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O direito geral da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana: estudo na perspectiva civil-constitucional

O direito geral da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana: estudo na perspectiva civil-constitucional

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Resumo: A teoria do direito geral da personalidade defende que não se pode individualizar a proteção da personalidade, muito menos deixar condicionada a proteção da pessoa a direitos previamente tipificados. Dessa maneira era preciso que uma cláusula geral admitisse a proteção da personalidade em todas as situações em que esta estivesse em risco, propiciando maior efetividade na proteção da pessoa. No Brasil, a cláusula geral que permite a proteção da pessoa em todas as situações necessárias é o princípio da dignidade humana. Este princípio, além de ser um valor fundamental da Constituição de 1988, também abarca a extensão de todos os direitos necessários para o desenvolvimento da personalidade.

Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana; Direitos da Personalidade; Direito Geral da Personalidade; Proteção da Pessoa Humana.

Abstract: The theory of general right of personality defends that can’t individualize the rights of personality, and much less condition the protection of person to rights previously typified. In this way was necessary that one general clause admitted the protection of personality in all the situations that this was in risk, providing bigger effectiveness in the protection of person. In Brazil, the general clause that allow the protection of person in all necessary situations, is the principle of human dignity. This principle, besides being a fundamental value of the Constitution of 1988, also includes the extension of all necessary rights to personality development.

Key-words: Human Dignity; Personality Rights; General Right of Personality; Protection of Human Being.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende tratar sobre a inserção da teoria do direito geral da personalidade no sistema jurídico brasileiro, relacionando-o com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Para tanto, num primeiro momento será apreciado a construção histórica dos direitos da personalidade, sendo feita uma análise desde a antiguidade clássica até os dias atuais. Será traçado, posteriormente, a definição dos direitos da personalidade assim como os seus atributos peculiares.

Desse modo, pretende-se fazer uma contraposição entre a teoria pluralista e a teoria monista. A seguir será traçada a fundamentação jurídica do direito geral da personalidade tendo por princípio basilar a dignidade humana consagrada no ordenamento jurídico brasileiro, utilizando-se para isso a máximas do neoconstitucionalismo e do direito civil-constitucional.


2. PROCESSO HISTÓRICO DE EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Embora seja recente a concepção do valor humano como centro do ordenamento jurídico, não se pode rejeitar a contribuição da antiguidade clássica para que este valor fosse concebido hodiernamente.

A filosofia da Grécia antiga acaba por fundamentar o direito natural, o qual será a base para os jusnaturalistas desenvolverem a "teoria dos direitos inatos e inerentes ao homem, preexistentes ao Estado." (GARCIA, 2007, p. 9). Dentre estes jusnaturalistas estão Hobbes, Locke e Rousseau.

Enquanto os gregos contribuíram filosoficamente, os romanos foram os que germinaram a "inspiração técnica-jurídica do instituto." (GARCIA, 2007, p. 9). A categoria de responsabilidade civil chamada iniuria (injúria)passa a significar uma ofensa física e moral, constituindo o embrião da proteção da personalidade.

O direito romano também foi o responsável pela clássica divisão do direito entre público e privado. Como bem observa Gustavo Tepedino (2008, p. 64), "(...) a estrutura dogmática que dominou as grandes codificações européias do século XIX, e gizou as linhas mestras do sistema jurídico pátrio, baseia-se na summa diviso herdada do direito romano, que estrema o direito público e o direito privado."

A idade média não foi terreno fértil para o desenvolvimento do conceito de personalidade e foi a partir do século XIX, na idade moderna, que ficou nítida essa dicotomia entre direito público e privado tornando

(...) diversos os ambientes da proteção da pessoa: uma proteção era estabelecida pelas declarações de direitos e cartas constitucionais que conferiram ao homem determinadas liberdades em relação ao Estado, além do reconhecimento da igualdade formal entre todos. Havia, porém, outro campo: o das relações privadas, onde o homem não poderia se valer de uma proteção específica e individualizada do ordenamento jurídico; neste campo, acima de considerações sobre uma efetiva igualdade ou da atuação de princípios fundamentais de proteção da pessoa humana, imperava a autonomia privada. (DONEDA, 2003, p. 39).

É possível perceber que a evolução dos direitos da personalidade está intimamente ligada à evolução dos direitos humanos, haja vista que as duas categorias de direitos visam a proteção da pessoa humana, embora a segunda categoria, no seu início, visava somente a proteção da pessoa frente ao Estado.

Sobre essa relação entre direitos da personalidade e direitos humanos, comenta Fabio De Mattia (1979, p.150 apud TEPEDINO, 2008, p. 35):

os direitos humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se fala dos direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedade do Estado. Quando examinamos os direitos da personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas.

Muitos autores costumam apontar o real desenvolvimento dos direitos da personalidade a partir do segundo pós-guerra, entretanto no viés aqui apresentado é importante insistir numa evolução dos direitos da personalidade juntamente com os direitos humanos que, por sua vez, começam a se formar anteriormente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789.

Lynn Hunt analisa a evolução dos direitos humanos seguindo uma linha de raciocínio pautada nas mudanças sociais ocorridas antes e depois da revolução francesa. No século XVIII, antes da referida Declaração, a autora reconhece o papel dos romances para a formação do sentimento de empatia na população em geral. Nas palavras da autora,

Romances como Júlia [1761, de autoria de Jean Jacques Rousseau] levavam os leitores a se identificar com personagens comuns, que lhes eram por definição pessoalmente desconhecidos. Os leitores sentiam empatia pelos personagens, especialmente pela heroína, graças a mecanismos da própria forma narrativa. (...) Os romances apresentavam a ideia de que todas as pessoas são fundamentalmente semelhantes por causa de seus sentimentos íntimos, e muitos romances mostravam em particular o desejo de autonomia. (HUNT, 2009, p. 38-39).

A abolição da tortura também foi um grande marco na conquista do direitos humanos e também para os direitos da personalidade, pois a proibição da tortura ampliou a proteção à integridade psicofísica da pessoa, um dos colorários dos direitos da personalidade e do princípio da dignidade humana, como se verá a seguir.

O Bill of Rights já havia proibido o castigo cruel em 1689, entretanto foi somente em 1790 que o Parlamento Britânico vedou a condenação à morte na fogueira para as mulheres. Isso mostra que a questão da crueldade dependia da concepção de cada cultura. (HUNT, 2009, p. 77).

Com a revolução francesa e a Declaração dos Direitos do Homem nasce a perspectiva do Estado liberal, ocasionando diversos problemas econômicos, agravados pela revolução industrial que, por sua vez, dá origem às grandes e à exploração dos trabalhadores, resultando em misérias sociais, num capitalismo desumano e consequentemente em uma qualidade de vida insalubre. (BRESCIANI, 2004, p. 29-30).

A degradação da dignidade da pessoa humana é bastante visível na seguinte descrição de Engels (1975, p. 111):

(...) qualquer operário, mesmo o melhor, está pois constantemente exposto às privações, quer dizer, a morrer de fome, e um bom número sucumbe. Regra geral, as casas dos trabalhadores estão mal implantadas, mal construídas, mal conservadas, mal arejadas, úmidas e insalubres; nelas os habitantes estão confinados a um espaço mínimo e, na maior parte dos casos, numa divisão dorme pelo menos uma família inteira. O arranjo interior é miserável (...). A comida é geralmente má, muitas vezes imprópria para consumo, em muitos casos, pelo menos em certos períodos, insuficiente e, no extremo, há pessoas que morrem de fome.

Foi durante o século XX, especialmente após as duas grandes guerras, que o centro do ordenamento jurídico se transfere para o valor humano, devido às inúmeras atrocidades praticadas diretamente contra o ser humano acabando por se tornar um divisor de águas no processo de formação dos direitos humanos e da personalidade.

Dessa maneira, ocorre a despatrimonialização do direito civil e a dicotomia, antes bastante nítida, entre público e privada agora é representada apenas por uma linha tênue. Nesse mesmo diapasão, os direitos da personalidade começam a ser identificados com o seu perfil atual.


