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O ativismo do STJ no julgamento do Incidente de Deslocamento de Competência nº 1

O ativismo do STJ no julgamento do Incidente de Deslocamento de Competência nº 1

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Em casos semelhantes, os magistrados poderiam optar por uma conduta minimalista, a fim de evitar o esvaziamento do instituto e reduzir os custos políticos da decisão.

RESUMO: O presente artigo faz uma análise dos votos dos ministros do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Incidente de Deslocamento de Competência nº 1. Ao discorrer sobre o caso concreto aponta a postura ativista adotada pela corte e suas implicações na consolidação da jurisprudência. Conclui ser mais profícuo que em casos semelhantes os magistrados optem por uma conduta minimalista, a fim de evitar o esvaziamento do instituto e reduzir os custos políticos da decisão.

PALAVRAS-CHAVES: ativismo; auto-restrição; minimalismo; STJ; IDC; Dorothy Stang

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 ATIVISMO E AUTO-RESTRIÇÃO JUDICIAL; 3 MINIMALISMO JUDICIAL E ACORDOS TEÓRICOS INCOMPLETOS; 4 INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA; 5 CASO DOROTHY STANG ; 6 ANÁLISE DOS VOTOS; 7 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

O Incidente de Deslocamento de Competência é um instituto relativamente novo em nosso ordenamento jurídico. Sua primeira e única apreciação judicial até o momento deu-se no episódio do assassinato da missionária Dorothy Stang, no ano de 2005. O Superior Tribunal de Justiça, que tem a competência para sua apreciação e julgamento após provocação do Procurador-Geral da República, ao analisar o caso, lançou as bases interpretativas que guiarão a aplicação futura do incidente.

Apesar de ter sido negado o deslocamento naquela oportunidade, as criticas que serão levantadas em relação à postura do tribunal não são apenas sobre o resultado da decisão em si, mas também sobre as razões utilizadas pelos ministros votantes. Contrastando as teorias do ativismo e da auto-restrição judicial e discorrendo sobre a teoria do minimalismo jurídico e os acordos teóricos incompletos, os votos serão analisados de forma a destacar-se a argumentação utilizada, cotejando-a com os postulados doutrinários.

O propósito também não é esgotar as concepções teóricas apresentadas nem tampouco fazer uma crítica vazia à decisão da corte, mas sim contribuir para o entendimento do julgado de forma a oferecer subsídios, ainda que despretensiosos, aos atores do direito que porventura se depararem com casos semelhantes, de forma a buscar o aperfeiçoamento do instituto. Para tanto, deve-se discutir em que medida a postura ativista inovou no ordenamento e quais reflexos decorrem de tal inovação.


2 ATIVISMO E AUTO-RESTRIÇÃO JUDICIAL

Este estudo não tem a pretensão de adentrar nos meandros do ativismo judicial nem tampouco nas outras categorias doutrinárias que serão apresentadas. Por outro lado é importante apresentar um panorama teórico básico para que os não familiarizados aos termos e conceitos possam transcorrer o objeto primeiro do trabalho, que é a análise dos votos proferidos pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça, de maneira mais profícua.

Segundo o entendimento popular, o ativismo seria baseado na simples e completa distinção entre juízes que encontram a lei em palavras e intenções claras do legislador e os que fazem a lei por meio de uma postura legiferante, tendo ainda a voz final sobre o direito declarado em detrimento da lei. Em razão do judiciário não ser eleito, isso seria antidemocrático. É evidente que essa percepção simplista não reflete em sua completude as nuances da corrente doutrinária, todavia demonstra algumas aflições do povo em relação ao Poder Judiciário.

Ronald Dworkin faz uma distinção entro o que seria uma abordagem passiva e ativa dos magistrados na análise constitucional. Na primeira, mostram grande deferência às decisões dos outros poderes enquanto na segunda declaram inconstitucionais tais decisões sempre que as desaprovassem (1998, p. 369).

Julgadores considerados ativistas assumem uma postura audaciosa na interpretação de comandos abstratos e chamam para si a responsabilidade institucional e a capacidade intelectual para estabelecerem parâmetros e significações da norma (OLIVEIRA, 2007, p.1387). Ao se depararem com normas do ordenamento jurídico que considerem violadora de direitos, utilizam tal fundamento para contestá-las.

