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A proibição do aborto é realmente aceitável frente à realidade social?

A proibição do aborto é realmente aceitável frente à realidade social?

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O aborto é hoje um dos fatos mais carregados de tabus, preconceitos e divergências. É motivo de discussões e alvo de críticas em todo o globo. No meio jurídico, pode-se dizer que a polêmica que circunda o tema refere-se ao conflito entre duas vertentes: o direito à vida do feto e à autonomia e liberdade de escolha da mulher.

A institucionalização do aborto como crime é uma opção legislativa que provoca intensos debates à medida que envolve valores morais, feministas, sociais, políticos e religiosos. Com isso, é comum a formação de grupos que se mobilizam em prol destes valores e colocam em conflito os dois direitos fundamentais supracitados.

Para diversos países do mundo, em especial aqueles que possuem influência predominantemente católica, como é o caso do Brasil, a temática do aborto é muito controvertida e divide a sociedade. Há uma polarização de pontos de vista feministas e religiosos, que despontam de forma intensa em debates públicos sobre o assunto, particularmente quando algum projeto de lei está no parlamento.

O Código Penal brasileiro proíbe a realização do aborto, salvo em caso de interrupção da gravidez nos casos em que a gestante corra risco de vida ou tenha sido vitima de estupro. Como é expresso por Araújo, Nunes Júnior (2009, p. 139 ):

A constituição assegurou o direito à vida. Em outras palavras, o texto constitucional proíbe a adoção de qualquer mecanismo que, em ultima análise, resulte na solução não espontânea do processo vital (...) Releva observar que outras formas de interrupção do processo vital estão igualmente proibidas pelo texto constitucional dentre elas a eutanásia e o aborto. (...) O aborto também se vê alcançado pelo aspecto regrativo da norma Constitucional em comento. É que a vida, iniciada coma concepção, não pode sofrer dissolução de continuidade não espontânea fazendo

Este direito à vida não deve ser entendido não apenas pela ótica de vida biológica, mas também de qualidade de vida. Assim discorre Bobbio:

Hoje, o direito à vida assume uma importância bem diferente, ainda mais se começarmos a tomar consciência de que ele está se estendendo cada vez mais, como resulta dos mais recentes documentos internacionais e da Igreja, à qualidade de vida. (BOBBIO, 2004 , p.208)

Porém deve-se levar em conta que assegurar o direito à vida pode não significar assegurar uma vida digna, pois na maior parte dos casos de gravidez indesejada, existe problemas de ordem econômica e emocional relacionados, provocando o nascimento de uma criança que não terá bases familiares sólidas, algo extremamente danoso ao psicológico da criança. Ou seja, ao assegurar esse direito ao nascituro, pode-se estar provocando o descumprimento de outros direitos, como os direitos da criança, sendo que este bebê nascerá sem bases familiares sólidas.

Além de problemas físicos (má alimentação, falta de condições de moradia, etc.), sofridos por crianças que nascem sem estrutura familiar. Uma criança indesejada, desde seu nascimento está predisposta a problemas psicológicos, já que se sente rejeitada, pois muitas vezes é considerada pelos pais um problema que atrapalhou a vida profissional, o futuro e a liberdade deles. Celso Martins salienta possíveis problemas que uma criança rejeitada pelos pais pode vir a sofrer:

A criança rejeitada não conseguindo incorporar à sua personalidade as figuras paterna e especialmente materna, passa a apresentar marcas indeléveis, a exibir carências afetivas graves (caso não as tenha compensadas posteriormente por outros familiares ou quem quer que delas cuide e ame), a externar comportamento emocional desajustável (furtando dinheiro da família, objetos na casa de amigos, brinquedos nas lojas e revistas nos jornaleiros, como forma de chamar para si a atenção alheia, falsificando assinatura dos pais, mentindo sem alterar a voz nem o semblante) ou então adotando uma conduta passiva, submissa, com apatia, falta de concentração, lentidão nas reações, deficiências de aprendizagem, vocábulo pobre, até mesmo algum retardamento mental. (MARTINS, 2002 , p. 35)

Outra questão relevante no que diz respeito ao direito a vida é a controvérsia a respeito do momento que a mesma tem inicio, o que intriga é que "A partir de 1968, o coração deixa de ser o ponto de referencia da morte, que passa a ser o cérebro (...) A partir deste avanço, torna-se aboleta a definição tradicional de morte como cessação das atividades cardiorrespiratórias" (PESSINI, 2004, p. 282). E se levarmos em conta essa definição de morte como comparativo para a noção de vida, ela seria, portanto, o exercício das atividades cerebrais, e como os embriões não começam a exercer atividade cerebral desde a concepção, no ponto em que começasse a exercer deveria ser considerado o inicio da vida. E se a vida "corpórea" for sinônima de vida humana propriamente dita, os transplantes de órgãos deveriam ser considerados ilegais, já que retirariam órgãos de pessoas "vivas".

Discussões sobre vida e morte também rodeiam o meio cientifico, principalmente a manipulação de embriões, como a fecundação in vitro (proveta). Nesse processo o óvulo e o espermatozóide são fecundados fora do organismo, os embriões resultantes nem sempre "sobrevivem" no laboratório , e após o reimplante no útero nem sempre chegam ao nascimento. Isto nos leva a um dilema, como questiona Danda Prado (2007, p. 17):

Se a Justiça considera um atentado à vida o aborto voluntário, por que não considera criminoso o cientista que obtém "seres vivos" sabendo de antemão que alta porcentagem deles vai "morrer"?