3. DIREITOS DA PERSONALIDADE: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Mesmo antes do Código Civil de 2002, a doutrina já caminhava para o reconhecimento dos direitos da personalidade em perfeita consonância com o seu perfil atual. Para Orlando Gomes (1974, p. 168),

sob a denominação de direitos da personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, no corpo do Código Civil, como direitos absolutos. Destinam a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana.

A doutrina não é pacífica na conceituação dos direitos da personalidade, contudo é possível traçar pontos em que as várias conceituações se assemelham, quais sejam:

(...) o reconhecimento da sua natureza jurídica como direito subjetivo. Direito de natureza privada, contrapondo-se à proteção conferida pelos direitos fundamentais.

Entende-se que o objeto do direito é a personalidade humana, englobando o aspecto físico, psíquico e moral. São excluídos do âmbito de incidência dos direitos da personalidade elementos externos à pessoa (materiais ou imateriais) e qualquer comportamento não incidente sobre a pessoa ou seus atributos.

Por fim, as definições ressaltam o caráter inato e essencial destes direitos, inerentes à condição humana e sem os quais a pessoa não subsiste. (GARCIA, 2007, p. 20).

No presente trabalho os direitos da personalidade serão conceituados como direitos predominantemente subjetivos, de natureza privada, derivados da dignidade da pessoa humana e que têm por objeto a proteção psicofísica da pessoa, por serem direitos inerentes e indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade humana.

Um dos primeiros autores a reconhecer a dignidade da pessoa humana como fundamento dos direitos da personalidade foi Vicente Ferrer Neto Paiva, ainda no século XIX. Segundo este autor a própria natureza dos direitos da personalidade indica o seu fundamento na dignidade da pessoa humana. A pessoa é a fonte da dignidade e desta mesma dignidade resultam os direitos da personalidade, conferidos para que se possa proteger as faculdades de desenvolvimento da personalidade jurídica e moral. Conclui afirmando que são tantos os direitos da personalidade quanto são necessários para a proteção do desenvolvimento da personalidade da pessoa. (SZANIAWSKI, 2005, p. 84).

Atualmente com a elevação do princípio da dignidade da pessoa humana a status constitucional e fundamental de um estado democrático de direito, não resta dúvidas que o mesmo informa todo o ordenamento jurídico em especial os direitos da personalidade. Partindo desta premissa, defende-se neste trabalho uma cláusula geral de direitos da personalidade trazendo mais profundamente os seus fundamentos no decorrer do artigo.

Por sua vez, Adriano de Cupis (1961, p. 17-18) ressalta o caráter de essencialidade para a existência da pessoa que os direitos da personalidade representam. Estes direitos seriam o mínimo necessário para dar conteúdo à pessoa, relacionando-se com esta de forma tão íntima que poderia se dizer orgânica, isso porque são os bens de maior valor para a mesma. Nas palavras do autor,

existem direitos sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto: direitos sem os quais todos os outros direitos subjectivos perderiam todo o interesse para o indivíduo – o que equivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal. São esses os chamados "direitos essenciais", com os quais se identificam precisamente os direitos da personalidade. Que a denominação de direitos da personalidade seja reservada aos direitos essenciais justifica-se plenamente pela razão de que eles constituem a medula da personalidade.

Dentre as características ou atributos desses referidos direitos, a doutrina clássica destaca que eles são subjetivos, privados, inatos, vitalícios, absolutos, indisponíveis e extrapatrimoniais.

Direito subjetivo é o "poder atribuído à vontade do sujeito para a satisfação dos seus próprios interesses protegidos legalmente." (GOMES, 1974, p. 129). De certa maneira o direito faculta ao agente o exercício dos instrumentos de proteção dos direitos da personalidade.

Ainda dentro dessa discussão, sublinha-se que a concepção de direito subjetivo aqui apresente não se coaduna com a concepção de direito subjetivo ligada ao patrimonialismo, [01] reconhecendo-se que o binônimo lesão-sanção não é suficiente para a proteção da pessoa em sociedade. Destarte o detentor do direito lesado pode recorrer a outros remédios processuais como a tutela inibitória, que por razões de espaço não será discutida no trabalho. [02] Ademais, uma discussão mais aprofundada sobre este assunto desviaria a preocupação central deste trabalho, por isso limitamo-nos a dizer que os direitos da personalidade são predominantemente uma categoria sui generis do direito subjetivo.

São direitos privados, pois a sua tutela é realizada preponderantemente através de institutos de direito privado. Essa classificação é questionável se se admitir que a proteção da pessoa humana supera a setorização do direito e demanda uma solidariedade entre o direito público e o direito privado para a consecução da tutela da pessoa.

No entanto será adotada a classificação dos direitos da personalidade dentro do direito privado, por este ser preponderante em seus mecanismos para a proteção da pessoa nas relações privadas. Embora seja oportuno lembrar que hoje existe uma mitigação na teoria da setorização do direito como já foi abordado.

A denominação de direitos "inatos" pode aparecer sob duas acepções. A primeira no sentido jusnaturalista, implica em reconhecer os direitos precedentes ao direito positivado, cabendo a este apenas o reconhecimento destes direitos pré-existentes. "A outra concepção corrente na doutrina toma o termo ‘inato’ para representar o direito inerente à condição humana, que nasce com a pessoa e não depende de qualquer ato aquisitivo." (GARCIA, 2007, p. 35).

Ressalta-se que o a acepção de direitos inatos adotada neste trabalho é referente ao direito inerente à condição da pessoa, como ser humano, haja vista que esse significado vai ao encontro do princípio da dignidade da pessoa humana do qual derivam os direitos da personalidade. [03] Isso porque a dignidade é inerente a qualquer ser humano pelo simples fato de ser pessoa, não guardando relação com o direito natural.

São direitos vitalícios, pois eles se conservam por toda a vida da pessoa humana. A rigor se extinguem com o falecimento da pessoa, porém alguns se refletem mesmo depois da sua morte, como a proteção do nome e da honra, o direito ao cadáver e a proteção da sepultura.

A concepção de direitos absolutos é utilizada para se contrapor aos direitos relativos. Enquanto estes se dirigem às pessoas previamente determinadas, aqueles produzem efeitos para toda a coletividade, sua eficácia é erga omnes.

Segundo a doutrina mais tradicional os direitos da personalidade também seriam indisponíveis, ou seja, "(...) aquele que está imune à vontade do titular quanto ao seu destino, direito que não pode ser extinto ou modificado pela sua vontade." (GARCIA, 2007, p. 46). Sendo assim, os direitos disponíveis são aqueles sobre os quais o titular detêm o total controle. O direito indisponível não se confunde com a inalienabilidade, pois esta é a espécie e esse o gênero.

Dessa característica derivariam outras duas, classificadas como intransmissibilidade [04] e irrenunciabilidade.

O caráter intransmissível dos direitos da personalidade determina que eles não podem ser objeto de cessão e até mesmo de sucessão, por ser um direito que expressa a personalidade da própria pessoa do seus titular e que impede a sua aquisição pode um terceiro via transmissão.

Nesse sentido, são irrenunciáveis, pois a pessoa não pode abdicar de direitos da personalidade, mesmo que não os exercite por longo tempo, uma vez que ele é inseparável da personalidade humana. (BELTRÃO, 2005, p. 27).

Contudo esta indisponibilidade, mesmo que positivada claramente no art. 11 do Código civil de 2002, vem sofrendo severas críticas pelos estudiosos do assunto. Novas teorias têm surgido questionando até que ponto iria a indisponibilidade destes direitos, algumas relativizando-a outras reconhecendo a possibilidade de renúncia ao exercício destes direitos.

