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Evolução e classificação do controle de constitucionalidade, com ênfase ao controle difuso-concreto e sua abstrativização

Evolução e classificação do controle de constitucionalidade, com ênfase ao controle difuso-concreto e sua abstrativização

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa, de forma sucinta e não esgotadora, mostrar e descrever a evolução do controle de constitucionalidade, suas classificações e as devidas críticas, bem como sua simbiose e, em ênfase, mostrar os diversos meios processuais de controle difuso de constitucionalidade.


2. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1 FUNÇÃO E PRESSUPOSTOS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Tema corrente na doutrina hodierna, o controle de constitucionalidade é a base de todo o Estado de Direito, pois este garante a conformação de toda a atividade legislativa com o texto constitucional. O Estado é uno, assim, não pode, em princípio, haver contraditoriedades em seu sistema normativo, pois não é possível haver normas contraditórias. Assim, vários são os modos de conformação das normas no ordenamento jurídico, tais como os critérios resolutivos de antinomias, eis que as normas, dentro de um Estado nunca existem isoladamente [01]. O controle de constitucionalidade surge, portanto, como um instrumento de verificação da compatibilidade entre uma lei e a Constituição, de modo que esta, por ser a norma superior do ordenamento jurídico, serve como parâmetro de conformação de todas as leis [02].

Desta forma, a função precípua do controle de constitucionalidade é garantir a ordem e a coerência do sistema normativo, de modo que, partindo da supremacia e rigidez constitucional, haja conformidade entre as leis e seu fundamento de validade, que é a Constituição. Assim, a Constituição não pode ser considerada como mera "folha de papel" [03], cujo seguimento é optativo, sem valor vinculante, mas sim um documento normativo dotado de força e autonomia para, através do controle de constitucionalidade (instrumento) extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com seus preceitos. Trata-se, assim, de uma garantia de existência da própria Constituição, de modo que se possa assegurar a observância, aplicação, estabilidade e conservação da lei fundamental [04].

Os pilares do controle de constitucionalidade são basicamente dois: a supremacia e a rigidez constitucionais. A rigidez é vista na medida em que a Constituição tem maiores proteções quando de sua alteração do que as demais espécies normativas. A supremacia constitucional é tida na medida em que a Constituição encontra-se no ápice da pirâmide normativa, servindo de fundamento jurídico-positivo para todas as normas.

Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior [05], em razão da supremacia constitucional,

[...] todas as normas jurídicas devem compatibilizar-se, formal e materialmente, com a Constituição. Caso contrário, a norma lesiva a preceito constitucional, através do controle de constitucionalidade, é invalidada e afastada do sistema jurídico positivado, como meio de assegurar a supremacia do texto magno.

Por seu turno, Luís Roberto Barroso [06], ao conceituar rigidez constitucional, assevera que

Para que possa figurar como parâmetro, como paradigma de validade de outros atos normativos, a norma constitucional precisa ter um processo de elaboração diverso e mais complexo do que aquele apto a gerar normas infraconstitucionais. Se assim não fosse, inexistiria distinção formal entre a espécie normativa objeto de controle e aquela em face da qual se dá o controle. Se as leis infraconstitucionais fossem criadas da mesma maneira que as normas constitucionais, em caso de contrariedade ocorreria a revogação do ato anterior e não a inconstitucionalidade.

Portanto, o controle de constitucionalidade, cujos pressupostos lógicos são a supremacia e a rigidez constitucionais, é um instrumento assecuratório das normas constitucionais, de modo que todo o sistema legal deve obedecer aos seus preceitos.

2.2 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

O controle de constitucionalidade surge juntamente com a necessidade de a Constituição se tornar uma carta de garantia de direitos fundamentais de um Estado, bem como da observância, pelo próprio Estado, das normas garantistas existentes na Carta Magna. Ademais, não há que se afirmar categoricamente que o controle de constitucionalidade surgiu como em um passe de mágica, mas sim através de todo um desenvolvimento e aperfeiçoamento histórico.

