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O clientelismo em decorrência da distribuição discricionária de cargos comissionados.

Um ato de improbidade que ofende o princípio da moralidade administrativa

O clientelismo em decorrência da distribuição discricionária de cargos comissionados. Um ato de improbidade que ofende o princípio da moralidade administrativa

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É necessária a edição de norma legal que discipline as formas de acesso a cargos em comissão, a fim de valorizar o concurso público como meio idôneo de garantir o mérito, a isonomia e a moralidade no provimento de cargos públicos.

RESUMO

No contexto da Administração Pública em nosso país, vez por outra se tem notícia de casos de corrupção em que administradores públicos exorbitam os poderes que lhes são conferidos e praticam atos com objetivos particulares, em detrimento do interesse público, o qual detém supremacia sobre o interesse privado. Nesta senda, este trabalho cuida de analisar a utilização desta liberdade conferida à Administração Pública como forma de troca política de empregos por retribuições alheias ao interesse público - prática esta chamada de clientelismo – e que se dá por ato discricionário do administrador, o qual nomeia cargos em comissão com fulcro no artigo 37, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Pretende ainda relacionar esta prática com o princípio da moralidade administrativa, demonstrando-se a violação aos preceitos de honestidade, lealdade e boa-fé, e conseqüentemente, a violação de tal princípio. Demonstrada a transgressão ao princípio da moralidade, cuida de abordar o enquadramento deste fenômeno na Lei 8.429/92, Lei da Improbidade Administrativa, classificando o ato do clientelismo como ato de improbidade. Por fim, conclui por defender a aplicação direta da aludida Lei como instrumento de punição para os transgressores, ressaltando ainda a urgente necessidade da edição de uma norma legal que discipline as formas de acesso a cargos em comissão, limitando-as, a fim de valorizar o concurso público como meio idôneo de garantir o mérito, a isonomia e a moralidade no provimento de cargos públicos, estreitando os caminhos para a corrupção. Quanto ao método, este trabalho utiliza o método indutivo, cuja consecução se deu por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando, inclusive, notícias jornalísticas. Por tudo isso, este estudo se mostra, no cenário e dias atuais, oportuno por proporcionar uma profunda reflexão sobre o tema, apresentando, alfim, sugestões para a prevenção e o combate à corrupção que decorre do clientelismo.

LISTA DE SIGLAS

CRFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

LIA – Lei de Improbidade Administrativa

RE – Recurso Extraordinário

REsp – Recurso Especial

RMS – Recurso em Mandado de Segurança

SUMÁRIO:1. INTRODUÇÃO. 2. O ACESSO A CARGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL – EVOLUÇÃO HISTÓRICA. 3. DAS FORMAS DE INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO NA CRFB/88. 4. O CLIENTELISMO. 4.1 Conceito e características. 4.2 Casos sugestivamente clientelísticos nos dias atuais. 4.3 A discricionariedade administrativa nos casos clientelísticos. 5. O CLIENTELISMO E O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. 6. A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EM DECORRÊNCIA DA DISTRIBUIÇÃO DISCRICIONÁRIA DE CARGOS COMISSIONADOS. 7. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1.Introdução

Considerando o ordenamento jurídico-administrativo, é cediço que o interesse público possui supremacia em relação aos interesses particulares, devendo aquele ser perseguido a todo momento pela Administração Pública, seja qual for o ato praticado. É, pois, por essa razão que o sistema de normas confere à Administração algumas prerrogativas e privilégios que a situam em patamar diferenciado em relação aos administrados, como por exemplo, a presunção de legitimidade e veracidade de seus atos, entre outros. Tudo isso com o intuito único de lhe imprimir maiores condições na busca pelos interesses da coletividade.

Nesta via, não poucas vezes o administrador público é autorizado pela lei a realizar suas atribuições com a utilização do poder discricionário. Este, por sua vez, é conferido ao agente público em alguns casos, no intuito de lhe possibilitar certa margem de liberdade na decisão sobre qual a atitude melhor se aplica ao caso concreto, já que a lei nem sempre é capaz de fazê-lo. Dessa forma, ao agir discricionariamente, o administrador deve, pautando-se em critérios de oportunidade e conveniência, decidir qual a solução mais adequada a atingir o objetivo pretendido legalmente, qual seja, o interesse público.

Contudo, tem-se observado – não somente nos dias atuais, mas também em outras épocas, passando por toda a história do país – que administradores públicos, descompromissados com a coisa pública, nem sempre têm agido com esse fim, visando principalmente à satisfação de seus próprios interesses ou de quaisquer outros, diversos do interesse coletivo, e, para isso, geralmente se utilizam do poder discricionário que lhes é conferido.

Um caso de ato praticado com o uso da discricionariedade é a nomeação de servidores nos quadros da Administração Pública sem que estes tenham se submetido à regra do concurso público. Trata-se dos conhecidos "cargos comissionados" ou "cargos de confiança", encontrados em todas as esferas da administração.

Autorizados pela própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, inciso II, os cargos em comissão foram trazidos por esta Carta Magna como uma exceção à regra do concurso público, podendo ser ocupados por qualquer pessoa, conforme a pretensão do administrador, o qual pode nomeá-la e exonerá-la livremente.

Entretanto, ocorre que, ao autorizar a possibilidade de criação desses cargos, a Lei Maior apenas atribuiu como limitação a necessidade de previsão em lei, a qual deverá mencionar os percentuais de cargos a serem preenchidos por esta forma de provimento funcional. Dessa forma, a Constituição abriu um leque enorme de possibilidades de utilização desse dispositivo para nomear servidores sem o crivo do concurso público. E é nesse contexto que surgem os maiores abusos.

Completamente descompromissados com o interesse público, muitos administradores, como se tem observado, têm usado dessa lacuna legal e do seu poder discricionário para criar cargos demasiados – na maioria das vezes sem a efetiva necessidade – os quais, em sua maior parte, são ocupados por pessoas que não possuem qualificação técnica suficiente.

Visando a fins totalmente contrários ao interesse público, esses cargos comissionados geralmente são utilizados pelos administradores como meio de troca política, ou seja, os cargos comissionados desnecessários são distribuídos a apaniguados, os quais devem retribuí-lo por meio de votos, apoio político, dízimo partidário, etc. Esta troca política, por sua vez, em que se tem como único escopo a satisfação de interesses particulares, é chamada de clientelismo, e tem sido observada com bastante freqüência nas relações políticas do país, sendo de fundamental importância o seu estudo, razão por que foi escolhido como tema deste trabalho.

Contudo, observa-se que são poucos os trabalhos acerca deste fenômeno, e, quando existem, não costumam relacioná-los aos princípios constitucionais nem analisam seus impactos no ordenamento jurídico. Geralmente, os trabalhos abordando este tema se limitam apenas a realizar uma análise histórica ou política sobre o assunto.

Por essa razão, percebeu-se a necessidade de realizar um estudo que relacionasse tal prática aos princípios constitucionais, mais precisamente ao princípio da moralidade administrativa, dissecando suas implicações no âmbito jurídico, e analisando ainda o seu possível enquadramento como ato de improbidade administrativa.

Pretende-se, pois, nestes escritos, efetuar uma análise do fenômeno do clientelismo, sobretudo em relação à distribuição de cargos comissionados como forma de troca política, fazendo ainda uma relação com o princípio da moralidade, além de situá-lo como ato de improbidade administrativa.

Para fazê-lo, inicialmente será realizada uma análise da evolução histórica das formas de acesso a cargos e funções públicas no Brasil, desde o período colonial até o advento da Constituição Federal de 1988, sempre contextualizando com os acontecimentos de cada época, relacionando-as ainda com os sistemas constitucionais que vigiam.

No momento seguinte, será abordada a forma de acesso a cargos públicos atualmente permitida no ordenamento jurídico, trazendo o que preconiza a Constituição de 1988. Nesta ocasião, serão pormenorizadas as formas de ingresso no serviço público, abordando-se o instituto do concurso público e as possibilidades de ingresso nos cargos em comissão em que é dispensado o certame.

Logo em seguida, introduzir-se-á o conceito de clientelismo, situando-o especificamente nos casos de distribuição discricionária de cargos comissionados, assim como se apresentam dois casos observados na mídia nacional e que possuem características de práticas clientelísticas.

Após esse momento, abordar-se-á sobre o princípio da moralidade administrativa, trazendo-se à colação o seu significado, suas características e sua previsão legal, sem deixar de relacioná-lo ao fenômeno do clientelismo em decorrência da distribuição de cargos comissionados.

Por fim, será realizada uma análise da ofensa causada pelo clientelismo ao princípio da moralidade, sob a perspectiva da Lei da Improbidade Administrativa, realizando uma análise do possível enquadramento do clientelismo como ato de improbidade.

Quanto ao método, neste trabalho, foi utilizado o indutivo, cuja consecução se deu por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando-se, inclusive, notícias jornalísticas.

Ademais, a tratativa de tal temática adquire, sobretudo no cenário e dias atuais, incontestável importância à ciência jurídica, tendo em vista que se trata de um fenômeno sócio-político que apresenta importantes e graves implicações no âmbito jurídico. Além do mais, o presente trabalho se mostra por demais oportuno, uma vez que traz o tema de maneira ordenada e precisa, sem se desvirtuar dos conceitos e princípios jurídicos propostos, a exemplo da moralidade administrativa e do conceito de improbidade administrativa.

Por tudo isso, o presente estudo não se limita à apresentação dos fatos, mas se preocupa em proporcionar uma profunda reflexão sobre o tema, apresentando, alfim, sugestões para que o clientelismo em decorrência da distribuição discricionária de cargos possa ser minimizado no cenário sócio-político-jurídico brasileiro.


2.O ACESSO A CARGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL – EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Inicialmente, antes de se adentrar no tema propriamente dito deste trabalho, necessária se faz a análise de como se deu, no decorrer da história de nosso país, a ocupação das funções e cargos públicos, considerando sempre o contexto histórico, bem como o contexto sócio-cultural em que estavam inseridas as nomeações e ingressos nos cargos públicos.

Após o descobrimento do Brasil, a ocupação de nosso território só veio efetivamente a acontecer, ainda no período colonial, com o sistema de Capitanias Hereditárias em 1534, que foi o primeiro projeto político e econômico da Coroa portuguesa com o fito específico de povoar e colonizar as terras aqui descobertas.

Através deste sistema, a coroa dividiu o território brasileiro em 12 porções irregulares, confrontantes com o oceano, e as doou a membros da pequena nobreza lusa – os donatários – que deveriam estar decididos a habitar o país, devendo ainda ser necessária e suficientemente ricos para colonizar e defender as novas terras

Sobre o assunto, o constitucionalista José Afonso da Silva (2007, p. 70) assim dispõe:

As capitanias eram organizações sem qualquer vínculo umas com as outras. Seus titulares – os donatários – dispunham de poderes quase absolutos. Afinal de contas, elas constituíam seus domínios onde exerciam seu governo com jurisdição cível e criminal, embora o fizessem por ouvidores de sua nomeação e juízes eleitos pelas vilas. (Grifo nosso)

Ante o exposto, percebe-se que o sistema de Capitanias Hereditárias foi o marco inicial das nomeações de cargos no Brasil, uma vez que os donatários, titulares das terras distribuídas no país, passaram a ter poderes, conferidos pela Coroa Portuguesa, para nomear e investir quem fosse de seu interesse em funções públicas, ao seu livre arbítrio.

Contudo, tal sistema não prosperou, fracassando em seus objetivos originais. Alguns donatários nem vieram ao Brasil, e outros logo desistiram diante das dificuldades com as resistências indígenas e com a necessidade de elevados investimentos. Dessa forma, apenas as capitanias de São Vicente, Porto Seguro, Ilhéus e Pernambuco tiveram um maior sucesso.

Em 1548, houve a trágica morte do donatário da capitania da Bahia, que fora devorado por índios tupinambás, dando causa à retomada daquelas terras pelo poder real. Tinha início, então, o Governo-geral, que se caracterizava por ser um sistema unitário, tendo como escopo a centralização do poder na colônia. Este sistema, por sua vez, não surgiu em substituição definitiva do sistema anterior, mas passou a coexistir com aquele.

Através do Regimento do Governador-Geral, datado de dezembro daquele mesmo ano, foi nomeado o primeiro governador – Tomé de Souza – implicando ainda uma maior organização do governo geral do Brasil.

Referindo-se aos regimentos dos governadores-gerais, "foram eles, pois, cartas organizatórias do regime colonial, que conferiam ao governador-geral poderes atinentes ao ‘governo político’ e ao ‘governo militar’ da colônia" (SILVA, 2007. p. 70). Estes regimentos implicaram também o estabelecimento do posto de ouvidor-mor, de procurador da fazenda e de capitão-mor da costa.