Alguns defendem, na esteira do Código Civil Português [05], que os direitos da personalidade tem limitada disponibilidade, podendo ser realizados negócios jurídicos desde que respeitada a ordem pública e os bons costumes. [06]

Através de uma admirável argumentação jurídico-filosófica, o Prof. Brunello Stancioli defende a posição de que a indisponibilidade ou disponibilidade dos direitos da personalidade não pode ser fruto de uma decisão legislativa e que o tema necessita de ser re-estudado, isso porque a pessoa nunca poderá ser vista como um processo pronto e acabado. Segundo este,

no caminho que vai de Mirandola aos dias hoje, pode-se perceber que as pessoas são os únicos seres que podem ser o que quiserem... A pessoa tem sido tomada como unidade estável. Porém, ela pode ser mesmo um pluralidade, e multiplicar-se, em busca de uma vida que vale ser vivida, pois "nós somos uma multiplicidade que se imaginou uma unidade".

(...)

Ser pessoa é ser local e global. Ter identidade. Ter direitos da personalidade. Poder renunciar. Mas nunca ser uma possibilidade que se esgotou. (STANCIOLI, 2010, p. 125).

De fato, na sociedade atual, não é difícil achar exemplos de disposição dos direitos da personalidade. Relacionados à vida privada pode-se citar os programas de reality shows como verdadeiros marcos na renúncia ao exercício frente a um direito da personalidade. Hoje são exibidos em versões diferentes pela maioria das emissoras de televisão e não causam nenhum sentimento de ilegalidade na população, pelo contrário, ao se julgar pelos altos índices de audiências tais programas são amplamente aceitos.

Ressalta-se que não se confunde a renúncia ao exercício com renúncia ao direito. Quando a pessoa renúncia ao direito, esta perde a titularidade total e irrevogável do mesmo o que seria negar a sua própria personalidade. Entretanto a renúncia apenas ao exercício possibilita que o direito volte a ser exercido posteriormente [07], aumentando a autodeterminação da própria pessoa. [08]

Em suma, seja pela relativa indisponibilidade/disponibilidade ou pela renúncia ao exercício dos direitos da personalidade, o que deve ser levado em conta é que não existe mais espaço para a estanque indisponibilidade absoluta de tais direitos e que a pessoa mais do que nunca deve ser consultada sobre as suas aspirações visando o seu próprio livre desenvolvimento da personalidade.

Por fim, são direitos extrapatrimoniais porque não são suscetíveis de apreciação econômica, a contrario sensu de direitos patrimoniais, sendo estes plenamente avaliáveis economicamente. Porém cabe ressaltar que não existe direito estritamente extrapatrimonial, pois eles não são plenamente destituídos de repercussões patrimoniais.

No mesmo caminho é o entendimento de Adriano de Cupis (1961, p. 29), isso porque alguns bens da personalidade são utilizados tais como a vida, a liberdade, etc., devem existir para que o indivíduo tenha acesso aos bens patrimoniais. Decorre assim da própria natureza dos direitos da personalidade. A sua essencialidade permite que o sujeito tenha direitos sobre bens patrimoniais.


4. TEORIA PLURALISTA

A teoria tradicional dos direitos da personalidade defende a proteção da pessoa humana no ordenamento jurídico através da tipificação dos direitos da personalidade. Segundo esta doutrina somente seriam considerados direitos da personalidade aqueles que estivessem previamente e expressamente identificados na lei.

A doutrina pluralista sustenta que os direitos da personalidade possuem como objeto os atributos da pessoa e não a pessoa considerada em si mesma. Isso aconteceu porque a referida doutrina pretendia enquadrar perfeitamente os direitos da personalidade na categoria de direitos subjetivos, contrapondo-se à doutrina dos direitos ius in se ipsum.

Dessa maneira ocorreria uma divisão dos direitos da personalidade em tantos quanto fossem considerados na legislação, existe aqui uma fragmentação destes direitos nas suas representações físicas e psíquicas do ser humano. "O resultado final é uma pluralidade de direitos subjetivos, de certo modo autônomos entre si, destituídos de um ponto de unidade. A pessoa não é tutelada de forma integral, mas apenas de maneira pontual (...)." (GARCIA, 2007, p. 176).

Devido a essa divisão entre os direitos, muitas vezes não se consegue delimitar a extensão de atuação de cada um, originando pontos obscuros e muitas vezes não gozando da proteção que merecem. "Tão maior será a quantidade de lacunas quanto mais estrita e rigorosa for a tipificação normativa do direito da personalidade." (GARCIA, 2007, p. 181).

O legislador não tem como prever todas as manifestação da personalidade da pessoa humana e consequentemente as situações em que os seus direitos estão ou podem ser violados, assim, como assevera Doneda (2004, p. 42),

a tipificação dos direitos da personalidade pareceu uma solução teórica bastante viável para muitos autores. Por ela, eram identificados alguns direitos da personalidade presentes no ordenamento, como o direito ao nome ou a inviolabilidade de correspondência, por exemplo, e utilizava-se a técnica de tutela dos direitos subjetivos.

Diante do exposto, não há como negar a influência do positivismo clássico sobre a teoria tradicional dos direitos da personalidade e ao seu apego a um sistema fechado e estanque, dependente exclusivamente da atuação e técnica do poder legislativo.

Também é mérito dessa teoria a divisão entre os direitos da personalidade públicos e privados. Enquanto os direitos públicos eram reconhecidos pelos tratados internacionais a exemplo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e pelas Constituições de cada país, os direitos privados seriam aqueles reconhecidos pelos códigos civis e valeriam somente para as relações entre particulares. Embora fossem os mesmos direitos, a previsão deveria ser feita distintamente. [09]

Pode-se perceber pela evolução histórica dos direitos humanos e dos direitos da personalidade, que os direitos ditos "públicos" foram mais rapidamente reconhecidos pela ordem internacional, todavia os códigos civis foram extremamente tímidos no momento de positivarem os direitos privados da personalidade.

Como consequência a pessoa humana ficava totalmente desguarnecidade de qualquer proteção da sua dignidade moral, haja vista que não se aceitava uma cláusula geral de proteção da pessoa e os direitos da personalidade não sofreram nenhum tipo de tipificação que poderíamos considerar ao menos satisfatória.

Acontece que o rigor científico trazido pelo positivismo ao influenciar a tipificação dos direitos da personalidade, na realidade não possuía nada de cientificidade. Consoante Elimar Szaniawski (2005, p. 123-127) o caos se instalou na classificação e diferenciação dos direitos da personalidade quando analisados separadamente. Isso acontece porque simplesmente a doutrina e a jurisprudência não são pacíficas no momento de dizer quais seriam todos os direitos da personalidade. Ao mesmo tempo que direitos são reconhecidos e não possuem natureza de direitos da personalidade, outros que deveriam ser reconhecidos não são, fazendo com que surjam infinitas classificações dos direitos da personalidade, aumentando à medida da evolução da sociedade, da tecnologia e das inúmeras manifestações da personalidade humana.

Ainda segundo o autor, a decadência da teoria pluralista se deve a dois fatores. O primeiro concerne à diferenciação entre os direitos públicos e privados da personalidade e o segundo diz respeito à necessidade de tipificação e positivação dos direitos da personalidade pelo código civil. Este fracionamento, ao dificultar e impedir a efetiva proteção da pessoa humana foi facilmente combatido pelos fenômenos de constitucionalização e repersonalização do próprio direito civil. Isso porque ao se elevar o princípio da dignidade humana como centro do ordenamento jurídico, é necessário que a pessoa tenha sua tutela ampliada para compreender todo e qualquer tipo de ofensa à sua personalidade.

Por último, é importante sublinhar que a doutrina pluralista prega um excessivo apego ao patrimonialismo, pois como demonstra Costa Garcia (2007, p. 190), "o direito subjetivo tem sua máxima expressão nos direitos patrimoniais. É o direito que se exerce diretamente sobre uma coisa (direito real) ou em face de uma pessoa visando um determinado bem jurídico (direito obrigacional)."

Como já foi dito, hoje o direito civil está sofrendo a sua repersonalização ou sua despatrimonialização, tornando esse apego ao patrimonialismo um dissenso com a atual realidade do direito privado.