De acordo com Dirley da Cunha Júnior [07], o controle de constitucionalidade remonta-se à antiguidade clássica,

[...] em especial à civilização ateniense, onde se distinguia entre os nómoi e o pséfisma. Em linguagem moderna, devemos reconhecer que os nómoi representavam as leis constitucionais da época, não só porque dispunham sobre a organização do Estado, mas também porque só podiam ser alterados por procedimentos especiais. Já o pséfisma apresentava-se como uma lei ordinária que, qualquer que fosse seu conteúdo, devia conformar-se, formal e materialmente, com os nómoi. O descompasso entre o pséfisma e os nómoi era resolvido em favor destes, em face de ser reconhecida superioridade. Tanto era assim, que os juízes atenienses, embora obrigados a julgar segundo os nómoi e segundo o pséfisma, não eram, contudo, obrigados a julgar segundo o pséfisma, quando este fosse contrário aos nómoi.

Todavia, atribui-se a maior importância histórica do controle de constitucionalidade difuso de constitucionalidade ao caso americano Marbury v. Madison [08], de 1803, em que se tem notícia, pela primeira vez, da utilização da Constituição como parâmetro interpretativo de atos e leis. A importância desse caso se dá na medida em que é no controle difuso que cada juiz é responsável por fiscalizar a constitucionalidade das leis no momento de sua aplicação.

Não pode ser soberano - escreve Corwin – um corpo criador de direito que está subordinado a outro corpo criador de direito. Não bastava, porém, afirmar a superioridade da constituição perante a lei: era necessário reconhecer a judicial review, ou seja, a faculdade judicial de controlo da inconstitucionalidade das leis. É a evolução que se concretiza, finalmente, com a sentença do juiz Marshall no caso Marbury v. Madison [09].

Assim, o caso Marbury v. Madison torna-se paradigmático no estudo de todo o controle de constitucionalidade, mais especificamente o controle difuso. Não poderia ser diferente no Brasil, que, após a Constituição Imperial de 1824 (que não previu qualquer forma de controle de constitucionalidade [10]), previu expressamente o controle difuso de constitucionalidade na Constituição de 1891, em seu artigo 59, §1º, corroborada com lições de Ruy Barbosa à época [11]. Dispunha o artigo que havia a possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal Federal quando se questionasse sobre a validade de leis ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais e a decisão do Tribunal do Estado que os considerasse válidos.

Desde lá até hoje há a previsão do controle difuso de constitucionalidade. A Constituição da República de 1988 previu a possibilidade desse controle de forma expressa, porém indiretamente, quando disciplinou, no artigo 102, III, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal julgar a inconstitucionalidade em Recurso Extraordinário [12].


3 DISTINÇÕES BÁSICAS

O advento do controle de constitucionalidade trouxe consigo, nas mais trabalhadas doutrinas e construções legais, a especialização e a criação de institutos para a efetiva proteção da Lei Fundamental. Assim, há que se fazer distinções no sentido de melhor elucidar a função de cada tipo específico de controle de constitucionalidade, com o fulcro de desenvolvimento técnico e profícuo do tema.

3.1 CONTROLE DIFUSO X CONTROLE CONCENTRADO X CONTROLE MISTO

É uma classificação da forma de controle de constitucionalidade levando em consideração a competência jurisdicional, ou seja, quais órgãos têm competência para apreciar a constitucionalidade de um ato ou dispositivo legal.

No controle difuso, também chamado de aberto ou judicial review [13], qualquer juiz ou tribunal pode exercer o controle de constitucionalidade. Esse controle, como visto, teve seu desenvolvimento maior nos Estados Unidos da América em 1803. No Brasil, foi adotado a partir da Constituição de 1891 e permanece existente até os dias atuais.

Conforme lição elucidativa de Luís Roberto Barroso [14], o controle difuso é exercido por todos os órgãos judiciais indistintamente,

[...] tanto de primeiro como de segundo grau, bem como por tribunais superiores. Por tratar-se de atribuição inerente ao desempenho normal da função jurisdicional, qualquer juiz ou tribunal, no ato de realização do Direito nas situações concretas que lhes são submetidas, tem o poder-dever de deixar de aplicar o ato legislativo conflitante com a Constituição. Já não se discute mais, nem em doutrina nem na jurisprudência, acerca da plena legitimidade do reconhecimento da inconstitucionalidade por juiz de primeiro grau, seja estadual ou federal.

