dívida do Estado com parentes de vítimas (e com as próprias vítimas) que, em muitos casos, sequer chegaram a conhecer as circunstâncias que envolveram a prisão e o desaparecimento de filhos, pais e demais parentes, pessoas que se lançaram à combativa atuação política e que defenderam idéias consideradas contrárias à vontade política imposta pelo grupo detentor do poder e, nesse contexto, foram detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias.

O intervalo histórico delimitado pela própria lei faz suscitar a lembrança de alguns atos típicos de um regime ditatorial: supressão das liberdades públicas, perseguição política, prisão, tortura, "desaparecimento" e morte, sendo que, em muitos dos casos, sequer se lograva localizar os restos mortais da vítima, peregrinando, seus parentes, numa incessante jornada, a buscar, em repartições públicas, dependências policiais etc., informações sobre os desaparecidos políticos.

Nesse contexto, integra, a Lei 9.140/95, o modelo de justiça reparadora em razão de grave violação de direitos fundamentais.

Feita essa breve digressão, passa-se a discorrer sobre as divergências de interpretação e aplicação da Lei 9.140/95, e, nesse sentido, tem-se verificado, em alguns casos, uma discussão em torno do prazo prescricional para o ajuizamento de ações indenizatórias que, segundo a jurisprudência, foi reaberto pelo referido Diploma. Com efeito, a União tem sustentado que tal prazo, a partir do advento da Lei 9.140/95, é qüinqüenal em observância ao art. 1º do Decreto 20.910/32, afirmando ainda que a reabertura dos prazos prescricionais pela Lei 9.140/95 tem como marco inicial a data dos fatos e somente se aplica aos desaparecidos políticos e não ampara as pessoas (vítimas) que estejam vivas.

O STJ, entretanto, aplicando entendimento diverso, já fixou como marco inicial do prazo prescricional a data de publicação da Lei 9.140/95, sob o fundamento de que somente com a edição da Lei 9.140/95 é que surgiu o direito público subjetivo a pleitear judicialmente a reparação pelos atos de atrocidade perpetrados durante o regime militar (RESP 524.889 - PR). Também tem afastado ainda a incidência do prazo qüinqüenal do Decreto 20.910/32 ao juízo de que, em sede de violação de direitos fundamentais, a imprescritibilidade deve ser a regra. Por fim, vem entendendo, a Corte Superior, que a Lei nº 9.140/95 não limitou seu alcance aos desaparecidos políticos, e sim abrangeu todas as ações indenizatórias decorrentes de atos arbitrários cometidos durante a ditadura política brasileira, incluindo-se os que foram submetidos a medidas constritivas de liberdade e sofreram torturas naquele período. Nesse sentido, confiram-se os precedentes abaixo transcritos:

ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA DURANTE A DITADURA MILITAR. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO. I - "Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva. " (REsp nº 379.414/PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 17/02/2003, p. 225)...II - O artigo 14 da Lei nº 9.140/95 não restringiu seu alcance aos desaparecidos políticos, pelo contrário, ele abrangeu todas as ações indenizatórias decorrentes de atos arbitrários do regime militar, incluindo-se aí os que sofreram constrições à sua locomoção e torturas durante a ditadura militar. Em assim fazendo, reabriram-se os prazos prescricionais quanto às indenizações pleiteadas pelas pessoas ilegalmente presas e torturadas durante o período. III - Recurso especial improvido. (REsp 529.804/PR, rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, unânime, julgado em 20/11/2003, DJ de 24/05/2004).

ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO. 1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição. 2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva. 3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática. 4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal. 5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos. 6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preocupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano. 7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau. (REsp 379.414/PR, rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, maioria, julgado em 26/11/2002, DJ de 17/02/2003). (grifei)