Não diferente do sistema de Capitanias hereditárias, o sistema de Governo-geral também conferia aos governadores poderes para nomeação de cargos, apesar de ter diminuído o seu arbítrio em relação ao sistema anterior. Isto se evidencia nas palavras de Ronaldo Vainfas (2001 apud FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 270), como se verifica no excerto seguinte:

O governador-geral foi definido como chefe supremo da administração colonial, com ênfase nas suas funções militares, sendo o posto de comandante da tropa sua atribuição fundamental. Em termos administrativos, ficava responsável pelo governo civil, articulando as diversas capitanias e cuidando dos assuntos fazendários. Na área judiciária, assumiu a responsabilidade de preencher cargos serventuários, comutar penas e, posteriormente, supervisionar os trabalhos do Tribunal da Relação da Bahia, criado em 1609. (Grifo nosso)

Posteriormente, a partir de 1808, se dá a instalação da corte no Rio de Janeiro, com a chegada de D. João VI ao Brasil, assim como ocorre, sete anos depois, a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal, finalizando, assim, o sistema colonial. Com este acontecimento, ocorreu a instalação das repartições da corte, assim como órgãos do estado, conforme se observa abaixo, em pensamento expresso por Silva (2007, p. 72-73):

Transferida a sede da Família Reinante para o Rio de Janeiro, era preciso instalar as repartições, os tribunais e as comodidades necessárias à organização do governo; cumpria estabelecer a ordem, com a polícia, a justiça superior, os órgãos administrativos, que tinham até aí faltado à colônia. Assim se fez a partir de 1º de abril. Foram instituídos, criados e instalados o Conselho de Estado, a Intendência Geral de Polícia, o Conselho da Fazenda, a Mesa da Consciência e Ordens, o Conselho Militar, o Desembargo do paço, a Casa da Suplicação, a Academia de Marinha; a Junta-Geral do Comércio, o juízo dos falidos e conservador dos privilégios; o Banco do Brasil, para auxiliar o Erário, a Casa da Moeda, a Impressão Régia etc.

Entretanto, convém mencionar que a atuação destes órgãos não ultrapassou os limites do Rio de Janeiro, atingindo muito brandamente o restante do país, onde se manteve o hábito da apropriação privada do poder público.

Com a proclamação da independência, surge um problema: a necessidade da unidade nacional, com a estruturação de um poder centralizador e uma organização nacional que obstasse os poderes regionais e locais. Isto fez ascender a idéia do constitucionalismo, reforçando a necessidade do surgimento de um novo pacto político, que estivesse condizente com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e que, ao mesmo tempo, além de declarar os direitos dos cidadãos aqui instalados, estabelecesse mecanismos de separação dos poderes.

Diante disso, surgiu a assembléia constituinte de 1823 e, por conseguinte, a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824. Com este texto constitucional, veio a instituição dos poderes executivo, legislativo, judiciário e de um quarto poder, o poder moderador. Previsto no artigo 98 do referido texto constitucional, o poder moderador caracterizava-se por atribuir poderes peculiares ao imperador, determinando que a pessoa deste era "inviolável e sagrada". Confronte-se o que preconizava o referido texto constitucional, in verbis:

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. [sic!]

Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma. [sic!] (BRASIL, 1824)

Para elucidar as prerrogativas que foram atribuídas ao imperador com a instituição do poder moderador, é oportuno mencionar o pensamento de Cecília Helena de Sales Oliveira (2003, p. 14), como se vê abaixo:

O texto determinava que a "pessoa do Imperador" era "inviolável e sagrada", não estando "sujeita a responsabilidade alguma", e que o poder moderador conferia a ele as seguintes prerrogativas: nomear os senadores, com base em listas tríplices formuladas através de eleições provinciais; convocar o poder legislativo extraordinariamente; sancionar decretos e resoluções do poder legislativo para que tivessem força de lei; aprovar ou suspender as resoluções dos conselhos provinciais; prorrogar ou adiar os trabalhos legislativos; dissolver a Câmara dos Deputados, "nos casos em que o exigir a salvação do Estado, convocando imediatamente outra, que a substitua"; nomear e demitir "livremente" os ministros de Estado; suspender magistrados acusados de prevaricação; perdoar ou moderar as penas impostas a réus condenados por sentença (direito de graça); e conceder anistia. Para auxiliá-lo nessas decisões haveria um Conselho de Estado, composto por dez membros vitalícios, e que não contava com a participação dos ministros. Nomeado pelo monarca, deveria ser ouvido em todos os "negócios graves" e "em todas as ocasiões" em que as atribuições do poder moderador fossem exercidas. (Grifo nosso)

Como se vê, surgiu então, concomitantemente, o Conselho de Estado, que tinha as funções de auxiliar ao Imperador nas suas decisões mais importantes. Como já se pode observar, os laços de parentesco, assim como características de apadrinhamento sempre se mantiveram presentes na história do país, e agora não era diferente. Isto fica plenamente evidenciado no excerto seguinte, que se refere ao Conselho de Estado, veja-se:

Seus membros faziam parte do seleto grupo de famílias que, ao longo do primeiro reinado, iria compor as primeiras casas titulares do Império. Eram homens cujas fortunas vinham se consolidando desde os fins do século XVIII e que além de controlarem largas faixas do mercado – pois atuavam na produção e comercialização de gêneros de exportação e de abastecimento e no tráfico negreiro – exerciam cargos na magistratura e na administração, ascendendo, também, a postos importantes do Banco do Brasil e do Real Erário durante o período joanino. Por vínculos de parentesco e negócios pertenciam aos setores mercantis mais ricos e poderosos da província fluminense e da região centro-sul e haviam atuado de forma direta nas decisões que ensejaram a separação de Portugal, pois antes mesmo da revolução de 1820 partilhavam o projeto de construir um Império no Brasil. (OLIVEIRA, 2003, p. 21, grifo nosso)

Ademais, o imperador tinha ainda o poder de nomear senadores; nomear e demitir ministros de estado; nomear magistrados e prover os mais empregos civis e políticos, conforme era previsto nos artigos 101, §§ 1º e 6º; e 102, §§ 3º e 4º, da referida constituição.

Com o passar dos anos, foi amadurecendo, principalmente entre a elite agrária, a idéia do federalismo, como forma de assegurar o controle do Estado e garantir seus interesses, pois a monarquia já representava um obstáculo ao desenvolvimento econômico nacional. Confira-se o contexto da época:

O poder econômico estava, sem dúvida, centrado nas mãos dos cafeicultores paulistas, mas não o político. Os ministérios e a Câmara dos Deputados contavam com elementos da elite agrária de outras áreas, como, por exemplo, Nordeste e Rio de Janeiro. A centralização monárquica era, certamente, um empecilho à economia nacional. Assim, os cafeicultores viam no federalismo, na instituição da República, a solução de seus problemas, pois nesse sistema as províncias teriam maior autonomia em relação ao poder central. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006. p. 525)

Assim, a efusão de tais pensamentos leva à Proclamação da República em 1889, e, por conseguinte, ao surgimento de novas constituições, quais sejam, as constituições republicanas de 1891, de 1934, de 1946, de 1967 e a Emenda Constitucional de nº 01/1969.

Na primeira constituição republicana, a de 1891, insere-se no contexto nacional o regime presidencialista, a separação e tripartição dos poderes do Estado, consolidando-se o governo sob a forma de República Federativa, cuja estrutura era até então desconhecida nestas terras. Isso se confirma nos dizeres seguintes:

A nova Constituição foi promulgada em fevereiro de 1891, consagrando em seus pontos fundamentais: estabelecimento dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário; o mandato do presidente da República seria de quatro anos. O presidente poderia intervir nos estados quando houvesse ameaça separatista, guerra ou conflitos entre eles; voto universal (aberto, não-secreto) masculino aos maiores de 21 anos, exceto aos analfabetos e soldados; autonomia aos estados federados para elaborar sua própria Constituição, eleger seu governador, realizar empréstimo no exterior, decretar impostos e ter suas próprias forças militares (...) (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 567)

Nesta constituição, permanece a idéia de livre arbítrio na nomeação de cargos e funções públicas, com a diferença de que, enquanto outrora apenas o imperador nomeava quem ele bem entendesse, agora a constituição previa que cada poder (o legislativo, através da Câmara de Deputados e do Senado, assim como o Judiciário) detinha as atribuições de nomear seus empregados.

Por outro lado, deve-se destacar que a primeira constituição republicana brasileira vinculou a criação de cargos à previsão legal, além de consagrar a idéia da ampla acessibilidade aos cargos públicos, disciplinando, em seu artigo 73, que são acessíveis a todos os brasileiros os cargos públicos civis e militares. Apesar disso, o texto não trouxe qualquer mecanismo de controle do acesso e de impessoalidade do acesso aos cargos, razão por que tais modificações, apesar de extremamente importantes, não significaram uma forma de inibição efetiva dos abusos até então existentes. Além disso, era muito forte e arraigado nos costumes daquela época o fenômeno do coronelismo. Nesta via, interessante trazer à colação o que aborda Silva (2007, p. 80), apresentado palavras de Edgar Carone (1969):

O poder dos governadores, por sua vez, sustenta-se no coronelismo, fenômeno em que se transmudarem a fragmentação e a disseminação do poder durante a colônia, contido no Império pelo Poder Moderador. "O fenômeno do coronelismo tem suas leis próprias e funciona na base da coerção da força e da lei oral, bem como de favores e obrigações. Esta interdependência é fundamental: o coronel é aquele que protege, socorre, homizia e sustenta materialmente os seus agregados; por sua vez, exige deles a vida, a obediência e a fidelidade. É por isso que o coronelismo significa força política e força militar". [Grifo nosso]

Já a constituição republicana de 1934, "estatuiu princípios sobre o funcionalismo público" (SILVA, 2007, p. 82), em seus artigos 159 e 172, sendo responsável por introduzir na Administração Pública brasileira as principais alterações significativas no tocante ao acesso a cargos e empregos públicos. A primeira destas alterações diz respeito ao Ministério Público, o qual, segundo o artigo 95, § 3º da referida carta política, só poderia ter seus cargos providos através de concurso. Além disso, a perda do cargo só seria possível por sentença judicial ou processo Administrativo, sendo assegurada a ampla defesa.

Não foi diferente em relação ao poder judiciário dos Estados, Territórios e Distrito Federal, cuja investidura, no primeiro grau, apenas poderia se dar mediante concurso, organizado pela Corte de Apelação (artigo 104). Trouxe ainda outra inovação: a exigência de concurso, assim como a inamovibilidade e vitaliciedade, aos cargos de professor oficial.

Todas essas alterações, influenciadas pelo inflamado cenário da revolução de 1930, tiveram o forte cunho de coibir as práticas patrimonialistas observadas a todo o momento.

Com o surgimento da constituição de 1937, que veio inserida no seio do regime ditatorial que se apresentava na época, não houve significativas mudanças no que preconizava a constituição anterior no tocante à forma de acesso aos cargos públicos. Entretanto, apesar da manutenção dos direitos anteriormente adquiridos, esta constituição, no seu artigo 157, abria a possibilidade de colocar em disponibilidade o servidor público civil cujo afastamento fosse considerado de conveniência ou de interesse público, desde que não fosse aplicada ao caso a pena de exoneração.

Em outras palavras, uma comissão disciplinar, nomeada pelo ministro, podia exonerar ou colocar em disponibilidade qualquer servidor, tomando como justificativa fatores subjetivos como a conveniência e o interesse público. Com isso, os direitos garantidos na mesma Carta Magna eram tolhidos pelo regime ditatorial.

A constituição de 1946 não trouxe significativas alterações sobre este assunto, devendo-se destacar apenas o surgimento da figura jurídica dos cargos de confiança e de livre nomeação e demissão, que até então não existia no ordenamento jurídico. Tal figura aparece quando, nos artigos 184 a 188, ao estipular o prazo de dois e cinco anos para aquisição de estabilidade dos servidores admitidos com e sem concurso público, respectivamente, o legislador excetua este direito aos detentores de cargos de confiança.

A introdução deste instituto abre um precedente à oficialização, por meio de lei, de servidores admitidos sem concurso, sob a justificativa de tratar-se de cargo de confiança.

Posteriormente, em 1967, o desencadeamento de acontecimentos leva o cenário nacional ao contexto de ditadura militar. A edição dos Atos Institucionais pelos Militares que se instauraram no poder, sobretudo a edição dos Atos Institucionais nº 4 e nº 5 (AI-4; AI-5), se sobrepôs à ordem constitucional vigente. Confronte-se o que é apresentado em seguida, com destaques acrescidos:

No governo Castelo Branco houve a criação de instrumentos de controle e perseguição de adversários que consolidaram o regime autoritário. Com a criação do SNI (Serviço Nacional de Informações), em 1964, e da Lei de Segurança Nacional (LSN), em 1967, montou-se o instrumento jurídico para as prisões políticas e cassações de direitos individuais realizadas pela ditadura.

[...]

Em 1967, após a convocação extraordinária do Congresso pelo AI-4 (6 de dezembro de 1966), o país tinha uma nova Constituição, pela qual o mandato presidencial era reduzido de cinco para quatro anos e o Poder Executivo consolidava seu fortalecimento em relação aos demais poderes, ratificando medidas adotadas pelos Atos Institucionais. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 841, grifo nosso)

Foi promulgada então a constituição de 1967, e, posteriormente, foi promulgada em 17 de outubro de 1969 a Emenda Constitucional nº 1, a qual, seguida de mais 25 emendas, sustentou a ditadura militar até o seu declínio, com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, através da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Durante este período, não houve alterações importantes na forma de acesso aos cargos públicos.

No momento histórico seguinte, exsurge a Constituição Cidadã de 1988, a qual se encontra vigente até os dias atuais, sendo, por isso, objeto primordial deste estudo, e cuja análise far-se-á a partir do capítulo seguinte.


3.das formas de ingresso no serviço público NA CRFB/88

Diferentemente das constituições anteriores, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 nos trouxe um capítulo dedicado exclusivamente à Administração Pública, em que apresenta todos os regramentos a ela atinentes, inclusive no que diz respeito às formas de acesso aos cargos públicos.

