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A federalização dos crimes contra os direitos humanos

A federalização dos crimes contra os direitos humanos

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RESUMO

Analisa o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004. Aponta-o como instrumento de defesa dos direitos humanos, lastreado no garantismo e no acesso à justiça. Conclui que o IDC representa um avanço na tutela dos direitos fundamentais e no exercício da cidadania.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Cidadania. Garantismo. Acesso à Justiça. Incidente de Deslocamento de Competência.


lista de abreviaturas e siglas

EC - Emenda Constitucional

CF - Constituição Federal

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CP - Código Penal

CPP - Código de Processo Penal

CPT -Comissão Pastoral da Terra

IDC - Incidente de Deslocamento de Competência

OEA -Organização dos Estados Americanos

PGR -Procuradoria Geral da República

STF - Supremo Tribunal Federal

STJ - Superior Tribunal de Justiça

TPI -Tribunal Penal Internacional

sumário:1 INTRODUÇÃO. 2 DIREITOS HUMANOS. 2.1 O Que São Direitos Humanos?. 2.2 Grave Violação aos Direitos Humanos. 2.3 Direitos Humanos e Cidadania. 3 GARANTISMO E ACESSO À JUSTIÇA. 3.1 Efetivação das Garantias Fundamentais. 3.2 Acesso ao Poder Judiciário. 3.3 A Responsabilidade da União. 3.3.1 O Esgotamento dos Recursos Internos. 3.3.2 Caso Damião Ximenes. 4 INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA. 4.1 A Emenda Constitucional nº 45/2004. 4.1.1 Princípio do juiz natural. 4.1.2 Princípio da reserva legal. 4.1.3 Normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata. 4.1.4 O juízo privativo do Procurador-Geral da República. 4.2 O Caso Dorothy Stang. 4.2.1 A missionária. 4.2.2 O assassinato. 4.3 O Incidente de Deslocamento de Competência nº 1 – PA. 4.3.1 O pedido do Procurador-Geral da República. 4.3.2 O julgamento no STJ. 4.3.3 Temeridade da inovação judicial. 4.4 Projeto de Lei nº 6.647/2006. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por finalidade o estudo do recente instituto da federalização dos crimes contra os direitos humanos, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 2004.

Inicialmente abordam-se os aspectos materiais e os conceitos substantivos. Apresenta-se uma noção sobre os direitos humanos, quais as possíveis hipóteses a serem consideradas como graves violações, bem como sua relação com a cidadania.

Em um segundo momento abordam-se aspectos processuais, discorrendo-se acerca do garantismo e do acesso à justiça, buscando-se demonstrar como o instituto estudado representa uma forma de efetivação das garantias fundamentais e de acesso ao Poder Judiciário.

A responsabilidade da União no plano internacional em casos de violações aos direitos do homem demonstra a imprescindibilidade de assegurar-se à esfera federal mecanismos de atuação em tais casos. Aborda-se, assim, o esgotamento dos recusos internos e o primeiro caso de condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Finalizando, faz-se uma análise do primeiro incidente de deslocamento de competência, dos questionamentos surgidos no meio jurídico e de seus desdobramentos, da síntese do pedido e do julgamento, bem como, da proposta legislativa que amplia o alcance do instituto à esfera cível.

Também se contextualiza a atuação da missionária Dorothy Stang no labor com projetos de desenvolvimento sustentável junto aos trabalhadores rurais no interior do Pará, bem como seu assassinato e a proteção dispensada, a partir de então, aos defensores dos direitos humanos.


2 Direitos humanos

Para a boa compreensão do objeto de estudo do presente trabalho, a federalização dos crimes contra os direitos humanos, é imprescindível o exame das características dos seus conceitos.

O primeiro a ser abordado é o de direitos humanos, buscando-se ao final uma possível noção sobre o que sejam graves violações a tais direitos.

Também faz-se imprescindível a compreensão do conceito da cidadania. Isto porque, como será visto, o incidente de deslocamento de competência da justiça estadual para a justiça federal a fim de processar e julgar os crimes contra os direitos humanos, deve ser suscitado pelo Procurador-Geral da República perante o Superior Tribunal de Justiça. Todavia, a formação do convencimento e a provocação do chefe do Ministério Público da União poderá fazer-se por meio da representação de qualquer pessoa, por entidades da sociedade civil organizada etc, em um autêntico exercício de cidadania.

2.1 O Que São Direitos Humanos?

Hanna Arendt (apud PIOVESAN, 2006, p. 214) afirma que os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana em constante processo de construção e reconstrução.

Na contemporaneidade, pode-se afirmar que direitos humanos são os direitos fundamentais do ser humano, ou seja, direitos sem os quais a existência se torna inviável ou prejudicada, pois, fazem parte das necessidades básicas do indivíduo.

Para Dalmo de Abreu Dallari (2004, p.12):

Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condições mínimas necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos.

Significa dizer que existe um liame comum a todas as pessoas, sejam oriundas de quaisquer partes do mundo, de quaisquer classes sociais etc. Não importam as diferenças subjetivas existentes, no plano objetivo todas são detentoras da uma mesma característica, são seres humanos.

Não existe um segregamento sobre quem deva ou quem não deva ser destinatário de tais direitos, pois, o simples fato de existir enquanto ser vivo torna-o sujeito dos mesmo.

Apesar disso, atualmente, vive-se tempos de desvios de padrões convencionalmente aceitos onde a potência estadunidense, hegemônica belicamente no globo, tenta relativizar a dignidade de seres humanos taxando-os de terroristas e os atomizando. Assim, buscam convencer o mundo que de tais indivíduos não são seres dignos de receberem seus direitos fundamentais.

Chegou-se a um ponto absurdo de superação da teoria thatcheriana, segundo a qual não existe mais sociedade, apenas indivíduos e famílias. Até a existência dos indivíduos passou a ser relativizada para se aplicar ou não direitos humanos.

Tal fenômeno também pode ser observado em nível nacional, onde freqüentemente ouve-se o bordão reacionário direitos humanos para humanos direitos. Como se o fato de uma pessoa não amoldar-se nas prescrições de condutas do ordenamento jurídico a tornasse um animal que não o homem racional.

Ainda segundo os ensinamentos do professor Dalmo Dalari (2004, p. 15):

O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade de seres humanos. O sucesso social ou a conquista de riquezas, nada disso é válido ou merecedor de respeito se for conseguido mediante ofensas à dignidade e aos direitos fundamentais dos seres humanos.

Flávia Piovesan (2006, p. 216) afirma que a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, introduziu-se o conceito contemporâneo de direitos humanos, caracterizados "pela universalidade e indivisibilidade" dos mesmos, explicando:

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.

Atualmente, tais direitos podem ser classificados em cinco dimensões:

1.direitos civis e políticos;

2.direitos sociais, econômicos e culturais;

3.direitos de solidariedade e fraternidade;

4.direitos à democracia direta, à informação e ao pluralismo

5.direitos intergeracionais

Fala-se em dimensões, pois, uma categoria não exclui a outra, dada sua indivisibilidade. Eles não se sucessedem, pois, coabitam o mesmo éthos. Ensina Ingo Wolfgang Sarlet (1998, p. 47) que:

A teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial, na esfera do moderno "Direito Internacional dos Direitos Humanos".

A primeira dimensão compreende os direitos civis e políticos, como o direito à vida, à propriedade, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, à liberdade de manifestação, à liberdade de reunião e à liberdade de associação. É nela que "o ser humano passa a exigir do Estado seu espaço próprio, individual e livre, como sujeito do estamento social" (PAULA, 2006, p. 41).

Diferentemente da primeira categoria, que aponta para uma abstenção estatal [01], a segunda dimensão é composta por direitos de cunho prestacional. Exige-se que o Estado se movimente a fim de realizar direitos sociais como

a liberdade de sindicalização, do direito de greve; os demais direitos laborais como férias, décimo-terceiro salário, limitação da jornada de trabalho e repouso semanal remunerado, direito a adicionais por trabalho em locais insalubres e periculosos, e à indenização pelo exercício de horas extraordinárias, dente outros. (PAULA, 2006, p. 42)

Também os direitos econômicos ligados às relações de consumo, como os "serviços prestados pelos Estado ou por concessionárias, planos de assitência médica, relacionados ao sistema financeiro etc" e direitos culturais tais quais "o direito ao lazer, a universalização de teatros, cinemas, museus, patrimônio histórico, cultural, ambiental etc". (PAULA, 2006, p. 43)

A terceira dimensão se desloca da esfera individual do cidadão para se projetar sobre o difuso território das relações sociais. São os chamados direitos de solidariedade e fraternidade, que compreendem o

"direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à segurança, o direito à paz, o direito à solidariedade universal, ao reconhecimento mútuo de direitos entre vários países, à comunicação, à autodeterminação dos povos e ao desenvolvimento" (CUNHA, apud PAULA, 2006, p.44)

A existência de direitos humanos categorizados como sendo de quarta geração é defendida, entre outros, por Paulo Bonavides e Ingo Wolfgang Sarlet. Dizem respeito à democracia direta, à informação, ao pluralismo, e seriam o resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização no plano institucional que corresponda à derradeira fase de institucionalismo do Estado Social (PAULA, 2006, p. 46).