O controle concentrado, por seu turno, concentra o poder de analisar a constitucionalidade em apenas um órgão, com exclusão de quaisquer outros. Foi criado por Hans Kelsen, quando da elaboração da Constituição da Áustria, em 1920. É, por isso, chamado, outrossim, de sistema austríaco ou europeu. No Brasil, esse tipo de controle surgiu através da Emenda Constitucional º 16, de 1965, que introduziu essa sistemática na Constituição de 1946.

Conforme José Joaquim Gomes Canotilho [15],

A concepção kelseniana diverge substancialmente da judicial review americana: o controlo constitucional não é propriamente uma fiscalização judicial, mas uma função constitucional autônoma que tendencialmente se pode caracterizar como função de legislação negativa. No juízo acerca da compatibilidade ou incompatibilidade (Vereinbarkeit) de uma lei ou norma com a constituição não se discutiria qualquer caso concreto (reservado à apreciação do tribunal a quo) nem se desenvolveria uma atividade judicial.

Parte da doutrina [16] também adiciona um terceiro modo de controle de constitucionalidade, chamado misto ou eclético, que nada mais é que a convivência harmônica do controle difuso e concentrado de constitucionalidade. O Brasil adotou esse tipo de controle de constitucionalidade, que consegue conciliar o controle concentrado (que se faz perante o Supremo Tribunal Federal via Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental; e perante os Tribunais de Justiça, no que atine às leis estaduais em face da Constituição Estadual) e o controle difuso, em que qualquer órgão ou juiz pode analisar a constitucionalidade de uma lei.

3.2 CONTROLE ABSTRATO X CONTROLE CONCRETO

Trata-se de classificação do controle de constitucionalidade levando em consideração a finalidade do controle de constitucionalidade.

O controle concreto de constitucionalidade surge a partir de um caso concreto, de uma lide proposta. Sua finalidade precípua é assegurar direitos subjetivos. Nessa esteira, a supremacia constitucional é secundária e reflexa, ou seja, trata-se de consequência da própria defesa do direito subjetivo proposto no caso concreto.

O controle abstrato de constitucionalidade, por sua vez, tem como objeto precípuo a lei em si. Ela não tem como finalidade assegurar direitos subjetivos, mas sim a força normativa da Constituição diante de leis inconstitucionais. Assim, há diretamente a proteção aos pressupostos constitucionais.

Segundo Gilmar Ferreira Mendes [17],

O controle concreto de normas tem origem em uma relação processual concreta, constituindo a relevância da decisão (Entscheidungserheblichkeit) pressuposto de admissibilidade. O chamado controle concentrado, por seu turno, não está vinculado a uma situação subjetiva ou a qualquer outro evento do cotidiano (Lebenvorgang).

3.3 PROCESSO OBJETIVO X PROCESSO SUBJETIVO

Essa diferenciação está relacionada à pretensão deduzida em juízo, ou seja, ao objeto da demanda proposta. No processo objetivo só se discute, como o nome sugere, direitos objetivos, ou seja, a própria relação entre normas gerais. Assim, pode-se dizer que o processo objetivo visa à proteção da ordem constitucional objetiva. Não há partes no processo, nem se pode dizer que há necessariamente uma lide, concebida esta como um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.

O processo subjetivo, por seu turno, é aquele em que se discute o direito e sua aplicação no caso concreto. O objetivo, assim, não é a proteção da ordem jurídica, mas sim a reparação da lesão a um direito concretamente violado.

3.4 QUESTÃO PRINCIPAL (PRINCIPALITER TANTUM) X QUESTÃO INCIDENTE (INCIDENTER TANTUM)

Primeiramente deve-se observar que, em um processo judicial, seja ele qual for, qualquer questão levantada no Poder judiciário tem dois aspectos, a questão incidente e a questão principal. A primeira é aquela que serve ao magistrado como fundamento para se examinar outra, é, por isso, analisada incidenter tantum; a segunda é o mérito, que o magistrado deve solucionar para o caso, que é analisada principaliter tantum.