Além de enumerar, no caput do artigo 37, os princípios que regem a Administração Pública, a CRFB/88, no inciso I do mesmo artigo, com a leitura dada pela Emenda Constitucional nº 19 de 1998, estatui que os "cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei". Trata-se do princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos, o qual é, porque não dizer, uma expressão do princípio da isonomia, previsto no artigo 5º da Carta Magna.

Assim, ao estipular a ampla acessibilidade aos cargos públicos, o legislador constituinte pretendeu evitar distinções e discriminações no seu provimento, promovendo a igualdade na sua distribuição. Foi então, por essa razão que o legislador constitucional referendou a regra do concurso público, o que se encontra no inciso II, do mesmo artigo da CRFB/88, a saber:

Art. 37. [...]

II- a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. (Grifo nosso)

Além disso, não se pode deixar de lembrar o que defende o doutrinador Hely Lopes Meirelles (2007, p. 436), para quem o instituto do concurso público é a forma idônea de se prevenir abusos na distribuição de cargos, promovendo a moralidade, eficiência e o aperfeiçoamento do serviço público. Constate-se em suas palavras:

O concurso é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando cargos e empregos públicos. (Grifo nosso)

Nesta senda, percebe-se que o legislador constituinte atribuiu caráter de regra geral à investidura em cargo ou emprego público através de concurso público, valorizando assim a meritocracia. Esta, por sua vez, é bem ilustrada na doutrina pátria, como se vê nas palavras que seguem:

O princípio da acessibilidade aos cargos e empregos públicos visa essencialmente realizar o princípio do mérito que se apura mediante investidura por concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, II). (SILVA, 2007, p. 679, grifo nosso)

Ante o exposto, é de se perceber que o instituto do concurso público situa-se como meio hábil à garantia da isonomia, à medida que permite a ampla acessibilidade aos cargos, os quais podem ser pleiteados em iguais condições pelos candidatos. No pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 277-279)

O que a Lei Magna visou com os princípios da acessibilidade e do concurso público foi, de um lado, ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração direta e indireta.

[...]

Os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames. (Grifo nosso)

Além disso, figura também amparado no princípio da moralidade, valorizando ainda o mérito, antes de tudo. Isto é o que se depreende do pensamento de Conceição Jorge Pinto (2009), a saber:

Com base no princípio da moralidade administrativa, pode-se verificar se o concurso foi realizado dentro da estrita legalidade, sem a incidência de favorecimento e ou de perseguições pessoais. E por fim, o princípio da competição, que constitui a própria essência do concurso público, um certame onde candidatos procuram alcançar a melhor classificação, demonstrando através de provas, a sua superioridade em conhecimento diante dos outros concorrentes, o seu mérito para o desempenho do cargo para o qual se candidatou. (Grifo nosso)

Ademais, deve-se mencionar que, apesar de preconizar o concurso público como regra geral, o inciso II estabelece uma ressalva: as nomeações para cargos em comissão, os quais são declarados em lei de livre nomeação e exoneração. Dessa forma, estabelece a Lex Mater que é possível a investidura em cargos públicos sem o crivo do concurso público, bastando apenas a edição de uma lei em sentido estrito em que se declare os cargos de livre nomeação e exoneração, sem estipular maiores critérios para a sua elaboração. De outra banda, o inciso V do mesmo artigo preleciona que

Art. 37 [...]

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.

Com isso, temos que a Carta Política nos trouxe, com o advento da Emenda Constitucional nº 19/1998, escassos e vagos elementos limitadores à nomeação de cargos em comissão e funções de confiança, já que são muito genéricos os requisitos que devem ser cumpridos pela lei que criar cargos em comissão, ou seja, para editá-la é apenas necessário estabelecer as parcelas atinentes aos servidores de carreira e às pessoas não concursadas e estabelecer os casos e as condições em que a administração poderia se valer dessa forma de provimento funcional.

Assim, ao não estabelecer critérios mais definidos na criação dos cargos que prescindem de concurso público, o legislador abriu um enorme leque de possibilidades de utilização mal intencionada deste dispositivo. Sobre o assunto versado, interessantes são as palavras do já mencionado doutrinador José Afonso da Silva (2007, p. 679), a saber:

Deixa a Constituição, porém, uma grave lacuna nessa matéria, ao não exigir nenhuma forma de seleção para a admissão às funções (autônomas) referidas no art. 37, II, ao lado dos cargos e empregos. Admissões a funções autônomas sempre foram fonte de apadrinhamentos, de abusos e de injustiças aos concursados. As funções de confiança, previstas no art. 37, V, como os cargos em comissão (também de confiança), destinados apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento, não comportam concurso público, estatuindo-se apenas que aquelas sejam exercidas por servidores ocupantes de cargos efetivos, e estes preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei. (Grifo nosso)

Não obstante a possibilidade de nomeação de cargos em comissão sem prévio concurso público, há também outra hipótese de acesso a cargos públicos que não se submete à regra do certame: é o caso das contratações para o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, prevista no inciso IX do artigo 37. Por esse dispositivo, a Administração Pública vê-se autorizada a, por meio de lei, contratar em caráter temporário, desde que seja premente a necessidade temporária de excepcional interesse público. Assim, havendo contingências que transpassem a situação de normalidade, cujo atendimento reclama satisfação imediata e temporária, e que, devido ao seu caráter incomum, eventual, transitório e urgente, enseje a desnecessidade de concurso público, a Administração Pública pode editar lei com escopo de atender a tais necessidades, nomeando empregados temporários sem prévio concurso público.

Não restam dúvidas de que a possibilidade de contratação em caráter temporário nos casos e condições supra mencionados é necessária e importante, ao mesmo tempo em que é nobre o objetivo que possui, o de dar celeridade e eficiência à Administração Pública nos casos em que se aplica. Entretanto, ainda assim os administradores públicos têm se utilizado deste dispositivo como forma de burlar a obrigatoriedade dos concursos públicos, favorecendo interesses privados em detrimento do interesse público.

Por tudo o que foi exposto, após esta breve análise acerca das formas de acesso a cargos, empregos e funções públicas no ordenamento jurídico brasileiro atual, é incontestável o instituto do concurso público como meio idôneo de garantir a isonomia, a impessoalidade e a moralidade nas formas de ingresso dos administrados nos cargos públicos. Por outro lado, resta evidente que a Lei Maior, ao abrir exceções a esta regra geral, apresenta-se por demais vulnerável e lacunosa, abrindo possibilidades de distribuição discricionária de cargos sem a sua efetiva necessidade. Esta desnecessária distribuição discricionária de cargos em comissão, assim como desnecessárias contratações em caráter temporário que temos observado com bastante freqüência em todas as esferas de poder, têm se mostrado totalmente lesivas aos princípios da impessoalidade e moralidade administrativa, em detrimento do interesse público, levando ainda à improbidade e à má administração da máquina pública.

É, pois, nesse diapasão que surge a figura do clientelismo, cujo conceito e características ver-se-ão no capítulo seguinte.


4.O Clientelismo

4.1.conceito e características

O significado de clientelismo, tema principal deste estudo, está intimamente ligado à idéia de favorecimento, cujo conceito é oriundo do campo da ciência política. Consiste numa prática eminentemente política, através da qual alguém em posição politicamente destacada concede benefícios a outrem, em posição politicamente inferior, recebendo uma contrapartida de interesse particular como forma de retribuição ao que lhe foi concedido. Dessa forma, o clientelismo na Administração Pública ocorre quando um administrador público, utilizando-se do aparelho estatal ou de meios de burla à estrita legalidade, concede benefícios diversos a certo indivíduo ou a certo nicho social, visando à satisfação de interesses não condizentes com o interesse público.

Assim, pode-se dizer que o aparelho estatal é utilizado como meio de troca numa relação de dois pólos: de um lado, o administrador público, ou alguém inserido dentro da Administração Pública, com objetivos de cunho pessoal ou particular, utiliza a máquina pública para oferecer concessões, isenções, facilidades a outrem que figura no outro pólo da relação, e que, por sua vez, retribuirá de alguma forma o benefício recebido.

Robert Kaufman (1977, apud CARVALHO, 1997) elucida brilhantemente o que vem a ser o clientelismo, afirmando que "indica um tipo de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto".

Quadra salientar que, o clientelismo, no sentido de troca política, sempre se manteve presente na história do nosso país, quer mais intensamente, quer de forma mais amena. Por outro lado, paralelamente à incidência do clientelismo nas mais diversas épocas do nosso itinerário histórico, observou-se também a incidência de outros fenômenos semelhantes, como é o caso do coronelismo, do mandonismo e do patrimonialismo, cujos conceitos são geralmente mais conhecidos. Ademais, apesar de semelhantes, esses conceitos não nos interessam, pois é o conceito de clientelismo que mais se adéqua às práticas observadas no cenário político dos dias atuais, e, por essa razão será utilizado neste estudo.

Esta forte incidência do clientelismo no campo político recente, em sobreposição a outros fenômenos outrora observados no Brasil – a exemplo do coronelismo e do mandonismo – é corroborada nas palavras de José Murilo de Carvalho (1997), cujo pensamento é expresso a seguir, in verbis:

Os autores que vêem coronelismo no meio urbano e em fases recentes da história do país estão falando simplesmente de clientelismo. As relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a presença do coronel, pois ela se dá entre o governo, ou políticos, e setores pobres da população. Deputados trocam votos por empregos e serviços públicos que conseguem graças à sua capacidade de influir sobre o Poder Executivo. Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. (Grifo nosso)

Ressalte-se ainda, que no clientelismo, como já afirmado anteriormente, os dois pólos da relação de troca encontram-se em situação de poder desigual, e, no caso do clientelismo dentro da Administração Pública – também chamado por alguns autores de clientelismo político ou burocrático – a parte mais poderosa é o Estado, como defende Carvalho (1997):

Ora, qualquer noção de clientelismo implica troca entre atores de poder desigual. No caso do clientelismo político, tanto no de representação como no de controle, ou burocrático, para usar distinção feita por Clapham (1982), o Estado é a parte mais poderosa. É ele quem distribui benefícios públicos em troca de votos ou de qualquer outro tipo de apoio de que necessite. (Grifos acrescidos)

Interessante ainda é trazer à colação a abordagem de Luiz Henrique Nunes Bahia (2003, p. 127), em sua obra O poder do clientelismo – Raízes e Fundamentos da Troca Política, obra esta que traz um estudo pormenorizado, com comparações entre diversos autores, sobre as origens e características dos fenômenos clientelísticos. Para este autor, o clientelismo, por ele chamado de troca política, é uma prática inerente ao contexto da atividade política, estando, por isso, sempre presente na história política das sociedades. Apresentando pensamento de Robert Kaufman (1974), o referido autor afirma que:

A relação clientelística é ainda aqui tratada como tipo especial de permuta "de dois", individualizada pelas seguintes características;

a)a relação ocorre entre atores de poder e status desiguais;

b)é baseada no princípio da reciprocidade, isto é, uma forma de troca interpessoal auto-regulável;

c)a relação é particularista e privada, ancorada apenas levemente na legislação púbica e nas normas comunitárias.

[...]

O conceito de clientelismo propicia a relação entre os tipos de poder, já que inclui a idéia de hierarquia que permite intensos conflitos na base da pirâmide e a permanência dos indivíduos sob um só patronus.

Ainda em elucidação ao que defende o autor estrangeiro, ele faz uma diferenciação entre os sistemas de larga-escala clientelistas e outros tipos de coletividade de larga-escala, fazendo menção a mais algumas importantes características da troca política, como se constata abaixo:

No clientelismo, 1) a autoridade baseia-se na capacidade de controlar recursos materiais escassos e na capacidade de usar estes recursos na troca com os seguidores. Diferenciam-se ainda das demais formas de autoridade por ser personalista (sem contrato legal); 2) cada um dos membros na coletividade clientelista possui objetivos particulares; 3) as relações são verticais e os membros quase não se conhecem (o vínculo é só com o patrão). A verticalidade torna a relação clientelista menos estável que as demais. (BAHIA, 2003. P. 128, grifo nosso)

Dessa forma, ficam mais uma vez evidenciados alguns traços da atividade política clientelística, como por exemplo, a busca por objetivos particulares. A relação vertical é outro ponto que merece destaque: numa relação clientelística dentro da Administração Pública, a relação de vínculo ocorre do administrado, beneficiado com algo, para com o Administrador público, o qual é retribuído pelo benefício concedido.

Nesse contexto, a nomeação de servidores sem concurso público, nas diversas esferas de poder, mesmo que temporariamente, vem sendo utilizada como meio de troca clientelística. Tem-se observado com freqüência a incidência de administradores públicos que, visando interesses diversos do interesse público, conseguem fazer surgir a edição de uma lei ou até mesmo utilizam a justificativa da necessidade temporária de excepcional interesse público para nomear servidores sem o crivo do concurso. Dessa forma, cargos públicos se tornam moeda de troca de benefícios, em que de um lado figura a Administração Pública, por meio de seu administrador, o qual concede o acesso a um cargo público sem a devida necessidade; e de outro lado figura o particular, que recebeu um benefício (neste caso, o cargo público), ainda que sem méritos, e que o retribuirá de alguma forma, mormente através do voto.