Dirley Cunha Jr. (apud PAULA, 2006, p 46) acrescenta a tal categoria os direitos contra manipulações genéticas, o direito à mudança de sexo e, em geral, os relacionados à biotecnologia.

Os direitos intergeracionais citados por Norberto Bobbio (1992, p. 63) integram a quinta dimensão dos direitos humanos, sendo aqueles destinados às futuras gerações, que impõe ao presente condutas condignas com o perpetuar da espécie e a sobrevivência do planeta.

Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujetos passivos, sem direitos (BOBBIO, 1992, p. 63).

Com os subsídios apresentados e a conceituação sobre o que são direitos humanos, passa-se, agora, à definição do conceito de grave violação aos mesmos.

2.2 Grave Violação aos Direitos Humanos

A conceituação sobre o que é um crime que caracterize uma violação aos direitos humanos não existe textualmente em nosso ordenamento jurídico. Vladimir Aras (2007) argumenta que uma série de classificações poderiam ser feitas com base no agrupamento dos delitos contra a pessoa previstos em nosso código penal, no rol dos crimes hediondos e até mesmo nos trazidos pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

Sustenta, porém, que todas elas padecem de vícios, seja por desconsiderar a legislação extravagante, seja por trazerem delitos que em nada se relacionam com os direitos humanos ou mesmo por serem específicas em demasia.

Afirma que considerar apenas os crimes contra as pessoas, previstos no CP, e os considerados hediondos por lei, deixariam de lado, por exemplo, crimes previstos em tratados internacionais. Por outro lado, tomando-se os crimes de competência do TPI, apenas delitos extremamente específicos, como os contra a humanidade por exemplo, seriam considerados.

Assim, o melhor entendimento segue a construção feita por uma Comissão de Procuradores do Estado e Procuradores da República enviada como sugestão à Câmara dos Deputados durante a tramitação da Emenda Constitucional nº 45/2004 - Reforma do Judiciário - por não restringir a intepretação de uma norma tuteladora de direitos humanos.

Toma-se por base a legislação pátria e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, de onde levantou-se crimes elencados esparsamente e cujo combate a República Federativa do Brasil, na pessoa jurídica de direito público externo da União, comprometeu-se a efetivar.

A construção, que é apresentada na obra de Flávia Piovesan (2007), contempla os seguintes crimes:

a) tortura;

b) homicídio doloso qualificado praticado por agente funcional de quaisquer dos entes federados;

c) praticados contra as comunidades indígenas ou seus integrantes;

d) homicídio doloso, quando motivado por preconceito de origem, raça, sexo, opção sexual, cor, religião, opinião política ou idade ou quando decorrente de conflitos fundiários de natureza coletiva;

e) uso, intermediação e exploração de trabalho escravo ou de criança e adolescente em quaisquer das formas previstas em tratados internacionais.

Após tal classificação, o próximo passo é a caracterização do que seja um crime grave. Tal definição é encontrada em nosso ordenamento jurídico no Decreto 5.015/2004, que internalizou a Conveção de Palermo contra o Crime Organizado Transnacional.

Dita o artigo 2 do tratado:

b) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;

O estabelecimento desses dois critérios serve apenas de parâmetro para a formação do convencimento do Procurador-Geral da República sobre a pertinência ou não do ajuzamento do incidente de deslocamento de competência.

Tal se dá, pois, a Constituição não apresentar qualquer rol de crimes e o IDC é norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata - se trata de norma garantidora de direitos fundamentais - como se verá adiante. Ensina André de Carvalho Ramos (2001, p. 33) que existe "uma cláusula aberta ou mesmo um princípio de não tipicidade dos direitos funtamentais"

De qualquer forma, não cabe ao STJ fixar qualquer rol sobre quais são os crimes graves contra os direitos humanos, já que é privativo do Parquet o incidente, tal como as denúncias em ações penais públicas incondicionadas e, por corolário, o juízo de valor sobre a conveniência e a oportunidade dos mesmos.

Será visto adiante, em capítulo próprio, que os limites ao alcance do instituto devem ser dados apenas por aquele que tem a competência exclusiva de sua invocação, sob pena de ser caracterizada uma inovação judicial restritiva de direitos humanos.

2.3 Direitos Humanos e Cidadania

O exercício da cidadania é um direito humano, cuja conceituação atual "expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo" (DALLARI, 2004, p.22).

Assim, remete-se à participação dos indivíduos nos atos do governo, como o direito de votar e ser votado, de apresentar projetos de lei por meio da inciativa popular, de participar de plebiscitos e referendos, de propor medidas judiciais como a ação popular e o mandado de segurança, entre outros.

Celso Lafer (1988, p. 155), discorrendo sobre os direitos humanos como construção da igualdade, cita a conclusão de Hannah Arendt sobre o conceito de cidadania, segundo a qual esta "é o direito de ter direitos".

No Brasil, a prova da cidadania para fins de ingresso em juízo é feita por meio do título eleitoral. Tal exigência apesar de prevista no artigo 1º, parágrafo 3º da Lei 4.717/65 não é arrazoada, pois, retira do rol dos cidadãos plenos aqueles jovens que por ideologia não se alistaram na justiça eleitoral antes dos dezoito anos de idade, ou ainda, dos conscritos durante a prestação do serviço militar obrigatório.

Dispõe a Lei da Ação Popular em seu artigo 1º que:

§ 3º - A prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda.

Já a Constituilção Federal, em seu artigo 14, dita a respeito daqueles que ingressam nas forças armadas que:

§ 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos.

Ficam, assim, durante todo o período de ingresso até o de dispensa ou efetivação no exército, marinha e aeronáutica, impedidos de ingressarem em juízo no exercício da cidadania caso não tenham se alistado na justiça eleitoral preteritamente.

Isso é no mínimo um paradoxo, pois, jovens que são doutrinados para agirem com amor à pátria e defenderem a soberania nacional são impedidos, por exemplo, de pleitear a anulação de um ato lesivo ao patrimônio do Estado.

Segundo a reflexão arendtiana

a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidade acidentais – o seu estatuto político – vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornando pura substância, perde a sua qualidade substancial, que é de ser tratado pelos outros como um semelhante. (LAFER, 1988, p. 151)

De qualquer forma, tal vedação não aplica-se quando tratar-se da provocação de um cidadão ao Parquet para que este peça a federalização de crimes contra os direitos humanos, vez que, não trata-se de ação judicial. Jurisdicional será apenas o incidente de deslocamento de competência, cuja propositura ao STJ é privativa do Procurador-Geral da Reública.

Não é necessário observar qualquer forma quando efetuar-se a representação, cabendo inclusive ser feita oralmente à secretaria da PGR, que durante atendimento ao público reduzirá as alegações a termo, encaminhando-as para análise. O procedimento segue o padrão das representações feitas ao Ministério Público, que por dever de ofício deve dar seguimento, seja pedindo a instauração de um inquérito policial, seja instaurando um inquérito civil ou simplesmente um procedimento administrativo.

Por tratar-se de matéria que não é da competência da Justiça Federal e, sucesivamente, de atribuição do Ministério Público da União, antes do julgamento favorável do IDC, o procedimento mais correto por parte da PGR é a autuação da representação como um procedimento administrativo para investigação de procedêcia das denúncias.

O professor Dalmo de Abreu Dallari (2004, p 25) assinala, ainda, que o direito da cidadania é ao mesmo tempo um dever:

Pode parecer estranho dizer que uma pessoa tem o dever de exercer seus direitos, porque isso dá a impressão de que tais direitos são convertidos em obrigações. Mas a natureza associativa da pessoa humana, a solidariedade natural característica da humanidade, a fraqueza dos indivíduos isolados quando devem enfrentar o Estado ou grupos sociais poderosos são fatores que tornam necessária a participação de todos nas atividades sociais.

No mesmo sentido, João Batista Herkenhoff (2004, p. 228) sustenta que direitos e deveres compõem as duas faces da cidadania, afirmando:

A cidadania não é apenas uma soma ou um catálogo de direitos. Temos também deveres, como cidadãos.

Muitos direitos são, ao mesmo tempo deveres: o direitos e o dever de votar e de participar da vida política; o direito e o dever de trabalhar; o direito de usufruir dos "direitos" estabelecidos pela Constituição e pelas leis e o dever de lutar por nossos próprios direitos, quer individual, quer coletivamente.

Fica visível que a representação ao Procurador-Geral da República solicitando a propositura do IDC é um ato de cidadania, vez que, oferece meios às pessoas de participarem e serem úteis à vida em sociedade, denunciando os casos de flagrante violação aos direitos humanos.

Nesta esteira, pode-se dizer que é a materialização do conceito atual de cidadania plena sustentado por Flávia Piovesan (2000, p. 295), pois, "envolve o exercício efetivo e amplo dos direitos humanos, nacional e internacionalmente assegurados".


3 GARANTISMO E ACESSO À JUSTIÇA

Após a conceituação acerca dos direitos humanos e da cidadania, passa-se a explanar sobre o garantismo e o acesso à justiça.

Se em um primeiro momento a abordagem deu-se em torno de elementos de direito material, agora fala-se em instrumentos do direito processual, apontando-se a federalização dos crimes contra os direitos humanos como ferramenta de acesso ao Poder Judiciário e de tutela dos direitos fundamentais.

