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A força criadora da jurisprudência.

Reconhecimento da união homoafetiva no Brasil à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: tema em discussão no STJ

A força criadora da jurisprudência. Reconhecimento da união homoafetiva no Brasil à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: tema em discussão no STJ

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A lei não proíbe – ao contrário, os direitos, tanto entre os casais homoafetivos quanto entre os heterossexuais, são garantidos a partir da interpretação principiológica da Constituição Federal.

"É função do direito acompanhar a evolução dos tempos e na ausência de leis que venham a dirimir as questões homossexuais apresentadas, sejam elas, entre homens ou entre mulheres, formar, através da jurisprudência, uma regulamentação da matéria, de acordo com as normas gerais do ordenamento jurídico." (Agravo de Instrumento n. 59907596 – 8ª Câmara Cível – Porto Alegre – RS – Des. Breno Moreira Mussi – Relator).

"Na base de todo fato social existe um interesse merecedor de tutela. Dito interesse independe da orientação sexual de seus titulares, pois todos têm direito à vida e à proteção da saúde, da integridade física e da propriedade. Enquanto por injustificável omissão legiferante, não forem disciplinadas as novas estruturas familiares que floresceram independentemente da identidade sexual do par, ninguém, muito menos os operadores do Direito, pode fechar os olhos a esta nova realidade. (...) A garantia da cidadania passa pela garantia da expressão da sexualidade, e a liberdade de orientação sexual insere-se como uma afirmação dos direitos humanos." (Maria Berenice Dias, União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2.000, p. 15 e 16).

SUMÁRIO:1. BREVE PANORAMA HISTÓRICO; 2. CONCEITOS OU PRECONCEITOS; 3. POLÊMICA E DESMISTIFICAÇÃO; 4. EXTENSÃO DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS; 6. FONTES BIBLIOGRÁFICAS; 7. NOTAS.


1.BREVE PANORAMA HISTÓRICO

É cediço que a relação homoafetivasempre existiu na história da humanidade, mesmo entre os povos selvagens, assim como nas antigas civilizações, com os romanos, egípcios, gregos e assírios. Entre outros povos chegou a ser relacionada à religião e a carreira militar, pois a pederastia era atribuída aos deuses Herus e Set, que representavam a homossexualidade e as virtudes militares entre os cartagineses, dórios, citas e mais tarde os normandos.

O cientista inglês George V. Hamilton pesquisou o comportamento dos macacos e concluiu que as relações homoafetivas estão presentes não só entre os primatas, mas, também, observa-se a prática do homossexualismo em inúmeros animais mamíferos.

As relações homoafetivas permearam a história da humanidade alternando papéis, como ocorreu na Grécia antiga, onde teve sua maior expressão, pois a prática era estimulada e o relacionamento entre homens era considerado mais nobre e de melhor estética do que o heterossexual; inclusive, a arte e poesia grega de Safo (lésbica da época) idealizava e exaltava o amor lírico entre iguais, por isso a mitologia grega contém diversas histórias de amor de gays e lésbicas. Platão também escreveu muito sobre o assunto.

Com o advento do Cristianismo, a relação homoafetiva passou a ser encarada como anomalia psicológica, sendo considerada um vício baixo, repugnante, inclusive, tipificada como crime entre os ingleses, até a década de 60. Outras denominações religiosas (Presbiterianismo, Luteranismo etc.) vieram contribuir, ainda mais, para que a sociedade da época adotasse uma visão preconceituosa acerca das relações homoafetivas.

Aliada às legislações dos séculos XII a XIII, a Santa Inquisição (por Gregório IX, em 1.231) penalizava severamente, até mesmo com a morte, as pessoas inclinadas à prática homossexual. Posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, foram criadas "organizações" homossexuais – ‘tribalistas’ ou ‘subculturais’ – verdadeiras redes ou guetos protegidos, através dos quais os ‘sodomitas’ intercambiavam experiências, idéias e afetos, protegendo-se das severas penas que lhes eram impostas pela legislação remanescente da ordem medieval.