Para se examinar a questão principal, deve o magistrado analisar todas as questões incidentes antes, pois somente a solução das questões principais pode ser objeto da coisa julgada, ou seja, é insuscetível de ser modificada.

Asseveram Didier e Cunha [18] que,

Questão incidente é aquela incidenter tantum; esta forma de resolução não se presta a ficar imune pela coisa julgada. O magistrado tem de resolver a questão como etapa necessária do seu julgamento, mas não a decidirá. São as questões cuja solução comporá a fundamentação da decisão. Sobre essa resolução, não recairá a imutabilidade da coisa julgada. Os incisos do art. 469 do CPC elucidam muito bem o problema: não fazem coisa julgada os motivos, a verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. Há questões, no entanto, que devem ser decididas, não somente conhecidas. São as questões postas para uma solução principaliter tantum: compõem o objeto do juízo. São chamadas de questões principais. Somente em relação a essas é possível falar-se de coisa julgada. É o que se retira do art. 468 do CPC: a decisão judicial tem força de lei, nos limites da lide deduzida e das questões decididas.

Assim, no que tange ao controle de constitucionalidade, o controle por via incidental do ato normativo só pode ser invocado no decurso de uma ação submetida à apreciação dos tribunais.

3.5 FUSÃO E CONFUSÃO DAS DISTINÇÕES NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

Em regra o controle concentrado de constitucionalidade é realizado em processo objetivo e possui caráter abstrato, cuja inconstitucionalidade ou constitucionalidade da norma é questão principal da demanda (principaliter tantum). O controle difuso, por seu turno, é caracterizado por ser um processo subjetivo e possuir caráter concreto, valendo apenas para as partes, analisado como questão incidental (incidenter tantum).

Observa-se, todavia, que pode haver controle concentrado de constitucionalidade que analise um caso concreto, como ocorre com a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva. Pode haver, outrossim, como serão observadas no decorrer do presente trabalho, decisões que ocorram em controle difuso de constitucionalidade que possuam uma eficácia erga omnes, funcionando de modo abstrato (é o que a doutrina vem denominando de "abstrativização do controle difuso de constitucionalidade").

A grande distinção que pode ser feita em sede de controle de constitucionalidade não se restringe ao órgão que tem a competência para prolatar a decisão, nem mesmo ao grau de abstração que tal decisium possa vir a conter (apesar de tais distinções serem bastante pertinentes). O que, de fato, diferencia os modos de verificação de constitucionalidade de uma norma é o meio de cognição de tais questões no processo.

Normalmente relaciona-se o controle difuso ao controle concreto de constitucionalidade. São, no entanto, coisas diversas. O controle é difuso porque pode ser feito por qualquer órgão jurisdicional; ao controle difuso contrapõe-se o concentrado. Chama-se de controle concreto. Porque feito a posteriori, à luz das peculiaridades do caso; a ele se contrapõe o controle abstrato, em que a inconstitucionalidade é examinada em tese, a priori. Normalmente o controle abstrato é feito de forma concentrada, no STF, por intermédio da ADIN, ADC ou ADPF, e o controle concreto, de forma difusa. O controle difuso é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é questão incidente que será resolvida na fundamentação da decisão judicial; assim, a decisão a respeito da questão somente tem eficácia inter partes. O controle concentrado, no Brasil, é feito principaliter tantum, ou seja, a questão sobre a constitucionalidade da lei compõe o objeto litigioso do processo e a decisão a seu respeito ficará imune pela coisa julgada material, com eficácia erga omnes [19].

Desta forma, o controle difuso apenas pode ser realizado como questão incidental (incidenter tantum), ou seja, tal apreciação não é o objeto da demanda, mas apenas uma questão incidente ao processo, necessária para que seja apreciado e decidido o mérito do processo (questão principal – principaliter tantum). O controle concentrado, por seu turno, tem como objeto precipuamente a discussão da conformação da lei com a Constituição, ou seja, a questão principal é a própria constitucionalidade ou não da norma.