Acerca disso, nesta troca política em que o voto – neste caso chamado de voto de mercadoria – é utilizado como meio de permuta, prática bastante freqüente nas pequenas cidades de interior, encontra-se também a figura do "cabo eleitoral", o qual atua como mediador da troca de benefícios. Essa temática é também abordada por Bahia (2003, p. 147). Veja-se

O político costuma atribuir à sua mediação política a realização, pelo Estado, de um serviço público. Nestes casos, um deputado "presta" serviços aos beneficiados que, na sua maioria, não o requisitaram e nem tem como o retribuí-lo, a não ser com seus votos. Finalmente, a referida "mediação" acaba por ter propósitos particulares. (Grifo nosso)

Em suma, observa-se que os agentes políticos distribuem empregos à população, umas vezes em troca de votos, outras vezes em troca de apoio político ou outra retribuição distinta do interesse público. Em tese, a idéia de "dar emprego à população" pode figurar como um objetivo legítimo, entretanto, tal noção cai por terra quando se percebe que os cargos geralmente são criados sem necessidade, para serem ocupados geralmente por pessoas totalmente despreparadas, gerando, assim, a ineficiência do serviço público, além de estampar o total descaso para com o erário, já que rios de dinheiro são gastos para custear altas folhas de pagamento decorrentes de tais práticas clientelistas.

Nesse sentido, é de se dizer que as práticas clientelísticas de distribuir discricionariamente cargos públicos em troca de retribuições alheias ao interesse público ferem, veementemente, aos princípios da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, princípios estes constitucionalmente previstos como norteadores da Administração Pública, podendo ainda ser configurado como ato de improbidade administrativa.

Todavia, até que se possa demonstrar que a distribuição discricionária de cargos se deu de forma ilegal e mal-intencionada há de se percorrer um longo caminho, em que as chances de comprovar a má-intenção são difíceis. Para tanto, entende-se que é meio idôneo para obstar tais práticas a Ação de Improbidade Administrativa, com fulcro na Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, para a qual foi reservado um capítulo ao final deste trabalho. Por fim, entende-se que o caminho mais curto a coibir tal prática é a edição de uma lei geral que regre, de forma limitadora, as condições a serem observadas pelos administradores públicos na nomeação de servidores sem concurso público. Com isto, se poderá prevenir, com maior amplitude, condutas desta natureza, que proporcionam a corrupção.

4.2.Casos sugestivamente clientelístico nos dias atuais.

Diante do conceito e das características do clientelismo, facilmente se percebe que, ao nosso redor, são bastante freqüentes as práticas clientelísticas, em qualquer das esferas de poder – federal, estadual e municipal – envolvendo, sobretudo, agentes políticos ligados ao poder executivo, assim como agentes políticos ligados ao poder legislativo.

Nesse contexto, imprescindível se faz trazer à colação alguns casos atuais, observados na mídia, que, sugestivamente, se enquadram em tal conceito e características, configurando, assim, práticas clientelísticas. Apenas para exemplificar, serão apresentados dois casos, um no âmbito do poder executivo federal e outro no âmbito do poder legislativo federal.

De acordo com notícia veiculada através do sítio eletrônico do Programa CQH – Compromisso com a Qualidade Hospitalar – entidade mantida pela Associação Paulista de Medicina e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo - o número de cargos comissionados criados pelo governo federal até julho de 2007 já era 7,6 vezes maior em relação ao primeiro mandato do presidente Lula. (COMPROMISSO COM A QUALIDADE HOSPITALAR, 2007).

Segundo a referida notícia, que também foi veiculada no jornal Folha de S. Paulo de 27 de agosto de 2007, a média mensal de novos empregos decorrentes da criação de cargos comissionados saltou de 23,8 para 179,7 de janeiro a julho de 2007. Tais dados foram divulgados através da Nota Informativa nº 304/07 de 16 de agosto de 2007, proveniente do Ministério do Planejamento, em resposta a requerimento do Deputado Federal Fernando Coruja.

Menciona ainda, tal notícia, que, de acordo com informações do Partido dos Trabalhadores, cerca de cinco mil cargos de confiança federais são ocupados por filiados, os quais são obrigados a contribuir com uma parte do salário, o "dízimo", para o partido. Com isso, a receita do partido com esse tipo de contribuição teria aumentado 545% no primeiro governo Lula, chegando a 2,88 milhões em 2006.

Diante do caso em tela, percebe-se que há, sem sombra de dúvidas, um crescimento exacerbado da criação de cargos comissionados, os quais são preenchidos sem concurso público. Concomitantemente, há também uma superelevação da receita do Partido dos Trabalhadores proveniente do dízimo partidário. Logo, é de se inferir que a ocupação de cargos de confiança tem sido utilizada como meio de troca, em que a retribuição ao emprego dado é o pagamento mensal de uma quantia – que pode chegar até dez por cento do salário – ao partido político. Eis então uma prática sugestivamente clientelística.

Importante destacar que a figura do dízimo partidário existe, e inclusive é prevista nos estatutos de alguns partidos políticos. Logicamente o nome utilizado não é este, mas, tal figura pode ser verificada em alguns partidos à medida que os seus estatutos estipulam um percentual diferenciado para a contribuição dos detentores de cargos de confiança. Em suma, enquanto o estatuto atribui o percentual de 10% aos filiados que possuem cargos comissionados, atribui o percentual de 2% aos demais, exemplo este que é similar ao que está previsto no estatuto do Partido Republicano Brasileiro. Confira-se:

Art. 50 – Constituem os recursos financeiros do Partido:

I - contribuições obrigatórias dos filiados detentores de mandato eletivo e ocupante de cargos de confiança indicados pelo Partido;

[...]

§ 1o - O órgão de execução estabelecerá, em seu nível, o valor das contribuições de seus filiados, obedecendo aos seguintes limites:

I - de 5% a 10% sobre os rendimentos dos filiados detentores de mandato e ocupantes de cargos de confiança indicados pelo Partido;

II - até 2% (dois por cento) dos rendimentos dos demais filiados. (Grifo nosso)

Em alguns casos, a situação chega ao absurdo de obrigar aos filiados ocupantes de cargos comissionados a fornecer dados de suas finanças pessoais, obrigar a autorizar o débito em sua conta corrente, além de obrigar o parlamentar do partido a realizar a arrecadação daqueles que nomeou para cargos de confiança, submetendo-o a duras penas se não fazê-lo. É o que se observa no estatuto do Partido dos Trabalhadores, cujo excerto se transcreve abaixo, com destaques acrescidos:

Art. 171. Filiados ocupantes de cargos executivos ou parlamentares deverão efetuar uma contribuição mensal ao Partido, correspondente a um percentual do total líquido da respectiva remuneração mensal, conforme tabela progressiva a que se refere o artigo 173 deste Estatuto.

[...]

§ 3º O detentor de cargo ou função no Executivo ou Legislativo deverá autorizar o departamento financeiro da fonte pagadora a fornecer todas as informações ao Partido, bem como fornecer à tesouraria do Partido cópia dos contracheques e cópia de leis ou decretos referentes à sua remuneração.

§ 4º A contribuição financeira deve ser feita obrigatoriamente através de débito automático em conta corrente ou em consignação à Secretaria de Finanças da instância correspondente, mediante autorizações escritas:

[...]

§ 5º: O filiado parlamentar, além da contribuição mensal individual, ficará responsável pela arrecadação mensal das obrigações estatutárias de seus assessores e cargos de confiança ocupados por filiados, assegurando o valor mínimo equivalente a 5% (cinco por cento) do total das verbas recebidas para a lotação do gabinete.

[...]

§ 7º: O descumprimento do disposto neste artigo sujeita o filiado parlamentar inadimplente às seguintes medidas disciplinares: suspensão do direito de voto e das atividades partidárias; desligamento temporário de sua bancada com substituição pelo suplente do Partido; suspensão ou perda de todas as prerrogativas, cargos e funções que exerça em decorrência da representação e da proporção na respectiva Casa Legislativa; negativa de legenda para disputa de cargo eletivo, ou ainda à penalidade de expulsão, quando se tratar de infrator reincidente reiterado. (Grifo nosso)

Ante o exposto, a exemplo do § 5º retro, percebe-se que há, incontestavelmente, a utilização de cargos comissionados como meio de troca política em que o ocupante do cargo vê-se obrigado a retribuir a benesse recebida com sua contribuição compulsória mensal. Isto é constitucionalmente inadmissível, pois, além de espancar os princípios constitucionais, fere também a liberdade individual e é uma prática totalmente diversa do interesse público.

O dízimo partidário, como observado neste caso, já foi analisado judicialmente, por meio de consulta realizada pelo Deputado Federal Eduardo da Costa Paes ao Tribunal Superior Eleitoral, a qual recebeu o nº 1.135. Em seu voto, que integra o acórdão do TSE de nº 22.025-DF, publicado no Diário de Justiça em 25/07/2005, o relator, Exmo. Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, corrobora este pensamento:

Logo, sob o ângulo estritamente constitucional e diante dos interesses maiores da administração pública, surge com extravagância ímpar previsão, no estatuto do partido político, que acabe por direcionar a escolha do ocupante do cargo ou do detentor da função de acordo com a filiação partidária para, em passo seguinte, fixar-se contribuição que somente no plano formal pode ser vista como espontânea.

[...]

[...] se a pessoa está procurando a fonte do próprio sustento e da respectiva família, tenderá a filiar-se a certo partido, detentor indireto do poder, para, em passo seguinte, sucumbindo ante a força da necessidade de optar, vir a emprestar aquiescência – que digo compulsória – a desconto de determinado valor em benefício do partido a que se faz vinculado até mesmo sem o respaldo do próprio convencimento.

Mais do que isso, afigura-se latente o abuso do poder de autoridade. A razão é muito simples. Ou bem o pretendente ao cargo de confiança ou à função comissionada concorda em se filiar e contribuir, ou acaba não logrando a ocupação do cargo ou o desenvolvimento da função, a fonte da subsistência referida. Em última análise, em razão da mesclagem dos interesses em jogo – do partido e daquele que, mediante a respectiva bandeira, foi eleito para o cargo de chefia maior do Executivo, e aí passam a confundir-se –, haverá o conseqüente abuso do poder de autoridade, a menos que nos imaginemos em outro contexto que não o nacional. Perpetrado o abuso de autoridade, desviando-se, sob o ângulo da finalidade, dinheiro público, segue-se a existência de parâmetros a evidenciar outra forma de abuso, que é a do poder econômico, situando-se partidos políticos em patamares diferentes. (Grifo nosso)

Resta, pois, comprovada a finalidade clientelística desta abominável prática.

Passando ao âmbito do Poder Legislativo Federal, há um caso sugestivamente clientelístico e que tomou grandes proporções na mídia nacional. Trata-se do escândalo dos atos secretos, que envolveu o Senado Federal no início de 2009.

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, veiculada através de seu sítio eletrônico na internet em 10/06/2009, dá conta de que levantamento feito por técnicos do Senado detectou cerca de 300 atos administrativos não publicados, que foram utilizados para nomear parentes, criar cargos e aumentar salários, produzindo gastos desnecessários. A descoberta dos atos secretos se deu em decorrência das investigações sobre o então diretor-geral do Senado, Agaciel Maia, o qual era o principal articulador e responsável por distribuir favorecimentos a apadrinhados políticos dos senadores, sob a forma de cargos, aumento de salários, criação de diretorias de fachada, etc. Foi então o estopim para uma imensa crise que se instaurou na Instituição.

O desencadear das descobertas foi se intensificando, ao ponto de ultrapassar 900 atos secretos praticados desde 1995, conforme noticiado no mesmo jornal em 13 de agosto de 2007, em sua versão online.

Nesse contexto de atos não publicados, outra reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, assinada por Rodrigo Rangel e Leandro Colon (2009), veiculada em 16 de julho de 2009 em sua versão online, traz o fato que se considera o clímax daquela crise: a nomeação do namorado da neta do então Presidente do Senado, José Sarney.

Segundo a referida notícia, as investigações da Polícia Federal durante a operação batizada de Boi Barrica constataram, através de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça, que o Senador José Sarney, assim como seu filho, Fernando Sarney – então secretário parlamentar do gabinete do Senador Epitácio Cafeteira, aliado de Sarney – negociaram com Agaciel Maia o preenchimento de vaga que "pertencia à família" pelo namorado da neta do Presidente do Senado. O próprio Sarney aparece nas conversas telefônicas, recebendo orientações para enviar o currículo de Henrique Dias Bernardes, namorado de sua neta, para que fosse nomeado por meio de ato secreto.

A fim de melhor entender os fatos, examine-se o disposto num trecho da reportagem:

Tudo começa quando Maria Beatriz Brandão Cavalcanti Sarney, filha de Fernando Sarney, telefona para o pai, interessada em nomear, no Senado, uma pessoa que, segundo a Polícia Federal, seria o namorado dela. A nomeação seria feita na vaga de um outro agregado do clã, Bernardo Brandão Cavalcanti Gomes, irmão de Beatriz por parte de mãe, que já estava pendurado na folha de pagamento do Senado desde 2003 e tinha pedido demissão.

Com o argumento de que a vaga pertencia à família, a neta do presidente do Senado se articulou para colocar no lugar Henrique Dias Bernardes. Ela se mostrou esforçada. Depois de ligar para o pai, fez a conversa chegar ao gabinete do avô.

O próprio Sarney aparece nas conversas. Recebeu orientação para que enviasse o currículo de Henrique Bernardes a Agaciel. Deu certo. O meio-irmão de Beatriz fora exonerado em 25 de março de 2008. Em 10 de abril, saiu a nomeação de Bernardes por meio de um ato secreto assinado por Agaciel.