Na idade média, segundo alguns historiadores, a relação homoafetivafloresceu nos mosteiros e acampamentos, inclusive a cidade-estado de Esparta atribuía ao amor entre jovens e homens um aspecto permanente e importante em seu exército; seguindo essa mesma linha de comportamento, a casta guerreira do Japão feudal (os samurais) refletia em poemas e histórias o amor homossexual da época.

No período Renascentista, segundo relatos de alguns historiadores, vários intelectuais da época como o pintor Miguel Ângelo e Francis Bacon cultivaram paixões homossexuais. A relação homoafetiva também era comum entre as mulheres, inclusive entre mulheres casadas e adolescentes, atingindo percentuais bem próximos dos homens, o que não difere da atualidade.

Apesar desse incentivo aos relacionamentos homossexuais entre militares japoneses no período da Idade Média, o que se observa na atualidade é justamente o contrário. No exército americano predomina entre os soldados o preconceito e, por conseqüência, o extermínio dos homossexuais de quepe; citemos o caso ocorrido, em julho de 1999, em uma base militar do estado americano de Kentecky, onde o recruta Barry Winchel, então, com 21 anos, foi assassinado por dois companheiros de quartel, porque ele era homossexual e namorava um transexual, conhecido por Calpernia Sarah Adams, na época com 29 anos. Mas, não se trata de um caso isolado, visto que em 1997 foram registrados 187 casos de agressão contra gays nos quartéis dos EUA. No ano seguinte as violências mais que dobraram. Foram reportados 400 casos de ataques a homossexuais. [01]

Não só nos quartéis paira a discriminação em relação aos homossexuais, mas também nos presídios é notória a perseguição. O cabeleireiro Marcos Pega, de 45 anos de idade, preso pela polícia de São Paulo por guardar em casa três cigarros de maconha, foi escolhido para ser espancado pelos colegas de cela do presídio durante uma rebelião só porque era gay. [02]

É inevitável que homens e mulheres não pratiquem relações homossexuais, quando mantidos em regime de confinamento em lugares isolados do resto do mundo, mesmo que em caráter temporário, como mosteiros, acampamentos militares, presídios, haréns, internatos, programas de TV (BBB, por exemplo).

Apesar da forma mais aberta que vem se tratando as relações homoafetivas através dos meios de comunicação disponíveis, a sociedade continua a não aceitar tão controvertida questão, ainda mais quando se trata de um membro da sua própria família. Isto demonstra que as pessoas ainda estão enraizadas por princípios morais e religiosos.

Rememore-se, em São Paulo, um grupo especializado em combater homossexuais, denominado os carecas do ABC, matou a chutes o adestrador de cães, Edson Neris da Silva, de 35 anos, sob a mesma justificativa de que Edson era homossexual e constituía um mal à sociedade. [03]

Corrobora, nesse sentido, a reportagem de capa do Jornal O Popular [04], que veiculou o recente caso de homicídio da adolescente Adriele, 16 anos, assassinada pela família da própria namorada.

Como bem colocou Maria Berenice Dias, em sua obra "União Homossexual, o Preconceito e a Justiça": "Infelizmente, a sociedade de um modo geral continua a relegar à marginalidade e a rotular de atentatório à moral e aos bons costumes o que ousa se afastar do que é aceito como ‘normal’ - sinônimo de certo, justo e bom. Essa postura discriminatória e preconceituosa contribui para que não só o legislador não regule, mas também, o juiz negue efeitos jurídicos aos vínculos cujo referencial é, não a diferença de sexo, mas a ‘identidade de afeto’".


