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Imposto de Importação e majoração desmotivada

Imposto de Importação e majoração desmotivada

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Sumário: 1. Breve resumo da questão. 2. Considerações gerais sobre as penalidades. 3. Base histórico-filosófica e a natureza jurídica das multas. 4. Conceito e espécies de multas. 5. Classificação da multa sobre excesso ou aumento de consumo de energia elétrica e sua tipificação. 6. Das possíveis discussões judiciais sobre a matéria. 7. Do instrumento normativo adequado para instituir a exação. 8. Dos limites constitucionais e os percentuais da multa. 9. Conclusões.


1. Breve resumo da questão.

O presente artigo tem por objetivo analisar e discutir, sob o prisma da juridicidade, a possível exigência de multa daqueles que incorrerem em excesso ou aumento do consumo de energia elétrica. A abordagem do tema não se dará a partir de atos concretos(1), uma vez que estes sequer foram editados, mas da discussão de ser possível ou não impor multa sobre as pessoas que extrapolarem certos limites de gastos com energia elétrica.


2. Considerações gerais sobre as penalidades.

O Estado detém o poder de impor penalidades àqueles que descumprirem o ordenamento jurídico.

Cesare Beccaria(2), comentando acerca das origens das penas, diz que "faz-se necessário o estabelecimento de motivos sensíveis suficientes para dissuadir o espírito despótico de cada homem de novamente mergulhar as leis da sociedade no antigo caos. Esse motivos sensíveis são as penas estabelecidas contra os infratores das leis."

Nesse tocante, Roberto Lyra(3) explica que: "o direito de punir é direito efetivo do Estado ao respeito das leis e à coatividade do Direito." Com isso, então, o Estado tem o poder/dever de punir os súditos como um dos meios de manter a paz social.

Como todo e qualquer poder(4), o poder estatal de impor penas está baseado nos limites e determinações consentidos pelo povo e vinculados a eles. A idéia de consenso como base para exercício do poder pelo Estado é ligada, ainda, à noção de que o bem comum deve realizar-se segundo o assentimento ou vontade dos súditos. Do consentimento do povo se tem a imperatividade das leis(5).

A idéia que temos então, como conclusão, é de que as penas devem ser previamente assentidas e somente podem ser instituídas e aplicadas nos termos das leis.

Não podemos deixar de anotar que as sanções administrativas distinguem-se das penas propriamente ditas em função da autoridade que as impõe. As primeiras são impostas pela Administração, enquanto as outras pelo Juiz(6).

Salientamos que há dificuldades para o Estado exercer a sua função jurisdicional e delimitar a aplicação das penas, tanto no âmbito administrativo, quanto no penal(7). Sendo assim, a nossa conclusão aponta no sentido de que as penalidades, inclusive as administrativas, conquanto aplicadas pelo Poder Executivo, devem estar previstas previamente em lei.


3. Base histórico-filosófica e a natureza jurídica das multas.

As penas têm de ser estabelecidas de modo que apresentem elemento que imponha ao possível infrator o receio da punição a ponto de levá-lo a não cometer o delito. O ponto básico da filosofia da pena é sem dúvida a dissuasão do infrator com a certeza da aplicação da pena.

No direito Romano, a pena de multa tinha grande importância. A multa era paga originariamente em animais (gado, daí pecus). A multa vem de mulcta – multiplicação, aumento. Por isso, até hoje algumas multas são estabelecidas no dobro do valor ou na metade do valor devido(8).

O direito canônico apresenta marco relevante na questão da aplicação das penas de multa. Os teólogos, de um lado, se batiam defendendo que as penas pecuniárias eram um avanço, em face ao repugno às penas que estabeleciam degradação e castigos físicos ao homem, mas de outro lado, as penas pecuniárias possibilitavam que os providos de fortuna corrompessem os julgadores e tribunais(9).

A natureza jurídica das multas é tema controvertido, havendo, entendimentos de que teria natureza meramente reparatória, ou seja, teria a função de reparar eventual lesão ou dano(10). Acrescentamos a esse entendimento, que a função da penalidade não é única. Em verdade, as multas têm caráter essencialmente punitivo, mas também: a) repressivo para que não seja compensador o descumprimento da norma; b) retributivo para que haja o exemplo da punição, desistimulando as condutas ilícitas; c) ressociabilizador determinado que a multa seja graduada em percentual que não leve à inadimplência crônica(11).