5. TEORIA DO DIREITO GERAL DA PERSONALIDADE

A teoria do direito geral da personalidade não aborda a questão do conceito de direitos da personalidade e nem discute quais são as suas características. No centro de sua defesa está a discussão sobre quais são os direitos da personalidade.

A doutrina pluralista condiciona a proteção da pessoa humana a direitos tipificados, restringindo em grande monta a proteção conferida ao ser humano pelo ordenamento, pois "com o desenvolvimento social, as disposições legais não esgotam todo o conteúdo da tutela da personalidade humana, surgindo aspectos que não encontram proteção nas normas legais existentes." (BELTRÃO, 2005, p. 54).

Buscando encontrar uma maior proteção à pessoa, surge a teoria atomista do direito da personalidade. Esta doutrina aparece primeiramente na Alemanha após decorrida a segunda guerra mundial.

As terríveis ações praticadas pelos nazistas fizeram com que a personalidade reclamasse uma proteção que transcendesse aqueles direitos tipificados pelo BGB (Código Civil Alemão). Isso se deu porque o nazismo chegou ao poder pelas vias legais e depois da sua queda fez-se mister adotar "uma teoria do direito comprometida com valores, e não apenas com interesses ou conceitos." (NEVES, 2002, p. 7).

Desse modo,

(...) em oposição às concepções "atomísticas", a doutrina do direito geral da personalidade pugna pelo reconhecimento de que a personalidade deve ser protegida de forma global, considerando a própria natureza da pessoa, que representa um valor unitário. Proclama-se a existência de um direito que protege a pessoa como um todo, apto a tutelar qualquer aspecto da personalidade, coibir qualquer tipo de comportamento lesivo. A proteção não se esgota em direito tipificados. (GARCIA, 2007, p. 73).

A grande vantagem em adotar essa teoria é a abertura de aplicação que se propicia com a utilização de um conceito indeterminado, desta forma será possível a proteção da personalidade em todos os seus aspectos conhecidos e aqueles que ainda irão surgir conforme a evolução da sociedade. Como defende o jurista italiano Pietro Perlingieri (2008a, p. 765), "nenhuma previsão especial poderia ser exaustiva porque deixa de fora algumas manifestações e exigências da pessoa que, em razão do progresso da sociedade, exigem uma consideração positiva" [10] e assim,

uma vez considerada a personalidade humana como um interesse juridicamente protegido e relevante para o ordenamento, a responsabilidade civil se estende também a todas as violações dos comportamentos subjetivos nos quais pode se realizar a pessoa. (PERLINGIERI, 2008a, p. 766).

Com um conceito aberto no centro da doutrina em questão, é possível buscar a resolução mais adequada para cada caso concreto através da ponderação de interesses, o que leva ao interprete a definir quais são os bens que compõem a personalidade humana tutelada. Sublinhe-se ainda que "cláusulas gerais equivalem a normas jurídicas aplicáveis direta e imediatamente nos casos concretos, não sendo apenas cláusulas de intenção." (TEPEDINO, 2008, p. 20).

Na fundamentação jurídica da doutrina defendida, é preciso o reconhecimento da dignidade da pessoa humana ocupando o espaço deste conceito jurídico indeterminado, fazendo o papel de uma cláusula geral. Embora o significado de conceito jurídico indeterminado seja diferente de cláusula geral, na fundamentação do direito geral da personalidade temos um conceito jurídico indeterminado utilizado para a conformação de uma cláusula geral, cuja expressão infraconstitucional situa-se no art. 12 do Código Civil [11], desde que seja feita uma interpretação civil-constitucional. (GARCIA, 2007, p. 163).

Como será visto a seguir, a dignidade humana é um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro o qual protege todos os desdobramentos do direito geral da personalidade que devem ser tutelados. [12]

Conclui Maria Celina Bodin de Moraes (2006, p. 146):

o ponto de confluência desta cláusula geral é, sem dúvida, a dignidade da pessoa humana, posta no ápice da Constituição Federal de 1988 (artigo 1º, III). (...) Em seu cerne encontram-se a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade.

Com base nessa argumentação e seguindo um raciocínio axiológico, pode-se dizer que "a personalidade, portanto, não é um direito, mas sim, um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente exigência mutável de tutela." (PERLINGIERI, 2008a, p. 764).

No direito português a teoria do direito geral da personalidade é retirada do art. 70 do Código Civil. [13] Capelo de Souza (1995, p. 113-117) admite que a personalidade humana não pode ser entendida estaticamente, mas sim como um processo dinâmico de desenvolvimento da própria pessoa. Ademais a proteção psíquica (ou moral como determina o autor) leva a considerar a pessoa como um ser autônomo dotado é claro de liberdade, sem prejuízo de sua relação com a sociedade.

Na sistematização do direito geral da personalidade, ainda realiza pelo autor (1995, p. 155 e ss.), é incluído o ciclo de proteção da personalidade que vai desde o nascituro, perpassa pelo nascimento da pessoa com vida, pela sua morte e em alguns bens tutelados após a morte da pessoa. Quanto à estrutura da personalidade temos que a mesma compreende um complexo unitário "físico-psico-ambiental", ou seja, a personalidade é formada por este conjunto de proteção da integridade física e psíquica juntamente com a sua inserção no meio social.

Para Capelo de Souza, a estrutura unitária somática-psiquíca (correspondente à integridade psicofísica) concerne à vida humana, ao corpo, ao espírito (compreendendo os sentimentos, a inteligência e a vontade) e a criatividade do homem. Na dimensão relacional entre o homem individualizado e a sociedade são incluídos a identidade, a liberdade, a igualdade, a existência, a segurança, a honra, a vida privada e o desenvolvimento da personalidade.

Com efeito, não é o caso de se delinear por completo os desdobramentos dos elementos componentes do direito geral da personalidade, até porque a mutabilidade de manifestações da personalidade humana não permite ditar, exaustivamente, os contornos do bem da personalidade, residindo aqui uma das suas principais vantagens ao proteger a pessoa nas suas manifestações existentes e as que poderão, e com certeza irão, aparecer ao longo do desenvolvimento da sociedade. Cumpre salientar apenas que são protegidas por este direito as expressões físicas e psíquicas da pessoa e as relações desta com a sociedade, sendo este último o atributo intersubjetivo da dignidade da pessoa humana.

Resumindo, como assevera Costa Garcia (2007, p. 87), pode-se definir o direito geral da personalidade como:

(...) conceito indeterminado normativo segundo o qual a pessoa deve ser tutelada globalmente em todos os aspectos que compõem a sua personalidade (físico, espiritual, moral), prevenindo e sancionando qualquer comportamento antijurídico que represente menoscabo à dignidade da pessoa humana, frustrando ou embaraçando o livre desenvolvimento da personalidade do titular.


6. NEOCONSTITUCIONALISMO E DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

Como já foi ressaltado o direito geral da personalidade possui característica de direito privado, pois sua tutela é preponderantemente direcionada através de mecanismos do direito privado. Porém a dignidade humana está presente no corpo constitucional e por isso para que esta seja o centro dessa teoria é necessário que reconheçamos a eficácia dos princípios constitucionais, assim como os novos parâmetros ditados pelo direito civil-constitucional.

6.1 Breve Evolução Histórica do Neoconstitucionalismo

Logo após a revolução francesa, a constituição era vista apenas como uma carta política e os códigos civis, em especial o código napoleônico, eram tidos como as constituições do direito privado. Os direitos fundamentais recebiam proteção somente se fossem abarcados pela legislação infraconstitucional. Assim,

O direito público, por sua vez, não interferiria na esfera privada, assumindo o Código Civil, portanto, o papel de estatuto único e monopolizador das relações privadas. O Código almejava a completude, que justamente o deveria distinguir, no sentido de ser destinado a regular, através de situações-tipo, todos os possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a ser titular.