2.CONCEITOS OU PRECONCEITOS

O vocábulo homossexualismo foi criado pelo médico húngaro Benkert no ano de 1869, o qual é formado pela junção da raiz da palavra grega homo - semelhante com a da palavra latina sexus - sexualidade semelhante. Exprime tanto a idéia de semelhança, igual, análogo, como também significa a sexualidade exercida com uma pessoa do mesmo sexo. [05]

Todavia, por quase 20 anos predominou no meio científico a expressão homossexualismo, considerada doença pela Classificação Internacional das Doenças – CID, que o identificava como um "desvio ou transtorno sexual"; posteriormente, em 1993, a Organização Mundial da Saúde inseriu-o no capítulo "Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais", e finalmente, na 10ª revisão do CID – 10, em 1995, foi nominado de "Transtornos da Preferência Sexual", sendo que o sufixo ismo, que designa doença, foi substituído pelo sufixo dade, que significa modo de ser. [06]

As Ciências (medicina, medicina legal, psicanálise, psicologia, genética, jurídica, social), que estudam sobre o tema ventilado, procuram definir dentro de seus conhecimentos teóricos qual o significado mais adequado para a palavra homossexualidade. Portanto, diversos são os conceitos existentes, alguns entendem ser ela um distúrbio psíquico ocasionado por má formação genética, ou uma anomalia adquirida através do convívio em sociedade, ou, ainda, um jeito de ser do indivíduo, ou seja, uma preferência de vida, sendo essas algumas entre tantas outras definições.

Segundo Delton Croce e Croce Jr., na obra Manual da Medicina Legal: "homossexualidade configura a atração erótica por indivíduos do mesmo sexo. É perversão sexual que atinge os dois sexos; pode ser, portanto, masculino – quando praticado por homens entre si – e feminino – quando por mulher com mulher. Homossexual é o que pratica aos libidinosos com indivíduos do mesmo sexo ou então apenas exibe fantasias eróticas a respeito, e, do ponto de vista legal, o que perpetrou um ato homossexual devidamente confirmado".

De acordo com uma pesquisa do Ibope, 41% da população já "nasce assim", ou seja, o comportamento já estaria definido no código genético. Todos os estudos sérios que defendiam a tese da orientação genética revelaram-se sem consistência científica, o que foi admitido pelo próprio pesquisador Michael Bailey, da Universidade Northwestern, em Chicago. A tese mais aceita atualmente é de que "a orientação sexual sofre influências biológicas, psicológicas e sociocultural", dizem os psiquiatras, coordenadores do curso de sexualidade da Faculdade de Medicina da USP. [07]

Maria Berenice Dias demonstra,em sua obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, que a psicanálise tem-se aproximado, historicamente, dos desvios da heterossexualidade genital de forma indubitavelmente moralista e preconceituosa; mas não só na área da psicanálise e da psicologia tem-se adotado uma linguagem permeada de preconceitos no que diz respeito a homossexualidade, sendo enorme a dificuldade de encará-lo como um desvio de identidade, apesar do pai da psicanálise, Freud, entender que as relações homoafetivas consistem na variação do desenvolvimento sexual, não devendo ser ela classificada como uma doença.

Deve restar claro que existem inclinações e preferências tanto homossexuais quanto heterossexuais, não sendo nenhuma delas uma escolha. Portanto, parece mais coerente aceitar o conceito proposto por quem entende ser homossexualidade um jeito de ser, mas não doença hereditária ou atitude consciente e deliberada, do que negar essas duas possíveis preferências, por ser a opção heterossexual mais cômoda e mais "adequada" aos padrões morais e religiosos impostos pela sociedade.


3.POLÊMICA E DESMISTIFICAÇÃO

Data do final do século XVIII até a primeira metade do século XIX, o primeiro movimento socialista na Grã-Bretanha, chamado Os Socialistas Utópicos [08], que enfatizavam, em particular, a necessidade das mulheres terem liberdade de fruir a sua sexualidade, defendendo firmemente a libertação sexual.