Em 1986, durante o julgamento na Corte Européia de Justiça do caso Les Verts, o então advogado-geral e depois juiz daquele tribunal Federico Mancini apresentou em seu parecer uma verdadeira aclamação ao ativismo judicial ao afirmar que a obrigação de observar o direito prevalece sobre os estritos termos da própria lei escrita. Sempre que necessário, no interesse da tutela jurisdicional, a Corte deveria estar preparada para corrigir ou completar as regras que limitam os seus poderes em nome do princípio que define a sua missão (NEILL, 1995, p. 46). Em outras palavras, o tribunal poderia, em nome de sua missão institucional, dar interpretação diversa inclusive ao comando legislativo que definiu suas atribuições, reivindicado para si a legitimidade e a capacidade para fazer o que os formuladores nem sequer pensaram em fazer.

A bibliografia é vasta sobre as diferentes categorias, modalidades e fundamentos da corrente doutrinária, variando sobremaneira as análises de um autor para outro. Todavia, pode-se elencam o que seriam seus quatro principais componentes: alguns juízes se engajam no ativismo quando fazem a lei à sua própria imagem; quando anseiam por fazer lei e não evitam ou minimizam julgamentos constitucionais sempre que possível; quando dão aos direitos de indivíduos ou grupos primazia sobre o bem comum; ou quando alteram políticas públicas estabelecidas pelos poderes legislativo e executivo, tendo a palavra final e atuando de uma maneira antidemocrática (ROACH, 2001, p. 10).

Assim, seus críticos afirmam que os magistrados quando adentram na seara constitucional passam a ter um cheque em branco, podendo inclusive evitar assuntos difíceis, e que defendem direitos a qualquer custo, impondo a palavra final à sociedade, em uma antidemocrática forma de supremacia judicial (Ibid., p. 11). O ativismo judicial – que na Alemanha do Terceiro Reich onde, ao contrário do que alguns críticos do positivismo afirmam, vicejou – para Mauricio Jr. (2008, p. 126), pode tanto ser progressista quanto limitador de direitos fundamentais.

Em sua análise das decisões da Suprema Corte Norte-Americana referentes às questões raciais e educação, Lino Gaglia (1976, pg. 14) destaca que o tribunal teve em seu passado alguns períodos de ativismo que serviram para impedir mudanças sociais básicas ao proporcionar o que chamou de um segundo e sóbrio pensamento, mas raramente ou nunca buscou iniciar ou acelerar tais mudanças. Nos casos Hammer v. Dagenhart (1918) e Bailey v. Drexel Furniture Co. (1922), por exemplo, invalidou leis federais que limitavam o trabalho infantil; em Estados Unidos v. Butler (1936) invalidou medidas básicas de recuperação econômica previstas no New Deal.

Diametralmente oposta ao conceito de ativismo, a auto-restrição judicial pura postula que os julgadores se atenham a avaliação do procedimento formal de elaboração e aprovação da lei, sem maiores questionamentos sobre sua moralidade ou sobre a legitimidade da representação política (OLIVEIRA, 2007, p. 1387). Para Kirby, (2004, p. 9), não há guia mais seguro para as decisões judiciais que envolvem grandes conflitos do que o estrito e completo legalismo.

Os julgadores possuem, abstratamente, certo grau de auto-restrição e de ativismo ao decidir, pois mesmo se tratando de categorias díspares, podem estar presentes concomitantemente dentro de uma mesma decisão, fundamentando pontos diversos que levem ao resultado esperado de ante-mão pelo magistrado. Nenhum julgador deve ser rotulado como ativista puro ou auto-restritivo puro.

Trata-se de uma característica comum, podendo-se observar julgados onde adota-se premissas permeadas por uma ou outra postura. A auto-restrição governa a extensão e a intensidade com as quais as cortes se inclinam a examinar as decisões legislativas e as razões que as sustentem, ou seja, a dimensão com que as cortes se dispõem a alterar e desenvolver a lei e o senso de quando e porque é apropriado agir assim (KAVANAGH, 2010, p. 25).