(...) Ao direito civil cumpriria garantir à atividade privada, e em particular ao sujeito de direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutáveis nas suas relações econômicas. (TEPEDINO, 2008, p. 3).

Após a segunda guerra mundial, surge o fenômeno do neoconstitucionalismo com o intuito de dar maior segurança jurídica ao Direito e evitar que as atrocidades praticadas durante a guerra voltem a acontecer. Inspirado no modelo norte americano, a constituição começa a ser aceita como uma verdadeira norma jurídica com poder vinculativo.

Com as modificações ocorridas no pós-guerra, é possível se observar um polissistema cuja fonte axiológica foi remanejada para a Constituição em detrimento do Código Civil.

6.2 Características do Neoconstitucionalismo e do Direito Civil-Constitucional

Dentre as diversas correntes que sustentam o neoconstitucionalismo, Daniel Sarmento (2009, p. 9-10) consegue resumir os principais fenômenos decorrentes desse movimento nos seguintes termos:

(...) (a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do direito; (b) rejeição ao formalismo e recuso mais frequente a métodos ou "estilos" mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; (c) constitucionalização do direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o direito e a moral, com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário. [14]

Para a corrente dos positivistas, anterior à segunda grande guerra, a Constituição Federal seria apenas um limite para as leis infraconstitucionais, atuando somente de maneira subsidiária. O direito civil-constitucional não refuta a idéia de que a Constituição atua no controle das demais normas, pois apenas afirma que a lei maior transcende essa função. Isso porque atua, também, oferecendo princípios norteadores para se interpretar as normas ordinárias, além de incidir concretamente como norma dirigida a todos os sujeitos, regulando diretamente as relações privadas.

Nesse diapasão, o ordenamento jurídico deve ser visto "(...) como uno e complexo, em que os princípios constitucionais exercem a função de valores guias e assumem um papel central na articulada pluralidade de fontes (...)." (PERLINGIERI, 2008b, p. 2). É o que podemos chamar de força normativa da Constituição, como bem alude Sarmento (2006, p. 55), "(...) desencadear a força normativa da Lei Fundamental é projetá-la sobre todos os setores da vida humana e do ordenamento jurídico (...)."

Deriva desse neoconstitucionalismo a necessidade de construir uma teoria do direito fundada em valores. Dessa maneira, o Direito Civil passa a ser integralizado pelos preceitos constitucionais e conforme Nanni (2001, p. 163), em especial o operador do direito civil que deve proceder uma releitura do código e das leis esparsas de acordo com os mandamentos dos princípios constitucionais.

No positivismo, os princípios não eram completamente destituídos de eficácia, porém estes possuíam somente uma função subsidiária e integrativa do ordenamento jurídico, uma vez que só eram utilizados em casos de lacuna legislativa. Entretanto "hoje (...) reconhece-se a hegemonia dos princípios, ‘convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais’." (SARMENTO, 2006, p. 57).

Nota-se aqui, uma alteração na técnica legislativa, optando o legislador por cláusula gerais, cabendo ao interprete moldar essas cláusulas a cada caso concreto. Outra alteração é a mudança da linguagem preponderantemente jurídica para uma linguagem mais setorial, além do legislador parar de se limitar a regular situações estritamente patrimoniais. (TEPEDINO, 2008, p. 9-10).

Hodiernamente os destinatários da Constituição não são apenas as entidades públicas, incluindo-se na sua incidência todo o ordenamento jurídico, encontrando-se aqui principalmente o Direito Civil e por consequência, "os princípios não mais se restringem às funções integrativa e negativa, são instrumentos para a implementação dos valores consagrados pelo legislador, especialmente pelo constituinte." (GARCIA, 2007, p. 214).

Sobre esse processo de interpretação do direito civil Gustavo Tepedino (2008, p. 22) alude que,

a intervenção direta do Estado nas relações de direito privado, por outro lado, não significa um agigantamento do direito público em detrimento do direito civil que, dessa forma, perderia espaço, como temem alguns. Muito ao contrário, a perspectiva de interpretação civil-constitucional permite que sejam revigorados os institutos de direito civil, muitos deles defasados da realidade contemporânea e por isso mesmo relegados ao esquecimento e à ineficácia, repotencializando-os, de molde a torná-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual.

Para Perlingieri (2008a, p. 595-596), surge da concepção do neoconstitucionalismo, um novo método de interpretação constitucionalizada do direito, devendo ser utilizado sempre que o estudo tiver uma perspectiva civil-constitucional, e se fundamenta:

a) em reconhecer que "a constituição, como qualquer outra lei, é sempre antes de tudo um ato normativo, que contém disposições preceptivas" (...);

b) em argumentar sobre normas-princípios, cuja aplicação "não assume a forma silogística da subsunção, mas aquela da otimização ao realizar o preceito", segundo uma sua hierarquia, mas também segundo uma sua razoável ponderação em relação ao caso concreto a ser decidido;

c) em ter consciência de que a idéia de sociedade e de ética pressuposta na constituição deve ser relevante e que, dessa forma, no ordenamento positivo penetram "valores e princípios historicamente caracterizados".

Assim, a Constituição passa a fazer parte da regulação do direito privado. Ela deixa de ser apenas uma regra de hermenêutica, passando a ser uma norma que vincula concretamente o comportamento civil, a constituição é vista como lei, a Lei Fundamental.


7. A DIGNIDADE HUMANA COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO E DO DIREITO GERAL DA PERSONALIDADE

A dignidade humana foi erigida a princípio fundamental na Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III), como bem observa Rosenvald (2005, p. 35) a colocação deste princípio diretamente no título um da Constituição determina a sua precedência interpretativa sobre os demais capítulos constitucionais, não sendo apenas mera coincidência a sua localização topográfica. Ainda pode se acrescentar que este princípio incide sobre todo o ordenamento jurídico.

Na lição de Elimar Szaniawski (2005, p. 139) esse princípio considerado como "mãe", irradia todos os seus direitos fundamentais da pessoa em direção ao poder público, aos particulares, sejam pessoa jurídicas ou naturais, tendo como escopo e destinatário a proteção da pessoa humana, ainda exercendo uma determinada função social pela qual todos os direitos postos devem ser interpretados à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. No mesmo sentido Daniel Sarmento (2006, p. 86) ensina que

(...) é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana é o princípio mais relevante da nossa ordem jurídica, que lhe confere unidade de sentido e de valor, devendo por isso condicionar e inspirar a exegese e aplicação de todo o direito vigente, público ou privado. Além disso, o princípio em questão legitima a ordem jurídica, centrando-a na pessoa humana, que passa a ser concebida como "valor fonte fundamental do Direito".

A grande dificuldade está na delimitação conceitual da dignidade da pessoa humana, pois este é um conceito bastante polissêmico, amplo e abstrato. Porém faz-se necessária a sua delimitação, haja vista que uma abstração exagerada desse conceito pode prejudicar a eficácia do referido princípio dificultando a sua aplicação nos casos concretos. [15] É por isso que a discussão sobre o conceito e delimitação conceitual, mesmo sendo tarefa árdua, não pode ser renunciada pelos operadores do direito.

Para Sarlet (2010, p. 51), não há como se desvencilhar da necessidade de uma conceituação de dignidade, pois as decisões proferidas em uma jurisdição constitucional deverá sempre ser extraídas consequências jurídicas.

A concepção de dignidade humana remonta-se ao pensamento cristão e à filosofia da antiguidade clássica. Dentro da ideologia cristã, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, não podendo por esse motivo ser transformado em objeto ou instrumento de outras ações humanas. (MENDONÇA, 2006, p. 8).