Entretanto, o movimento homossexual teve início nos EUA, sendo um dos mais conhecidos movimentos de libertação das minorias, encabeçado por Eldrige Cleaver e dos Black Panthers, os quais defendiam a minoria negra em aliança com o Gay Liberation Front (GLF: Frente de Libertação dos Homossexuais), esse fato contribuiu muito para que o grande público americano tomasse consciência do problema homossexual. [09]

Em 1884, quando Engels escreveu A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, tornou-se possível explicar cientificamente as raízes da opressão a homossexualidade, bem como estudar formas de eliminá-la e revelar que tal conduta não era uma característica permanente e imutável da história humana, porém, desenvolvera-se em resposta às mudanças no modo em que a sociedade estava organizada. [10]

Com o advento do capitalismo a opressão às relações homoafetivas sistematizou-se como meio defesa necessária à família nuclear, todavia, o esse mesmo sistema também criou possibilidades muito maiores do que qualquer sociedade anterior para as pessoas realizarem e viverem suas sexualidades, pois pela primeira vez na história era possível lutar pela libertação homossexual.

Dessa forma, a partir da "Revolução Sexual", ocorrida no fim da década de 60 e início da década de 70, os homossexuais se organizaram e começaram uma verdadeira guerra para conquistar seu espaço.

Todos esses movimentos deram início à chamada "parada do orgulho gay" [11], a qual reúne milhões de pessoas em Nova York / EUA, e em vários países, como a França, Itália, Bélgica, Noruega, inclusive o Brasil, em várias metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia etc.

Hoje é comum observar a existência de entidades e organizações criadas para defender os interesses dos homossexuais, há movimentos organizados, como o DIALOGAY, em Sergipe, o Grupo Gay da Bahia, que tem certo reconhecimento social, pronuncia-se e é ouvido. [12] Houve um avanço, mas ainda tem-se muito a percorrer, pois o momento em que estamos é para que os homossexuais se organizem para poder fazer sua defesa. É o mesmo que ocorre num movimento de etnia.

São de grande importância essas reivindicações, afinal quanto mais alguém entende seu papel na sociedade, mais é capaz de enfrentar as dificuldades e mais as outras pessoas começarão a respeitá-la e a desmistificar o preconceito sob o compromisso com o bem-estar da sociedade e com os direitos humanos.

Dentro do contexto histórico pode-se observar que alguns dentre vários movimentos em prol da homossexualidade se revelam de grande importância para a reivindicação da liberdade de opção sexual, portanto, os fatos históricos só anteciparam as decisões judiciais, em muito favoráveis aos direitos dos casais homoafetivos.


4.EXTENSÃO DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

A ciência do Direito deve acompanhar a dinâmica social, primando, inclusive, pelo respeito aos princípios constitucionais, no que pertine, principalmente, ao princípio da dignidade da pessoa humana, tão invocado nas decisões favoráveis aos casais homoafetivos.

A regulamentação da união homoafetiva visa garantir aos casais direitos referentes à: a) propriedade particular; b) previdência social (pensão por morte eauxílio–reclusão); c) prestação alimentícia inter vivos; d) sucessão de bens; e) registro civil do contrato de parceira civil; f) adoção etc.

Entretanto, na falta de lei específica, o Judiciário não pode ser omisso. Por isso, a analogia deve ser aplicada no caso concreto. Como o julgador não pode alegar a ausência de previsão legal para deixar de decidir um caso submetido ao Judiciário. Assim, ao aplicar a lei, o juiz poderá fazê-la abranger casos não expressamente previstos, mas que, na essência, coincidam com os abordados pelo legislador. Vejamos o precedente:

"RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO. PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial." (Apelação Cível n.º 700054888112, da Sétima Câmara Cível, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 25/06/2003).

No mesmo sentido o TJRS entendeu:

"APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Negado provimento ao apelo." (Apelação Cível n.º 70012836755, Sétima Câmara Cível, Relatora: DESA. MARIA BERENICE DIAS, julgado em21/12/2005).