3 MINIMALISMO JUDICIAL E ACORDOS TEÓRICOS INCOMPLETOS

Partindo conjugação de problemas advindos de posturas extremas tanto no ativismo quanto na auto-restrição judicial o jurista Cass Sunstein, professor de direito constitucional e administrativo nas Universidades de Chicago e Harvard e que atualmente compõe a administração Obama atuando no setor de regulação e informação, desenvolveu uma abordagem conhecida como minimalismo judicial.

Seus estudos recomendam que os magistrados, ao fundamentarem suas decisões, poupem argumentos de denso e controverso cunho filosófico - que envolvam divergências de ordem moral ou política - passando ao largo de questões dispensáveis para a resolução do problema em tela (OLIVEIRA, 2007, p. 1394).

Alargar ou restringir o campo de aplicação da norma jurídica é uma escolha que deve ser feita caso a caso, pois não há uma regra padrão. Quando a decisão puder ser aplicada em vários contextos e o assunto for recorrente nos tribunais, o argumento de uma aplicação abrangente e que abarque todos os casos é tentadora. Mas quando o assunto se mostre frequente e o julgador não disponha de informações que lhe permita produzir uma regra ampla na qual tenha grande confiança, a utilização de argumentos mais tímidos é a melhor opção (SUNSTEIN, 2005, p. 1917).

Assim, o professor formulou o conceito de acordos teóricos incompletos, onde as partes envolvidas abrem mão de discutirem as teorias que sustentem determinado resultado desejável. Em suas palavras:

"Quando as pessoas divergem sobre alguma proposição (relativamente) de alto nível de abstração, elas podem ser capazes de concordar quando baixam o nível de abstração. Juízos teoricamente incompletos sobre casos particulares são o material ordinário do direito. E no direito, o ponto de acordo é na maioria das vezes extremamente particularizado (...) no sentido de que envolve um resultado específico e uma série de razões que não se aventuram muito além do caso em questão. Teorias bastante abstratas raramente surgem explicitamente no direito" (apud OLIVEIRA, 2007, p. 1395).

Diante de um caso de grande controvérsia, algumas pessoas podem prontamente alterar seu ponto de vista ao ouvir uma posição diferente. Outros mudam com maior dificuldades e há ainda aquele que resistem até o momento em que lhe são apresentados argumentos insofismáveis. Dentro de um mesmo grupo pode-se esperar comportamentos diferentes - com mudanças em diferentes graus: em uma ponta gente que permanece imóvel em uma crença e em outra gente que segue o efeito manada.

Ao se buscar um mínimo consenso deve-se observar atentamente a direção das convicções originais e o limite para mudá-las. Como bem lembra o professor, entre os juízes federais americanos não existe polarização partidária em assuntos como aborto, segurança nacional e pena de morte, aparentemente porque o limiar para mudança de visões é excessivamente alto (SUNSTEIN, 2009, p. 59). Quando membros de um grupo partem de firmes convicções, requer-se boa negociação de informação ou pressão social (ou os dois) para mudar suas visões. Se as influências sociais são suficientemente fortes, as pessoas provavelmente se moverão, mas a extensão dos seus movimentos será limitada pela barreira relativamente alta de se aceitar certas crenças ou engajar-se em certos comportamentos.

Optar por um acordo teórico incompleto reduz os custos políticos decorrentes da divergência teórica; compatibiliza a decisão à evolução histórica dos valores morais; propicia ao juiz uma argumentação que resolva o conflito sem que dele seja exigido o enfrentamento de questões de grande complexidade, vez que em geral é dotado de tempo escasso e conhecimento limitado para tal propósito; harmoniza a decisão a julgamentos pretéritos; respeita a coexistência de uma pluralidade axiológica no ordenamento jurídico (OLIVEIRA, 2007, p. 1396).