Não basta apenas o reconhecimento da existência de direitos inerentes aos ser humano, há que garantir-se efetivamente a inviolabilidade dos mesmos e, em caso de transgressões, a efetiva punição daqueles que a perpetraram.

É o que defendem Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2003, p. 87), ao afirmarem que enquanto os direitos teriam por nota de destaque o caráter declaratório ou enunciativo, as garantias estariam marcadas pelo caráter instrumental, vale dizer, seriam os meios voltados para a obtenção ou reparação dos direitos violados.

3.1 Efetivação das Garantias Fundamentais

Para Alvaro Stipp (2006), a concepção de garantismo está intimamente ligada ao conceito de Estado de Direito, pois, também se destina a limitar e evitar a arbitrariedade do poder estatal.

O garantismo é um sistema sócio-cultural que estabelece instrumentos jurídicos para a defesa dos direitos e conseqüente defesa do acesso aos bens essenciais à vida dos indivíduos ou de coletividades, que conflitem com interesses de outros indivíduos, outras coletividades e/ou, sobre tudo, com interesses do Estado. Esses instrumentos jurídicos são as garantias, as armas jurídicas que visam proteger os cidadãos que abrem mão de parcela de sua autonomia em benefício da coletividade, entregando ao Estado o poder para que ele lhes propicie segurança, saúde, trabalho, etc.. Para estar seguro da realização desse desiderato por parte do Estado, as constituições do Estado de Direito prevêem instrumentos jurídicos expressos em limites, vínculos e obrigações impostos ao poder estatal, a fim de maximizar a realização dos direitos e minimizar suas ameaças.

Ensina Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 239) que os direitos individuais tornar-se-iam letra morta se não fossem acompanhados de ações judiciais que pudessem conferir-lhes uma eficácia compatível com a própria relevência dos direitos assegurados.

Pode-se citar como exemplos de garantias fundamentais contidas no artigo 5º da Constituição o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança (individual e coletivo), o mandado de injunção, a ação popular.

Não se devem confundir, no entanto, garantias fundamentais com remédios constitucionais. Não existe sinonímia entra as expressões. O que existe entre elas é uma relação de continência, pois as garantias abrangem não só os remédios constitucionais (habeas corpus, p. ex.) como as demais disposições assecuratórias da nossa lei fundamental. (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, p. 87)

Lastreado em tal entendimento, passa-se a ter mais uma garantia constitucional após a positivação do incidente de deslocamento de competência. Mesmo tendo o legislador constituinte derivado inserido-o fora do Título II da Constituição, o conteúdo do IDC é eminentemente o de uma ação garantidora dos direitos humanos, haja vista que a razão principal da mudança do foro de competência da justiça estadual para a federal é o asseguramento da persecução penal isenta e efetiva.

Não que uma esfera de competência seja mais capaz que a outra, porém, os organismos internacionais apontam muitas vezes a proximidade existente entre os violadores de direitos humanos e os responsáveis pela persecução criminal como fator principal de impunidade. É o que sustenta Fábio Konder Comparato (apud BONSAGLIA, 2006):

Nos últimos anos, vários organismos internacionais têm acusado o nosso País de negligência na apuração de responsabilidades em atos de grave violação de direitos humanos. O Governo da União, que representa o Brasil na esfera internacional, encontra-se freqüentemente em situação embaraçosa para responder a tais acusações, pelo fato de que a competência para a apuração dos crimes e o julgamento dos acusados, na quase totalidade dos casos, entra no âmbito da competência dos Estados federados. Acresce notar que esse desrespeito aos direitos humanos provém, com não rara freqüência, de atos ou omissões das próprias corporações da Polícia estadual, que são, em seguida, convocadas a exercer a tarefa de apuração de responsabilidades.

É possível resolver esse problema no quadro do vigente direito constitucional, ou, para alcançar-se a desejada solução, será necessário pensar numa reforma da organização federal de competências, nessa matéria? (...)

Ora, a organização federal do Estado é decidida, soberanamente, por cada País. Nenhum Estado federal, acusado de descumprir deveres jurídicos assumidos no plano internacional, pode, legitimamente, defender-se invocando o fato de que a alegada violação foi provocada por ato de Governo estadual ou municipal, e que o Governo da União, que representa o País no seio da commitas gentium, não tem competência constitucional para interferir na esfera de poderes reservada a outras unidades da federação. (...)Daí a manifesta conveniência de se incluir a apuração e julgamento desses crimes na esfera de competência federal. (...) .

A busca por uma maior isenção na investigação e no julgamento de crimes graves é uma garantia aos direitos humanos e não pode ser tratada por membros dos ministérios públicos estaduais, pelos integrantes das policiais civis e pelos magistradros estaduais como um desprestígo.

O corporativismo deve ceder lugar a uma visão realista das limitações instrumentais de muitos entes da federação, bem como, a visão progressista do direito, principalmente do direito internacional dos direitos humanos, deve quebrar velhos paradigmas calcados na processualística do século passado.

Não se haverá de cogitar-se aí de uma capitis diminutio dos judiciários locais ou dos Ministérios Públicos estaduais, os quais, principalmente em algumas unidades da Federação, apresentam um invejável nível de capacitação técnica e de organização. Todavia, em grande número de Estados, o que se verifica de fato é uma grande dificuldade por parte das autoridades locais em fazer valer mesmo os direitos humanos mais elementares. (BONSAGLIA, 2006)

Diante desse quadro, o Procurador da República Mário Luiz Bonsaglia (2006) reconhece também as imperfeições da Justiça Federal. Aponta, porém, uma significativa vantagem a ser destacada: o distanciamento institucional dos fatores locais de poder.

Exemplo mais notável de como a produção de provas para o processo pode ser comprometida por tais fatores de poder é o caso do massacre do detentos do Carandirú, em São Paulo. Mesmo tratando-se do estado-membro com amplos recursos, interesses escusos permitiram que ingerências prejudicassem as investigações.

A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos destacou no Relatório nº 34/00 - Caso 11.291 (Carandirú) - Brasil (2006):

A Comissão conclui que diferentes organismos do Estado de São Paulo e do Governo do Brasil realizaram investigações sobre os fatos. Embora todas elas tenham sido prejudicadas pelas atividades de encobrimento e destruição de provas, desenvolvidas pela Polícia Militar paulista e anteriormente descritas, torna-se evidente o contraste entre as realizadas pelos organismos do Estado de São Paulo, que tendem a minimizar e justificar as autoridades estaduais civis e militares e eximi-las de responsabilidade, e as efetuadas pelo Governo do Brasil, que chegam à conclusão, com base em provas, de que houve um massacre de prisioneiros e violações graves e sistemáticas por parte das autoridades policiais estaduais.

Nota-se a distinção manifesta entre o modo de agir dos órgãos estaduais, altamente contaminados por uma miríade de interesses, e a conduta dos órgãos federais – Conselho para a Defesa dos Direitos Humanos (órgão consultivo do Ministério da Justiça) e Conselho para Políticas sobre Crimes e Prisões –, que buscavam a verdade real sobre as violações perpretadas contra os direitos humanos.

Importante observar que já àquela época a CIDH apontava a inexistência no ordenamento nacional de mecanismos que permitissem a atuação dos órgãos federais como titulares da investigações e competentes para o julgamento do massacre, que violou direitos resgardados em tratados internacionais aos quais a República Federativa do Brasil se comprometera a cumprir.

A Comissão conclui também neste caso que não há, ou não funcionaram, na República do Brasil mecanismos eficazes do Governo nacional para obrigar as autoridades federais a atuar, no que tange a direitos humanos, de maneira coerente com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado nacional, ou para estabelecer, por meios federais, outros mecanismos de prevenção, ação e reparação que compensem tais deficiências estaduais. (OEA, 2006).

Também não passou ao largo dos problemas relacionados à condução do processo no Poder Judiciário Estadual e ao julgamento final dos acusados.

A Comissão conclui que os diferentes processos judiciais tramitados na justiça militar e na justiça comum paulista sofreram numerosos atrasos e adiamentos injustificáveis, deixaram de estabelecer a verdade dos fatos e as responsabilidades coletivas e individuais e não impuseram indenizações adequadas às vítimas e seus familiares. Conclui também que, apesar da já analisada destruição de provas pela Polícia Militar, havia outros meios de provar que teriam permitido uma investigação séria e profissional, e que não foram devidamente utilizados pela Promotoria e pelos magistrados competentes, o que contribuiu para a impunidade resultante. (OEA, 2006).

Outro caso pardigmático de violação de direitos humanos onde observou-se a interferência do poder local no curso da investigações foi o massacre de Eldorado dos Carajás. Assim manifestou-se a CIDH (2003):

A Comissão conclui que, embora não tenham sido esgotados todos os recursos da jurisdição interna, aplica-se a este caso a mencionada exceção de inexistência no direito interno do devido processo judicial para investigar e julgar as violações dos direitos humanos, prevista no artigo 46.2(a), da Convenção Americana.