A partir dos entendimentos colacionados, vislumbra-se que os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia vêm dar supedâneo à possibilidade de tutela das uniões homoafetivas, uma vez que não há lei regulando tais uniões. A concretização destes princípios, em matéria de sexo, manifesta-se pelo reconhecimento da prerrogativa de autodeterminação da própria vida e pela proibição de discriminação, alcançando, portanto, o âmbito das relações homoafetivas. Assim, o não reconhecimento dos efeitos jurídicos resultantes dessas uniões, afronta o texto constitucional.

A Constituição Federal de 1988 dispõe nos arts. 1º, III, e 60, § 4º, inciso III sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuais, como fundamento do nosso Estado Democrático de Direito. Dessa forma, nosso ordenamento jurídico reconheceu que o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que a finalidade precípua da atividade estatal é o ser humano, não constituindo este meio da mesma atividade.

Baseado nessa premissa, o STJ tem confirmado as muitas decisões de vanguarda, proferidas pelos tribunais estaduais, inclusive, sedimentando posicionamento jurisprudencial favorável aos interesses de casais homoafetivos. Vejamos:

- Resp 820.475, a Quarta Turma, por maioria, permitiu o seguimento de uma ação de declaração de união estável entre homossexuais, em voto de desempate do ministro Luis Felipe Salomão, que afirmou – "a lei não proíbe de forma taxativa a união homoafetiva.";

- Resp 395.904, a Sexta Turma entendeu que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ) deviam pensão ao companheiro do segurado falecido, cujo relacionamento durou 18 anos; porém, o STF ainda não decidiu o recurso contra essa decisão, que já conta com parecer favorável do MPF ao pensionista (RE 495.295). Para o INSS, o beneficiário não seria dependente do segurado, o que impediria o pagamento. Segundo o voto do ministro falecido Hélio Quaglia, a legislação previdenciária não pretendeu excluir o conceito de união estável da relação homoafetiva. A Constituição, no campo previdenciário, não teria feito essa exclusão (artigo 201, inciso V). Diante da lacuna legal, o próprio INSS teria editado norma regulamentando os procedimentos para concessão de benefícios a parceiros homossexuais;

- Resp 238.715, o STJ permitiu a inscrição do companheiro homossexual em plano de saúde. Em seu voto, o ministro aposentado Humberto Gomes de Barros afirmou: "O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana". Por isso, a relação homoafetiva geraria direitos analógicos aos da união estável.

Foi interrompido o julgamento que deve decidir sobre o reconhecimento de União Estável homoafetiva de casal de Mato Grosso, pela Segunda Sessão do Superior Tribunal de Justiça, após pedido de vista do ministro Raul Araújo Filho. A relatora ministra Nancy Andrighi, acompanhada por quatro ministros, votou favorável ao reconhecimento da união. Para a ministra Nancy Andrighi: "as uniões de pessoas de mesmo sexo baseiam-se nos mesmos princípios sociais e afetivos das relações heterossexuais. Negar tutela jurídica à família constituída com base nesses mesmos fundamentos seria uma violação da dignidade da pessoa humana."

Em 07 de abril de 2011, o mesmo caso teve novamente o julgamento interrompido, após pedido de vista do ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Em seu voto, o ministro Sidnei Beneti afastou o reconhecimento da união estável homossexual, mas admitiu a sociedade de fato – gerando direitos obrigacionais, não de família – e a partilha patrimonial em 50%, como decidido no julgamento de origem.

Ainda, no STF, é objeto de questionamento pelo Ministério Público gaúcho no RE 631.805, a decisão do STJ que garantiu a um casal homossexual feminino a adoção de dois irmãos biológicos. Uma das parceiras já havia adotado as crianças desde o nascimento, e a companheira pediu na Justiça seu ingresso na adoção, com inserção do sobrenome nos filhos.