Tais distinções não ocorrem apenas no Brasil, mas em países que adotam os controles difuso e concentrado de constitucionalidade. Desta forma, por exemplo, Canotilho [20] certifica que o controle por via incidental

[...] anda geralmente associado ao controlo difuso. O incidente de inconstitucionalidade pode suscitar-se em qualquer tribunal para efeitos de desaplicação da norma inconstitucional ao caso concreto. Mas é incorrecto dizer-se hoje que o controlo por via incidental se identifica com o controlo difuso. Como irá ver-se, em Portugal, o controlo difuso pode conduzir a um controlo concentrado através do Tribunal Constitucional. Notros sistemas, o controlo concentrado pressupõe também o incidente da inconstitucionalidade, embora aqui o juiz (ao contrário do controlo difuso) se limite, como tribunal a quo, a suspender a acção fazendo subir a questão da inconstitucionalidade para o tribunal Constitucional (ex.: sistema alemão, sistema italiano).


4 INSTRUMENTOS PROCESSUAIS DO CONTROLE DIFUSO

4.1 CONHECIMENTO EX OFFICIO DA INCONSTITUCIONALIDADE PELO JUIZ

O controle difuso de constitucionalidade permite que qualquer juízo ou tribunal considere inconstitucional lei ou ato normativo do Poder Público, independentemente de requerimento, com efeitos para as partes.

Conhecimento ex officio, ou de ofício, significa que algumas questões, processuais ou substanciais, podem ser conhecidas independentemente de requerimento de qualquer das partes que litigam no processo. Assim, a inconstitucionalidade é uma questão que pode ser conhecida ex officio pelo juiz. Esse reconhecimento é uma objeção substancial, pois, como dito, independe de requerimento para que o juiz possa apreciar.

A despeito de grande parte da doutrina afirmar que o juiz pode conhecer de ofício de alguma questão sem sequer intimar as partes para se manifestarem, afigura-se correta, data vênia, a corrente segundo a qual tal conhecimento ex officio não significa que o juiz possa conhecer dessa questão sem contraditório. Se o juiz pode trazer a questão nova ao processo, ele deve também submetê-la ao contraditório, sob pena de decidir questão sobre a qual ninguém sequer se manifestou. Diz respeito ao princípio da cooperação, em que há dialeticidade das partes na formação do processo, de modo que nenhuma delas possa ser surpreendida [21].

Deve, portanto, antes de decidir, intimar as partes para que se manifestem.

Poder decidir ex officio não é poder decidir sem contraditório, mas é poder suscitar a questão de ofício no processo. É uma postura cooperativa do magistrado.

Isso também ocorre com a inconstitucionalidade. O juiz, ao conhecer incidentalmente da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público deve, em uma postura de cooperação e boa-fé, intimar as partes para que elas se manifestem acerca da inconstitucionalidade desse dispositivo.

4.2 INCIDENTE DE DECRETAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EM TRIBUNAL (ARTS. 480 a 482, CPC)

O Incidente de Decretação de Inconstitucionalidade tem seu fundamento de validade retirado do art. 97 da Constituição da República de 1988 e está regulada nos artigos 480 a 482 do Código de Processo Civil brasileiro. Tal incidente visa à declaração, em controle difuso, da inconstitucionalidade por tribunais.

De acordo com o artigo 97 da Constituição da República de 1988, "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público".

Portanto, os tribunais somente podem declarar a inconstitucionalidade de norma ou ato normativo através da maioria absoluta dos membros do plenário ou do órgão especial (órgão maior). Trata-se da cláusula de reserva de plenário, ou, como denomina a doutrina norte-americana: regra do full bench. [22] Caso o tribunal desobedeça a essa regra, não se manifestando pela maioria absoluta de seus membros, haverá uma incompetência absoluta, haja vista que a natureza jurídica do artigo 97 da Carta Magna é de regra de competência funcional.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que nem mesmo a não aplicação da norma constitucional pelos Tribunais pode ser realizada sem que haja deliberação nos moldes do artigo 97 da Constituição da República. Nesse sentido encontra-se o enunciado 10 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal: "Viola a cláusula de reserva do plenário (art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de leio ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência no todo ou em parte".