Como se verá adiante, o esgotamento dos recursos internos é pressuposto para a provocação dos órganismos supranacionais. Entretanto, no caso do massacre dos trabalhadores sem terra, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu o caso pelo seguinte motivo:

O requisito do esgotamento prévio dos recursos internos se relaciona com a possibilidade que tem o Estado de investigar e punir as violações de direitos humanos cometidas por seus agentes, por intermédio de seus órgãos judiciais internos, antes de se ver exposto a um processo internacional. Ele pressupõe, no entanto, que exista no nível interno o devido processo judicial para investigar essas violações e que essa investigação seja eficaz, pois do contrário a Comissão Interamericana, em conformidade com o artigo 46.2(a), da Convenção, pode conhecer do caso antes de esgotados os recursos internos.

Um dos pressupostos essenciais do devido processo é a independência, autonomia e imparcialidade dos órgãos nacionais encarregados tanto de investigar como de punir as supostas violações dos direitos humanos.

A esse respeito, a Comissão considera que a Polícia Militar não goza da independência e da autonomia necessárias para investigar de maneira imparcial as supostas violações dos direitos humanos presumivelmente cometidas por policiais militares.

A mesma polícia que perpretou a grave violação de direitos humanos não pode ser a encarregada da colheita de provas. Não há qualquer garantia de efetiva tutela de tais direitos em casos como esse.

Com o advento do incidente de deslocamento de competência, tais questões ganharam um novo mecanismo de resolução. A transferência para a esfera federal da competência para investigar, processar e julgar crimes graves, passam a efetivar uma garantia aos direitos humanos.

3.2 Acesso ao Poder Judiciário

O acesso amplo ao judiciário é um dos sustentáculos do Estado de Direito, comportando tanto a idéia de que toda lesão de direito pode ser levada ao conhecimento do Poder Judiciário quanto a de que a toda decisão definitiva sobre uma controvérsia jurídica só pode ser exercida por tal poder. (BASTOS, 2001, p. 221).

Estabelece o inciso XXXV do artigo 5º de nossa Constituição que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Isto significa que lei alguma poderá auto-excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação. (BASTOS, 2001, p. 222)

Nossa carta maior, no incisso XXXIV do artigo 5º, também assegura à todos, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder. Para José Afonso da Silva, a origem de tal direito nasceu na Inglaterra durante a Idade Média.

É o right of petition que resultou das Revoluções inglesas de 1628, especialmente, mas que já se havia insinuado na própria Magna Carta de 1215. Consolidou-se com a Revolução de 1689 com a declaração do direitos (Bill of rigths). Consistia, inicialmente, em simples direito de o Grande Conselho do Reino, depois o Parlamento, pedir ao Rei sanção das leis. Não foi, porém, previsto na Declaração francesa de 1789. Veio a constar, enfim, das Constituições francesas de 1791 (§ 3º do título I: La liberté dádresser aux constituées des pétitions signées individuellment) e de 1793 (Declaração de Direitos, art. 32: Le droit de présenter des pétitions aus dépositaires de l’autorité publique de peut, en aucun cas, être interdit, suspendu ni limité). (apud FIGUEIREDO E SILVA, 2003, p. 31)

Figueiredo e Silva (2003, p. 32) sustenta tratar-se de um direito político que pode ser exercido individual ou coletivamente, dirigindo-se à defesa tanto de direitos pessoais como da própria Constituição, das leis ou do interesse geral.

Como já explanado anteriormente, a competência para propositura do IDC ao Superior Tribunal de Justiça é privativa do Procurador-Geral da República. Assim sendo, o direito de petição garantido aos cidadãos brasileiros neste caso deve ser exercido perante à Procuradoria Geral da República.

O cidadão não pode invocar diretamente em juízo a federalização de uma investigação ou de um processo, devendo peticionar àquele que tem o múnus público para tanto. Isto representa um caminho indireto de acesso ao poder judiciário e, diferentemente da forma que se dá na via sedimentada de nossa processualística, não deve sofrer qualquer restrição.

Pode ser feita por petição oral, escrita, enviada por meio postal, eletrônico ou via fac-símile, sem a participação de advogado, sem a necessidade de qualquer forma e sem custos. A secretaria da PGR se encarregará de autuar o pedido e encaminhar ao Procurador-Geral da República.

Este verificará a existência ou não de verossimilhança nos fatos narrados. Em caso positivo, instaurará um procedimento administrativo onde se colherá as informações necessárias à formação de seu convencimento quanto à necessidade e a adequeção do deslocamento de competência.

3.3 A Responsabilidade da União

A República Federativa do Brasil, na pessoa jurídica de direito público externo da União, é responsável internacionalmente pelas obrigações assumidas ao ratificar instrumentos supranacionais (GALLI; DULITZKY, 2000, p. 56).

Dessa forma, mesmo quando uma violação aos direitos humanos - constantes em tratados - for perpetrada na esfera estadual, distrital ou municipal, é o Estado brasileiro que responderá perante os organismos internacionais.

A responsabilidade internacional é imputada ao Estado quando este não utilizou todos os meios à sua disposição para sanar e reparar uma violação aos direitos humanos ocorrida em seu território. A utilização de todos os meios disponíveis implica numa obrigação de executar de forma diligente e sem dilações as atividades específicas que permitam aos indivíduos o gozo de seus direitos. (GALLI; DULITZKY, 2000, p. 58)

Diante deste quadro, nada mais sensato que possibilitar a transferência para a competência federal de casos onde hajam graves violações aos direitos humanos, pois, caberá à União as reparações às vítimas em caso de omissão dos outros entes federados.

3.3.1 O Esgotamento dos Recursos Internos

A proteção dos direitos básicos da pessoa humana, para Cançado Trindade (1991, p. 4), não se esgota e nem poderia esgotar-se na atuação do Estado. A competência nacional exclusiva, segundo o internacionalista, afigura-se como um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de soberania, que é inteiramente inadequada no plano das relações internacionais,

porquanto originalmente concebida, tendo em mente o Estado in abstracto (e não em suas relações com outros Estados), e como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria de um ordenamento de subordinação, claramente distinto do ordenamento internacional, de coordenação e cooperação, em que todos os Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais. (TRINDADE, 1991, p. 4)

Superou-se a idéia de jurisdição nacional exclusiva, reafirmando-se que tais direitos protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado (TRINDADE, 1991, p. 7).

Atualmente, os brasileiros possuem acesso direto aos organismos internacionais, como o Tribunal Penal Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, todavia, é imperioso que todos os recursos cabíveis no ordenamento jurídico pátrio sejam invocados antecipadamente. Exceção há apenas quando trata-se de direitos humanos, onde existe uma flexibilidade na regra.

Para tais casos, o esgotamento dos recursos internos pode ser relativizado. Citando uma decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, Cançado Trindade (1997, p. 251) afirma que a regra do esgotamento não é absoluta e não deve ser de aplicada automaticamente, havendo necessidade de se observar as circunstâncias particulares de cada caso concreto. Segundo ele, deve-se

levar realisticamente em conta não só a existência formal de recursos no ordenamento jurídico interno do Estado em questão, mas também o "contexto geral jurídico e político" em que tais recursos operam e as "circunstâncias pessoais" dos demandantes. (TRINDADE, 1997, p. 251).

No sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, têm-se a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos. A Comissão é uma entidade autônoma da OEA, com funções de caráter político diplomático – promocional, consultivo e de proteção dos direitos humanos –, além de atribuições jurisdicionais quanto ao recebimento dos casos individuais de violações de direitos (GALLI; DULITZKY, 2000, p. 61).

O Brasil já foi diversas vezes submetido ao constrangimento internacional público de ter imputado a sí violações de direitos humanos em casos analisados pela CIDH, como os já citados Massacre do Carandirú e Eldorado dos Carajás, por exemplo. Todavia, não há no âmbito da Comissão instrumentos que vão além da divulgação de um relatório anual condenando os Estados, fazendo recomendações para solução do problema denunciado e encaminhando casos para julgamento da Corte.

Este sim é um tribunal jurisdicional da OEA, com funções contenciosas, a cuja competência o Brasil se submete. No ano de 2006, deu-se a primeira condenação brasileira no âmbito do tribunal por violação aos direitos humanos, no caso conhecido como Damião Ximenes.

3.3.2 Caso Damião Ximenes

Em 1° de outubro de 2004, a CIDH submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso Damião Ximenes Lopes, que resultou na primeira condenação do Estado brasileiro no tribunal supranacional.

Damião foi internado em 1º de outubro de 1999 para receber tratamento psiquiátrico na Casa de Repouso Guararapes, centro de atendimento privado que operava no âmbito do sistema público de saúde do Brasil, no Município de Sobral, Estado do Ceará.

Damião era portador de deficiência mental e foi submetido a condições desumanas e degradantes de hospitalização, vitimado por golpes e ataques contra sua integridade pessoal por parte dos funcionários da instituição enquanto encontrava-se ali para tratamento, vindo a falecer após três dias de internação.

A Corte decidiu por unanimidade:

Admitir o reconhecimento parcial de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes (...)

Declarou, também por unanimidade, que:

O Estado violou, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, tal como o reconheceu, os direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 119 a 150 da presente Sentença.

O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, o direito à integridade pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 155 a 163 da presente Sentença.

O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 170 a 206 da presente Sentença.

Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 251 dessa mesma Sentença.

E condenou o Estado Brasileiro :

O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos parágrafos 245 a 248 da presente Sentença.

O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII relativo aos fatos provados desta Sentença, sem as respectivas notas de pé de página, bem como sua parte resolutiva, nos termos do parágrafo 249 da presente Sentença.

O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente Sentença.

O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, no prazo de um ano, a título de indenização por dano material, a quantia fixada nos parágrafos 225 e 226, nos termos dos parágrafos 224 a 226 da presente Sentença.

O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e para os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, no prazo de um ano, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 238, nos termos dos parágrafos 237 a 239 da presente Sentença.

O Estado deve pagar em dinheiro, no prazo de um ano, a título de custas e gastos gerados no âmbito interno e no processo internacional perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a quantia fixada no parágrafo 253, a qual deverá ser entregue à senhora Albertina Viana Lopes, nos termos dos parágrafos 252 e 253 da presente Sentença.

Supervisionará o cumprimento íntegro desta Sentença e dará por concluído este caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto nesta Sentença. No prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à Corte relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento.

O Juiz Sergio García Ramírez deu a conhecer à Corte seu Voto Fundamentado e o Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade deu a conhecer à Corte seu Voto Separado, os que acompanham a presente Sentença.

Nota-se como mesmo tendo sido perpretado no âmbito do estado do Ceará, as sanções foram impostas à União. Casos como esse demonstram como o incidente de deslocamento de competência torna-se imprescindível para estabelecer-se um novo marco no tratamento das violações de direitos humanos no Brasil.


4 O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

Feitas as considerações acerca dos aspectos materiais e processuais da federalização dos crimes graves contra os direitos humanos, passa-se à investigação do incidente de deslocamento de competência, apontando sua origem, as controvérsias surgidas em torno do instituto e a análise do primeiro caso onde buscou-se a federalização.

4.1 A Emenda Constitucional nº 45/2004

A emenda constitucional nº 45/2004, popularmente conhecida como reforma do judiciário, surgiu de uma proposta (PEC nº 96) do então deputado federal Hélio Bicudo, no ano em 1992.

Tramitou no Congresso Nacional por mais de uma década, sendo aprovada em dezembro de 2004, e trouxe em seu bojo o ideário defendido pelas entidades de defesa dos direitos humanos, qual seja, a federalização dos crimes que caracterizem graves violações aos direitos humanos.

Acrescentou, assim, o inciso V-A e o parágrafo 5º ao artigo 109 da Constituição, ampliando a competência da Justiça Federal.

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;

§ 5o - nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Conforme anteriormente citado, Flávia Piovesan (2004) aponta os crimes de tortura, homicídio doloso qualificado praticado por agente funcional de quaisquer dos entes federados, praticados contra as comunidades indígenas ou seus integrantes, homicídio doloso motivado por preconceito de origem, raça, sexo, opção sexual, cor, religião, opinião política ou idade ou quando decorrente de conflitos fundiários de natureza coletiva e o de uso, intermediação e exploração de trabalho escravo ou de criança e adolescente em quaisquer das formas previstas em tratados internacionais, como crimes passíveis de serem considerados graves violações aos direitos humanos, resguardados em tratados internacionais dos quais Brasil é signatário.

A doutrinadora e militante dos direitos humanos aponta a responsabilidade da União como justificativa para a necessidade de federalização:

considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir. Todavia, paradoxalmente, em face da sistemática vigente, a União, ao mesmo tempo em que detém a responsabilidade internacional, não detém a responsabilidade nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processar e punir a violação, pela qual internacionalmente estará convocada a responder. (PIOVESAN, 2004)

Sem embargos deste entendimento, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) ingressou em maio de 2005 com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3486 (BRASIL, 2005c).

A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2005), relata que segundo a AMB:

a mudança nos procedimentos para o julgamento de crimes contra os Direitos Humanos ampliou a competência da Justiça Federal, criando uma "competência penal absolutamente extravagante, caracterizada por uma flexibilidade insustentável" e criadora de insegurança quanto às decisões tomadas pela Justiça Estadual, atentatória ao art. 5º, XXXIX da CF. A entidade alegou que a Emenda Constitucional não define o que é uma "grave lesão aos Direitos Humanos", tampouco quais tipos de crimes deveriam ser relacionados a essa condição. Entende necessária lei regulamentadora para definir tais critérios. Também vê inconstitucionalidade na subtração da competência do júri popular para julgar os crimes dolosos contra a vida.

Maluly (2005) relembra que mesmo antes da previsão constitucional agora combatida por parcela dos magistrados e membros do Parquet, existia na legislação a previsão do deslocamento da investigação policial para a mesma categoria de crimes.

Nos termos da Lei 10.466/2002 (anexo b), a Polícia Federal pode proceder a investigação de infrações penais relativas à violação a direitos humanos, que o Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais que é signatário.

Na defesa do instituto do IDC pode-se citar, dente outros, Flávia Piovesan (2005), Renato Stanziola Vieira (2005), Jorge Malult Assaf (2005), Ela Wiecko Volkmer de Castilho (2005). Em sentido diverso cita-se Marcus Vinícius Amorim de Oliveira (2004), Ingo Wolfgang Sarlet (2005), Leonardo Furian (2005) e Leonardo Fensterseifer (2005).

4.1.1 Princípio do juiz natural

A AMB sustenta que o deslocamento de competência viola o princípio do juiz natural. Este significa que todos têm direito a um julgamento por um juízo ou tribunal preconstituído, com legitimidade em sua investidura jurisdicional. (TUCCI, 1989, p. 28).

José Frederico Marques (apud TUCCI, 1989, p. 29) pondera que a idéia de juiz natural contrapõe-se "não a juízo especial, mas a juízos de exceção ou instituídos para contingências particulares".

Não vislumbra-se no caso da federalização do crimes contra os direitos humanos a existência de um juízo de exceção ou voltado para casuísmos. O texto constitucional regula a jurisdição e a competência para processo e julgamento de tais delitos, prevendo que os juízes federais tornar-se-ão competentes para tanto após a aprovação do STJ.

Nota-se que tanto a jurisdição, representada pela Justiça Federal, quanto a competência, representada pelos juízes federais da subseção judiciária do local do delito, estão previamente instituídas no ordenamento jurídico. Não há a criação de um juízo após a ocorrência do fato.

Lauria Tucci (1989, p. 31) afirma que:

Só mesmo as modificações de competência através de normas regularmente editadas, bem como as substituições previstas em lei, o desaforamento e a prorrogação da competência, é que, na oportuna advertência de José Frederico Marques, "não entram em colisão com a aludida garantia", até porque – complementa – efetivados em regime de estrita legalidade.

O artigo 109 da Constituição tanto prevê os casos em que a federalização deve operar-se, como também define a competência dos juízes federais para julgamento dos casos. Diferentemente do que contesta a AMB, não há subtração da competência do tribunal do júri nos casos de crimes dolosos contra a vida, pois, este será realizado normalmente, só que na justiça federal.

4.1.2 Princípio da reserva legal

Para Rogério Lauria Tucci (2002, p. 220), o princípio da reserva legal é uma conseqüência constitucional do devido processo legal, constante do parágrafo XXXIX do artigo 5° da lei maior, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Um dos fundamentos da ação direta de insconstitucionalidade em que a AMB combate o incidente de deslocamento de competência é a violação a tal princípio, pois, o parágrafo 5° do artigo 109 não define o que seja uma grave lesão aos direitos humanos e nem quais tipos de crimes deveriam ser relacionados a essa condição.

Cesare Beccaria, ao definir o princípio da reserva legal, afirma que:

Apenas as leis podem fixar penas com relação aos delitos praticados; e esta autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade agrupada por um contrato social. (apud PRADO, 2000, p. 78).

Observa-se que o incidente de deslocamento de competência é um instrumento processual-constitucional, que em nada inova quanto à tipificação de condutas violadoras de bens jurídicos protegidos por nossas leis ou por tratados internacionais.

Não há qualquer tentativa, com a federalização, de se agravar penas ou de se criar tipos penais, pois, estes estão previamente definidos em nosso ordenamento.

4.1.3 Norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata

Classificam-se as normas que a EC 45/2004 acrescentou ao artigo 109 da Constituição como normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Isto dá-se em razão de versarem sobre direitos humanos. Ensina Flávia Piovesan (2003, p. 345) que em tais casos:

O princípio constitucional da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais intenta assegurar a força vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Isso significa que esse princípio investe os Poderes Públicos na atribuição constitucional de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos.

Paulo Bonavides (2004, p. 243), que emprega a tal espécie de norma a nomenclatura de norma constitucional imediatamente perceptiva, afirma que José Afonso da Silva foi um dos primeiros juristas no Brasil a formular uma classificação própria e autônoma das normas constitucionais e que é a aqui empregada.

Normas imediatamente preceptivas são, portanto, "no sentido corrente e convencional da expressão", como afirma um dos mais abalizados constitucionalistas que versaram o tema da eficácia das normas constitucionais, aquelas que diretamente "regulam relações entre cidadãos, e entre o Estado e os cidadãos." (BONAVIDES, 2004, p.251)

Tomando-se por base a disposição do parágrafo 1° do artigo 5°, não há qualquer necessidade de norma infra-constitucional regulamentadora dos dispositivos da federalização dos crimes graves contra os direitos humanos, como afirma a AMB, estando estes aptos a produzirem efeitos desde sua entrada em vigor.