É cediço que, no Brasil, é recente a discussão sobre o reconhecimento das relações homoafetivas, inclusive, com jurisprudências sendo firmados a favor dos casais homossexuais, entretanto, há países, como Suécia, Noruega, Holanda, EUA (Flórida, São Francisco) que há muito protegem em seus ordenamentos jurídicos a união entre pessoas do mesmo sexo.

Mas há que se aplaudir a nossos juristas que têm antecipado os legisladores, por isso, faço minhas as palavras do ínclito ministro João Otávio de Noronha, quando respondeu à crítica recorrente de que o Judiciário nacional tem legislado sobre o Direito de Família: "Toda construção de direito familiar no Brasil foi pretoriana. A lei sempre veio a posteriori. Com o concubinato foi assim, com a união estável foi assim."


5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na seara jurídica, prima saber quais são as conseqüências advindas das relações homoafetivas e, a partir disso, reconhecer e legislar em prol dos direitos que repercutem desse relacionamento, no afã de verem-se atendidos os objetivos fundamentais da Carta da República Federativa do Brasil, quais sejam: construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. [13]

Portanto, é preciso chamar a atenção para um ponto fundamental – a lei não proíbe – ao contrário, os direitos, tanto entre os casais homoafetivos quanto entre os heterossexuais, são garantidos a partir da interpretação principiológica da Constituição Federal; logo, não há dispositivo que vede a garantia de direitos aos casais homoafetivos. Então, não há violação a dispositivo legal, mas preenchimento de vácuo, ante a ausência de norma, daí a força criadora da jurisprudência.

Data vênia, o argumento de que inexiste lei tutelando as "uniões homoafetivas" não encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico. A nosso pensar, é possível a aplicação analógica da legislação relativa à união estável, pois onde existe a mesma razão da lei, cabe também a mesma disposição (Ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio).

A união entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade atual, para qual o Estado não pode fechar os olhos, bem como as autoridades legiferantes não podem ignorar, porque dessas relações remanescem conseqüências em que vida, sentimentos, patrimônio, tudo está envolvido.


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Cadê o gay? Cadê o gay? Revista VEJA. Edição 1.788, ano 34, n. 34, p. 82, 22/08/2001.

Meio minuto para morrer. Revista VEJA. Edição 1.556, ano 33, n. 7, p. 87, 16/02/2002.

Pai, eu sou gay. Revista VEJA. Edição 1.636, ano 33, n. 7, p. 104/111, 16/02/2000.

Guerra ao Preconceito. Revista VEJA. Edição 1.636, ano 33, n. 7, p. 11/15, 16/02/2000.

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Notas

  1. Uma Fábula Gay. Revista VEJA. Edição 1.652, ano 33, n. 23, p. 68/69, 07/06/2000.
  2. Cadê o gay? Cadê o gay? Revista VEJA. Edição 1.788, ano 34, n. 34, p. 82, 22/08/2001.
  3. Meio minuto para morrer. Revista VEJA. Edição 1.556, ano 33, n. 7, p. 87, 16/02/2002.
  4. Homofobia. JornalO Popular, 2ª Edição, ano 73, n.º 20.914, p. 5, 07/04/2011.
  5. DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, o Preconceito e a Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2.000.
  6. Idem 5.
  7. Revista VEJA. Pai, eu sou gay. Edição 1.636, ano 33, n. 7, p. 104/111, 16/02/2000.
  8. DANIEL, Marc. BAUDRY, André. Os homossexuais. Trad. J. Dart. São Paulo: Artenova S/A, 1977.
  9. Idem 7.
  10. Idem 7.
  11. Idem 6.
  12. Revista VEJA. Guerra ao Preconceito. Edição 1.636, ano 33, n. 7, p. 11/15, 16/02/2000.
  13. Art. 3º, incisos de I a IV da Constituição Federal de 1988.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Fernanda Pereira. A força criadora da jurisprudência. Reconhecimento da união homoafetiva no Brasil à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: tema em discussão no STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2865, 6 maio 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19057. Acesso em: 19 mar. 2024.