Tal fato não impede que o juiz de primeiro grau declare incidentalmente a inconstitucionalidade de uma norma, apenas se dirige e restringe a atuação do tribunal, de forma que tal declaração seja manifestação de um pensamento uniforme do tribunal que a profere, para, deste modo, evitar decisões internas contraditórias.

Caso haja uma ação tramitando no tribunal e seja suscitada a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator do processo em trâmite no tribunal, com a prévia manifestação do Ministério Público, submeterá a questão para que a turma ou câmara (órgão menor) possa analisar preliminarmente acerca da possível inconstitucionalidade. Dispõe nesse sentido o artigo 480 do Código de Processo Civil: "arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo".

Se a turma ou câmara entender que o dispositivo é constitucional, não haverá necessidade de encaminhamento dos autos do processo para o órgão especial ou plenário, pois a lei possui presunção de constitucionalidade, bem como o dispositivo constitucional só exige do pleno a decretação da inconstitucionalidade. Assim, se a alegação de inconstitucionalidade for rejeitada, prosseguirá o órgão menor o julgamento; se for acolhido o incidente, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao órgão maior, tudo nos termos do artigo 481 do Código de Processo Civil.

Lavrado o acórdão e submetida a questão ao órgão maior, abre-se prazo para a manifestação de terceiros, conforme o disposto no artigo 482, §§2º e 3º, do CPC. Aqui cabe uma reflexão importante. Trata-se, em verdade, de possibilidade de participação de amicus curiae (órgãos e entidades interessados no feito, que podem ajudar o julgador na elucidação de questões, bem como que legitimam a atuação jurisdicional) em controle difuso de constitucionalidade. A intervenção de amicus curiae é típica de controle concentrado de constitucionalidade, conforme de depreende da análise do artigo 7º, §2º, da Lei 9868/99 (que trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade) e artigo 6º, §1º, da Lei 9882/99 (que disciplina a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

Desta forma, ao permitir a participação de amicus curiae em controle difuso de constitucionalidade, o legislador sinaliza a importância do precedente a ser criado com a declaração ou não da inconstitucionalidade fruto do incidente, fazendo com que o próprio tribunal se vincule à decisão, bem como os demais órgãos jurisdicionais inferiores.

Do mesmo modo, percebe-se a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade no presente incidente na medida em que sua análise se dá desprendida do caso concreto em que se originou. Ao se decretar o incidente de inconstitucionalidade, este ganha autonomia para o posterior julgamento pelo órgão maior, de modo que a natureza deste incidente torna-se objetiva, ou seja, sem partes interessadas e julgamento de direitos subjetivos, como ocorre no julgamento das ações de controle abstrato de constitucionalidade. Apesar de o decisium ser examinado incidenter tantum, ele não será válido apenas àquele processo, mas, por força da formação do precedente judicial, ele será paradigma para todos os demais casos em que o tribunal seja posto a manifestar-se. Tal corolário corrobora a intervenção de amicus curiae no incidente, pois deve haver uma decisão madura, em que haja a participação de seguimentos da sociedade, pois o reflexo dela será erga omnes, influenciando todas as futuras ações que envolvam similitude fático-jurídica com o leading case [23].

Pois bem. Julgado o incidente pelo órgão maior e prolatado o acórdão, os autos retornam ao órgão menor, de modo que este possa agora, resolvido o incidente, enfrentar a questão principal.

Constata-se, portanto, que o fruto dessa decisão decorre de manifestação de mais de um órgão jurisdicional, pois o órgão maior decide o incidente e o órgão menor decide a questão principal. Trata-se da decisão subjetivamente complexa, ou seja, aquela que, apesar de ser uma só decisão, é corolário da manifestação de dois órgãos jurisdicionais.