4. Conceito e espécies de multas.

A conceituação de multa está ligada à aplicação de penalidade pecuniária por infração à norma jurídica. João Roberto Parizzato(12) conceitua multa como "a pena pecuniária imposta a alguém em virtude de infringência de determinada obrigação legal ou contratual. Tal infringência tanto poderá ser à prática de específico ajuste, ou seja, a uma obrigação de fazer ou não fazer, de entregar ou de não entregar ou mesmo de pagar uma quantia em época aprazada."

Geraldo Ataliba(13) ensina que " o dever de levar dinheiro aos cofres (tesouro = fisco) do sujeito ativo decorre do fato imponível. Este, por definição, é fato jurídico constitucionalmente qualificado e legalmente definido, com conteúdo econômico – por imperativo de isonomia (art. 5o , caput e inciso I da C.F.) – não qualificado como ilícito. Dos fatos ilícitos nascem multas e outras conseqüências punitivas, que não configuram tributo."

João Dácio Rolim e Maria Inês Caldeira Pereira da Silva(14) diferenciam multa e tributo desta forma:

"A multa é toda prestação pecuniária compulsória incidente em decorrência da prática de um ilícito legal ou contratual, instituída em lei ou contrato em favor do particular ou do Estado. Diferencia-se do tributo pelo fato deste decorrer de um fato lícito, em conformidade com a lei."

Pode-se notar que existe uma diferença na essência econômica entre os tributos e as multas. A tributação incide na atividade econômica como o instituto legal que, qualificando a atividade empresa, estabelece a transferência de riqueza do particular para o Estado(15). De outro lado, a natureza econômica da multa não se refere à taxação dos bens e riquezas e sua transferência para o Estado, consistindo, economicamente, como despesa para o contribuinte, devendo, assim, ser escriturada contabilmente.

Hugo de Brito Machado(16) assim comenta a questão, estabelecendo a diferença entre as naturezas econômica e jurídica das multas e dos tributos:

"Do ponto de vista econômico a multa é despesa. Ninguém ousa afirmar o contrário. Com o pagamento da multa o patrimônio da pessoa jurídica fica diminuído do valor correspondente. Por isto não há como se possa escriturar tal pagamento de outro modo. Há de ser mesmo escriturado como despesa.

Do ponto de vista jurídico a multa é sanção pelo cometimento de ato ilícito. A ilicitude é seu pressuposto essencial. Aliás, a distinção entre o tributo e a multa reside precisamente nisto; na hipótese de incidência da norma de tributação não pode figurar a ilicitude, enquanto na hipótese de incidência da norma sancionatória ou punitiva a ilicitude é essencial."

Sendo assim, podemos definir a multa como a penalidade pecuniária imposta àquele que descumpriu dever jurídico imposto legalmente ou contratualmente, possuindo economicamente natureza de despesa e juridicamente natureza de sanção.

Com efeito, estabelecemos como premissa que as multas são de quatro espécies: multas compensatórias, multas penitenciais, multas cominatórias ou astreintes e multas moratórias.

As multas compensatórias também são conhecidas como cláusula penal. Segundo De Plácido e Silva(17), representa a multa compensatória "a prévia determinação dos prejuízos, que possam advir pela inexecução do contrato, como indenização ou pagamento, que venha a contrabalançar o montante dos mesmos prejuízos. Estes prejuízos entendem-se as perdas e danos resultantes ou conseqüentes da falta de cumprimento do contrato."

As multas em comento existem nas hipóteses em que há relação contratual e têm uma natureza de estabelecer previamente a possibilidade de punição conjugada com o estabelecimento de indenização.

Dessa forma, esta multa não tem espaço em casos de punição por descumprimento de normas de direito público, em face de sua característica ínsita a relações contratuais.

As multas penitenciais, também conhecidas como arras, são estabelecidas para punir aquele que desiste da celebração de contrato, tendo previsão no art. 1.095 do Código Civil.

O Superior Tribunal de Justiça no Resp 217.267/SP – Relator: Ministro José Arnaldo da Fonseca - analisou a questão da multa penitencial no sentido de que "consiste em penalidade imposta pelo contrato no caso de descumprimento da obrigação, não podendo ser cumulada com a indenização pelos prejuízos, porque tem caráter alternativo a juízo do credor. Na prática a multa substitui a indenização. Diferencia-se, pois, da multa moratória que é estipulada na hipótese de mora ou retardamento no cumprimento da obrigação, podendo, assim, ser cumulada(18)."