APELAÇÃO CÍVEL Relator DESEMBARGADOR FEDERAL PAES RIBEIRO Órgão Julgador SEXTA TURMA Publicação 23/06/2003 D.J. p. 131 Data da Decisão (07/04/2003). CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DITADURA MILITAR.PERSEGUIÇÃO POLÍTICA, PRISÃO E TORTURA, ANISTIA, DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. RELAÇÃO DE CAUSALIDADE DEMONSTRADA. CARÊNCIA DE AÇÃO NÃO CARACTERIZADA. NÃO-OCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO INDENIZAÇÃO DEVIDA. 1. Subsiste o interesse processual dos anistiados políticos de ingressar em juízo, objetivando a reparação por dano material, mesmo após o advento da Lei 10.559/02, prevê o pagamento de indenização em casos tais. Isso porque o legislador, ao condicionar o pagamento, via administrativa, à aceitação do valor da forma legalmente estabelecidos, não teve a intenção (nem poderia fazê-lo) de elidir o interesse desses cidadãos de continuar o pleito na via jurisdicional, com o escopo de obter a indenização no valor que consideram devido. 2. É inaplicável o prazo qüinqüenal previsto no Decreto nº 20910/32 nas ações em que se busca o pagamento de indenização em face de perseguição política, prisão e tortura durante o regime militar. Nesses casos, (...) Da mesma forma, a alegação de prescrição também não merece prosperar. Isso porque, não obstante ter sido apontado o ano de 1970 como sendo o ano do desaparecimento de Marcos Antônio Dias Baptista, sua morte só veio a ser oficialmente reconhecida pela Lei 9.140, publicada no D.O.U. de 05 de dezembro de 1995, o que, pelo princípio da actio nata, obsta o acolhimento dessa prejudicial de mérito, porquanto, antes do reconhecimento oficial da aludida morte, não se poderia computar o prazo prescricional para a propositura da respectiva ação de indenização. (grifei)

Em outro julgado, a 1ª Turma do STJ entendeu pela imprescritibilidade das ações indenizatórias de reparação de dano ajuizadas em decorrência de tortura por motivos políticos, durante a ditadura militar, ao fundamento de que tais ações envolvem direitos da personalidade que, além de inalienáveis, são imprescritíveis:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PRISÃO ILEGAL E TORTURA DURANTE O PERÍODO MILITAR. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL PREVISTA NO ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. NÃO-OCORRÊNCIA. IMPRESCRITIBILIDADE DE PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DURANTE O PERÍODO DA DITADURA MILITAR. RECURSO INCAPAZ DE INFIRMAR OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO DESPROVIDO. 1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar, afastando, por conseguinte, a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto 20.910/32. Isso, porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis abusos e violações dos direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa humana. 2. "Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade" (REsp 816.209/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 3.9.2007). 3. "No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto-Lei n. 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento as suas pretensões" (REsp 1.002.009/PE, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 21.2.2008). 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 970.753/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 12/11/2008) (grifei)

Nesse passo, a prática da tortura, e demais atos arbitrários no contexto do regime de exceção democrática, representou e representa grave atentado a um dos mais expressivos dos direitos fundamentais, uma flagrante ofensa à dignidade da pessoa humana, valor intocável que foi alçado a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CR, artigo 1º, inciso III) e sem o qual não se assegura o mais elementar atributo que se deve conferir ao ser humano que é o de possuir uma existência digna. O entendimento favorável à imprescritibilidade, no plano da justiça reparadora em análise, almeja garantir a real observância à prevalência de um direito fundamental universal. Não se pode mesmo fixar prazo prescricional quando se pretende afirmar é um direito inalienável à dignidade.


4. CONCLUSÃO

Considerando que a proibição da tortura está profundamente enraizada no direito interno e internacional e representa uma negação ilegítima, arbitrária e inaceitável dos direitos humanos, devem os Estados, paralelamente à proteção que se exercita nos modelos de justiça punitiva e de justiça reparadora, honrar as suas obrigações internacionais, respeitar as regras do jus cogens e dos tratados internacionais sobre direitos humanos, adotando as medidas adequadas e suficientes para impedir e reprimir a prática da tortura e minorando, quando já consumado o ilícito, as conseqüências causadas por este ato repulsivo, sem olvidar a devida prestação de assistência às vítimas e punição dos infratores. Pela pertinência com a linha de exposição que se desenvolve, oportuna a recomendação de Flávia Piovesan, notadamente sobre algumas das medidas adotáveis no plano doméstico, confira-se:

"...Seja no Brasil, Abu Ghraib ou Guantánamo, a prática da tortura se manterá na medida em que se assegurar a impunidade de seus agentes. Como já disse o então relator especial da ONU, Nigel Rodley, a tortura é um "crime de oportunidade", que pressupõe a certeza da impunidade. O combate ao crime de tortura exige a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas, sob o atento monitoramento da sociedade civil. De um lado, é necessária a criação e manutenção de mecanismos que eliminem a "oportunidade" de torturar, garantindo a transparência do sistema prisional-penitenciário. Por outro lado, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, demandando do Estado o rigor no dever de investigar, processar e punir os seus perpetradores, bem como de reparar a violação. Enquanto persistir a tortura em dependência policial ou prisional e enquanto se tolerar que os condenados a pena privativa de liberdade devam ter uma pena adicional por meio de tortura, maus tratos e condições degradantes, os padrões democráticos e civilizatórios restarão fortemente comprometidos. Isto porque a tortura revela, sobretudo, a perversidade do Estado que, de guardião da legalidade e de direitos, converte-se em atroz violador da legalidade, ao afrontar o direito fundamental à integridade física e mental de toda e qualquer pessoa, lançando-se no marco da delinqüência, no brutal exercício da violência, que avilta a consciência ética contemporânea..." [15]