4.1.4 O juízo privativo do Procurador-Geral da República

Como já afirmado anteriormente, o juízo sobre a conveniência e a oportunidade da propositura do IDC é exclusiva do Procurador-Geral da República. Pode-se afirmar que, tal como o ministério público detêm a exlusividade para o oferecimento das denúncias criminais, o chefe do Ministério Público da União também a tem para pedir a federalização de uma causa que verse sobre grave violação aos direitos humanos.

Analogicamente às ações penais, cabe apenas ao membro do Parquet federal a decisão sobre a caracterização ou não de um crime como sendo grave violação a tais direitos. Isso se dá, pois, nem mesmo o legislador constituinte derivado delimitou tal interpretação, que acertadamente deve ser ampla e irrestrita, servindo as construções doutrinárias apresentadas apenas de indicativos.

Tampouco cabe ao STJ decidir se uma violação seria ou não grave, bastando a verificação da previsibilidade do direito alegado em tratados internacionais e com conteúdo materialmente humanista.

4.2 O Caso Dorothy Stang

Passa-se a fazer um relato sobre a vida e as condições em que deu-se a morte da missionária Irmã Dorothy Stang. Após acontecimento bárbaro, que despertou a atenção da comunidade internacional para a precariedade com que o Brasil trata os defensores de direitos humanos, o governo federal se mobilizou e adotou prividências.

Foi instituída a política nacional de proteção aos defensores dos direitos humanos (anexo c), com a finalidade de estabelecer princípios e diretrizes de proteção e assistência à pessoa física ou jurídica, grupo, instituição, organização ou movimento social que promove, protege e defende os Direitos Humanos, e, em função de sua atuação e atividade nessas circunstâncias, encontra-se em situação de risco ou vulnerabilidade.

4.2.1 A missionária

Dorothy Mae Stang nasceu nos Estados Unidos em 7 de junho de 1931. Segundo Peres (2005), entrou para a Congregação Irmãs de Notre Dame de Namur da sua cidade natal (Dayton – Ohio), onde fez votos de ajuda aos pobres e aos marginalizados.

No ano de 1966 mudou-se para o Brasil, onde naturalizou-se, iniciando na cidade de Coroatá, Estado do Maranhão, um trabalho com pequenos agricultores que faziam parte das Comunidades Eclesiais de Base da localidade (CEBS). Buscavam, na esteira do pensamento do teólogo Leonardo Boff e da Teologia da Libertação, a efetivação da justiça social.

Tais agricultores, pessoas pobres que tinham em suas querências elemento de subsistência, foram pressionados pela alta concentração de terras dos latifúndios a deslocarem-se para a região central do Estado do Pará.

Desde a década de 80, a Terra do Meio (centro do Pará) é palco de intensos conflitos de terras envolvendo madeireiros e pequenos agricultores, que chegaram à região junto com a rodovia Transamazônica e os devaneios megalomaníacos dos generais presidentes.

Dorothy Stang, vislumbrando os novos problemas que tais trabalhadores teriam ao chegar a uma região pressionada pelo afluxo populacional, -muda-se para Anapu, onde inicia o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), buscando dar terras e assistência àqueles lavradores pauperizados que viviam sob o jugo da grilagem e do desmatamento desenfreado.

4.2.2 O assassinato

Em um episódio lamentável de nossa história, com repercussão internacional, na manhã de 12 de fevereiro de 2005 a missionária foi assassinada por Rayfran das Neves Sales (Fogoió) e Clodoaldo Carlos Batista (Eduardo). Enquanto ela caminhava pelo projeto que ajudou a implantar em Anapu, foi abordada por seus algozes, que lhe desferiram seis tiros a queima roupa.

Além dos executores, foram denunciados Amair Feijoli da Cunha (Tato), como intermediário, e Vitalmiro Bastos de Moura (Bida), como mandante do crime (BRASIL, 2005a).

Em 10 de dezembro de 2005, Rayfran foi condenado a 27 anos e Clodoaldo a 17 anos de reclusão. Eles eram réus confessos e revelaram em depoimento todos os detalhes do delito.

A versão apresentada por Rayfran afirmou:

‘Que, por volta das 7h30min, RAIFRAN e EDUARDO encontraram com IRMÃ DOROTHY há aproximadamente 150 metros do barraco de CÍCERO, no local exato onde foi encontrado o corpo da freira; Que, EDUARDO iniciou uma discussão com IRMÃ DOROTHY nos termos relatados no depoimento prestado na Policia Civil em Altamira na data de hoje; Que após IRMÃ DOROTHY ter lido o trecho da Bíblia, retirando-se do local e falando que "se tivesse de morrer morreria ali, pelo pessoal (referindo-se aos assentados do PDS)", QUE, IRMÃ DOROTHY virou as costas e prosseguiu em direção ao barraco onde seria realizada uma reunião; Que tendo em vista que CÍCERO estava próximo a IRMÃ DOROTHI e estava ouvindo os últimos trechos da discussão travada entre EDUARDO e IRMÃ DOROTHY o interrogado piscou para EDUARDO objetivando a confirmação se era para desferir os disparos mesmo na presença de CÍCERO; QUE, EDUARDO balançou a cabeça respondendo positivamente a pergunta do interrogado e em seguida chamou IRMÃ DOROTHY; Que, quando a freira virou de frente para o interrogado o mesmo efetivou o disparo no meio do corpo da vítima; Que, IRMÃ DOROTHY caiu ao chão de costas, tendo o interrogado aproximado o revólver de uma distância de 20 cm e efetuado mais um disparo nas costas e outros quatro na cabeça da freira; Que, todos os disparos foram efetivados do revólver calibre 38 fornecido por TATO para o interrogado, Que, quem haveria de efetivar os disparos seria EDUARDO mas na sexta-feira à noite passou a arma para o interrogado, afirmando que não teria coragem de atirar.’ (vide: fls. 79 do Anexo) (BRASIL, 2005b).

Já Clodoaldo sustentou:

‘Que antes de o interrogado e RAIFRAN saírem do barraco TATO falou para RAIFRAN "não é pra falhar dessa vez, que é pra fazer o serviço"; Que, encontraram IRMÃ DORATHY, tendo o interrogado sentado sobre o tambor e RAIFRAN permanecido de pé; Que, a freira cumprimentou os dois e falou que não poderiam plantar capim porque estavam cometendo crime ambiental e aquilo iria ser tirado porque seria uma área do PDS; Que, falou ainda sobre direitos da terra e que entendia a posição do interrogado e de RAIFRAN pois os mesmos eram apenas "soldados mandados"; Que, em certo momento IRMÃ DOROTHY ainda ficou de cócoras e mostrou alguns mapas da região e que no ramal onde estavam seria aproveitado os dois lados para fins de criação de PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável); Que, IRMÃ DOROTHY fez alguns comentários sobre procedimento que respondia pro supostamente oferecer armas para colonos acrescentando que "a única arma que possuía era essa aqui", puxando a Bíblia de dentro de sua bolsa; QUE, o interrogado recorda que o trecho da Bíblia lido por IRMÃ DOROTHY falava sobre direitos a um pedaço de terra e que Deus deixou as coisas para todo mundo utilizar; QUE, RAUFRAN piscou para o interrogado quando a IRMÃ DOROTHY ainda estava abaixada querendo confirmação do interrogado sobre a execução do crime, tendo o mesmo balançado a cabeça respondendo negativamente; QUE RAIFRAN piscou uma segunda vez quando IRMÃ DOROTHY terminou de ler a Bíblia, tendo o interrogado novamente sinalizado de forma negativa; QUE, neste momento CÍCERO já estava no local aproximadamente um metro e meio do interrogado, de RAIFRAN e a IRMÃ DOROTHY; QUE, após ter lido o trecho da Bíblia e de ter se despedido do interrogado e de RAIFRAN, este falou "pois é dona, desse jeito vai ficar difícil", tendo logo após sacado seu revólver calibre 38 e efetuado um primeiro disparo na direção do peito da IRMÃ DOROTHY, que caiu de bruços ao chão; QUE, no momento do primeiro disparo a freira possuía uma pasta branca, de plástico com algumas letras azuis ou pretas, tendo levantado as mãos antes de ser atingida; QUE, logo em seguida RAIFRAN efetuou outros disparos em IRMÃ DOROTHY, tendo o interrogado corrido para dentro do mato logo após o primeiro disparo, seguido de RAIFRAN, após ter efetuado todos os disparos;’ (fls. 88/89). (BRASIL, 2005b).

O intermediário do crime, Amair Feijoli da Cunha, foi condenado a 18 anos de reclusão em julgamento ocorrido em abril de 2006. O mandante recebeu a maior pena, de 30 anos de reclusão, em 15 de maio de 2007.

A motivação do assassinato, que ganhou repercussão internacional, foi o descontentamento do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura com o fato de uma gleba de terras que alegava lhe pertencer ser destinada ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável, que tinha na missionária sua maior liderança, além do trabalho emancipatório realizado junto aos pequenos agricultores.