Na concepção clássica, a dignidade era tida como um privilégio condizente com a posição social ocupada pela pessoa na sociedade, sendo portanto uma dignidade modulável e quantificável. Em Roma, principalmente a partir das idéias de Cícero, a dignidade passou a se desvincular à posição social para adquirir um conteúdo moral de acordo com as virtudes do indivíduo. (SARLET, 2010, p. 32-33)

Um dos maiores precursores sobre o estudo da dignidade humana é o filosofo Immanuel Kant. Este estudioso preconiza que o princípio sobre analise se relaciona com a maneira que é tratado o ser humano. Devido à sua autonomia da vontade encontrada nos seres racionais, a pessoa nunca poderia ser vista simplesmente como meio ou como um objeto, mais sim como um fim em si mesmo, o objetivo. Em suas próprias palavras, Kant (2006, p. 65) ressalta que

(...) no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo o preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.

Desse modo, o referido autor chega à seguinte conclusão:

(...) todo ser racional - existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim. (KANT, 2006, p. 58).

É com base nos estudos de Kant que a doutrina tem fundamentado a maioria dos conceitos sobre dignidade humana. Entretanto esta ideia é bastante individualista, pois privilegia exageradamente o homem como o centro de tudo, excluindo o seu contato com a natureza e com as outras pessoas não encontrando espaço para a solidariedade. Como bem observa Lorenzetti (1998, p. 145), o homem como sendo considerado o centro do ordenamento jurídico não pode ser algo absoluto e incontestável. Embora seja o primeiro ponto referência da lei, ele não é o único, até porque tal ideia conduz a um individualismo extremado desconsiderando prejudicialmente outros bens jurídicos tutelados.

Aquele tipo de concepção individualista, dita insular, não satisfaz os imperativos de uma dignidade humana fundada em uma nova ótica social que surge principal no segundo pós-guerra, da qual deriva um postulado de intersubjetividade de onde se retira a capacidade do homem de se relacionar com outros, de interagir e reconhecer no outro um semelhante dotado de igual dignidade e que merece respeito.

Dessa maneira, como alude Azevedo (2004, p. 5),

(...) a concepção própria de uma nova ética, fundada no homem como ser integrado à natureza, participante especial do fluxo vital que a perpassa há bilhões de anos, e cuja note específica não está na razão e na vontade (...), e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem de sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem. [16]

Ainda pode-se apresentar, consoante Elimar Szaniawski (2005, p. 143), que a dignidade pode ser entendida sobre dois aspectos. Quanto ao primeiro, representa uma qualidade essencial e substancial da pessoa humana e concernente ao segundo, expressa o fundamento de uma ordem política e social, atuando com a fonte de outros direitos. A esse respeito, o princípio da dignidade humana funciona como um princípio gerador de outros direitos, em especial os direitos fundamentais materiais e também como fundamento do direito geral da personalidade, podendo ser imposto tanto ao poder público como também vincular as relações particulares, inclusive limitando espécies de liberdades públicas.

Diante o exposto, embora não seja pacífica na doutrina jurídica a delimitação atual do princípio da dignidade humana, é possível identificar dentre as várias definições elementos comuns, dos quais podemos citar: "a) a preservação do aspecto orgânico da pessoa (proteção da vida, integridade física, etc.); b) proteção do relacionamento social da pessoa e c) o reconhecimento da necessidade da preservação de condições materiais mínimas para a subsistência." (GARCIA, 2007, p. 133).

À guisa de ilustração, Azevedo elenca como postulados do princípio da dignidade: em primeiro lugar a intangibilidade da vida humana, desencadeando de forma hierárquica o respeito à integridade psicofísica, o direito às condições materiais mínimas para a sobrevivência, a liberdade e à igualdade. [17]

A grande diferença da teoria do referido autor é primeiramente considerar a intangibilidade da vida como aspecto absoluto do princípio e posteriormente hierarquizar os postulados derivados desta intangibilidade.

7.1 O Conteúdo Normativo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Acepção de Maria Celina Bodin de Moraes

Para melhor analisar a definição jurídica da dignidade humana será decomposta a posição de Maria Celina Bodin de Moraes, que reconhece neste princípio quatro substratos normativos essenciais: a igualdade; a liberdade; a solidariedade social; e a proteção da integridade psicofísica da pessoa.

O direito à igualdade não se contenta somente com a igualdade formal, recorrendo-se também a isonomia material. Este tipo de igualdade implica em tratar os desiguais na medida em que estes possam ser elevados à verdadeira posição de isonomia em relação às outras pessoas.

Quanto ao direito da liberdade, este é reconhecido principalmente na esfera da intimidade e da vida privada da pessoa e deve ser balanceado em relação à solidariedade social. Implica na livre vontade e autodeterminação.

A solidariedade social define como prioridade a construção de uma sociedade que propicie uma existência digna a todos, com justiça, liberdade, sem a marginalização de seus membros. Nas palavras da autora, "o princípio constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados" (MORAES, 2009, p. 114).

Não se pode, no entanto, confundir o princípio da solidariedade "(...) como resultante de ações eventuais, éticas ou caridosas, pois se tornou um princípio geral do ordenamento jurídico, dotado de força normativa e capaz de tutelar o respeito devido a cada um." (MORAES, 2009, p. 115-116).

Por sua vez, a integridade psíquica e física da pessoa é um dos pedestais do direito geral da personalidade do qual deriva todos os desdobramentos da realização da pessoa na sociedade, compreendendo também a sua existência digna. Em suma,

(...) quando se reconhece a existência de outros iguais, daí dimana o princípio da igualdade; se os iguais merecem idêntico respeito à sua integridade psicofísica, será preciso construir o princípio que protege tal integridade; sendo a pessoa essencialmente dotada de vontade livre, será preciso garantir, juridicamente, esta liberdade; enfim fazendo ela, necessariamente, parte do grupo social, disso decorrerá o princípio da solidariedade social. (MORAES, 2006, p. 119).

Ressalte-se ainda que todos os postulados do princípio da dignidade humana apontados pela autora são relativizados, não podendo em nenhum momento serem considerados de forma absoluta ou com preponderâncias antes de analisar o caso concreto.

7.2 O Conceito de Dignidade da Pessoa Humana na Doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet

Dentre os maiores expoentes e pesquisadores do princípio da dignidade da pessoa humana no Brasil está o Prof. Dr. Ingo Wolgang Sarlet. Devido a sua grande importância no cenário nacional, a sua concepção do referido princípio também será analisada.

Nos estudos do referido do autor fica evidente a influência de Kant na sua delimitação conceitual de dignidade da pessoa humana. Sarlet reconhece a inerência da dignidade a cada ser humano, independentemente de suas ações serem dignas ou indignas, sendo que este é um dos grandes problemas de se tentar conceituar o princípio, pois trata-se de um aspecto mais geral da existência humana e não de situações específicas como os direitos fundamentais. Para o autor a dignidade é uma

(...) qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito da dignidade, na sua condição jurídico normativa. (SARLET, 2010, p. 49-50).

Continuando nas suas explanações, o autor consagra a relatividade do princípio da dignidade da pessoa humana, contrapondo-se a um conteúdo que muitas vezes era tido como fixo e universal. (SARLET, 2010, p. 55). Portanto um conceito de dignidade é sempre extraído de um determinado contexto cultural e está em constante construção e reconstrução.

Quanto à relação da dignidade com o Estado, Sarlet (2010, p. 55) aduz que o princípio

(...) assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade (...).

Sobre essa dupla função do Estado, temos que a dimensão prestacional reclama um Estado que guie suas atitudes sempre buscando a concretização da dignidade, enquanto na dimensão defensiva, o Estado é o responsável pela proteção e assistência da dignidade frente a si próprio e também nas relações particulares.

Seguindo em seu raciocínio, Sarlet defende uma dignidade individualmente teleológica. A Dignidade é um atributo da pessoa humana individualizada, contrapondo-se a uma "dignidade humana" em sentido global [18], embora devemos reconhecer na dignidade seu aspecto social e intersubjetivo, contemplando a vida em comunidade dos seres humanos. (SARLET, 2010, p. 60-61).

Antes de chegar em seu conceito de dignidade da pessoa humana, Sarlet ressalta que o princípio possui uma contextualização histórico-cultural. Assim não é possível encontrar um conceito que seja universal devido às especificidades de cada cultura. (SARLET, 2010, p. 65). Feito isto, o autor concebe a dignidade da pessoa humana como

(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2010, p. 70).