O direito de não ser torturado, portanto, é um direito humano fundamental que requer proteção a qualquer tempo e em todas as circunstâncias. E o repúdio a essa odiosa prática - intensamente exercida no período delimitado pela lei 9.140/95, mas ainda presente em tempos atuais [16] -, deve se materializar de forma ininterrupta e efetiva em todas as esferas, tanto no direito interno dos Estados quanto no Direito Internacional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação penal especial.São Paulo: Saraiva, 2006.

Direito Internacional Humanitário: O que é o direito internacional Humanitário (D.I.H.)?, disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/direito-internacional-humanitario/sobre-dih.html. Acesso em 08.10.2008.

DUPUY, René-Jean. O direito internacional.Coimbra:Livraria Almedina, 1993.

KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales.trad. por Florencio Acosta. México: Fondo de Cultura Econômica, 1986.

MATOS, José Dalmo Fairbanks Belfort de. Manual de direito internacional Público. São Paulo: Saraiva: EDUC, 1979.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado.5ª edição, ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora RT, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Combate à tortura. Disponível em http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=429&Itemid=2.

RANGEL, Vicente Marotta. Direito e relações internacionais. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.

REZEK, José Francisco, Direito internacional público: curso elementar. 7º edição, revista e atualizada – São Paulo: Saraiva, 1998.


Notas

  1. Mensagem do Secretário-Geral da ONU Kofi Annan, por ocasião do dia internacional de apoio às vítimas da tortura. Disponível em: <http://www.nossosaopaulo.com.br/Reg_SP/Barra_Escolha/ONU_VitimasTortura.htm>. Acesso em 06.10.2008.
  2. Nos termos do artigo 53 da Convenção de Viena sobre os Tratados, "uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza." (REZEK, 1998, p. 119)
  3. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
  4. da  Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, representa um dos documentos básicos da ONU, prescrevendo o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações. No seu texto, são enumerados os direitos humanos que não podem ser violados.

  5. Também conhecida como Convenção Européia dos Direitos Humanos, foi adotada pelo Conselho da Europa em 1950, entrando em vigor em 1953. Tem por escopo, como a própria denominação sugere, proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Para assegurar o efetivo respeito aos direitos humanos e aos demais princípios estabelecidos pela Convenção, foi criado o órgão jurisdicional denominado Corte Européia dos Direitos Humanos (CEDH). Reza o artigo 3º da Convenção que "Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes".
  6. Adotado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16.12.1966. Aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 226, de 12.12.1991. Ratificado pelo Brasil em 24.01.1992. Promulgado pelo Decreto n.º 592, de 6.7.1992. "Artigo 7.º Ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes. Em particular, é interdito submeter uma pessoa a uma experiência médica ou científica sem o seu livre consentimento."
  7. Aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana (OUA) em Banjul, Gâmbia, em janeiro de 1981, e adotada pela XVIII Assembléia dos Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana (OUA) em Nairóbi, Quênia, em 27 de julho de 1981. Prevê, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, no seu artigo 5º: "Todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos."
  8. Trata-se do conhecido Pacto de São José da Costa Rica. Assim tem sido denominada a Convenção Americana de direitos Humanos pelo fato de ter sido assinada em San José, Costa Rica, no ano de 1969, por Estados-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos). O Brasil aderiu à Convenção no ano de 1992. A proibição da tortura no Pacto está prevista no artigo 5º, itens 1 e 2, com o seguinte teor, verbis: "Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano."
  9. Aberta à assinatura dos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) por ocasião do XV Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, que teve lugar em Cartagena das Índias, Colômbia, em 9 de dezembro de 1985. Ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989, aprovada pelo Dec. Leg. 5/89 e promulgada pelo Dec. 98.386/89, a Convenção fundamenta-se no que já dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no sentido de que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, assinalando a justificativa de que, para tornar efetivas as normas contidas nos instrumentos universais e regionais que tratam da tortura, é necessário elaborar uma convenção interamericana que previna e puna aludida prática. Para os efeitos da Convenção, considera-se tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. Concebe-se também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica (art. 2º). Segundo o teor do artigo 9º, os Estados-Membros comprometem-se a estabelecer, em suas legislações nacionais, normas que garantam compensação adequada para as vítimas de delito de tortura.
  10. Adotada pela Resolução 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984. Foi ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989 e promulgada pelo Decreto no 40, de 15 de fevereiro de 1991. Pelo Decreto nº 6.085, de 19 de Abril de 2007, o Brasil promulgou o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura, adotado em Nova York em 18 de dezembro de 2002, cujo objetivo é estabelecer um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
  11. São regras fundamentais do Direito Internacional Humanitário aplicáveis nos conflitos armados, as seguintes:
  12. "1. As pessoas postas fora de combate e aquelas que não participam directamente nas hostilidades têm o direito ao respeito das suas vidas e da sua integridade física e moral. Estas pessoa devem ser, em todas as circunstâncias, protegidas e tratadas com humanidade, sem qualquer distinção de carácter desfavorável. (...)