4.3 O Incidente de Deslocamento de Competência Nº 1 – PA

Passa-se a analisar o primeiro incidente de deslocamento de competência da história de nosso ordenamento, com a verificação de seu trâmite, resultado e implicações.

4.3.1 O pedido do Procurador-Geral da República

No dia 3 de março de 2005, atendendo a pedido da Procuradoria da República no Estado do Pará, o Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles ajuizou no Superior Tribunal de Justiça o IDC que recebeu o número 1, por ser inaugural em nosso ordenamento, e a sigla PA, em referência ao Estado do Pará, de onde buscava-se deslocar a competência.

Amparou seu pleito no artigo 109, §5º da Constituição, alegando estarem presentes os dois requisitos para o deslocamento de competência, a saber:

a) a grave violação de direitos humanos; e

b) a garantia de que o Brasil cumpra com as obrigações decorrentes de pactos internacionais, firmados sobre direitos humanos.

Sustentou Cláudio Fonteles (BRASIL, 2005b):

Por certo que, situações claras, assim demonstradas, de desacreditar o trabalho daqueles que se dedicam, indiscutivelmente, à defesa dos direitos humanos implica no comprometer "o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos" a que o Brasil se obrigou.

Sem dúvida, outrossim, que a dupla nacionalidade da vítima, covarde e brutalmente assassinada, diga-se sempre, é indicador real da responsabilização do Brasil em Cortes internacionais, a que aderimos na proteção dos direitos humanos, justo por seu caráter universal, a ter-se o quadro retro-descrito, como propício.

Ainda, e por essa linha de argumentação, é notório que a Federação deslocou contingente real do Exército brasileiro, e delegados e agentes da polícia federal para o combate diuturno e incessante ao quadro de criminalidade constante e crescente, que, na área, as autoridades estaduais não lograram debelar.

Pede, portanto, o Procurador-Geral da República que a teor do artigo 1º, da Resolução nº 6/2005 seja o presente autuado como Incidente de Deslocamento de Competência, sendo distribuído na forma do Parágrafo único, do aludido artigo 1º.

Pede, a final, que seja o incidente conhecido e deferido para que a investigação, o processamento, e o julgamento dos mandantes, intermediários e executores do assassinato da irmã Dorothy Stang aconteça na Justiça Federal, no Estado do Pará.

O IDC foi recebido no STJ e julgado pela Terceira Seção daquele tribunal.

4.3.2 O julgamento no STJ

A Resolução STJ nº 6/2005 regulamentou a tramitação do Incidente de Deslocamento de Competência no âmbito daquele tribunal.

Dispõe o ato oficial:

Art. 1º. Fica criada a classe processual de Incidente de Deslocamento de Competência - IDC, no rol dos feitos submetidos a esta Corte, em razão ao que dispõe a Emenda Constitucional nº 45/2004 mediante o acréscimo do parágrafo 5º ao art. 109 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Cabe à Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça o julgamento da hipótese prevista no caput deste artigo.

Art. 2º. Fica sobrestado, até que este Tribunal delibere acerca do assunto, o pagamento de custas dos processos tratados nesta resolução que entrarem no Superior Tribunal de Justiça após a publicação da mencionada Emenda Constitucional.

Art. 3º. A Secretaria Judiciária, após aquiescência do Presidente da Corte, implementará todas as providências necessárias ao cumprimento desta resolução.

Art. 4º. Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação.

Assim agiu o STJ, pois, as normas que versam sobre direitos humanos têm aplicabilidade imediata, de acordo com artigo 5º, §1º de nossa Constituição. O processo (BRASIL, 2005d) recebeu o número 2005/0029378-4, sendo designado relator o Ministro Arnaldo Esteves Lima.

Em seu voto, o relator fixou três fatores que considerou imprescindíveis à procedência do deslocamento de competência:

a) grave violação a direitos humanos;

b) assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais;

c) a incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal.

Tal entendimento acabou por ampliar os requisitos que, no entendimento do Procurador-Geral da República, seriam apenas os dois explícitos no texto constitucional.

Segundo o Ministro-Relator:

Tais requisitos – os três – hão de ser cumulativos, o que parece ser de senso comum, pois do contrário haveria indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da União Federal, ferindo o Estado de Direito e a própria federação, o que certamente ninguém deseja, sabendo-se, outrossim, que o fortalecimento das instituições públicas – todas, em todas as esferas – deve ser a tônica, fiel àquela asserção segundo a qual, figuradamente, "nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco". Para que o Brasil seja pujante, interna e externamente, é necessário que as suas unidades federadas – Estados, DF e Municípios –, internamente, sejam, proporcionalmente, também fortes e pujantes.

Destarte, mesmo se fazendo presentes os dois requisitos previstos no § 5º do art. 109 da CF, a ausência do terceiro elemento que lhe é naturalmente implícito, para nós, afasta a sua concreta aplicação e, a par disso, coloca o Brasil ao abrigo da eventual submissão a julgamentos por Cortes Internacionais, porque ele não poderá ser acusado de ter-se omitido na investigação, julgamento e punição dos culpados, sempre fiel ao princípio da legalidade, pois um seu Estado-membro, com seu apoio, atua adequadamente em tal sentido. O feito, aliás, já se encontra em fase adiantada (art. 406 e segs. do CPP), estando os denunciados presos e prestes a serem submetidos a seu juízo natural, qual seja, o Tribunal do Júri estadual. (BRASIL, 2005d)

Assim sendo, votou pelo indeferimento do deslocamento da competência da Justiça Estadual do Pará para a Justiça Federal do Pará, ressalvando que não haveria óbice à investigação da Polícia Federal, nos termos da Lei nº 10.446/2002.

O Ministro Nilson Naves acompanhou o voto do relator, acrescentando que tal decisão não implicava em diminuição dos meios processuais de proteção de direitos humanos, salientando que:

Ambas as Justiças têm aptidões para exercitar a competência, e o que as distinguirá será o exame de cada caso, a par, obviamente, da presença do pressuposto constitucional. Isto é o que se recomenda: seja dada, em tese, ao incidente em questão interpretação estrita. Veja-se que, no caso de que estamos tratando, as indicações são todas no sentido de que a Justiça local vem cumprindo exemplarmente sua missão, tanto que o processo está prestes a ter por finda a sua instrução. (BRASIL, 2005d)

No voto do Ministro José Arnaldo da Fonseca, foi citada uma estatística da Comissão Pastoral da Terra, segundo a qual nos últimos 33 anos ocorreram 772 assassinatos relacionados à questão fundiária no Estado do Pará. Entretanto, houve apenas três casos onde os mandantes dos crimes foram julgados.

Ante esse quadro do Estado do Pará, caberia invocar-se o novo preceito constitucional para ter-se federalizada a competência para processar a apuração da responsabilidade pelo homicídio da missionária.

Acredito que o eminente Procurador-Geral da República, naqueles momentos do horrendo crime e de posse desses dados de contínua e permanente inatuação das instituições do Estado, levando a impunidade em crimes dessa natureza, animou-se a inaugurar o recém-criado instrumento jurídico constitucional.

No entanto, em razão da repercussão ruidosa interna e no exterior, envidaram os órgãos policiais do Ministério Público e do Poder Judiciário local em elucidar e trazer a público os autores do hediondo crime, prendendo-os, e a fase do processo já superou a da instrução.

Penso que assim, pelo temor inicial de perseverar-se na inércia, é que se acenou para o deslocamento de competência. Poder-se-ia, a pretexto didático, para outras unidades federativas, aplicar-se a federalização, todavia, não é o didatismo um de seus pressupostos, e é inegável, neste caso, que os esforços dos órgãos locais não se fizeram esperar, e a persecução penal se instaurou de pronto, faltando portanto o requisito da incapacidade de ação, advinda de inércia, descaso ou ausência de condições materiais, pessoais ou políticas. (BRASIL, 2005d).

Chamam a atenção nos votos proferidos que seguiram o relator as ponderações do Ministro Gilson Dipp (BRASIL, 2005d), que afirmou, in verbis:

[...] o Brasil, infelizmente, possui longa tradição de violação dos direitos humanos. Apesar de ser signatário de, praticamente, todas as convenções internacionais a respeito do tema, o Estado brasileiro mostrou-se ineficiente e omisso no tratamento condigno da questão. Há cerca de trinta processos por violação de direitos humanos em trâmite na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Certamente, dessas trinta reclamações ou representações, algumas delas, efetivamente, deverão chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, Corte esta a que o Brasil aderiu em relação a sua competência para lá ser julgado por tais violações. Esta é uma realidade.

Sobre a responsabilidade da República Federativa do Brasil, sustentou que:

A referida omissão não pode ser atribuída apenas aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ou ao Ministério Público. É uma omissão do Estado como um todo, ou seja, da União, dos Estados federados. Esta é uma realidade que devemos reconhecer e com a qual temos que conviver. Quantos crimes de tortura foram processados e julgados, seja para condenar seja para absolver? A nossa lei de tortura é recente.

Certamente, na linha de toda essa inspiração é que o constituinte resolveu, por meio da Emenda Constitucional n.º 45, dar tratamento de choque a essas violações, e em dois dispositivos.