Bernardes foi nomeado como assistente parlamentar 3 na Diretoria-Geral do Senado, mesma vaga na qual o meio-irmão da moça passou cinco anos recebendo R$ 2,7 mil. (RANGEL; COLON, 2009,grifo nosso)

Como se não bastassem esses fatos vergonhosos supra mencionados, os favorecimentos e troca de benefícios ultrapassam as dependências do Senado Federal, atingindo outras entidades, a exemplo do que se observa na reportagem veiculada no jornal O Estado de S. Paulo, em sua versão online veiculada em 26 de outubro de 2009, em que se revela ação da família Sarney no setor elétrico, influindo na nomeação de apadrinhados políticos no âmbito da Eletrobrás. Confira-se no excerto extraído da reportagem:

Em uma gravação mostrada pelo jornal Sarney orienta o filho a arranjar emprego para aliados na cúpula da Eletrobrás, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, pasta dirigida pelo ministro Edison Lobão, amigo do senador. Outra interceptação revela Fernando comunicando que após concretizadas as nomeações indicadas pelo pai ele iria "atacar" os apadrinhados para liberar recursos de patrocínio a entidades privadas ligadas à família Sarney. (AGÊNCIA ESTADO, 2009)

Por tudo o que foi exposto, fica plenamente evidenciado que é muito freqüente em nosso país a distribuição discricionária de cargos comissionados e funções de confiança, os quais muitas vezes são prescindíveis, sendo ocupados por pessoas geralmente desqualificadas, servindo apenas como meio de favorecimento pessoal dos agentes políticos, em detrimento do interesse público. Nesse diapasão e diante dos exemplos supra mencionados, exsurge sólida a idéia de desrespeito aos princípios constitucionais da Administração Pública, sobretudo ao princípio da moralidade administrativa, gerando ainda graves prejuízos ao erário, ou seja, improbidade administrativa.

4.3.A discricionariedade administrativa nos atos clientelísticos

Em tudo o que foi abordado anteriormente, muito se falou na caracterização da nomeação discricionária de cargos como prática clientelista, mas, o que se deve dizer se a própria Constituição permite tal prática? É certo que o texto constitucional permite a nomeação de cargos sem concurso público, entretanto, se o Administrador o faz, é no campo da discricionariedade.

Na classificação dos atos administrativos, tem-se observado que a doutrina mantém, entre outras classificações, a diferenciação entre atos vinculados e atos discricionários. Enquanto os atos vinculados devem atender, sem reservas, a todos os requisitos e condições a lei os impõe, os atos discricionários podem ser praticados com certo espaço de liberdade por parte do Administrador, o qual fará, a seu juízo, a análise da oportunidade e conveniência de praticá-lo, dentro dos limites legais. Esta diferenciação é bem elucidada nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2007, p. 168-169), para quem

Atos vinculados ou regrados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase que por completo, a liberdade do administrador, uma vez que sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa.

[...]

Atos discricionários são os que a Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização.

Assim, os atos discricionários "seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles". (MELLO, 2009. p. 424, grifos do autor)

Dessa forma, o administrador público, agindo com o poder discricionário que lhe é conferido, possui certa liberdade para atuar no caso concreto, apreciando a conveniência e a oportunidade de praticar tal ato.

Por outro lado, embora possua margem de atuação discricionária conferida pela lei, isso não quer dizer que o Administrador possa agir de maneira arbitrária. Assim, ao agir utilizando-se do poder discricionário, o Administrador deve ponderar suas decisões, pautando-as na busca constante do interesse público e observando estritamente os ditames da lei.

Nesse diapasão, interessante trazer a lume o pensamento de Rita Andréa Rehem Almeida Tourinho (2009, p. 23), para quem

No que concerne à discricionariedade administrativa, deve-se de antemão afastar a idéia de liberdade do administrador, típica do Estado de Polícia, onde aquele tinha sempre o direito de realizar novos fins que ele próprio delimitava, fora do quadro de qualquer norma legal.

[...] A Administração Pública somente terá os poderes que a lei lhe transferir, para alcance das finalidades pretendidas por ela. Toda e qualquer atividade administrativa deverá estar sempre voltada à satisfação de um interesse público, não importando a vontade ou opinião pessoal do administrador.

Também nos dizeres de Meirelles (2007, p. 169), a idéia é corroborada, diferenciando-se o ato discricionário do ato arbitrário:

[...] ato discricionário não se confunde com ato arbitrário. Discrição e arbítrio são conceitos inteiramente diversos. Discrição é liberdade de ação dentro dos limites legais; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, portanto, quando permitido pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é, sempre e sempre, ilegítimo e inválido. [Grifos do autor]

Assim, o poder discricionário que é conferido ao Administrador tem sua razão de ser na busca "sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto". (MEIRELLES, 2007. p. 426). Deve-se buscar sempre o atendimento do interesse da coletividade, o bem comum, sempre sob o amparo legal, e com fulcro na boa-fé e na lealdade, buscando-se ainda a concretização da boa administração.

Não obstante, apesar de ter como fim colimado o melhor atendimento do interesse público, "é no campo da discricionariedade, porém, onde se verifica, com maior freqüência, a prática de atos imorais". (TOURINHO, 2009. p. 87)

Além disso, para Bahia (2003, p. 139), a discricionariedade favorece a disseminação de práticas clientelistas. É o que se depreende de suas palavras, com grifos não constantes do original:

Ao contrário da crença geral, a burocratização da vida moderna aumentou as possibilidades do clientelismo, pois burocracia significa a oportunidade de exercer a discricionariedade, e as pessoas afetáveis pela lei e por decisões oficiais buscam influenciar esta aplicação específica. A discricionariedade atinge os indivíduos dos mais diversos níveis da organização, aumentando o potencial para inter-relações clientelistas. (Grifo nosso)

Dessa forma, quando determinado ato, praticado sob o lastro da discricionariedade, não pode ser amparado no conceito de honestidade e boa-fé, infringindo, não só as exigências legais, mas também as morais, estará indubitavelmente desrespeitando o princípio da moralidade administrativa. E, em se infringindo o princípio da moralidade administrativa, o qual é previsto literalmente na CRFB/88, se estará, por conseguinte, praticando ato eivado de ilegalidade.

Para Tourinho (2009, p. 87),

A discricionariedade, mesmo nos dias atuais, é compreendida por alguns como um espaço de liberdade conferido ao administrador, dentro do qual este pode atuar da maneira que entender correta, desde que respeite as regras jurídicas. Muitas vezes, esquece-se o administrador público do seu comprometimento com a moralidade administrativa.

Nesta seara, verifica-se que os atos de criação e nomeação de cargos comissionados e funções de confiança, apesar de permitidos pelo regramento constitucional, quando praticados, no campo da discricionariedade, sem o escopo de atender ao interesse coletivo, visando apenas interesses pessoais ou retribuições alheias ao interesse da Administração Pública, mostram-se por demais ofensivos aos princípios norteadores da Administração, sobretudo no que concerne ao princípio da moralidade administrativa, previsto no artigo 37, caput, da CRFB/88.

No mesmo sentido é que Meirelles (2007, p. 120) estabelece que os princípios e as regras da boa administração – preceitos de moralidade administrativa – atuam como limitadores da discricionariedade no ato administrativo, ao afirmar que "mesmo quanto aos elementos discricionários do ato há limitações, impostas pelos princípios gerais do Direito e pelas regras da boa administração, que, em última análise, são preceitos de moralidade administrativa".

Destarte, é de fácil intelecção que o clientelismo viola veementemente o princípio da moralidade, podendo enquadrar-se, inclusive, como ato de improbidade administrativa, cujas análises faremos mais detalhadamente nos capítulos a seguir.


5.O CLIENTELISMO E O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

Até o momento, muito se falou em princípios, principalmente no que diz respeito ao princípio da moralidade administrativa. Entretanto, necessário se faz que, um assunto de tamanha relevância ao Direito, seja pormenorizado, razão por que doravante se passa a fazê-lo.

Inicialmente, convém mencionar o que vem a ser princípio. Ao se observar a etimologia da palavra, percebe-se que esta deriva do latim principiu, significando início, começo, ou seja, é a origem de algo. Entretanto, sob a ótica jurídica, pode-se dizer que princípios são fundamentos elementares que servem de alicerce à construção da ciência jurídica. Segundo Miguel Reale (2000 apud TOURINHO, 2009. p. 59) "são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade".

Assim, pode-se dizer que os princípios são os parâmetros essenciais de um sistema jurídico, os quais trazem à ciência jurídica valores substantivos, emanados do seio da sociedade, que conferem a estrutura básica à normatividade do ordenamento jurídico. Convém trazer o pensamento de Cármem Lúcia Antunes Rocha (1994 apud TOURINHO, 2009, p. 60), que assim se expressou:

[...] transportando os princípios para o ramo da ciência jurídica, constituem os valores formulados e aplicados no meio social, absorvidos pelo Direito, como base do sistema, devendo ser observados dentro da estrutura do Estado. Tem-se, assim, que os valores superiores da sociedade, encarnados nos princípios dotados de normatividade e eficácia plena, são as raízes do sistema jurídico, exigindo que tanto a lei como o ato administrativo não só respeitem os seus limites, como também sigam sua mesma direção.

Destarte, fica evidenciado que os princípios possuem caráter normativo, ou seja, são normas jurídicas que devem ser observadas, submetendo todos os atores do ordenamento jurídico à sua sombra. Nesse contexto,

[...] os princípios não são meras declarações de sentimentos ou intenções ou, ainda, meros postulados de um discurso moral. Em verdade, são normas dotadas de positividade que têm o condão de determinar condutas ou impedir comportamento com eles incompatíveis.

[...] Pensamos que não se justifica princípio jurídico desprovido de obrigatoriedade e aplicabilidade, pois seria apenas instrumento de retórica, inútil para realização do ideal de justiça. (TOURINHO, 2009. p. 61)

Deve-se mencionar, por outro lado, que há doutrinadores estabelecem distinções entre normas e princípios, a exemplo de Ivo Dantas (1998 apud TOURINHO, 2009, p. 62), para quem

[...] correta é a posição dos que advertem para a distinção entre princípios e normas, sobretudo porque, embora aqueles possam até ser inferidos por uma operação lógica, a norma é sempre expressa, não pode ser "deduzida" a partir do conteúdo do sistema como um todo.

Contudo, esmiuçar as divergências doutrinárias acerca do conceito e distinções entre princípios e normas não é objeto deste trabalho. Neste sentido, diante do que foi supra abordado, pretende-se assimilar que "os princípios, em verdade, revestem-se de normatividade imperativa, mesmo quando não são explicitamente estabelecidos". (TOURINHO, 2009. p. 62)

Nesta seara, considerando que princípios são efetivamente normas, deve-se destacar que a sua violação é repudiável, devendo ser coibida sempre. Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 53), em sábias palavras, chega a creditar muito mais gravidade à violação de um princípio do que à transgressão de uma norma expressa. Confira-se:

[...] violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Ademais, cabe ressaltar que apesar da CRFB/88 ter inovado ao elencar os princípios administrativos que regem a Administração Pública, o rol destes princípios não se exaure no caput do artigo 37 da Carta Magna. Ao longo do texto constitucional podem ser encontrados outros, a exemplo do princípio da economicidade, previsto no artigo 70 da Constituição. Afora isso, deve-se destacar que existem ainda os princípios implícitos, ou seja, aqueles que não estão expressamente definidos no texto constitucional ou legal, mas que, em decorrência dos valores consubstanciados na sociedade, podem ser traduzidos na norma. "Tais princípios, embora não enunciados em texto normativo explícito, estão contemplados nesse determinado ordenamento, em estado de latência, consubstanciando proposições normativas". (TOURINHO, 2009. p. 69)

Não obstante, a Constituição de 1988 trouxe expressamente, como já dito, os princípios que regram a Administração Pública. Preconizados no artigo 37, caput, estes princípios são

[...] destinados, de um lado, a orientar a ação do administrador na prática dos atos administrativos e, de outro lado, a garantir a boa administração, que se consubstancia na correta gestão dos negócios públicos e no manejo dos recursos públicos (dinheiro, bens e serviços) no interesse coletivo, como que também se assegura aos administrados o seu direito a práticas administrativas honestas e probas. (SILVA, 2007. p. 666)

Nesse diapasão exsurge, em mais uma inovação da Constituição Cidadã, o princípio da moralidade administrativa. O fato de só agora tal princípio ter sido mencionado explicitamente em um texto constitucional no país, não quer significar que ele já não existisse no ordenamento jurídico. Ao contrário, a jurisprudência dos Tribunais superiores já decidia com fulcro no princípio da moralidade, o qual já era considerado implicitamente existente no Direito Administrativo. Corroborando, constate-se excerto de acórdão proferido pela 2ª Turma do STF, em sede de Recurso Extraordinário nº 160.381, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio:

O só fato de um princípio não figurar no texto constitucional, não significa que nunca teve relevância de princípio. A circunstância de, no texto constitucional anterior, não figurar o princípio da moralidade não significa que o administrador poderia agir de forma imoral ou mesmo amoral.

[...]