A aludida espécie de multa também não encontra eco no direito público, em face de não haver, neste ramo do direito, caso de desistência ou arrependimento na formação da relação jurídica, uma vez que as relações de direito público são ex lege.

Notamos que as espécies de multas em questão, tanto a compensatória quanto a penitencial, diferem da indenização ou das perdas e danos, uma vez que "a multa tem como pressuposto a prática de um ilícito (descumprimento a dever legal, estatutário ou contratual). A indenização possui como pressuposto um dano causado ao patrimônio alheio. A função da multa é sancionar o descumprimento. A função da indenização é recompor o patrimônio danificado(19)".

A multa cominatória ou multa a título de astreintes é caracterizada pelo meio coativo de cumprimento de comando legal, contrato ou ordem judicial. As astreintes nasceram da prática dos Tribunais Franceses, tendo como função obrigar o devedor a prestar a obrigação. As astreintes não têm qualquer relação, pois, com perdas e danos ou com o atraso no adimplemento da obrigação(20).

Verificamos que as multas astreintes punem as violações a deveres, mas com a característica determinante de conduzir ao cumprimento de outras normas. Sendo assim, as astreintes são uma espécie de multa anômala, uma vez que não decorrem da prática de um ato ilícito em sentido estrito, prestando-se, pois, a induzir ou a obrigar ao cumprimento de uma norma ou a uma conduta.

Esta espécie de multa tem validade tanto no direito público quanto no direito privado, em face de que tanto a lei como o contrato poderem estabelecer obrigação com esta natureza de induzir ao cumprimento de preceito ou observância de conduta.

As multas moratórias têm como escopo punir pelo atraso no adimplemento do dever legal ou contratual, não existindo dúvida da sua aplicação no direito privado e no direito público, inclusive em matéria tributária no sentido de punir o descumprimento da obrigação tributária no prazo previsto em lei.


5. Classificação da multa sobre excesso ou aumento de consumo de energia elétrica e sua tipificação.

A determinação da natureza jurídica da multa sobre o excesso de consumo ou pela não-economia de energia é ponto nodal a determinar a possibilidade e os instrumentos jurídicos que veicularão a exação.

Em verdade, a natureza jurídica dessa exação enquadra-se na hipótese de multa a título de astreintes. Assim entendemos uma vez que a exigência em tela tem o fito não apenas punir, mas, principalmente, obrigar os consumidores a gastar menos energia, em razão de racionamento.

O Ministro Moreira Alves, relator do RE 94.966-6, DJ 26/03/82 (RT 560/255) decidiu que "a pena pecuniária, a título de astreintes, não tem o caráter de indenização pelo inadimplemento da obrigação de fazer ou não fazer, mas o de meio coativo de cumprimento da sentença, como resulta do expresso na parte final do art. 287 do CPC, conseqüentemente, não pode essa pena retroagir à data anterior ao do trânsito em julgado da sentença que a cominou(21)."

Dessa forma, conquanto o consumo de energia, por si só, não seja conduta ilícita, pode haver a previsão de que o consumo de energia acima de certos limites seja fato que ensejará a aplicação de penalidade, in casu, multa que terá a natureza jurídica de multa cominatória ou astreintes

A ilicitude não advém do consumo, mas do não atendimento à redução deste. Sendo assim, por exemplo, consumir energia, acima de um limite, pode ensejar a imposição de multa, que terá como objetivo induzir a um fazer (reduzir o consumo) ou a um a não-fazer (não elevar o consumo).

A questão, a nosso juízo, é interessantíssima, as multas astreintes são impostas com essência e caráter de retributividade, induzindo, pois, a observância de um determinado modo de agir, em nome do interesse público.


6. Das possíveis discussões judiciais sobre a matéria.

Podemos vislumbrar, na hipótese de estabelecimento da penalidade em discussão, alguns questionamento jurídicos.

O primeiro questionamento poderá ser no sentido de que, em face de o consumo de energia não ser ato ilícito propriamente dito, estar-se-ia, em verdade, exigindo-se um tributo(22). Em tendo natureza de tributo, devemos analisar qual a espécie tributária. As hipóteses possíveis são: trata-se de imposto, uma vez que não decorre de atividade estatal plenamente vinculada e estar-se-ia tributando a capacidade contributiva. Em sendo assim, somente se poderia criar novo imposto, nos termos o art. 154, I, da CF/88.