Em uma análise da teoria de Sarlet, Rafael Mendonça (2006, p. 27-28) consegue identificar quatro dimensões básicas. A primeira delas é a dimensão ontológica, concernente à uma característica da própria pessoa em sentido biológico o que a torna um sujeito livre e portador de direitos fundamentais.

A segunda é a dimensão pessoal, pela qual o ser humano como possuidor da dignidade, individualizadamente falando, não pode ser reduzido a um instrumento de uma coletividade ou de um bem maior. O núcleo da dignidade é inviolável.

A dimensão cultural coletiva diz respeito à abertura axiológica de um conceito histórico-cultural que sofre influências no tempo e no espaço, ou seja, está em constante processo de construção e reconstrução de acordo com a pluralidade e diversidade de valores em uma sociedade. Embora seja considerada relativa a dignidade possui caracteres universais, enquanto outros variam de uma sociedade para outra.

Por último, a dimensão defensiva e prestacional do Estado indica que este deve tanto trabalhar pela inviolabilidade da dignidade da pessoa humana como também proporcionar o seu desenvolvimento através das condições necessárias para seu exercício pleno.

Quanto à relativização da dignidade da pessoa humana, o autor admite a possibilidade, entretanto ressalva que dentro desta maior ou menor relativização da dignidade, de acordo com o caso concreto, existe um núcleo essencial de caráter absoluto baseado na doutrina kantiana. Dessa maneira deve-se adotar de forma absoluta o imperativo que nenhuma pessoa pode ser mero objeto para se alcançar determinado fim.


8. RELAÇÃO ENTRE O DIREITO GERAL DA PERSONALIDADE E OS DIREITOS ESPECIAIS TÍPICOS

É certo que o legislador constitucional previu o princípio da dignidade da pessoa humana como centro do direito geral da personalidade e o legislador infraconstitucional reconheceu no Código Civil de 2002, mediante o artigo 12 [19], onde o juiz tem o dever de utilizar todos os meios para impedir ofensas à integridade física e psíquica da pessoa.

Todavia, também ao longo da Constituição e do próprio Código Civil os mesmos reconheceram diversos direitos típicos específicos ou especiais da personalidade, tais como a vida, a honra, a intimidade, a vida privada, o nome, a imagem, a igualdade entre outros.

Para Elimar Szaniawski (2005, p. 128), no Brasil é adotado um sistema misto de proteção da personalidade, onde convivem harmonicamente o direito geral da personalidade com os direitos específicos da personalidade. Isso acontece porque, em razão de política legislativa, alguns direitos da personalidade merecem atenção especial valendo-se o legislador de sua tipificação em lei garantido-lhes uma tutela expressa.

Continuando o raciocínio, o autor afirma que esta tipificação não se confunde com um fracionamento infinito conforme aconteceu com a teoria pluralista dos direitos da personalidade. Na verdade esta técnica permite a criação de microssistemas de tutela da pessoa humana aumentando ainda mais a proteção da personalidade.

Em sentido parecido Enéas Costa Garcia (2007, p. 161-163) também admite o caráter de complementaridade entre o direito geral da personalidade e os direitos típicos instituídos pelo legislador. Para este autor, com a positivação de direitos específicos, pretende-se aumentar ou condicionar a proteção legal e ainda assegurar diversas formas de proteção jurídica destes direitos.

Deste modo não haveria qualquer tipo de incompatibilidade entre a regulamentação típica e a cláusula geral instituída pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Na verdade, para o autor, a aplicação única da técnica de fracionamento dos direitos da personalidade limita a proteção da pessoa humana no ordenamento, por outro lado a aplicação única da cláusula geral tornaria a proteção mais "lenta", isso porque todo e qualquer tipo de violação necessitaria de uma concretização desta.

Muito embora tenha sido dito que o fracionamento dos direitos da personalidade levaria a uma classificação infinita destes direitos, é possível que dentro desta classificação haja direitos que tenham o seu conteúdo e alcance mais delineados, merecendo assim uma tutela mais específica dentro de parcelas da personalidade humana.

Dessa maneira, conforme Garcia (2007, p. 164-170), o direito geral da personalidade atua como um direito fonte do qual decorre a existência de outros direitos da personalidade [20] quando mais delineados pela doutrina e jurisprudência. Contudo, havendo tipificação de algum direito especial da personalidade, o direito geral será aplicado subsidiariamente. Opostamente, se a violação da personalidade não encontrar resguardo nos direitos positivados especificamente, o direito geral atuará em sua plenitude. Isso ocorre porque havendo um dispositivo específico a norma geral não pode ser aplicada, caso contrário a normal especial não teria necessidade de existir.

Esta atividade pressupõe que o direito especial esteja em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa, até porque, havendo conflito entre este e outros direitos especiais, deve prevalecer a cláusula geral por ser de hierarquia superior.

Capelo de Souza (1995, p. 559-560) também ressalta a relação de complementaridade e subsidiariedade do direito geral da personalidade com os direitos específicos e autonomamente reconhecidos pela lei. Argumenta que os direitos específicos apenas dizem respeitos a manifestações parcelares da personalidade humana e obviamente não esgotam a proteção desta. Deste modo sendo o bem da personalidade mais dinâmico, extenso e evolutivo do que os direitos especiais, a cláusula geral teria a função de completar a proteção da pessoa no ordenamento jurídico.

Não se vê no Brasil uma impossibilidade de coexistência entre o direito geral da personalidade e os direitos reconhecidos autonomamente no ordenamento. Isso porque, conforme a relação de especialidade apresentada, o direito geral apenas incide na proteção da pessoa quando os direitos especiais não forem suficientes na tutela do ser humano.

É ilógica e inútil a existência de uma lei especial quando a lei geral sempre se sobreporá à aplicação daquela. No mesmo sentido é a relação de convivência entre o direito geral da personalidade e os direitos especiais.

Da mesma maneira que Ingo Sarlet (2010, p. 118) crítica a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana quando na verdade seriam casos de aplicação específica de direitos fundamentais, seria criticável a aplicação do direito geral da personalidade quando na verdade, por exemplo, os direitos à imagem e à vida privada que deveriam ser aplicados. Para o autor, nem sempre existe razão para se invocar o princípio da dignidade da pessoa humana quando existem os direitos fundamentais específicos para o caso, entretanto não se pode relegar o princípio da dignidade da pessoa humana como uma aplicação subsidiária.

No caso do direito geral da personalidade a aplicação também não pode ser meramente subsidiária, isso em razão da necessidade de conformação do direito especial com o direito geral da personalidade e consequentemente com o princípio da dignidade da pessoa. Este estudo de conformação visa delimitar o próprio limite do direito específico e também conferir-lhe legitimidade constitucional, isso porque havendo conflito entre o direito especial e a dignidade da pessoa humana, esta por ser hierarquicamente e axiologicamente superior deverá prevalecer.


9. CONCLUSÃO

A dignidade humana constitui a base do direito geral da personalidade, pois é dela que deriva a proteção una do desenvolvimento da personalidade, inerente a toda pessoa, erigindo proteção à integridade psicofísica da pessoa inserida no campo social [21]. Visto que tudo aquilo que fundamenta também limita, o que não derivar da proteção psíquica e física da pessoa e do relacionamento desta com a sociedade frustrando o seu livre desenvolvimento não irá encontrar guarida no direito geral da personalidade.

Neste diapasão, o direito geral da personalidade não é ilimitado, pois "a multiplicação desarrazoada de direitos da personalidade acaba por desvalorizar o instituto." (GARCIA, 2007, p. 149).

Reconhecer o princípio da igualdade como substrato normativo derivado da dignidade da pessoa humana implica em aceitar outras pessoas que detêm iguais valores e direitos. Dessa maneira, a dignidade humana se apresenta como um segundo limite, haja vista que o direito geral da personalidade tutela todas as manifestações da pessoa salvo quando estas podem entrar em conflito com as expressões da personalidade de outra pessoa, casos em que serão utilizados critérios de resolução de conflitos entre normas, seja em razão de princípios ou regras.