Os princípios gerais de direito existem por força própria, independentemente de figurarem em texto legislativo. E o fato de passagem a figurar em texto constitucional ou legal não lhes retira o caráter de princípio. (RExt. 160.381-2ª turma – STF – J. em 29.03.1994- Rel. Min. Marco Aurélio)

Assim também no acórdão de Recurso em Mandado de Segurança nº 9.774, julgado pelo Tribunal Pleno do STF em 02/05/1963, ou seja, vinte e cinco anos antes da CRFB/88, vê-se menção ao princípio da moralidade administrativa. Verifique-se na ementa:

PROFESSORA. REMOÇÃO DESFEITA, EMBORA FOSSE DECRETADA SEM MOTIVAÇÃO E PERMITINDO A LEI PUDESSE SER FEITA EM QUALQUER ÉPOCA DO ANO. NÃO HOUVE RECLAMAÇÃO DE QUALQUER OUTRA PROFESSORA. O ATO ADMINISTRATIVO DE QUE RESULTE VANTAGEM PARA O PARTICULAR SÓ PODE SER DESFEITO, QUANDO MANIFESTAMENTE ILEGAL OU EM OBSEQUIO AOS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. (RMS 9774 – STF – Tribunal Pleno – J. em 02/05/1963 – Rel. Min. Gonçalves Oliveira)

Contudo, a Constituição veio a referendar o que já existia no ordenamento jurídico pátrio, apresentando, explícita e literalmente, o princípio da moralidade no seu bojo. A partir de então, caíra por terra qualquer justificativa eventualmente utilizada para dispensar a incidência deste importante princípio em qualquer conduta administrativa. Agora, entende-se que é cogente a norma que preconiza tal princípio, devendo este ser aplicado não só incidindo sobre os atos dos Administradores Públicos, mas também sobre atos legislativos e judiciais, assim como entre os particulares que se relacionam com a Administração (BAHENA, 2006). Isto é claramente evidenciado no que defende Kele Cristiani Diogo Bahena (2006, p. 51):

O princípio da moralidade administrativa constitui vetor informador dos demais princípios, não podendo ser tido como mero integrante do princípio da legalidade e nem sua abrangência fica adstrita ao ato administrativo, podendo incidir sobre atos legislativos e judiciais e até mesmo entre os particulares quando se relacionam com a administração pública [01], proporcionando a impugnação de ato formalmente válido, mas moralmente viciado.

Dessa forma, não apenas a legalidade deve ser observada, pois esta por si só não garante a idoneidade que o ato administrativo requer. Deve-se observar também a moralidade, inclusive por que é também pressuposto de ato administrativo legal, pois violá-la "implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica [...]" (MELLO, 2009, p. 119).

Interessante trazer a lume o pensamento de Tourinho (2009, p. 80), neste sentido:

No Estado Democrático de Direito onde vigora o princípio da liberdade com o ideal de justiça para todos, o sistema jurídico absorve as normas morais, tranformando-as em direito. O poder vinculante do direito tem que se fazer coerente com os valores éticos socialmente adotados.

Não satisfaz a atuação administrativa compatível apenas com a ordem legal. O Estado Democrático de Direito Exige muito mais. Exige que a administração da coisa pública atenda a uma série de valores e princípios abraçados pelo texto constitucional. (Grifo nosso)

Nesta senda, é de se perceber o incontestável caráter de imprescindibilidade deste princípio, o qual é "de observância obrigatória em toda conduta administrativa. Seja a atuação vinculada ou discricionária, terá sempre de atentar para o já mencionado ‘dever de boa administração’". (TOURINHO, 2009. p. 86).

Ademais, o princípio da moralidade administrativa preconiza que a atuação administrativa deve se pautar não somente na legalidade, mas também, e imprescindivelmente, deve se pautar em valores éticos, dentro de parâmetros de honestidade, lealdade e boa-fé, buscando-se sempre o interesse público e primando pela boa administração. Eis, pois, o cerne deste princípio.

No mesmo sentido é o pensamento de Bahena (2006, p. 52-55), para quem

A moralidade administrativa atua na conduta do administrador, vinculada ou discricionária, seguindo um norte de padronagem ética, tendo como elementos, entre outros, a honestidade, a boa-fé, a lealdade etc., sempre em busca do interesse público que constitui pressuposto de validade do ato administrativo [...]

O que se deve buscar para a perfeita aplicação do princípio da moralidade é o confronto de todos os elementos do ato administrativo com as regras éticas da administração, regras estas baseadas [...] na moral administrativa [...]

Com efeito, ao que se percebe não se pode falar em moralidade administrativa sem relacioná-la a valores éticos, honestidade, lealdade, boa-fé, uma vez que estes estão intrinsecamente ligados àquela. Para Mello (2009, p. 119-120)

Compreendem-se em seu âmbito [da moralidade], como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé (...). Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos.

Ao se abordar especificamente a boa-fé, tem-se que esta é pressuposto da moralidade, devendo ser aplicada às condutas da Administração Pública, conforme se depreende do pensamento de Ivana Nobre Bertolazo (2009, p. 72-73):

A boa-fé objetiva é tida como um princípio autônomo, norteado pela lealdade, honestidade e probidade e pode incidir tanto no direito privado, como no direito público. O Estado Social que busca resguardar os interesses coletivos, deve agir, principalmente, em conformidade com tal premissa para garantir a segurança jurídica e a confiança das pessoas nele inseridas.

[...]

Consubstanciada em uma regra ética e com fundamento legal, e, por constituir um princípio geral e constitucional, a boa-fé deve ser observada por todo o sistema de normas, especialmente, na Administração Pública.

[...]

Ressalta-se que a boa-fé de igual forma está vinculada à lealdade, à veracidade, à confiança, à probidade, e à ética, elementos contidos na moralidade, logo, verifica-se que a boa-fé constitui pressuposto da moralidade.

Outrossim, pode-se dizer ainda que o fim primeiro do princípio da moralidade reside no dever da boa administração, o qual deve impulsionar sempre a conduta administrativa. Este dever da boa administração, por sua vez, consiste na utilização do meio mais adequado para se alcançar um fim colimado, ou seja, deve-se buscar praticar a atividade administrativa mais apropriada para se chegar ao objetivo de interesse público.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 122), ao abordar o dever da boa administração, situa-o como princípio, afirmando que a noção de boa administração é proveniente do Direito italiano, e o relaciona, no direito brasileiro, ao princípio da eficiência. Isto permite inferir que no âmago do princípio da moralidade, além de agir com lealdade, honestidade e boa-fé, o administrador deve realizar a atividade administrativa mais adequada, de forma a atingir o fim pretendido, sem prescindir do interesse público. Dessa forma, o referido autor defende, utilizando palavras de Guido Falzone (1953, apud MELLO, 2009, p. 122), que o princípio da boa administração

(...) significa, como resulta das lições de Guido Falzone em desenvolver a atividade administrativa "do modo mais congruente, mais oportuno e mais adequado aos fins a serem alcançados, graças à escolha dos meios e da ocasião de utilizá-los, concebíveis como os mais idôneos para tanto." (FALZONE, 1953, p. 64 apud MELLO, 2009, p. 122)

Na mesma via, Franco Sobrinho (1974 apud MEIRELLES, 2007, p. 90) preconiza que

A moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do "bom administrador", que, no dizer autorizado de Franco Sobrinho, "é aquele que, usando de sua competência legal, se determina não só pelos preceitos vigentes, mas também pela moral comum". Há que conhecer, assim, as fronteiras do lícito e do ilícito, do justo e do injusto, nos seus efeitos. [02]

Tourinho (2009, p. 82), por sua vez, defende de forma interessante o dever de boa administração, dizendo que

O administrador público deve ser levado a atuar por fins legais e honestos, observando a ordem institucional. Logo, não se poderá falar em boa administração caso haja a invasão da esfera reservada a outras funções, mesmo que movido por zelo profissional. Da mesma forma, a tentativa do administrador de obter a todo custo vantagem, visando unicamente o aumento do patrimônio gerido, também viola o dever de boa administração, uma vez que se desvia o fim institucional que é concorrer para a criação do bem comum e não a mera busca de vantagem patrimonial.

Não obstante o que já foi supra abordado acerca do dever da boa administração, não se pode deixar de trazer à colação o pensamento de Bahena (2006, p. 53), que vai mais além, definindo tal conceito com clareza. Aprecie-se:

A noção de boa e justa administração constitui mola propulsora do comportamento do agente público, que deve primar pela boa-fé, pelo bem, pelo justo, pela honestidade e pela probidade, para a plena habilitação das suas funções, como alguém que gere o dinheiro alheio, ciente de que ele não lhe pertence, sempre na consecução do bem comum.

Perante tudo o que já foi delineado, fica evidenciado que o clientelismo afronta, sem sombra de dúvida, o princípio da moralidade administrativa. O ato de determinado agente público - utilizando-se do poder discricionário que lhe é conferido - nomear servidores para atuar em cargos de comissão ou função de confiança, sem submetê-los ao crivo do concurso público, com a finalidade de promover o favorecimento pessoal ou de receber uma retribuição em contrapartida, é, incontestavelmente, lesivo ao que preconiza o referido princípio.

É certo que a Lei Maior, nos casos outrora mencionados, confere aos administradores a prerrogativa de nomear, utilizando-se do poder discricionário, cargos comissionados ou funções de confiança sem a aprovação prévia do pretendente em certame público. Entretanto, quando o administrador utiliza tal prerrogativa para atingir fins diversos do interesse público, prática essa aqui chamada de clientelismo, ele estará agindo contra os preceitos da lealdade e boa-fé. Além do mais, isso pode gerar, como se observa na grande maioria dos casos, o inchaço da máquina pública, a qual abrigará um número excessivo – e desnecessário – de funcionários, os quais, em sua maior parte, não possuem a qualificação necessária ao exercício da função. Ocorre ainda, com freqüência principalmente nas administrações municipais, de os funcionários apadrinhados estarem apenas vinculados à folha de pagamento da administração, não realizando qualquer trabalho efetivamente. Este tipo de conduta do administrador, com toda certeza não se coaduna com o dever da boa administração, ocasionando, ainda a ineficiência da Administração Pública.

Nesse sentido, Tourinho (2009, p. 87) preconiza que

Ao optar por uma medida administrativa no exercício de atribuição discricionária, o administrador público não pode distanciar-se dos valores éticos vigentes na sociedade. Assim, deve atuar com lisura, boa-fé, honestidade, dando a cada um o que é seu de direito, satisfazendo não somente às exigências legais, como, também, ás exigências morais.

No mesmo entendimento se posiciona Bahena (2006, p. 64). Confira-se:

A intenção do agente deve estar ligada à intenção de atingir o bem comum, sempre harmonizando esta finalidade com a previsão abstrata da norma e exigindo que o ato esteja conforme com a lei e a moralidade administrativa. No entanto, ainda que haja adequação da conduta à norma e esta produza determinados efeitos, o ato será imoral se for disfarçada a real intenção do agente quanto aos efeitos que efetivamente pretende-se alcançar.

Diante disso, à medida que não se atende aos preceitos da lealdade e boa-fé e não se pratica o dever da boa administração, se estará, por conseguinte, vilipendiando o princípio constitucional da moralidade administrativa, já que aqueles elementos são pressupostos deste princípio. Ademais, ressalte-se que, agindo assim, o administrador não estará observando os valores éticos e de honestidade – os quais emanam da própria sociedade [03] – uma vez que estará praticando, ao beneficiar determinado indivíduo ou grupo com o objetivo da retribuição, conduta que se confronta com o interesse coletivo.

O que é por ora defendido, corrobora-se na doutrina pátria, como se vê em seguida:

O princípio da moralidade ao determinar a ética na conduta administrativa, impõe à Administração Pública a necessidade de se submeter aos ditames legais, observando a pauta de valores morais vigentes no corpo social, para consecução do interesse público. O atuar da administração sem lisura, de má-fé, desviada da finalidade legal ou motivada por interesse particular, implica violação ao princípio da moralidade. (TOURINHO, 2009, p. 82)

Por tudo isso, qualquer conduta desta natureza, que espanque o princípio da moralidade, deve ser coibida sempre, e, quando praticada, deve-se buscar os meios de invalidar o ato e punir aquele que usou de má-fé. Neste sentido, corroborando os pensamentos aduzidos, expõe-se o entendimento de Bertolazo (2009, p. 77):

Considera-se assim que a atuação contrária ao princípio da boa-fé exige uma reação do Direito, operando uma série de efeitos, como a invalidez do ato, ou a conservação do mesmo, resguardando as conseqüências prejudiciais deste exercício inadequado. Assim, se a norma proíbe toda a atuação discrepante da boa-fé, o ato resultante será contrário ao Direito e portanto, inválido.

Considerando tudo o que foi analisado, resta evidenciada a idéia de que a distribuição discricionária de cargos em comissão, quando objetivar fins diversos do interesse público, caracterizando-se como prática clientelista, estará em desacordo com o princípio da moralidade.


6.a improbidade administrativa em decorrência da distribuição discricionária de cargos COMISSIONADOS

É cediço que a Constituição da República de 1988 é impetuosa em preconizar, no caput do artigo 37, a obediência aos princípios administrativos. Tais princípios devem ser respeitados em qualquer conduta administrativa, pois

Constituem, por assim dizer, os fundamentos da ação administrativa, ou, por outras palavras, os sustentáculos da atividade pública. Relegá-los é desvirtuar a gestão dos negócios públicos e olvidar o que há de mais elementar para a boa guarda e zelo dos interesses sociais. (MEIRELLES, 2007, p. 87)

Também na visão de Tourinho (2009, p. 233), a observância dos princípios administrativos em qualquer conduta administrativa é de caráter imprescindível. Veja-se:

Em verdade, o agente público, na qualidade de gestor dos interesses públicos, deverá adotar postura exemplar à sociedade, agindo dentro dos padrões éticos dominantes. Assim, toda conduta do administrador público deve obediência aos princípios administrativos, sejam eles explícitos ou implícitos.