O fato gerador seria consumir energia. Observamos que sobre o consumo de energia já incide o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, não sendo, assim, possível se criar novo imposto.

Dessa forma, é inconstitucional o novo "imposto" por violação ao art. 154, I, da CF/88.

Outra questão é que se for imposto não poderá ser vinculado à fundo ou despesa, nos termos do art. 167, IV, da CF/88.

Outra tese pode ainda defender que se trata de contribuição social de intervenção no domínio econômico porque determina a incidência de exação, com vistas a gerar recursos para um fim específico – tributo vinculado – que diz respeito à geração de energia. Se assim for, a exação, mesmo sendo tributo, poderá ser criada por lei ordinária, em face de que não está submetida ao regime do art. 154, I, da CF/88, mas, sim, às disposições do art. 149 da CF/88.

A eventual tese de natureza tributária da cobrança não tem base jurídica, uma vez que estamos diante de uma exação com natureza jurídica de multa cominatória ou astreintes. A ilicitude é ínsita ao não cumprimento da regra de não reduzir o consumo ou de consumir acima de certo limite.

Dessa forma, a multa em tela objetiva um único e exclusivo fim, qual seja, a redução do consumo de energia elétrica. E para tanto, se impõe penalidade para os consumidores que não atenderem à lei. Por outro lado, a norma que criar a multa pode dispor, por exemplo: "os consumidores devem reduzir em X% o consumo de energia elétrica." "Os consumidores que não reduzirem o consumo ficam sujeitos a multa de X% do valor que deveriam reduzir". "Os consumidores que aumentarem o consumo ficam sujeitos a multa de X% entre a diferença que deveriam reduzir e o aumento implementado". "Para fins de análise da redução ou aumento ter-se-á como base a média do consumo dos últimos 12 meses anteriores à publicação desta lei."

Sendo assim, a multa é aplicada não em face do ato lícito de consumir, mas em razão do ato ilícito de não reduzir ou aumentar o consumo.

Vislumbramos ainda dúvidas jurídicas quanto à possibilidade de manejo de medidas judiciais típicas de relações de direito público. A relação jurídica presente na espécie é híbrida no sentido de que de um lado temos uma relação de consumo – consumidor/concessionária do serviço público, que não é tutelada pelas normas de direito público. De outro, há uma interferência estatal, impondo multas àqueles que não reduzirem o consumo ou excederem a limites.

Tal ingerência transmuda a relação, que era inicialmente de consumo, em vínculo jurídico com a prevalência das normas publicistas e do conjunto de regras que tutelam, nestes casos, o direito subjetivo. Em outros termos, as medidas judiciais que seriam cabíveis contra o atos do poder público, por exemplo, mandado de segurança, são viáveis na espécie.

Dessa forma, com vistas a tutelar seus direitos, é plenamente cabível, neste caso, que o contribuinte se socorra de remédios jurídicos que não seriam aplicáveis na relação de consumo, especialmente a via mandamental. É certo, pois, que poderão ser manejados mandados de segurança coletivos ou individuais, sem excluir a competência e as atribuições do Ministério Público nas hipóteses de violação de direito dos consumidores.

De toda a forma, a eventual norma que impuser tal obrigação fatalmente será atacada na via do controle concentrado de constitucionalidade, especialmente quanto ao instrumento veiculador da penalidade e os limites de gradação da multa.


7. Do instrumento normativo adequado para instituir a exação.

Com efeito, a multa em tela não poderá ser criada por decreto do Poder Executivo. O princípio da legalidade não admite que penalidade seja criada através de comando jurídico que não a lei em sentido estrito, uma vez que existem parâmetros que indicam para uma identidade substancial entre as sanções dos tribunais penais e aquelas aplicadas diretamente pelo Poder Executivo, já que existem princípios que lhe são comuns: legalidade, injusto típico, nulla poena sine culpa e prescrição (23).

O veículo normativo correto é a lei ordinária. Contudo, não vislumbramos inconstitucionalidade na veiculação da matéria através de medida provisória, uma vez que estão caracterizados os requisitos da urgência e da relevância.