É uma questão muito intrigante, pois como muitos embriões não vingam, e os cientistas têm pleno conhecimento sobre o fato, seria um processo consciente em que vários embriões "morreriam", e isso seria uma morte similar à que acontece no abortamento, deveria, portanto, ser igualmente ilegal.

O direito fundamental à vida abre uma exceção à proibição do aborto, como é exposto no Art. 128 do código penal:

Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Porém existem várias complicações para a execução desta norma, pois os estupros, como afirma Danda Prado (2007), não acontecem somente pela violência de maníacos sexuais, mas em grande parte, segundo estatísticas, é praticada por conhecidos ou familiares das vítimas, que se aproveitam desse fato para chantagear seu silêncio. E nesses casos, é bem mais difícil comprovar o estupro, pois além da família ter uma predisposição cultural a "abafar" o acontecido, nem sempre se pode provar legalmente esse abuso sexual, que muitas vezes acontece por violência psicológica (chantagem, imposição) sobre a vítima, e não por violência corpórea propriamente dita.

Mesmo com tantos motivos que justificariam a interrupção da gravidez, as religiões em geral não admitem o aborto. A idéia de que o feto é pessoa desde a concepção reforçou o combate ao aborto pela Igreja, pois ao defender que o aborto é o assassinato de uma criança não nascida, a doutrina católica admitia um argumento secular. Em outras palavras, pode-se argumentar que:

Os direitos das crianças, das minorias ou dos pobres não podem ser negligenciados, assim também se pode argumentar que os direitos das crianças não nascidas não podem ser sacrificados. Deus não precisa ser mencionado no argumento. (GONÇALVES, 2008, p. 51)

A titulo de exemplo de como a fundamentação religiosa é contra o aborto segue trecho de documento da Campanha da Fraternidade 2008, sob o lema "Fraternidade e defesa da vida". Neste, o referido comitê posiciona-se sobre o dever do Estado de colocar seu poder legislativo e repressivo a serviço de uma determinada moral, concretamente da moral católica. A resposta oferecida é a que se segue:

Não. Mas há um mínimo consenso que se articula à volta da defesa da dignidade humana – na qual se inclui o direito à vida e também do ser que já foi concebido, mas que ainda não nasceu -, que é absolutamente irrenunciável, pois do contrário, nem a sociedade nem o estado teriam razão para existir. Este mínimo não é patrimônio exclusivo da Igreja Católica, mas de toda a humanidade. (...) Opor-se hoje ao aborto provocado, como em outras épocas à escravatura, não é fanatismo nem tem a ver exclusivamente com as convicções religiosas, católicas ou não, mas é uma obrigação indeclinável para todos os que crêem no direito à vida e na dignidade do ser humano. (GONÇALVES, 2008, p. 52)

Mesmo o aborto sendo ainda um tabu, deve-se lavar em conta que mesmo em países em que a prática do aborto é proibida, as mulheres continuam a abortar, sendo este principal causa de complicações que levam à morte, e em países em que a prática é legalizada não se viu um aumento considerável no número de abortos. Desta forma discorre Prado:

Não podemos desconsiderar dois fatos importantes obtidos na análise do abortamento nos países em que foi legalizado. Primeiro, que a descriminalização não aumentou a frequência de abortos provocados. Segundo, houve espetacular redução das complicações e da mortalidade materna.(2007, p. 61)

Desta forma, pode-se concluir que a legalização não influi diretamente no número de abortos praticados, porém incide diretamente na mortalidade das mães, já que podendo abortar fora da clandestinidade evitam vários danos que viriam a acontecer à sua saúde.

E fato, esse dilema entre essas opiniões opostas iram durar muito tempo até que se chegue a uma conclusão que seja efetiva, que possa garantir a vida sem retirar a vida de muitas mulheres, que por não desejar a maternidade se submetem a processos danosos a sua saúde. E em países como o Brasil, que são muitas vezes norteados pela religião, fica muito difícil tomar uma posição contraria à da maioria da população, que acredita que o aborto é um assassinato. Porém acredito que o maior assassinato ocorre no ato de "colocar no mundo" crianças sem bases familiares, que não foram planejadas, nem tampouco desejadas. Essas crianças indesejadas, na maioria das vezes carentes (pois, as classes mais altas recorrem à medidas anticoncepcionais ou ao próprio aborto) se tornam marginais em potencial, pois vivem em meio à miséria e a condições desumanas, sendo o crime a única ou a mais acessível forma de garantir o sustento.

Diante do exposto, concluo que se for analisado os aspectos sociais que permeiam a questão do aborto, como a pobreza, a necessidade de escolha da mulher e a própria situação que é exposta uma criança não desejada, torna-se inaceitável a proibição do aborto.


REFERÊNCIAS:

ARAÚJO, Luiz Alberto David. NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 13. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

GONÇALVES, Tamara Amoroso. Aborto e religião nos tribunais brasileiros. São Paulo; Instituto para a promoção da equidade, 2008.

MARTINS, Celso. Aborto, suicídio e pena de morte. São Paulo; DPL, 2002.

PESSINI, Leo. Eutanásia: Porque abreviar a vida?. São Paulo. Loyola, 2004.

PRADO, Danda. O que é aborto. 2.ed. São Paulo; Brasiliense, 2007.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOMFIM, Zilmara Regina de Santana Bomfim . A proibição do aborto é realmente aceitável frente à realidade social?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19552. Acesso em: 20 abr. 2024.