Para Sunstein (2007, p. 87), grandes críticas são feitas à prática da fundamentação incompleta, que não deve ser utilizadas em situações corriqueiras, mas o uso construtivo do silêncio como prática social e jurídica sobre um objeto inválido, parvo ou assaz polêmico pode ajudar de fato a reduzir controvérsias, possibilitar a projeção do veredito a casos futuros e poupar uma miríade recursos humanos e materiais. No Direito, como em toda parte, aquilo que é dito não é necessariamente mais importante do que o que não é dito (apud OLIVEIRA, 2007, p. 1398).


4 INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

Apresentadas as teorias que guiarão a análise dos votos, passa-se agora a apresentação da norma constitucional.

O incidente de deslocamento de competência foi introjetado em nosso ordenamento jurídico no ano de dois mil e quatro por meio da emenda constitucional número quarenta e cinco. Ao ampliar a competência material dos juízes federais para o julgamento de causas relativas aos direitos humanos, incluiu no parágrafo 5º do artigo 109 a definição do instituto, a competência para sua arguição, bem como, os requisitos para seu processamento.

A Justiça Federal passou a ter a competência para processar e julgar as causas relativas a direitos humanos, em caso de grave violações aos mesmos. Para tanto, o Procurador-Geral da República deve, em qualquer fase do inquérito ou processo, suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) o deslocamento da competência, cuja finalidade é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais da matéria e dos quais o Brasil seja parte signatária. (BRASIL, 1988)

O objetivo primeiro da norma seria o de afastar as investigações dos crimes contra os direitos humanos dos fatores locais de poder. Transfere-se, assim, da Justiça Estadual para a Justiça Federal a competência da ação penal e incumbe-se a Polícia Federal da realização da colheita de provas.

Tal necessidade é comprovada pela totalidade das condenações e admoestações sofridas pelo Brasil no Sistema Interamericano de Direitos Humanos apontarem para a influência do poder local na contaminação das provas colhidas, assim como, na procrastinação judicial, que resultam em impunidade aos violadores de direitos humanos (FIATIKOSKI, 2007, p. 28).

O Superior Tribunal de Justiça, a fim de regular internamente o trâmite do incidente, editou no ano de dois mil e cinco resolução instituindo a competência regimental da Terceira Seção para apreciação da nova classe processual, que passou a ser conhecida pela sigla IDC (BRASIL, 2005c).


5 O CASO DOROTHY STANG

Conhecido o comando constitucional do IDC, apresenta-se agora o caso que motivou a primeira tentativa de sua aplicação.

Dorothy Mae Stang era americana naturalizada brasileira, membra da Congregação Irmãs de Notre Dame de Namur, cujos votos religiosos são de ajuda aos pobres e aos marginalizados. Em 1966 mudou-se para o Maranhão e iniciou um trabalho com pequenos agricultores que faziam parte das Comunidades Eclesiais de Base (CEBS) – células católicas inspiradas na Teologia da Libertação de Leonardo Boff que interlaçam a profissão de fé com a busca de equidade social – da cidade de Coroatá. (FIATIKOSKI, 2007, p. 37)

Posteriormente, no Estado do Pará, passou a ajudar agricultores pauperizados que, fugindo da concentração fundiária que galopava na região norte, se estabeleceram na região central do estado. Em geral eram pessoas sem maiores posses, que praticavam uma precária agricultura de subsistência.

A partir dos anos 80, a região central do Pará passou a ser cenário de graves conflitos fundiários entre madeireiros e pequenos agricultores. Irmã Dorothy, ciente dos problemas da região, inicia então o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) de Anapu, que tentava distribuir lotes legalizados e assistência técnica àqueles lavradores carentes que enfrentavam um cenário de desmatamento alarmante conjugado à prática da grilagem de terras.

O projeto e as obras liderados pela missionária criaram grande animosidade entre os que faziam de tais práticas ilegais seu metiê. Na manhã de 12 de fevereiro de 2005 a missionária foi assassinada por Rayfran das Neves Sales (Fogoió) e Clodoaldo Carlos Batista (Eduardo), que lhe desferiram seis tiros a queima roupa. O episódio ganhou repercussão internacional não só pela brutalidade do crime, cometido contra uma religiosa enquanto caminhava pelo PDS que ajudou a implantar, mas também pelo fato da vítima ser uma ativista que lutava pela defesa dos direitos humanos.