Em verdade, também comungamos do entendimento de que não se pode estabelecer penalidades através de medida provisória, mas não podemos negar a jurisprudência do STF que não tem se inclinado no sentido de não declarar inconstitucionais medidas provisórias que alteraram os percentuais de multas fiscais. Dessa forma, a interpretação do princípio de que não se pode prever penalidades por medida provisória, não significa que não se possa estabelecer multas administrativas por medida provisória, em razão de que a aludida penalidade tem natureza administrativa e não penal(24).


8. Dos limites constitucionais e os percentuais da multa.

Os limites de aplicação das multas são tratados pela análise da observância do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade e do não confisco.

O princípio da razoabilidade tem sua base de formação nos Estados Unidos, tendo sua acepção ligada à razoabilidade que a lei deve ter e sua relação com a moralidade e a continência do fundamento da edição da norma com a solidariedade, segurança jurídica, ordem e principalmente a justiça. Dessa forma, o fundamento de validade primeiro de uma norma jurídica deve ser o sentido de justiça(25).

Aplicação do princípio da razoabilidade em matéria de penalidades pecuniárias é aceito na doutrina, conforme ensina José Carlos Graça Wagner(26) :

"o ato ilícito pode ser punido até o limite de sua própria substância, de tal modo que não só de nada aproveite a quem o praticar como também perca tudo que envolveu na prática daquele ato. Nesse caso, os acréscimos de multa, juros e correção não podem ultrapassar o limite do que razoavelmente possa se presumir como resultado econômico obtido com as operações tributadas a que se refere a obrigação em atraso."

O aludido princípio diz respeito, segundo o STF, aos balizamentos e parâmetros que o legislador, na sua atividade legislativa, deveria observar, estabelecendo ainda que os limites da lei devem regular a conduta de modo proporcional e adequado(27).

A doutrina constitucional moderna e o Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, determinam que não se deve analisar as leis somente sob a ótica do princípio da reserva legal. O julgamento da questão deve ter como base o princípio da reserva legal proporcional, que tem como pressuposto não somente a legitimidade dos meios e dos fins a serem alcançados, mas também a necessidade de utilizar-se o meio menos gravoso ao indivíduo para alcançar o fim almejado(28).

Com isso, não pode haver distorção entre a medida estabelecida em lei e o fim por ela objetivado, determinando que o modo de combater e punir os ilícitos deve ser disposto com penalidades que guardem adequação dos meios e dos fins, sob pena de violação ao princípio da razoabilidade e a proporcionalidade.

Gilmar Mendes(29) resume a questão:

"Portanto, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade."

Na análise deste princípio aplicado a multas pelo excesso ou não-economia de energia elétrica, vislumbramos que a lei deve estabelecer limite razoável e proporcional ao fim da multa, qual seja, redução do consumo. A nosso juízo, a noticiada multa de 45 vezes o valor da conta é inconstitucional. Não é razoável, nem proporcional, que consumidor por descumprir a regra de racionamento se veja obrigado a pagar valor maior que o dobro de seu débito.

Com efeito, não há na jurisprudência um percentual máximo de imposição de multas. Contudo, há balizamento do STF, que considerou confiscatória, multa de 300%.

No julgamento da ADIN ajuizada em face da exigência de multa em percentual de 300% (trezentos por cento), o STF(30) assim decidiu:

"Art. 3 º - Ao contribuinte, pessoa física ou jurídica , que não houver emitido a nota fiscal, recibo ou documento equivalente, na situação de que trata o artigo 002 º , ou não houver comprovado a sua emissão , será aplicada a multa pecuniária de trezentos por cento sobre o valor do bem objeto da operação ou do serviço prestado , não passível de redução , sem prejuízo da incidência do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza e das contribuições sociais. (grifamos) Parágrafo Único - Na hipótese prevista neste artigo, não se aplica o disposto no artigo 004 º da Lei nº 8218 , de 29 de agosto de 1991. O Tribunal , por votação majoritária, conheceu da ação direta quanto ao art. 003º e seu parágrafo único da Lei nº 8846 , de 21/01/94, vencido o Relator ( Ministro Celso de Mello, Presidente), que dela não conhecia. Prosseguindo no julgamento do pedido de medida cautelar, referente a essa norma legal , o Tribunal, por votação unânime, suspendeu, com eficácia ex nunc , até final julgamento da ação direta, a execução e a aplicabilidade do art. 003 º e seu parágrafo único da Lei nº 8846 , de 21/01/97. Ausentes, justificadamente, os Ministros Sepúlveda Pertence e Maurício Corrêa. - Plenário, 17.06.98." (grifamos)

Com base nesse precedente não há dúvidas de que leis que estabelecem multas podem ser declaradas inconstitucionais por violarem o princípio da razoabilidade e por induzirem a confisco.