Entretanto, situações ocorrem, como as demonstradas alhures, em que os referidos princípios vêm a ser vilipendiados pela atitude do agente público. Isto posto, "para os casos de violação do princípio [da moralidade], que se denomina de improbidade, estabeleceu o § 4º [da Constituição] severas consequências jurídicas ao agente público responsável, a saber:" (BAHENA, 2006, p. 113, grifo do autor)

Art. 37 [...]

§ 4º. Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. (Grifo nosso)

Assim, tem-se que a Constituição de 1988 ousou ao lançar em seu bojo a expressão "ato de improbidade administrativa", o qual até então não se tinha observado, desta forma, nos textos constitucionais anteriores. Visava então, o legislador constituinte, trazer dispositivos que contivessem os abusos que rotineiramente se observavam na Administração Pública brasileira. No entanto, conforme se viu no parágrafo supracitado, percebe-se que o legislador constituinte atribuiu o dever de delimitar os atos de improbidade através de lei ordinária. Assim,

Com a Constituição de 1988, surgiu a previsão da figura da improbidade administrativa e o rigoroso combate a este mal, através da previsão de algumas medidas que atingem a pessoa do administrador ímprobo, deixando para o legislador ordinário a delimitação dos atos de improbidade. A improbidade administrativa, combatida através de sanções graves, [...] constitui, ao menos, uma esperança de modificação em nosso cenário político-administrativo, fazendo com que somente participem do mesmo aqueles dispostos a atuar em prol da coletividade, colocando de lado a visão individualista, característica inegável de grande parte dos administradores públicos brasileiros. (TOURINHO, 2009, p. 150)

Com isso, surgiu a Lei 8.429, de 02/06/1992, a Lei da Improbidade Administrativa (LIA), que veio a regulamentar esta terminologia, apresentando casos exemplificativos de quebra da probidade administrativa. Não se pode olvidar, contudo, que havia, até o advento da referida lei, dois diplomas legais que abordavam brandamente algo parecido, a saber: as Leis Federais 3.164/57 e 3.502/58. Ambas, no entanto, apenas se limitavam a dispor sobre o seqüestro e o perdimento de bens no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função pública, sendo que a segunda, que foi posterior, apenas corroborava a primeira, apenas aumentando a sua abrangência.

Dessa forma, a LIA introduziu no ordenamento jurídico um conceito até então não utilizado – a improbidade administrativa - mas que, em síntese, significa a violação ao dever de probidade, ou seja, violação dos deveres formais da função administrativa, sobretudo com a inobservância dos princípios administrativos.

Waldo Fazzio Júnior (2008, p. 71), trazendo o entendimento de De Plácido e Silva (1987), expressa que a palavra improbidade

deriva do latim "improbitas" (má qualidade, imoralidade, malícia), juridicamente, liga-se ao sentido de desonestidade, má fama, incorreção, má conduta, má índole, mau caráter. Desse modo, improbidade revela a qualidade do homem que não procede bem, por não ser honesto, que age indignamente, por não ter caráter, que não atua com decência, por ser amoral. Improbidade é a qualidade do ímprobo. E ímprobo é o mau moralmente, é o incorreto, o transgressor das regras da lei e da moral. [...]

Em suma, complementando e sintetizando o conceito de improbidade, o mesmo autor menciona que

A soma do que foi dito revela que o ato de improbidade viola deveres, nega valores, ofende a legalidade, agride uma pluralidade de bens jurídicos, é imoral, já foi visto como mera infração disciplinar, depois como ilícito penal e, hoje, como ilícito civil e político-administrativo. (FAZZIO JÚNIOR, 2008, p. 2008)

Ademais, é preciso que se ressalte que a Lei da Improbidade Administrativa, ao introduzir expressamente a figura da improbidade administrativa, teve o intuito não só de preservar a observação da Lei. Essa pretendeu ir mais além, regrando a atuação administrativa preconizando o respeito aos princípios constitucionais administrativos, afinal, falar de improbidade é falar de violação de princípios. Ocorre que, indo mais além, a LIA estabelece novos parâmetros de abrangência ao instituir que a contraposição aos princípios já enseja a caracterização da improbidade. Segundo entendimento de Fazzio Júnior (2008, p. 71),

apontam nessa direção os arts. 4º e 11 da Lei nº 8.429/92. O primeiro, atribuindo aos agentes públicos o dever de velar pela observância dos princípios constitucionais da Administração Pública. O outro, declarando que a violação de deveres funcionais implica atentado contra aqueles princípios.

Diante disso, importante se faz trazer à baila o artigo 4º da LIA, a saber:

Art. 4º Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.

Como se vê, a Lei abarca todos os agentes públicos, de qualquer nível ou hierarquia, atribuindo-lhes a obrigatoriedade, repita-se, obrigatoriedade de velar pela observância dos princípios. Assim, atuar conforme os princípios preconizados não é mera faculdade do agente, mas sim um dever. Da mesma forma, tal obrigatoriedade se aplica, e principalmente, ao princípio da moralidade, uma vez que, agindo de forma ilegal ou dissonância com os demais princípios, estará o agente praticando conduta viciada moralmente, contrapondo-se assim automaticamente ao princípio da moralidade administrativa. Ante o exposto, em se confrontando qualquer dos princípios da Administração Pública, se estará praticando ato de improbidade.

Não obstante, o artigo 11 da mesma Lei apresenta o que vem a ser ato de improbidade que atenta contra os princípios da administração pública. Veja-se:

Art. 11 Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência;

II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;

IV – negar publicidade aos atos oficiais;

V – frustrar a licitude de concurso público;

VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;

VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capas de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.

Da leitura deste artigo logo se depreende que, ao se praticar qualquer ação ou omissão que viole os deveres supra mencionados, estará o agente praticando ato de improbidade. Convém ressaltar, no entanto, que as referidas hipóteses trazidas pela Lei são meramente exemplificativas, não exaurindo os seus limites de atuação. Diante disso, pode-se inferir que se incluem neste rol outros princípios, a exemplo do princípio da moralidade. Corroborando este pensamento, confira-se o entendimento seguinte:

O art. 11, caput, da lei de improbidade se refere à ação ou omissão que atenta contra os princípios administrativos, violando os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Esses deveres são arrolados exemplificativamente; a eles se podem acrescentar a boa-fé, a impessoalidade, igualdade, proporcionalidade, dentre outros contidos nos princípios que norteiam a atividade administrativa. (TOURINHO, 2009, p. 233)

Nesta senda, é de se dizer que, para que se configure o ato de improbidade sob o amparo do artigo 11, não é necessário que a conduta do agente tenha sido eivada de ilegalidade, mas que tenha havido ao menos a inobservância dos princípios que regem a Administração Pública. De acordo com o pensamento de Silva (2007, p. 669), o ato pode estar dentro das conformidades legais, mas materialmente comprometido com a moralidade. E, ainda neste raciocínio, manifesta, citando palavras de Marcello Caetano (1970), o seu entendimento do que vem a ser improbidade administrativa. Confira-se:

Quando sua execução [do ato] é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar alguém deliberadamente, ou com o intuito de favorecer alguém, por certo que se estará produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente comprometido com a moralidade administrativa.

[...]

A probidade administrativa consiste no dever de o "funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer". O desrespeito a esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa.

Ademais, diferentemente dos artigos 9º e 10º da Lei 8.429/92, o artigo 11 não vincula a ocorrência da improbidade à existência de qualquer dano material. Enquanto naqueles artigos – que classificam atos de improbidade que importem enriquecimento ilícito e que causem dano ao erário, respectivamente – neste, por sua vez, para a ocorrência da improbidade não é necessária a incidência prejuízo de ordem material. Isso se corrobora no pensamento da doutrina, assim como no artigo 21, inciso I da própria Lei de Improbidade Administrativa, a saber, respectivamente:

O objeto de proteção do art. 11 não é o patrimônio público econômico, mas a própria probidade administrativa, sendo irrelevante, para tipificação do ato de improbidade a esse título, quaisquer coadjuvantes materiais. (FAZZIO JÚNIOR, 2008, p. 165, grifo nosso)

Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:

I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público;

[...]

Assim, a ocorrência de improbidade enquadrada no artigo 11 prescinde de lesão de ordem material, seja à administração, seja a terceiros, bastando que se verifique o desrespeito aos princípios. Doutra banda, para se configurar a improbidade, necessária se faz a existência de dolo, ou seja, que o agente estivesse consciente da conduta praticada, agindo de má-fé.

No entanto, para Fazzio Júnior (2008, p. 166), quando se pratica o ato visando interesses diversos do interesse público, o que se observa na grande maioria das condutas eivadas de improbidade, a ocorrência da má-fé é incontroversa. Veja-se os argumentos por ele esposados:

[...] se a competência administrativa é utilizada para a satisfação de qualquer outro interesse, o ato administrativo se converte em instrumento de uma disfunção, implementada pela vontade do agente público. Ora, todo agir administrativo desviado de seu caminho legal, por desígnio antijurídico do agente público, ainda que vizinho da discricionariedade, não pode ser aceito como exteriorização de boa-fé. Ao contrário, deixa à calva a má-fé e certifica o desprezo pelos deveres que justificam a função pública, como um compromisso com a sociedade, antes que com o Poder Público, e pelo incontroverso confronto com a moralidade administrativa.

Não obstante a posição acima defendida, Tourinho (2009, p. 238) admite que, para caracterização da improbidade neste caso, basta que o agente tenha agido com dolo eventual, ou seja, no ato da conduta, não há necessidade de que o administrador tenha agido com vontade consciente do mal gerado, mas se tiver apenas tolerado isto, já é suficiente para a existência de dolo. Confirme-se o que é aduzido, em suas palavras:

Com efeito, podemos afirmar que, quando se exige a presença do dolo como elemento subjetivo necessário para incidência do art. 11 da Lei de Improbidade, é suficiente a presença do dolo eventual, ou seja, basta que o agente tolere o resultado, consinta em sua provocação ou tenha se conformado com o risco da realização do tipo. Desta forma, discordamos daqueles que pensa que para a incidência do art. 11 se faz necessária a efetiva vontade do administrador público em violar os princípios administrativos, bastando que tolere a violação.

Não bastasse a posição dos dois doutrinadores acima referidos, deve-se mencionar que o Superior Tribunal de Justiça entende que não são requisitos o dolo ou a culpa para incorrer a conduta no artigo 11, mas basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para a caracterização da improbidade. É o que se depreende do excerto abaixo, com negritos acrescidos, extraído do acórdão exarado em sede de Recurso Especial nº 717375/PR, de relatoria do Exmo. Ministro Castro Meira:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LESÃO A PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS. AUSÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO.

1. Mostra-se ausente o prequestionamento no tocante à suposta contrariedade aos arts. 84 da Lei nº 10.628/02; 2º, 81, 128, 131 e 230 todos do CPC e 1º da Lei nº 9.637/98. Incidência das Súmulas 282 e 356 do STF.

2. A lesão a princípios administrativos contida no art. 11 da Lei nº 8.429/92 não exige dolo ou culpa na conduta do agente, nem prova da lesão ao erário público. Basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de improbidade. Caso reste demonstrada a lesão, e somente neste caso, o inciso III, do art. 12 da Lei n.º 8.429/92 autoriza seja o agente público condenado a ressarcir o erário.

3. Se não houver lesão, ou se esta não restar demonstrada, o agente poderá ser condenado às demais sanções previstas no dispositivo como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a impossibilidade de contratar com a administração pública por determinado período de tempo, dentre outras. 4. In casu, face à inexistência de lesividade ao erário público, é incabível a incidência da pena de multa, bem como de ressarcimento aos cofres públicos, sob pena de enriquecimento ilícito da municipalidade. 5. Recurso especial conhecido em parte e provido. (REsp 717375/PR; Relator Ministro CASTRO MEIRA DJ 08.05.2006)

Por tudo o que foi analisado, considerando que a nomeação, por ato discricionário, de cargos comissionados sem concurso público, em que se tem como fim primordial a retribuição em contrapartida – seja na forma de votos, seja na forma de dízimo partidário ou qualquer outra forma – é, como foi exaustivamente demonstrado aqui, um caso de clientelismo lesivo à moralidade administrativa, e, assim sendo, pode ser repudiado por meio da Lei de Improbidade Administrativa, com fulcro em seu artigo 11. Dessa forma, pode-se dizer que o ato de nomear servidores muitas vezes sem a efetiva necessidade, dispensando-se o concurso público sob o pretexto de exercício das prerrogativas autorizadas no artigo 37, II da CRFB/88, possibilitando assim o ingresso de pessoas despreparadas para exercer a função, além de permitir os gastos excessivos e desnecessários da elevada folha de pagamento, com intuito desviado do interesse público, é sim ato de improbidade administrativa.

Como é cediço, a dispensa do concurso público nas hipóteses acima referidas mostra-se extremamente ofensiva aos preceitos de honestidade, lealdade e boa-fé, além de espancar os princípios da moralidade, da isonomia e da impessoalidade. É, portanto, enquadrada como improbidade administrativa, na hipótese do artigo 11 da Lei 8.429/92. Nesta senda, cumpre trazer à baila o que pensa Medina Osório (2007, p. 346), para quem

Outro caso clássico de improbidade é este: a dispensa indevida de concursos públicos, com a decisão personalíssima e subjetiva, seja nos casos de favorecimento doloso, seja nas hipóteses de inescusável ignorância do administrador, situação costumeira de improbidade, tanto na via judicial quanto na ótica dos acusadores.