O primeiro dispositivo é aquele pertinente à recepção dos tratados internacionais, que em tese, suplantou as diverências sobre a hierarquia dos mesmos. Detalha o Ministro que:

O primeiro deles é o § 3º do art. 5º da Constituição, que resolveu uma séria divergência doutrinária e jurisprudencial relacionada a saber se os tratados referentes a violação dos direitos humanos, celebrados pelo Brasil, teriam cunho de norma constitucional ou de norma infraconstitucional. As decisões do Supremo Tribunal Federal orientavam-se, de forma reiterada, no sentido de que, mesmo esses tratados, à luz da Constituição, deveriam ser tidos como normas infraconstitucionais. Na Emenda n.º 45, porém, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo Congresso Nacional por meio de suas duas Casa, serão equivalentes a emenda constitucionais, o que configura o reconhecimento explícito de que era necessário que a Constituição trouxesse um parâmetro para esses tratados internacionais, para aplicação interna.

Após tal introdução, passa a discorrer sobre o Incidente de Deslocamento de Competência:

O segundo dispositivo, grande momento da Emenda Constitucional n.º 45, foi a criação do Incidente de Deslocamento de Competência para a Justiça Federal, no caso de grave violação de direitos humanos, com a finalidade de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes dos tratados internacionais dos quais o Brasil fosse signatário.

Não tenho a menor dúvida de que a norma não é de eficácia contida. Ela pode ser aplicada.

Penso também que cabe, sim, ao Procurador-Geral da República, no exercício de seu juízo de exame a respeito do caso concreto, ser portador do pedido de deslocamento do mencionado incidente.

Da mesma forma, não vislumbro qualquer defeito no fato de o constituinte ou legislador não ter definido o que é grave violação dos direitos humanos, porque grave violação dos direitos humanos é qualquer ofensa a direito humano. Assim como o Brasil, bem como outros países, não conceituou – pela sua temeridade em assim fazê-lo –, o que é uma organização criminosa, ou o que é terrorismo, também não deve, sob pena de deixar fora de sua abrangência, definir o que é grave violação aos direitos humanos.

Seguindo o entendimento dos demais ministros votantes, Gilson Dipp afirma não ser o assassinado de Irmã Dorothy Stang um caso para se deslocar a competência da Justiça Estadual do Pará para a Justiça Federal:

Agora, parece-me, Sr. Presidente, que no caso deste Incidente de Deslocamento de Competência não basta o pressuposto da grave violação de direitos humanos, decorrente do cumprimento ou descumprimento de obrigações assumidas pelo Brasil. É preciso saber se o Estado federado usou das suas estruturas para dar uma adequada resposta à violação desses direitos.

Não basta a ofensa aos direitos humanos, é preciso que essa violação não tenha sido investigada, apurada, não tenha sido objeto da persecução penal e de processamento e julgamento.

Pergunta-se: as instituições locais do Estado do Pará – não importa o passado, porque violação de direitos humanos não é exclusiva da referida unidade da federação, mas do Estado Brasileiro –, mostraram-se falhas, ineficazes ou omissas na prevenção e apuração desta ofensa aos direitos humanos? O voto do eminente Sr. Ministro Relator e as manifestações aqui realizadas evidenciam que não.

Quanto ao processo, houve a investigação policial, com a participação da Polícia Federal, na forma da Lei n.º 10.456/2005, juntamente com a Polícia local na investigação deste crime, sem que essa lei ferisse o Princípio da Autonomia Federativa. O Ministério Público deu a sua resposta, denunciando os acusados, e o Poder Judiciário, por sua vez, também está fazendo a sua parte, pois recebeu a peça acusatória e está processando o feito, o qual já se encontra em fase de apreciação da pronúncia.

Portanto, não houve, de qualquer forma, segundo meu ponto de vista, falha no aparato preventivo-repressivo de investigação, da persecução penal, do processamento e do julgamento deste caso concreto pelo Estado Federado, Estado do Pará.

A votação unânime da Terceira Seção do STJ teve, ainda, a participação do Ministros Paulo Gallotti, da Ministra Laurita Vaz e do Ministro Hélio Quaglia Barbosa.

Para Castilho (2005), o pronunciamento judiciário impôs os primeiros limites ao instituto processual constitucional, que deve ser aceito apenas quando caracterizado a grave violação de direitos humanos, a afronta a tratado internacional de proteção a direitos humanos e a ineficácia ou omissão as autoridades estaduais.

4.3.3 Temeridade da inovação judicial

Tem-se o caso da decisão sobre o IDC um típico exemplo de inovação judicial. O Superior Tribunal de Justiça criou um requisito extravagante para procedência do pedido de federalização do caso Dotothy Stang.

Não encontra-se em qualquer dispositivo constitucional ou infra-constitucional a exigência de prova da inércia estadual, mas tão somente a caracterização da grave violação e a previsibilidade em tratado internacional do direito aviltado.

Infelizmente a decisão aponta para a restrição da garantia constitucional, indicando o esvaziamento do instituto. Sempre que houver um crime cuja gravidade leve o Procurador-Geral da República a pedir seu deslocamento de competência, os estados federados mobilizar-se-ão para demonstrar à opinião pública que os fatos estão sendo apurados com o devido rigor.

Ocorre que a pedra de toque do IDC não é a busca por celeridade na justiça estadual, mas sim o afastamento da jurisdição dos fatores locais de poder, a fim de evitar-se a produção direcionada de provas e o julgamento parcial. A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma que tais problemas ocorreram diversas vezes no Brasil.

Infelizmente trata-se de uma decisão há anos luz da realidade nacional, cujos casos de graves violações a direitos e de impunidade são a regra, como se observa exemplarmente nas decisões da CIDH e nas estatísticas da Comissão Pastoral da Terra citada anteriormente, segundo a qual, por exemplo, nos últimos 33 anos ocorreram 772 assassinatos relacionados à questão fundiária no Estado do Pará e em apenas três casos os mandantes dos crimes foram julgados.

Pode-se dizer que no caso Dorothy Stang todos os responsáveis pelo crime foram devidamente julgados e punidos. Entretanto, caso não fosse a pressão da comunidade internacional, da opinião pública e do governo federal sobre os órgãos estaduais do Pará, provavelmente seria mais um crime a integrar a vergonhosa estatística da CPT.

Essa exceção de maneira alguma pode ser sustentada como prova da razão do STJ sobre a necessidade de demonstrar-se a inércia estadual, pois, a inovação judicial do tribunal impôs uma visão restritiva de uma garantia de direitos humanos, o que é temerário.

As críticas de José Eduardo Faria (2002, p. 96) a uma cúpula do judiciário apegada em demasia aos procedimentos formais de natureza individualista, paradoxalmente, acabam por contemplar também a inovação judicial do STJ, pois, ambas desprezam o problema tradicional e sempre atual do direito, que é a questão da justiça.

4.4 Projeto de Lei nº 6.647/2006

O projeto de lei (anexo a) busca regulamentar o parágrafo 5° do artigo 109 da Constituição Federal, disciplinando o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal nas hipóteses de graves violações de direitos humanos.

Acertadamente, o projeto não faz qualquer definição sobre quais sejam as graves violações, sob pena de restringir-se uma norma cuja interpretação deve ser sempre a mais ampla possível.

Sustenta que o pedido pode ser feito em qualquer fase do inquérito policial ou do processo, ampliando o entendimento sobre a matéria a ser deslocada, que passa a abranger não só a penal, mas também a cível, haja vista a necessidade de reparações àqueles que tiveram seus direitos violados.

Trata-se, a primeira vista, de um bom projeto de lei do qual espera-se a aprovação pelo Congresso Nacional.


Conclusão

Por ser ainda recente no ordenamento jurídico, existem poucas especulações doutrinárias acerca da temática tratada. Entretanto, com embasamento na principiologia dos direitos humanos, do direito constitucional, do direito internacional, do direito penal e processual penal, é possível apontar a federalização dos crimes graves como uma nova garantia à efetividade dos direitos humanos no Brasil.

Pela análise do caso Dorothy Stang, observa-se que o assassinato da missionária representa um marco não apenas na luta fundiária existente em no país, mas também na forma como serão tratadas as violações de direitos humanos a partir dele.

Há que combater-se o entendimento do STJ sobre a necessidade de demonstração da inércia estadual, vez que a razão de ser do instituto é o afastamento das investigações e do julgamento dos fatores locais de poder, que em regra, inviabilizam a efetividade e o respeito aos direitos humanos, levando o Brasil a situações vexatórias no plano internacional.

Compete agora àqueles que não se acovardam diante de uma brutal injustiça, utilizarem-se do dispositivo constitucional, provocando o Procurador-Geral da República para que se manifeste quando observada a grave violação de direitos humanos.

Assim agindo, estará sedimentando os caminhos da cidadania que levam à credibilidade do Estado brasileiro e à efetivação da justiça no plano interno.


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Nota

  1. Exceção feita à tortura, pois, além do dever de abstenção, o Estado deve possuir mecanismos de prevenção e punição da sua prática.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIATIKOSKI, Rodrigo Marcussi. A federalização dos crimes contra os direitos humanos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2700, 22 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17872. Acesso em: 23 abr. 2024.