O assassinato teria tido como motivação o descontentamento do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura (Bida) com o fato de uma gleba de terras que ele alegava lhe pertencer ter sido destinada ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável liderado por Dorothy Stang, além de seu trabalho emancipatório realizado junto aos pequenos agricultores. (Ibid. p. 40)

Além dos executores - réus confessos que revelaram em depoimento todos os detalhes do delito - e do fazendeiro, foram denunciados também Amair Feijoli da Cunha (Tato) como intermediário e Regivaldo Galvão (Taradão) como outro mandante do crime. Rayfran foi condenado a 27 e Clodoaldo a 17 anos de reclusão, bem como Amair, que foi sentenciado a um pena de 27 anos. Passados mais de cinco anos do crime, todavia, os mandantes ainda não tiveram um julgamento definitivo (BRASIL, 2005a).

O caso recebeu, além da repercussão midiática, grande atenção dos meios jurídicos pois representou o teste inicial do IDC. No dia 3 de março de 2005, atendendo a pedido da Procuradoria da República no Estado do Pará, o Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles ajuizou no Superior Tribunal de Justiça o IDC que recebeu o número 1, por ser inaugural em nosso ordenamento, e a sigla PA, em referência ao Estado do Pará, de onde buscava-se deslocar a competência (FIATIKOSKI, 2007, p. 41).


6 ANÁLISE DOS VOTOS

Finalmente, passa-se agora a análise dos votos de cada ministro componente da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsável pelo julgamento do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Por ter sido a primeira oportunidade de aplicação da nova espécie processual trazida pela emenda constitucional número 45, é importante não apenas a leitura do resultado final constante do acórdão mas também as bases que sustentaram cada argumento.

A partir do caso em questão, mesmo a despeito da conveniência da interpretação formulada, criou-se um precedente que balizará todos os futuros julgamentos realizados pela Corte até que nova posição por ela seja adotada. Pode-se considerar também a possibilidade de mudança de paradigma caso o Supremo Tribunal Federal (STF) seja instado a se pronunciar sobre a abrangência da norma, vez que, apesar da competência explícita do STJ para o julgamento do incidente, a Suprema Corte detém o monopólio para a interpretação definitiva dos comandos constitucionais.

Relatando o caso, o Ministro Arnaldo Esteves de Lima apresentou as bases interpretativas do Art. 109, parágrafo 5º da Constituição. Iniciando pela reafirmação da proteção à dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, destacou a importância dada aos direitos humanos na carta de 1988, alçados à categoria de cláusula pétrea, bem como, sua prevalência na regência das relações do Brasil no plano internacional.

Ao adentrar as inovações trazidas pela reforma do Poder Judiciário o relator frisou que, um dos principais motivos para a possibilidade de se deslocar a competência da justiça estadual para a justiça federal, é a figuração passiva do país perante cortes internacionais em casos onde a investigação e o julgamento de crimes graves contra os direitos humanos não são tratados de forma satisfatória no plano estadual. Questões histórico-culturais e sócio-econômicas seriam causa de insensibilidade por parte de alguns estados às graves violações àqueles direitos.

Examinando propriamente o conceito de grave violação, sustentou que qualquer homicídio doloso representa uma transgressão ao mais importante direito contante de nosso ordenamento - que é o direito à vida - independentemente da condição pessoal da vítima ou da repercussão do fato. Assim, seria contraproducente que todo e qualquer caso ensejasse o deslocamento da competência, superlotando a justiça federal e restringindo a competência da justiça estadual.

Não existe na norma um rol de quais crimes representariam casos de real necessidade do incidente processual, nem tampouco foi o texto constitucional objeto de regulamentação por parte da legislação ordinária. Assim, lembrando que matéria de direitos humanos tem aplicação imediata e eficácia plena, o relator assentou que os requisitos objetivos para a incidência do deslocamento de competência seriam o crime propriamente dito e a clara demonstração de ameaça ao cumprimento dos tratados internacionais de direitos humanos, aliados a um terceiro pressuposto.