Cumpre dizer que, uma vez resolvido o incidente, este cria uma norma geral do caso concreto (precedente judicial), de modo que, nos casos futuros que guardem similitude com o já julgado, não é mais preciso encaminhar a mesma questão ao órgão maior. Neste sentido encontra-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal [24], senão veja-se:

[...] versando a controvérsia sobre o ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República – o Supremo Tribunal Federal -, descabe o deslocamento previsto no art. 97 do referido Diploma Maior. O julgamento de plano pelo órgão fracionado homenageia não só a racionalidade, como também implica a interpretação teleológica do art. 97 em comento, evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade. A razão de ser do preceito está na necessidade de evitar-se que órgãos fracionados apreciem, a pecha de inconstitucionalidade argüida em relação a um certo ato normativo.

Ademais, em lição magistral, Didier e Cunha [25] asseveram outros casos em que a remessa do órgão fracionário ao órgão maior é desnecessária. Vale à pena a transcrição integral, senão veja-se:

a)Se o órgão fracionário rejeitar a alegação de inconstitucionalidade, pois o quorum privilegiado é exigido apenas para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei, e não da sua constitucionalidade, que, aliás, é presumida;

b)Em razão da natureza do processo objetivo, fica dispensada a instauração de um novo incidente para decidir questão que já fora resolvida anteriormente pelo mesmo tribunal ou pelo STF (art. 481, par. ún. CPC);

c)Não é preciso suscitar o incidente se a causa já estiver tramitando no órgão especial do tribunal pleno. Imagine-se, por exemplo, um mandado de segurança impetrado, originariamente no tribunal de justiça contra governador de Estado, tendo como causa de pedir a inconstitucionalidade de determinado ato ou norma. Em muitos tribunais, é o pleno ou o órgão especial que julga esse mandado de segurança originário. Nesse caso, já sendo o julgamento da causa de competência do pleno ou do órgão especial, ocioso instaurar-se o incidente de inconstitucionalidade, devendo a causa ser julgada desde logo. Pode ocorrer, em casos assim, uma situação interessante: mesmo acolhido o pedido por maioria, a parte autora resta derrotada. Suponha-se que o órgão especial seja composto de 15 (quinze) membros. Deve, portanto, a inconstitucionalidade ser reconhecida por, pelo menos, 8 (oito) votos, ainda que a composição do órgão, no momento do julgamento, não esteja completa. Imagine-se, ainda, que estejam presentes, apenas, 13 (treze) membros, havendo a ausência justificada de 2 (dois) deles. Se o julgamento for proferido por maioria de votos, num escore de 7 (sete) a 6 (seis), a parte, mesmo a votação sendo-lhe formalmente favorável, não venceu. Isso porque, sendo a causa de pedir a inconstitucionalidade de ato ou norma, é preciso que tal inconstitucionalidade seja reconhecida por, pelo menos, 8 (oito) votos. Nessa hipótese ora aventada, conquanto haja votação majoritária para o impetrante, não se alcançou o quorum mínimo para a declaração de inconstitucionalidade, devendo ser tida como improcedente a pretensão processual.


5 CONCLUSÃO

O controle de constitucionalidade é um instrumento de garantia da ordem jurídica. Através dele se pode controlar os atos que não guardam compatibilidade formal ou material com a Carta Maior. Tal controle tem como pressupostos a supremacia e a rigidez constitucionais. Ele vem passando por muitas alterações no quadro de proteção constitucional brasileiro. Especialmente no que tange ao controle difuso de constitucionalidade, percebe-se que o reconhecimento de uma inconstitucionalidade ultrapassa os limites subjetivos da demanda, passando a ter uma eficácia contra todos.

Perpassando a evolução do controle de constitucionalidade, compreende-se que a jurisdição constitucional exercida pelos tribunais, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, vem ganhando cada vez mais força. Primeiramente a própria criação do instituto do controle concentrado de constitucionalidade. Posteriormente, a consequente e frequente abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, de modo que as decisões que reconhecem incidenter tantum a inconstitucionalidade passam a suplantar as partes envolvidas no processo.