Por fim, é preciso que sejam adotas as premissas do direito civil-constitucional aqui apresentadas para possibilitar a concretização do princípio da dignidade humana no campo das relações privadas, aceitando a Constituição como ato normativo incidindo em todas as manifestações do ordenamento jurídico.


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Notas

  1. Clara Maria Lindoso e Lima (2005, p. 108) também entende que a construção clássica dos direitos subjetivos ligados ao patrimonialismo não encontra mais guarida na teoria dos direitos da personalidade, isso porque o objetivo destes são a proteção da pessoa humana e sua dignidade. Dessa maneira deve-se levar em conta o comprometimento social e os aspectos existenciais do ser humano.
  2. Neste sentido, ressalta Maria Celina Bodin de Moraes (2009, p. 18) que "(...) tampouco há que se falar apenas em ‘direitos’ (subjetivos) da personalidade, mesmo se atípicos, porque a personalidade humana não se realiza somente através de direitos subjetivos, mas sim através de uma complexidade de situações jurídicas subjetivas, que podem se apresentar, como já referido, sob as mais diversas configurações: como poder jurídico, como direito potestativo, como interesse legítimo, pretensão, autoridade parental, faculdade, ônus, estado – enfim, como qualquer circunstância juridicamente relevante.
  3. Para Enéas Costa Garcia (2007, p. 34) os direitos inatos da personalidade estão ligados ao jusnaturalismo, defendendo que estes são inerentes à pessoa e anteriores ao próprio ordenamento jurídico positivo, devendo este apenas reconhecer aqueles.
  4. Para Adriano de Cupis (1961, p. 48) "(...) a intransmissibilidade reside na natureza do objecto, o qual, como já dissemos, se identifica com os bens mais elevados da pessoa, situados, quando a ela, em um nexo que pode dizer-se de natureza orgânica. Por força deste nexo orgânico o objecto é inseparável do originário sujeito (...). Nem o ordenamento jurídico pode consentir que o indivíduo se despoje daqueles direitos que, por corresponderem aos bens mais elevados, têm caráter de essencialidade."
  5. Art. 81
  6. (Limitação voluntária dos direitos da personalidade)

    Toda limitação voluntária ao exercício dos direitos da personalidade é nula, se for contrária aos princípios da ordem pública.

    A limitação voluntária, quando legal, é sempre revogável, ainda que com obrigação de indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.

  7. Acompanha este entendimento as lições de Edson da Silva (2003, p. 28-29) ao dizer que: "São admitidos, enfim, quaisquer negócios jurídicos que não ofendam a lei ou os valores sociais vigentes, que como já dissemos integram o sistema jurídico, que implicitamente os recepciona com todas as suas mutações. (...) à falta de normas legais, o poder de disposição em relação a estes bens [direitos da personalidade] terá por limite a ordem pública e os bons costumes, respeitados os valores éticos e morais de cada sociedade."
  8. Existem autores, a exemplo de Adriano de Cupis (1961, p. 53), que não fazem esta diferenciação, tratando a renúncia sobre o aspecto perene deste ato de disposição. Neste sentido, "(...) a personalidade jurídica não pode ser esvaziada, por acto de renúncia, da parte mais importante do próprio conteúdo, pois que a norma jurídica, ao atribuir os direitos da personalidade, tem carácter de norma de ordem pública, irrevogável." Não afasta-se nesse trabalho a impossibilidade de renúncia total dos direitos da personalidade, apenas abre-se uma alternativa para a realização da autodeterminação da pessoa através de um renúncia temporária ao exercício dos direitos da personalidade.
  9. "(…) a renúncia ao exercício de um direito da personalidade, no plano valorativo, é a afirmação da autonomia da vontade da pessoa natural." (STANCIOLI, 2010, p. 98).
  10. O próprio Adriano de Cupis (1961, p. 27-28) admite a existência de direitos da personalidade públicos e direitos privados. Os primeiros incluiriam principalmente os direitos da liberdade civil, enquanto os segundo protegeriam a pessoa na medida em que os interesses tutelados fossem particulares.
  11. No mesmo sentido está a opinião de Lindoso e Lima (2005, p. 122) ao afirma que a personalidade humana é tão complexa que não seria possível protegê-la através da previsão expressa de todos os seus aspectos. Sendo a personalidade um valor, a sua tutela deve ser feita de forma una assim como é o valor da dignidade da pessoa humana.
  12. Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
  13. Nos dizeres de Szaniawski (2005, p. 137), "(...) o princípio da dignidade, sendo um princípio fundamental diretor, segundo qual deve ser lido e interpretado todo o ordenamento jurídico brasileiro, constitui-se na cláusula geral de proteção da personalidade, uma vez ser a pessoa natural o primeiro e último destinatário da ordem jurídica. O constituinte brasileiro optou por construir um sistema de tutela da personalidade, alicerçando o direito geral da personalidade pátrio a partir do princípio da dignidade da pessoa humana e de alguns outros princípios constitucionais fundamentais, espalhados em diversos Títulos, que garantem o exercício do livre desenvolvimento da personalidade humana."
  14. Direitos de personalidade
  15. Artigo 70.º

    (Tutela geral da personalidade)

    1.A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

    2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

  16. Entretanto em razão da abrangência de cada tema apontado pelo referido doutrinador, neste trabalho serão abordados somente os itens (a), (b) e (c) por sua maior relevância ao tema aqui delimitado.
  17. Argumentos baseados no princípio da dignidade da pessoa humana, por exemplo, podem ser utilizados tanto para justificar o suicídio e a eutanásia tanto para refutar-lhes a possibilidade. É por isso que "a dignidade humana não pode ser vista como uma mera proclamação discursiva, lida em uma dimensão de abstração." (FACHIN, 2006, p. 102).
  18. No mesmo sentido: "(...) sob esta nova ótica, a nota característica do ser humano seria o seu reconhecimento do próximo, com a capacidade de dialogar, e sua vocação espiritual." (GARCIA, 2007, p. 126).
  19. Nas palavras do autor (AZEVEDO, 2004, p. 22), "(...) a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em sequência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1. Respeito à integridade física e psíquica das pessoas; 2. Consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e 3. Respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária."
  20. Devemos esclarecer ao leitor, portanto, que quando for utilizada a expressão "dignidade humana" para nos referirmos ao princípio da dignidade da pessoa humana, essa expressão é utilizada no sentido individual e não global.
  21. Nas palavras de Szaniawski (2005, p. 182-83), "(...) as normas infraconstitucionais, em especial o art. 12 do CC, que devem ser lidas em conjunto com a Constituição, constitui uma cláusula geral infraconstitucional de tutela da pessoa humana, não se limitando à proteção da personalidade do homem unicamente naqueles direitos tipificados no art. 5º da Constituição, muito menos nos arts. 13 a 21 do CC. A tutela da personalidade do homem no direito brasileiro dá-se mediante um sistema misto. Realiza-se através da cláusula geral protetora da personalidade, tendo o legislador recepcionado a categoria do direito geral de personalidade ao lado de direitos especiais da personalidade tipificados na Constituição e em lei."
  22. Basicamente no mesmo sentido de quando se fala no princípio da dignidade da pessoa como fonte dos direitos fundamentais materiais.
  23. É possível perceber este caráter intersubjetivo da dignidade da pessoa humana tanto no princípio da solidariedade social da Maria Celina de Moraes quanto na definição de Ingo Sarlet ao fazer alusão à participação ativa e co-responsável da pessoa na vida em comunhão com os demais seres humanos. Fatores estes, indispensáveis para o livre desenvolvimento da personalidade.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PLETI, Ricardo Padovini; MOREIRA, Rodrigo Pereira. O direito geral da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana: estudo na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2854, 25 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18968. Acesso em: 25 abr. 2024.