Comparou ainda o IDC ao pedido de desaforamento do Tribunal do Júri e à intervenção federal, onde a necessidade e imprescindibilidade de medidas atípicas são balizadas pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Repeitando-se tais diretiva, não haveria qualquer tipo de violação ao princípio do juiz natural nem constituição de tribunal de exceção, razão pela qual o incidente de deslocamento de competência guardou respeito aos pressupostos de procedibilidade e mereceria ser conhecido não fosse o novo pressuposto criado pelo relator.

Admitindo estarem presentes os dois primeiros requisitos - grave violação a direitos humanos e asseguramento do cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais – objetivamente prescritos na Constituição, passou a desenvolver o terceiro, que vislumbrou não estar presente nos autos: a existência de provas inequívocas que demonstrem "a incapacidade (oriunda de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais, materiais etc.) de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal" (STJ, 2005c).

Tal interpretação decorre, nas palavras do ministro-relator, do senso comum, estando naturalmente implícita no Art. 109, §5º CF/88. Segundo ele, caso não fosse a necessidade de cumulação dos três requisitos atentaria-se contra a federação e o Estado de Direito, em decorrência da "indevida, inconstitucional, abusiva invasão de competência estadual por parte da União Federal" (Ibid.).

Seguindo a votação, o Ministro José Arnaldo de Fonseca discorreu sobre o cabimento do incidente caso as instituições estaduais tivessem revelado desídia, omissão ou leniência na proteção dos direitos humanos. No entanto, diante da repercussão do caso, as as mesmas teriam agido de forma louvável, estando os suspeitos do cometimento do crime devidamente encarcerado e o processo findo em sua fase de instrução.

Gilson Dipp, terceiro ministro a votar, reafirmou o entendimento do relator de ser a norma constitucional do IDC dotada de eficácia plena e aplicação imediata, todavia não bastariam apenas a existência da grave violação e o descumprimento de tratados, sendo imprescindível a não investigação, a não apuração de tal violação. Ou seja, em havendo persecução penal, processamento e julgamento, estaria demonstrado que o Estado federado usou suas estruturas para dar uma resposta à violação de direitos.

De maneira mais enfática na defesa do terceiro pressuposto apontado pelo relator, o Ministro Paulo Gallotti vislumbrou certo preconceito para com a justiça estadual, em razão da premissa por ele entendida constante no IDC de que esta não teria condições de apurar o crime em tela com presteza e imparcialidade. Também salientou que o deslocamento de competência não contribui para o aperfeiçoamento sistema legal e que uma exploração sensacionalista do caso incutiu na sociedade a percepção de que só a Justiça Federal teria condições de apreciá-lo com isenção.

Finalizando seu voto, expressou a preocupação de que a aplicação do IDC representaria "verdadeiro princípio de desconfiança da atuação da Justiça Estadual" (Ibid.), existindo uma suposta tentativa de confrontar as magistraturas estadual e federal, que em sua opinião devem caminhar unidas e cuja responsabilidade pela consecução passa pelo STJ.

Acompanhando integralmente o relator, a Ministra Laurita Vaz disse ter pouco a acrescentar aos fundamentos do voto, acreditando que as instituições do Estado do Pará agiram com a presteza que o caso requereu, estando a instrução criminal prestes do fim, e que os culpados certamente serão punidos.

O Ministro Paulo Medina, por sua vez, não deixa dúvidas sobre o que acredita ser um papel fundamental a ser exercido pela Corte no julgamento: dar comedimento à norma que instituiu o IDC, a fim de tratar com igualdade as diversas esferas do Poder Judiciário onde juízes estaduais e federais teriam igualdade de condições. Para ele, nem o vasto território nem os problemas enfrentados no que diz respeito aos conflitos da reforma agrária do Pará revelam sinais de um estado incompetente, ou ainda, "(...) de uma Justiça incapaz de dirigir seu próprio destino. Ela é capaz de faze-lo e tanto já o fez, buscando conter no nascedouro facilidades que poderiam conduzir à impunidade" (Ibid.).

Merece destaque um trecho do voto onde afirma estarem os membros do tribunal prontos a reagir, de maneira altiva, para cessar no nascedouro procedimentos que, segundo seu entendimento, não seriam constitucionais.