Também na visão de Cármem Lúcia Antunes Rocha (1994 apud TOURINHO, 2009, p. 239) em questão semelhante, se observa tal entendimento. Confronte-se:

Criaram-se cargos ditos de provimento "comissionado" para se permitir a sua ocupação por pessoas vinculadas ao superior hierárquico e por ele indicadas, dir-se-ia mesmo melhor, definidas, pois não apenas este agente indicava, mas definia e nomeava ou as fazia nomear. O motivo que conduz a prática do ato de designação é, assim, não a condição profissional do escolhido, mas a sua situação pessoal, em autêntica quebra do princípio da impessoalidade.

Há que se falar ainda sobre o inciso V da referida Lei, segundo o qual é ato de improbidade frustrar a licitude de concurso público. Entretanto, entende-se que o clientelismo aqui abordado não se enquadra neste caso, como é respaldado no pensamento que segue:

Assim, constitui ato de improbidade por frustração da licitude de concurso público a existência de vínculo de parentesco entre o examinador e o candidato, a abertura de concurso para fins eleitoreiros, quando inexiste necessidade para o serviço. Tais situações não se confundem com a inobservância da regra do concurso público que, também, caracteriza a improbidade administrativa, com fundamento no caput do art. 11, por violação aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade. (TOURINHO, 209, p. 247, grifo nosso)

Seguindo seu raciocínio, Tourinho (2009, p. 247) menciona ementa do Superior Tribunal de Justiça, que em sede de REsp 739778/RS, assim ementou:

AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. VIOLAÇÃO DOS DEVERES DE MORALIDADE E IMPESSOALIDADE. SERVIDORES CONTRATADOS SEM CONCURSO PÚBLICO PELO EX-PREFEITO. LESÃO À MORALIDADE ADMINISTRATIVA QUE PRESCINDE DA EFETIVA LESÃO AO ERÁRIO. PENA DE RESSARCIMENTO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. APLICAÇÃO. DANO EFETIVO. BURLA ÀS REGRAS DA LICITAÇÃO. FRAUDE. CULPA E DOLO. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. (REsp. 739778/RS – 1ª T. – Rel. Min. Luiz Fux – DJ 28.09.2006)

Ainda abordando a mesma autora, a qual ao tratar do tema do nepotismo, tema este que tem estreitas semelhanças com a modalidade de clientelismo tratada neste estudo, assim manifestou seu entendimento:

Nesse diapasão, deve-se fazer referência à prática do nepotismo como ato de improbidade administrativa, em virtude da violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa. Ou seja: hipótese enquadrada no caput do referido art. 11. Quanto à impessoalidade, sua violação decorre do privilégio conferido a interesses individuais em detrimento do interesse coletivo. [...] (TOURINHO, 2009, p. 239)

Não bastassem as posições acima aduzidas, não se pode deixar de trazer a lume o pensamento de Medina Osório (2007, p. 347) sobre o assunto da dispensa indevida do concurso público, causando má gestão da coisa pública e improbidade. Verifique-se:

De qualquer modo, é curioso constatar que a dispensa indevida de concursos públicos tem sido considerada uma hipótese clássica de improbidade e má gestão da coisa pública, porque, apesar de não servir ao enriquecimento direto do gestor, é uma forma de burlar o princípio isonômico de acesso aos cargos públicos, fomentando a criação de feudos e de patrimonialismo no setor público.

Ainda é interessante trazer o que defende Pontes de Miranda (1954), em palavras trazidas por Tourinho (2009, p. 209), com subseqüente exemplificação desta:

Conforme assevera Pontes de Miranda, "não exclui o dolo o motivo do ato, nem o fim que teve em vista o agente, nem o interesse maior, moral, política ou economicamente, que levou ao ato." (MIRANDA, 1954, p. 252). Assim, o prefeito que visando modernizar o município decide contratar servidores altamente qualificados sem a realização de concurso público, viola dolorosamente o art. 37, II da Constituição Federal, praticando ato de improbidade administrativa previsto no art. 11, V, da Lei de Improbidade. (Grifos do autor)

Por tudo isso, resta comprovado que a distribuição de cargos comissionados visando retribuições, qualquer que seja a sua forma, quando se desviem do interesse público, é prática clientelística que confronta o princípio da moralidade administrativa, entre outros, e é passível de repúdio através da Lei de Improbidade Administrativa. Desta feita, em se comprovando o que ora é defendido em pertinente ação, caberá ao agente que praticou o ato repudiado a sua responsabilização pessoal, ou seja, não será apenas atacado o ato, mas também o transgressor da norma jurídica, pessoalmente. Tais sanções, por sua vez, estão preconizadas no artigo 12, inciso III da Lei 8.429/92, a saber:

Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:

(...)

III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, anda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. [Negritos acrescidos]

Diante disso, percebe-se mais um ponto importante que a Lei de Improbidade Administrativa trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro: a responsabilização pessoal do agente transgressor, ao qual se aplicarão severas penas a fim de extirpar as práticas ímprobas do cenário político brasileiro. Assim, com o inciso supra mencionado, "não é somente o ato que será atacado, mas, também, o responsável pelo mesmo". (TOURINHO, 2009, p. 269)

Ademais, deve-se mencionar que, apesar da possibilidade de aplicação da Lei 8.429/92 e suas penalidades aos casos clientelísticos de nomeação discricionária de cargos em comissão sem a devida necessidade e para fins diversos do interesse público, a edição de uma lei geral que limitasse as formas de acesso sem concurso público aos quadros da Administração Pública é a forma mais plausível de se evitar tal conduta ímproba e prevenir a atuação corrupta de alguns administradores públicos. Assim, limitando-se as hipóteses de contratação sem concurso público, com certeza se evitaria a abundância destas arbitrariedades observadas. Diante disso, "a solução seria reduzir drasticamente os cargos em confiança, situando-os, ainda, no patamar adequado, quando envolverem funções técnicas, como requisitos para seleção, limitando a discricionariedade". (MEDINA OSÓRIO, 2007, p. 352)

Alfim, considerando a forte incidência do clientelismo por ora abordado na Administração Pública brasileira, assim como a premente necessidade de desafiá-la, traz-se a lume as oportunas palavras do mesmo autor acima mencionado, que transmitem fielmente o encerramento deste estudo:

Diga-se que tal abordagem ganha uma atualidade verdadeiramente impressionante no Brasil, visto que a gestão pública está toda ela marcada profundamente pela lógica política na distribuição de cargos e na montagem do alto funcionariado da Nação, seja na União, nos Estados ou nos Municípios, em detrimento da profissionalização, dos critérios técnicos, objetivos e imparciais. Essa perversa lógica pela qual os eleitos devem retribuir os apoios recebidos por meio de Ministérios, Secretarias Estaduais ou Municipais, com os correlatos cargos em confiança ou funções gratificadas que se associam a tais espaços, conduz não apenas à ineficiência generalizada, ao descomprometimento com os interesses gerais, mas à descontinuidade administrativa e ao desmantelamento permanente da máquina pública, patologias de efeitos nefastos à cidadania. É claro que ambientes assim constituídos tornam-se extremamente propícios à corrupção, à ineficiência grave, ao desgoverno, ao descontrole e aos desvios de finalidade e poder de todo tipo de espécie. Enfrentar tal lógica talvez seja dos desafios mais evidentes e importantes de nosso tempo. (MEDINA OSÓRIO, 2007, p. 34)


7.conclusão

O fenômeno clientelístico da distribuição discricionária de cargos em comissão, como forma de permuta política ou troca de favorecimentos, tem sido uma prática observada em todos os momentos da história da nação, sobretudo nos tempos mais recentes. Esta prática não é apenas observada nos altos escalões do governo, mas pode ser encontrada desde os mais altos órgãos da Administração Pública até as mais simples prefeituras de pequenas cidades brasileiras. Trata-se, pois, de um fenômeno que foi assimilado culturalmente em nosso país.

No entanto, como se tentou demonstrar nas palavras acima aduzidas, esta prática, chamada de clientelismo, desvia totalmente uma das finalidades da Administração, que é a busca incessante pelo interesse público. À medida que se oferece um cargo a quem quer que seja em troca de voto, apoio político ou dízimo partidário, se faz evidente que não se teve como escopo o interesse da coletividade, mas, pretende-se satisfazer interesses particulares, utilizando-se, para isso, do Estado, da máquina pública e principalmente do dinheiro público.

Ressalte-se, porém, que apesar de muitas vezes o administrador agir em conformidade com os aspectos formais previstos legalmente, ao desviar a finalidade do ato, agindo sobre o fulcro da discricionariedade, a sua conduta estará moralmente viciada. Diante disto, não há como objetar a idéia de que esta prática não atende, em absolutamente nada, aos valores éticos, assim como aos importantes preceitos da honestidade, lealdade e boa-fé. Nesta senda, não se tem como duvidar de que o clientelismo ofende, de forma incontroversa, o princípio da moralidade administrativa.

Como se viu, apesar de só recentemente ter sido introduzido expressamente em uma constituição brasileira, o princípio da moralidade administrativa já vinha sendo considerado existente pelos tribunais, ainda que muito timidamente. Entretanto, agora que já se encontra literalmente enunciado no corpo constitucional, da Lei Maior do país, este princípio, de suma importância à Administração e principalmente aos dos administrados, reclama sua aplicação imediata e imperiosa.

Não se pode mais tolerar abusos dessa natureza. Dispensar concurso público, com o fito de introduzir apaniguados nos quadros da administração pública, visando-se a retribuições que choquem o interesse público, e, além do mais, utilizando-se da máquina e dinheiro públicos para praticar tal ato é ato extremamente lesivo à moral administrativa, devendo ser coibido e punido sempre.

Para isso, entende-se que deve ser aplicada a casos dessa natureza a Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa – com o intuito de punir não só a prática do ato, mas principalmente responsabilizar e penalizar pessoalmente o administrador público transgressor. Tais condutas devem ser repudiadas e reprimidas intransigentemente, sob o jugo da referida lei.

Administradores públicos que praticam tais atos não só maculam a imagem e a moral administrativa, como também, e principalmente, desrespeitam e ofendem dolorosamente a sociedade. Isso gera, sem sombras de dúvida, o descrédito, a desconfiança do povo, tão esperançoso de melhorias, na Administração. Essa desconfiança gerada é difícil de ser apagada, e com isso, só quem perde é a própria sociedade. Não se pode olvidar, aliás, que todos esses desdobramentos levam a algo que a população já até se acostumou a ver: a ineficiência da Administração Pública.

Ademais, enquanto se procura coibir as práticas clientelísticas por meio da Lei 8.429/92, não se pode aguardar inerte a prática do ato para depois reprimi-lo. É nesse sentido que urge a necessidade de uma lei infraconstitucional que regule, impondo limites e critérios sólidos, o inciso II, do artigo 37, da CRFB/88. Entende-se que se deve diminuir ao máximo as possibilidades de contratação de servidores sem concurso público, reduzindo-as aos casos estritamente necessários. Dessa forma, e só dessa forma, poderá se contribuir para extinguir, paulatinamente, as práticas clientelísticas do cenário político brasileiro. Além do mais, só assim se pode valorizar o instituto do concurso público, que é a única forma idônea de valorizar o mérito, a isonomia, e a moralidade na forma de acesso aos cargos públicos.

Por tudo o que foi exposto, resta evidenciado que a nomeação discricionária de cargos em comissão, sem a regra do concurso público, visando a fins diversos do interesse público, em troca de retribuições de cunho particular é prática clientelista que ataca - e fere - o princípio da moralidade administrativa, caracterizando-se por ser ato de improbidade administrativa. Por isso pode – e deve – ser expungida do cotidiano através da Lei da Improbidade Administrativa, sendo necessário ainda o surgimento de uma lei que delimite a atuação discricionária do administrador ao nomear cargos em comissão, tendo por escopo evitar que tais práticas aconteçam.

Neste contexto, exsurge a ciência jurídica, que através de seus operadores deve buscar, numa luta incessante, fazer valer não só a Lei, mas também os valores éticos e morais, preconizando a honestidade e a probidade sempre, assim como, e principalmente, defender impavidamente os princípios norteadores do Direito, afinal, são estes que constituem os alicerces inabaláveis de qualquer sistema jurídico.

Apenas assim é que se conseguirá ter sucesso na construção de uma ciência jurídica sólida e incorruptível, para que, por conseguinte, se possa promover a edificação de uma sociedade plenamente justa e equilibrada.


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Notas

  1. A autora menciona como exemplo o caso dos conluios freqüentes entre licitantes no processo de licitação, o que caracteriza ofensa ao princípio da moralidade.
  2. Ressalta ainda Meirelles (2007, p. 90) que, nessa monografia, o autor sustenta a possibilidade do controle judicial da moralidade administrativa até mesmo através do mandado de segurança, o que pressupõe a existência de um direito líquido e certo à observância desse princípio no ato impugnado.

03.A ética da qual se extraem os valores a serem absorvidos na elaboração do princípio da moralidade seria aquela afirmada pela própria sociedade. (TOURINHO, 2009, p. 82)


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OLIVEIRA, Saulo do Nascimento Dias de. O clientelismo em decorrência da distribuição discricionária de cargos comissionados. Um ato de improbidade que ofende o princípio da moralidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2839, 10 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18865. Acesso em: 24 abr. 2024.