A nosso juízo, o percentual máximo de uma multa cominatória é de 100% (cem por cento) do valor que o contribuinte deveria economizar, ou seja, não se pode criar incidência de penalidade sobre a conta normal de luz, quer dizer, sobre o valor que o consumidor paga pelo seu consumo habitual. A multa deve incidir sobre o plus que deveria ser reduzido ou sobre o excesso de consumo.

Dessa forma, se o consumo normal ou o limite é de 10 kWh e o contribuinte consumiu 15 kWh, a multa não poderá incidir sobre os dez previstos como consumo normal, mas somente sobre os cinco quilowatts que extrapolaram o limite. Pelo acréscimo de consumo o contribuinte irá pagar um valor maior, em face de que haverá a incidência de uma penalidade, a título de multa astreintes, na forma de uma sobretaxa.

Com isso, se a norma realmente vier a estabelecer multas abusivas não temos dúvidas que o Poder Judiciário irá acolher teses pela redução ou pela a inconstitucionalidade, muito porque a doutrina(31) assim entende: "No que toca às penalidades pecuniárias, todavia, o mesmo não ocorre, detendo o juiz, por força de lei, poder para imiscuir-se no processo de sua quantificação, poder que vai até o ponto de determinar-lhes a exclusão diante de certas circunstâncias."


9. Conclusões.

Com isso, podemos concluir que a multa por excesso ou aumento do consumo de energia elétrica tem natureza jurídica de multa a título de astreintes.

A aludida multa não tem natureza tributária.

É medida de cautela que, para os efeitos da lei, o excesso ou o aumento de consumo de energia elétrica e os limites sejam correta e claramente tipificados como ilícito.

A multa objeto da presente análise não pode ser criada por decreto, sendo hábil, contudo, a sua instituição por medida provisória, a ser convertida, posteriormente em lei ordinária.

A multa tem como limite máximo o dobro do valor da diferença entre o consumo normal e o excesso ou extrapolação do limite, sendo inconstitucionais percentuais abusivos.

Os consumidores poderão se valer de remédios jurídicos típicos do direito administrativo, principalmente, o manejo de mandado de segurança com vistas a coibir abusos na aplicação da multa, sem excluir as ações do Ministério Público.

Por derradeiro, julgamos que, conquanto seja possível juridicamente a imposição de multa, os questionamentos judiciais serão tantos que podem inviabilizar a sua exigência. Dessa forma, talvez fosse mais conveniente o reajustamento temporário dos valores das tarifas, em face da redução da oferta, que, com menos traumas jurídicos, atingiria o fim almejado, qual seja, a redução do consumo, uma vez que existe princípio que nenhuma norma jurídica pode derrogar: quanto menor a oferta, maior é o preço.


NOTAS

1. A imprensa noticiou a imposição da aludida multa nestes termos: "Não poderia ter sido mais drástico o racionamento adotado pela Agência Nacional de Energia (Aneel) para vigorar a partir de 1o de junho. Um sistema de apuração indicará o limite disponível para uso de cada consumidor. A base de cálculo tomará com referência quilowatts anteriormente gastos seguidos de cota redutora. A ultrapassagem do teto estabelecido ensejará multa que poderá alcançar 45 vezes o valor da conta. É o que ocorrerá no caso de reincidência na utilização acima do fornecimento ajustado. Espera-se com a inciativa reduzir em 20% as pressões consumistas sobre as redes distribuidoras." In Os ônus da imprudência. Correio Braziliense de 05 de maio de 2001, p. 4

2. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2a ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 41.

3. LYRA, Roberto. Comentários ao código penal. 2a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 32.

4. "Poder", em seu significado mais geral, segundo Norberto Bobbio, designa "a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos." BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Luis Guerreiro Pinto, 12a ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 933.

5. FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sério Leite. Aspectos jurídicos-penais da tortura. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 27.

6. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Trad. Arnaldo Setti, São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1991, p. 876.

7. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, op. cit., p. 875-876.

8. SZNICK, Valdir. Da pena de multa. São Paulo: Ed. Universitária, 1984, p. 20.

9. Idem, ibidem, p. 26.

10. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. T rad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.3., , 1976, p. 73.

11. Ver HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 2ª ed., Imprensa Nacional da Moeda, p. 247 e FONROUGE, Carlos M. Giuliani. Conceitos de direito tributário. Trad. Geraldo Ataliba e Marco Greco, São Paulo: Lael, , 1973, p. 221.

12. PARIZATTO, João Roberto. Multas e juros no direito brasileiro. 3a ed., Ouro Fino: Edipa, 1999, p.1.

13. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5a ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 33.

14. ROLIM, João Dácio; SILVA, Maria Inês Caldeira Pereira de. "A dedutibilidade ou não das multas moratórias perante o imposto de renda", in Revista Dialética de Direito Tributário, no 11, agosto de 1996, pp. 72-79, p. 73.

15. MACHADO, Hugo de Brito. "O ICMS e a prestação gratuita de serviço", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, maio de 1997, pp. 41-47, p. 41.

16. MACHADO, Hugo de Brito. "As multas e o imposto de renda", in Revista Jurídica, ano XXXI, vol. 105, maio/junho de 1984, pp. 49-55, p. 54.

17. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 3a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 218.

18. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 217.267/SP, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, publicado no DJU de 08/11/99.

19. ARZUA, Heron; GALDINO, Dirceu. "As multas fiscais e o poder judiciário", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 20, maio de 1997, pp. 34-40, p. 36.

20. FRIAS, J. E. S.. "A astreinte, do direito estrangeiro ao brasileiro", in Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano IV, 2o trimestre, nº 14, pp. 11-20, pp. 12-15.

21. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 94.966-6, Relator Ministro Moreira Alves, publicado no DJU de 26/03/82.

22. Tributo é toda a prestação pecuniária compulsória....que não constitua sanção por ato ilícito....(art. 3º do CTN)

23. GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, op. cit., p. 891-901.

24. Ver informativo 115 do Supremo Tribunal Federal: "Entendendo que a Súmula 565 do STF foi recepcionada pela CF/88 ("A multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se incluindo no crédito habilitado em falência."), a Turma negou provimento a agravo regimental interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul em que se pretendia a não incidência desta Súmula quanto aos créditos tributários de competência estadual, cobrados via executivo fiscal contra a massa falida. Afastou-se a alegada ofensa aos artigos 150, § 6º ("Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g."), e 151, III (" Art. 151. É vedado à União:... III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios."), ambos da CF. Precedentes citados: AG (AgRg) 197.625-RS (DJU de 17.10.97); RE (AgRg) 212.839-RS (DJU de 14.11.97). AG (AgRg) 212.963-RS, rel. Min. Octavio Gallotti, 16.6.98. (Grifamos)

25. SPISSO, Rodolfo. Derecho constitucional tributario. Buenos Aires: Ediciones Delpalma, 1993, pp. 281-282.

26. WAGNER, José Carlos Graça. "Penalidades e acréscimos na legislação tributária", in Caderno de Pesquisas Tributárias, vol., 2a tiragem, 1990, pp. 325-336, p. 329.

27. LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. "O depósito administrativo fiscal e a violação ao princípios da razoabilidade e proporcionalidade", in Revista Dialética de Direito Tributário, nº 58, março de 2000, pp. 75-81, p. 75.

28. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 39-40.

29. MENDES, Gilmar Ferreira. " O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", in Repertório IOB de Jurisprudência, nº 14, caderno 2, 2a quinzena de julho de 2000, pp. 361-372, p. 371.

30. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1075–1/DF, Relator Ministro Celso de Mello, data de Julgamento da Liminar no Plenário em 17.06.1998, acórdão pendente de julgamento.

31. Ver COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; DERZI, Misabel Abreu Machado. "Da inexigibilidade das multas fiscais em regime de concordata", in Revista dos Procuradores da Fazenda Nacional, ano 1, nº 1, janeiro de 1997, pp. 63-112


Autor

  • Kiyoshi Harada

    Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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HARADA, Kiyoshi. Imposto de Importação e majoração desmotivada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2001. Acesso em: 24 abr. 2024.