Hélio Quaglia Barbosa, último ministro a votar, esclareceu não tratar o julgamento do mérito do fato delituoso, da sua autoria ou da história de vida da vítima, mas tão somente do cabimento ou não do deslocamento de competência. Como outros votantes, expressou ser a norma de incidência imediata, porém, pendente do preenchimento de um dos três requisitos para sua aplicação. Ao seu ver as instituições paraenses não mereceriam um voto de desconfiança por eventuais falhas cometidas em um passado recente e seria preconceito duvidar de seu desempenho futuro na ação penal, vez que o exame do caso atual mostra uma atuação célere e louvável.

Feito esse apanhado dos votos, onde evidenciaram-se todos os argumentos utilizados, passa-se agora à crítica do que pode-se considerar uma postura ativista do STJ quando do estabelecimento do terceiro pressuposto de admissibilidade do incidente de deslocamento de competência.

Luís Roberto Barroso (2004, p. 104), citanto Thomas Cooley, faz a diferenciação entre interpretação e construção da norma constitucional por parte do julgador. Na primeira o magistrado realiza a arte de encontrar o verdadeiro sentido de qualquer expressão, já na segunda ela tira conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. Da simples interpretação do Art. 109,§5º da Constituição, mesmo considerando todos os métodos interpretativos, nenhum ministro extraiu o pressuposto da incapacidade estadual para a persecução penal, que decorreu de verdadeira construção.

Argumentos no sentido de não se fazer diferenciações entre o judiciário estadual e federal ou ainda de haver no bojo do IDC certo preconceito para com o Estado do Pará também demonstram o viés político de alguns votos. Todavia, não deve o juiz decidir jamais contra o direito, pois, em havendo conflito entre o direito e a política, deve se vincular ao direito (Ibid., p.112).

Outra premissa observada nos votos foi a de que, em uma análise sistemática, dever-se-ia resguardar a igualdade entre os entes da federação e principalmente entre as duas esferas judicantes. No STF, contudo, o Ministro Celso de Mello já dissera de forma elucidativa que o princípio da separação dos poderes obsta, durante a vigência de uma norma jurídica válida, que os Tribunais ampliem seu conteúdo normativo e estendam sua eficácia jurídica a situações subjetivas nela não previstas, ainda que a pretexto de tornar efetiva a cláusula constitucional da isonomia (apud MAURICIO JR., 2008, p. 132).

Em outra oportunidade, durante o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 1.063/DF, nossa Corte máxima também se manifestou de forma a repudiar a atuação judicante assemelhada a de legislador positivo. O poder de inovar o sistema normativo, em caráter inaugural, constitui função típica da instituição parlamentar, não sendo lícito que nem mesmo que o tribunal constitucional o pretenda fazer (Ibid., p. 133).

Pois bem, uma vez constatada a inovação praticada pelos julgadores do IDC deve-se observar dentro da argumentação adotada se ela possui uma lógica jurídica, isto é, se é racional, se decorre de premissas juridicamente válidas e, principalmente, qual a valoração dada à norma existente frente aos argumentos axiológicos utilizados para modificá-la.

Nas palavras ministro-relator, a necessidade de um terceiro pressuposto de procedibilidade do IDC derivaria do senso comum, ou seja, a partir de uma opinião consensual e coletiva fundada no homem médio se chegaria a conclusão de que haveria ameaças à Federação e ao Estado de Direito decorrentes da usurpação de competências entre a União e os Estados. Sem maiores detalhamentos, após a eleição de uma premissa controversa, faz-se a dedução de que qualquer resultado diferente do esperado afrontaria os preceitos constitucionais da federação e do estado de direito.

Esse tipo de decisão deve ser devidamente justificada, demonstrando que o resultado final é o que melhor se enquadra à ordem jurídica e às peculiaridades do caso, e que quanto maior for o desvio que o intérprete fizer da subsunção à norma, mais claro terá que ser sua fundamentação, afirma Daniel Sarmento (2006, p. 116). Admoesta ainda sobre a extrema valorização dada aos princípios em detrimento das normas jurídicas, pois, mesmo aqueles não podendo serem desconsiderados, estas definem com maior precisão seu campo de incidência e as consequências de sua aplicação, dando maior segurança jurídica ao cidadão e coibindo o arbítrio do julgador.