    4. Os combatentes capturados e os civis que se encontrem sob a autoridade da parte adversa têm direito ao respeito da sua vida, da sua dignidade, dos seus direitos pessoais e das suas convicções. Devem ser protegidos de todo o acto de violência e de represálias. Terão o direito a trocar notícias com as suas famílias e a receber socorros.

    5. Todas as pessoas beneficiarão das garantias judiciárias fundamentais. Ninguém será tido como responsável de um acto que não cometeu. Ninguém será submetido à tortura física ou mental, nem a penas corporais ou a tratamentos cruéis e degradantes.

    6. As partes num conflito e os membros das suas forças armadas não possuem um direito ilimitado na escolha dos métodos e meios de guerra susceptíveis de causar percas inúteis ou sofrimentos excessivos."

    Direito Internacional Humanitário: O que é o direito internacional Humanitário (D.I.H.)?, disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/direito-internacional-humanitario/sobre-dih.html, acesso em 08.10.2008.

  13. Lembra Fernando Capez que "até a edição desse diploma legal, a tortura era objeto apenas do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como do art. 121, § 2º, III, do Código Penal (homicídio qualificado pela tortura). Para os demais delitos, como o de lesão corporal ou abuso de autoridade, em que poderia haver o emprego de tortura, esta constituía mera circunstância agravante genérica, prevista no art. 61, II, d, do mesmo diploma legal. Neste contexto, a Lei 9.455/97 representou significativa evolução no combate á tortura, coibindo essa prática execrável." (CAPEZ, 2006, p. 654)
  14. Nesse sentido Fernando Capez, op. cit., p. 679. Em sentido diverso, entendendo ser hipótese de extraterritorialidade incondicionada toda a previsão do artigo 2º da Lei 9.455/97, Guilherme de Souza Nucci, in Código Penal Comentado, p. 91.
  15. Com a redação dada pela Lei 10.536/2002, o prazo, que inicialmente compreendia o período de 02 de setembro de 1961 até 15 de agosto de 1979, estendeu-se até a data coincidente com a da promulgação da Constituição da República de 1988.
  16. Por força do referido instrumento legal, a União instituiu a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos com a atribuição de proceder ao reconhecimento de pessoas desaparecidas, não relacionadas no Anexo da própria Lei; das pessoas que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham morrido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas; das que tiveram suas vidas ceifadas em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do Estado e das que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem detidas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder publico. Tem ainda a Comissão a atribuição de envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas caso haja indícios quanto ao local em que possam estar depositados.
  17. PIOVESAN, Flávia. Combate à tortura. Disponível em: <http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=429&Itemid=2.> Acesso em 12.10.2008.
  18. Assinala ainda, com maestria, Flávia Piovesan que "diversamente da prática da tortura perpetrada durante o regime militar, que era orientada por critérios político-ideológicos, a prática da tortura, na era da democratização, orienta-se fundamentalmente por critérios econômico-sociais, com forte componente étnico-racial, na medida em que suas vítimas preferenciais, conforme relatórios das Ouvidoriais de Polícia, são os jovens, negros e pobres." PIOVESAN, Flávia. Op. cit.

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CASTRO, Tony Gean Barbosa de. O tratamento da tortura no direito internacional e no direito interno: criminalização e a jurisprudência brasileira na dimensão da Justiça reparadora. Breves considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17856. Acesso em: 16 abr. 2024.