Institutos como o reconhecimento da inconstitucionalidade de ofício pelo juiz e o incidente de inconstitucionalidade julgado por tribunais também mostram que o Poder Judiciário como um todo é um importante agente na uniformização e vigilância do sistema jurídico-constitucional, de modo que se ampliou em muito o poder atribuído a tais órgãos, no sentido do reconhecimento de patentes inconstitucionalidades em leis e atos normativos, gerando, por corolário, segurança jurídica e isonomia no tratamento de demandas similares.


6 REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 168.149, Segunda Turma, Rel. Marco Aurélio, Publicado em 4 de agosto de 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28168149.NUME.%20OU%20168149.ACMS.%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 20 abr. 2011.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. Ed. Coimbra: Almedina, 2008.

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito constitucional. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2008.

DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. v.3. 7.ed. Salvador: JUSPODIVM, 2009.

LASSALLE, Ferdinand. A essência daconstituição. Rio de. Janeiro : Liber Juris,1985.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. SÃO PAULO: Saraiva, 2010.

REIS, Renan Barros dos. As instâncias de validade da norma jurídica e a pluralidade doutrinária. Scientia et Spes. Teresina, ano 7, n. 8, 2008.


Notas

  1. REIS, Renan Barros dos. As instâncias de validade da norma jurídica e a pluralidade doutrinária. Scientia et Spes. Teresina, ano 7, n. 8, 2008. p. 308-309.
  2. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 1.
  3. Termo utilizado por LASSALLE, Ferdinand. A essência daconstituição. Rio de. Janeiro : Liber Juris,1985.
  4. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. Ed. Coimbra: Almedina, 2008. p. 887-888.
  5. CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de direito constitucional. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 256.
  6. BARROSO, Op. Cit, p. 2.
  7. CUNHA JÚNIOR, Op. Cit. p. 260.
  8. Acerca de todo o procedimento ocorrido no caso, ver BARROSO, Op. Cit. p. 3-10.
  9. CORWIN, Edward Samuel. apud. CANOTILHO, Op. Cit. p. 898.
  10. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. SÃO PAULO: Saraiva, p. 1033
  11. BARBOSA, Ruy apud BARROSO, Op. Cit., p. 62: "A redação é claríssima. Nela se reconhece, não só a competência das justiças da União, como a das justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Somente se estabelece, a favor das leis federais, a garantia de que, sendo contrária à subsistência delas a decisão do tribunal do Estado, o feito pode passar, por via de recurso, para o Supremo Tribunal Federal. Este ou revogará a sentença, por não procederem as razões de nulidade, ou a confirmará pelo motivo oposto. Mas, numa ou noutra hipótese, o princípio fundamental é a autoridade reconhecida expressamente no texto constitucional, a todos os tribunais, federais, ou locais, de discutir a constitucionalidade de leis da União, e aplicá-las, ou desaplicá-las, segundo esse critério.
  12. BARROSO, Op. Cit, p. 13.
  13. CANOTILHO, Op. Cit, p. 898.
  14. BARROSO, Op. Cit, p. 82.
  15. CANOTILHO, Op. Cit, p. 898-899.
  16. Por todos, CUNHA JÚNIOR, Op. Cit. p. 296.
  17. MENDES. Op. Cit. p. 1065-1066.
  18. DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil. v.3. 7.ed. Salvador: JUSPODIVM, 2009, p. 560-561.
  19. DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Op. Cit. p. 344.
  20. CANOTILHO. Op. Cit. p. 899.
  21. Nesse sentido: DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil. 12. ed.v. 1. Salvador: Juspodivm, 2010.
  22. DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Op. Cit. p. 569.
  23. Neste sentido, DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Op. Cit. p. 571.
  24. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 168.149, Segunda Turma, Rel. Marco Aurélio, Publicado em 4 de agosto de 1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28168149.NUME.%20OU%20168149.ACMS.%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 20 abr. 2011.
  25. DIDIER JÚNIOR; CUNHA. Op. Cit. p. 571-572.

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REIS, Renan Barros dos. Evolução e classificação do controle de constitucionalidade, com ênfase ao controle difuso-concreto e sua abstrativização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2858, 29 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19003. Acesso em: 19 abr. 2024.