Aos tribunais é desejável, como regra geral, a modéstia para com normas de fundo contestável. A significação usual e mesmo original das palavras devem guiar o julgamento, pois, qualquer outro tipo de abordagem pode levar a subversão do primado democrático (SUNSTEIN, 1990, p. 136). No que concerne ao argumento de que ao se retirar a competência da justiça estadual para apreciar o caso estaria-se estabelecendo um princípio de desconfiança em relação ao seu funcionamento e sua lisura, acabou-se por adicionar outra premissa desnecessária à interpretação da norma. O Ministro Gallotti poderia ter dito que a referida incapacidade de atuação dos órgãos estaduais citada no voto do relator não existiu sem ter descido a esse nuance para explicar o porquê.

Nas palavras de Sunstein: as pessoas podem saber que X é verdade sem saber por que X é verdade (2007, p. 82); as pessoas podem decidir o que deve ser feito mesmo quando discordam como exatamente deve se pensar (Ibid., p. 84); o que é dito e resolvido é tão importante quanto o que é deixado de fora. (Ibid., p. 88)

A preocupação com a imagem da Corte deu o tom em alguns votos, como por exemplo o proferido pelo Ministro Medina. O Tribunal não poderia passar à opinião pública a percepção de conivente com a criminalidade nem tampouco desprestigiar a magistratura estadual.

Vale relembrar, todavia, que o IDC não trata do mérito do caso mas tão somente da competência para seu processamento e julgamento e, como ensina Patrick Neill (1995, p. 48) em sua análise sobre o ativismo da Corte Européia de Justiça, a reputação de um tribunal está indissoluvelmente ligada à integridade de suas decisões. Quanto mais tais decisões são percebidas como sendo logicamente falhas ou distorcidas, em decorrência de considerações de ordem doutrinárias ou idiossincráticas, menos prestigiosa será sua reputação perante ao público.


7 CONCLUSÃO

De todo o exposto evidencia-se a importância que o Incidente de Deslocamento de Competência tem para a sociedade, como ferramenta auxiliar na garantia dos direitos humanos no Brasil. Sua criação no ano de 2004 e sua primeira utilização no ano seguinte quando do caso Dorothy Stang revelam tratar-se de um instituto novo e um tanto quanto desconhecido por grande parte dos atores da seara jurídica pátria.

O julgamento levado adiante pelo Superior Tribunal de Justiça foi a primeira prova de resiliência da norma, que sofreu um alargamento dos seus requisitos de procedibilidade, em uma postura assaz ativista dos ministros. Da estrita leitura do texto constitucional evidencia-se serem necessários a presença de um crime grave contra os direitos humanos e que tais direitos sejam previstos em tratados internacionais dos quais o país seja signatário.

Ao não optar por uma postura auto-restritiva, onde se limitasse aos parâmetros expressos da norma, o tribunal acabou por inovar no ordenamento e estabelecer um terceiro requisito: a incapacidade dos poderes estaduais de investigarem, processarem e julgarem tais crimes; detalhou, ainda, o que considerava ser a referida incapacidade.

Para dar suporte ao requisito neófito os julgadores estabeleceram certas premissas em seus votos cuja ilação alcança o campo axiológico e normativo de outros institutos, gerando grande abstração teórica e arrefecendo a aplicação futura da norma.

Com isso, somada à temeridade da introjeção de um comando normativo por via judicial com seu comportamento ativo, o tribunal também elevou a grau de incerteza ao travar discussões de grande complexidade e divergência, passando ao largo da teoria do minimalismo jurídico aqui apresentada. Em futuros julgamentos de outros IDCs, conclui-se ser recomendável não só uma aproximação auto-restritiva mas também a utilização de acordos teóricos incompletos, a fim de se evitar o esvaziamento do instituto e reduzir os custos políticos da decisão.


REFERÊNCIAS

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FIATIKOSKI, Rodrigo Marcussi. O ativismo do STJ no julgamento do Incidente de Deslocamento de Competência nº 1. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2702, 24 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17894. Acesso em: 19 abr. 2024.