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Justiça Desportiva: presunção de veracidade e benefício da dúvida

Justiça Desportiva: presunção de veracidade e benefício da dúvida

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Resumo: Discute a diferença de critérios que os TJDs adotam para interpretação da norma que institui, no Direito Desportivo, o princípio da presunção relativa de veracidade, bem como a dificuldade que se apresenta para concessão do Benefício da Dúvida, notadamente em Comissões Disciplinares do Estado de Minas Gerais.

Palavras-chave: presunção de veracidade – princípio da dúvida – interpretação – hermenêutica – gramática – prejuízo processual – iniquidade – injustiça – relatórios disciplinares – entidade desportiva – atleta – julgamento – agremiações.


Nos julgamentos do Tribunal de Justiça Desportiva, é bastante corriqueiro que se defronte com registros não coincidentes, até antagônicos, feitos pela comissão de arbitragem ou pelo representante da Federação.

Isso faz com que, às vezes, a peça de acusação da Procuradoria se baseie ora em um, ora em outro documento, de que se faz a transcrição literal para a denúncia, sempre, coincidentemente, se lastreando no fato que possui características de maior gravidade.

Às vezes, em um se diz que o atleta foi retirado de campo por recebimento do segundo cartão amarelo, em outro de que fora expulso por haver sofrido cartão vermelho "direto", indicativa, cada situação, de nível teórico de indisciplina diferente, sendo atribuída maior lesividade natural à ultima.

Ali podem constar determinados palavrões, teoricamente ofensivos ao árbitro, acolá registros de somente metade ou de quase nenhuma hostilidade. Comum que a mesma agressão verbal seja escrita de forma diversa o que, dependendo da natureza dos adjetivos usados, pode tornar o evento mais grave e passível de punição mais severa.

Inúmeros casos existem, não sendo necessário nem cabível relacioná-los neste texto, para que se evite o fastio da repetição.

Evidente, todavia, que isso traz prejuízo para a Defesa, considerando-se a incerteza sobre o fato exato de que irá defender o seu constituinte, mesmo porque, o que é mais sério, apesar da Acusação se apegar a um dos registros, os Auditores se vêem no direito, frequentemente, de utilizar ambos em seus votos, não obedecendo, nem por isso, a linha de imputação adotada pela Procuradoria.

É doutrina básica e pacífica em matéria processual a prevalência do Princípio da Dúvida, gerada pelos registros diferentes, que deve ser utilizada favor rei, consagrando-lhe o benefício da tipicidade menos gravosa, fazendo com que responda por apenação mais favorável ou menos prejudicial. Por vezes, a situação deve comportar, até, a absolvição, quando a confusão de escritos acarretar a impossibilidade de um julgamento que atenda outras garantias básicas que devem ser reconhecidas dentro do processo legal. É a utilização inequívoca do centenário instituto do in dubio pro reo.

Só isso bastaria como instrumento mais que suficiente para dirimir qualquer insegurança surgida a partir da discrepância entre dados encontrados na súmula e nos registros disciplinares ou nos relatórios de que se fazem referências.

Outra forma, entretanto, de solucionar esse tipo de insuficiência de assentamento pode ser encontrada no próprio Código Brasileiro de Justiça Desportiva, no seu artigo 58, que se faz transcrever litteris:

"A súmula, o relatório e as demais informações prestadas pelos membros da equipe de arbitragem, bem como as informações prestadas pelos representantes da entidade desportiva, ou por quem lhes faça as vezes, gozarão de presunção relativa de veracidade".

A despeito da clareza meridiana que a norma explicativa parece sugerir, no caput e em seus parágrafos subsequentes, vazada em vernáculo de muita simplicidade sintática e léxica, esse dispositivo também tem despertado celeuma infindável nos tribunais esportivos, especialmente em determinadas Comissões Disciplinares de Minas.

A administrativista Maria Sylvia Zanella di Pietro já asseverou que é atributo do ato administrativo, além de outros, a presunção de legitimidade ou de veracidade, o que não se discute, posto que o foco aqui passa a ser a escolha de qual ato ou de que registro administrativo se deve ter por verdadeiro juris tantum, já que informam situações diferentes, baseadas no mesmo fato.

O parágrafo terceiro da regra discutida diz, a propósito de resolver legalmente a situação:

"se houver discrepância entre as informações prestadas pelos membros da equipe de arbitragem e pelos representantes da entidade desportiva, ausentes demais meios de convencimento, a presunção de veracidade recairá sobre as informações dos árbitros, com relação ao local de disputa da partida, prova ou equivalente, ou sobre as informações dos representantes da entidade desportiva, nas demais hipóteses."

Apesar disso, as Comissões têm, cada uma, um entendimento bem especial e individualizado para interpretação desse texto legal, nunca de forma satisfatória para a Defesa, vez que se fundam, em caso de divergência, no predomínio inarredável do registro dos árbitros.

Trata-se entretanto, gramaticalmente, de um período composto por duas orações coordenadas alternativas, em que a primeira ensina que os incidentes surgidos entre os escritos devem ser resolvidos, se relativos ao local da prova (campo, estádio, ginásio, quadra etc), com base no contido no relatório do árbitro, enquanto os demais devem obedecer o exposto nos registros da Federação.

A despeito de algumas correntes informais que consideram absurda a prevalência da Federação sobre o árbitro, até pelo papel que cada um desenvolve em sede da disputa, de mero fiscal ou de protagonista do evento, o importante é admitir que é essa a vontade do legislador, colocada de forma bem clara no Código.

Não pode haver maneira divergente de inteligência desse comando legal, para o que deve ser utilizada simplesmente a regra de interpretação denominada literal ou gramatical, não se facultando admitir qualquer arremetida dissonante de natureza doutrinária ou jurisprudencial, mesmo porque esse pensamento se circunscreve ao modo de agir abstrato dos integrantes das Comissões, não ficando consignado expressamente nas atas de julgamento, como de praxe.

Talvez fique mais fácil sua leitura se explicitado o verbo oculto da segunda oração em análise, como se poderia fazer para fins exclusivamente didáticos da seguinte maneira:

"se houver discrepância entre as informações prestadas pelos membros da equipe de arbitragem e pelos representantes da entidade desportiva, ausentes demais meios de convencimento, a presunção de veracidade recairá sobre as informações dos árbitros, com relação ao local de disputa da partida, prova ou equivalente, ou recairá sobre as informações dos representantes da entidade desportiva, nas demais hipóteses." (inclusão e destaque nosso)

Adverte-se, por derradeiro, sobre a necessidade dessas considerações, para que cessem ou pelo menos diminuam os incidentes que acontecem durante o desenvolver dos julgamentos, com inevitáveis e quiçá irreparáveis prejuízos profissionais, morais e financeiros para o atleta ou para as agremiações, que se situam como destinatários de prestação jurisdicional equivocada e injusta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  1. BRASIL, Constituição da República Federativa Brasileira
  2. BRASIL, Código Brasileiro de Justiça Desportiva – Resolução nº 29, de 31 de dezembro de 2009.
  3. Dicionário Didático – Editora SM – 2ª edição – 2008
  4. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, Editora Atlas - 2007
  5. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito – Ed. Forense – 2004.
  6. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal – Editora Saraiva – 2009.

Autor

  • João Lopes

    Delegado de Polícia (aposentado). Mestre em Administração Pública/FJP. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal. Professor do Centro Universitário Izabela Hendrix. Assessor Jurídico da Polícia Civil/MG.<br>Vice Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva-MG

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, João. Justiça Desportiva: presunção de veracidade e benefício da dúvida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2701, 23 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17883. Acesso em: 26 abr. 2024.