Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/20055
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A incidência econômica dos tributos

A incidência econômica dos tributos

|

Publicado em . Elaborado em .

As escolhas políticas privilegiam incidência tributária sobre o consumo e a renda individuais, desonerando o capital, o lucro e o patrimônio. Em adição, constata-se a pífia presença social do Estado na prestação de bens, serviços e equipamentos públicos essenciais.

RESUMO. O tema capacidade contributiva sempre mereceu destaque, especialmente diante da possibilidade de a tributação alcançar aquela parcela da renda individual necessária, inclusive, à sobrevivência humana digna. A mensuração da capacidade econômica do contribuinte, evidentemente, restringe-se àqueles tributos cuja repercussão é direta, isto é, quando há coincidência entre contribuinte de fato e contribuinte de direito. Neste contexto, emerge a questão da incidência jurídica e econômica do tributo a partir do modelo tributário adotado na Constituição Federal de 1988, em especial pela nítida prevalência da tributação sobre a renda e o consumo individuais concomitantemente à desoneração do patrimônio, do capital e do lucro. Passadas 2 (duas) décadas da promulgação da Constituição, os resultados empíricos têm demonstrado que nosso modelo de tributação pouco tem contribuído para a resolução dos infindáveis problemas sociais brasileiros.

Palavras-chave: Tributação. Capacidade econômica. Sobrevivência humana digna.

ABSTRACT. The theme contributive capacity has always been given emphasis, mostly in the liability of taxation to reach an individual income necessary for the dignified human survival. The measurement of the tax payer´s economic capacity is associated with taxes with direct repercussion, or rather, it must occur when there is a coincidence between actual tax payer and entitled tax payer. That brings up the judicious incidence issue and that of economic tax incidence based on tributary model adopted in the 1988 Federal Constitution, particularly by the clear tax prevalence over income and individual consumption, together with equity unburdening, capital, and profit. Over the past two decades after the promulgation of Constitution, empirical results showed that our tax model has contributed very little to solve endless social problems in Brazil.

Keywords: Taxation. Economic capacity. Dignified human survival


1 INTRODUÇÃO

A história recente da política tributária brasileira aponta a recorrente tributação sobre a renda e o consumo individuais. A situação se agrava a partir do final do século XX quando a carga tributária brasileira apresenta considerável elevação em relação PIB, sem, contudo, este aumento representar melhorias sociais significativas. Pelo contrário, a sociedade se depara com crescentes situações de privação de renda, resultantes tanto da precarização e flexibilização das relações de trabalho como da incapacidade financeira dos entes subnacionais locais e regionais de estabelecerem políticas públicas de desenvolvimento sócio-econômico.

A situação brasileira atual é emblemática da realidade subjacente ao modelo econômico que se convencionou chamar de nova economia. A nação ainda apresenta severo grau de subdesenvolvimento regional, mercado de trabalho extremamente limitado e notáveis restrições orçamentárias. As pessoas, além de conviverem com as regras globais do mercado de trabalho, ainda têm sua renda individual subtraída por uma excessiva tributação sobre a renda e o consumo. Diante deste quadro, coloca-se, então, a seguinte questão: que relevância tem para o Direito a questão da incidência econômica dos tributos?

A resposta necessariamente passará pela diferenciação entre incidência jurídica e incidência econômica do tributo. A primeira encontra abrigo em lei, que enumera todos os elementos estruturantes da obrigação tributária, tanto os objetivos (material, temporal, espacial e quantitativo) quanto o subjetivo (pessoal). Diferentemente ocorre com a incidência econômica do tributo que não encontra abrigo em lei, com exceção do disposto no art. 166, do Código Tributário Nacional, que trata da "restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro [...]". A norma jurídica tributária nem descreve a figura do contribuinte de fato nem lhe atribui responsabilidade tributária, salvo a responsabilidade tributária por infração.

O tema ganha relevância a partir da discussão da (in)eficácia da norma constitucional prevista no art. 145, §1º, que dispõe que "[...] sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]". Evidentemente que a possibilidade de graduar os impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte só é possível naqueles cuja incidência seja direta, tais como o Imposto sobre a Renda, o IPTU e o IPVA. Em relação aos tributos indiretos, a questão do respeito à capacidade econômica se torna impossível, porque aquele que realmente assume o ônus econômico do tributo, o contribuinte de fato, não coincide com o contribuinte de direito.


2 A REPERCUSSÃO TRIBUTÁRIA

A incidência tributária, como visto acima, divide-se em jurídica e econômica. O quadro 1 tenta mostrar esta realidade.

Quadro 1 – Incidência jurídica e econômica dos tributos

A incidência jurídica corresponde ao vínculo jurídico-obrigacional tributário, que "[...] une o sujeito ativo (Fazenda Pública) ao sujeito passivo (contribuinte ou responsável) em torno de uma prestação pecuniária (tributo) ou não pecuniária (deveres instrumentais)" (TORRES, 2005). Tal vínculo jurídico-obrigacional submete-se à estrita reserva legal. Mas, a exigência do cumprimento da obrigação tributária principal pelo sujeito passivo (contribuinte ou responsável) não se confunde com o ônus econômico, tendo em vista que a incidência jurídica distingue-se da incidência econômica do tributo. Esta realidade torna-se bastante nítida na tributação indireta, cuja incidência jurídica vincula o sujeito passivo a uma obrigação tributária, mas a incidência econômica recai, naturalmente, sobre o consumidor (contribuinte de fato).

De forma diferente, na tributação direta a incidência jurídica coincide com a incidência econômica, ou seja, aquele agente que a lei indicou para satisfazer a obrigação tributária é o mesmo que irá suportar o ônus econômico do tributo. Este fato, no entanto, não impede que em determinadas circunstâncias de mercado o ônus econômico do tributo seja agregado aos preços finais de mercadorias, produtos e serviços. É claro que tal artifício encontra limites reais nos níveis de elasticidade-preço de demanda. Por isso, a tributação direta, diferentemente da indireta, privilegia a eficiência econômica, ou seja, os agentes econômicos, onerados segunda sua capacidade contributiva, poderão incluir no preço final de suas mercadorias, produtos e serviços o ônus econômico dos tributos de forma a repassá-lo ao consumidor final. Para isso, necessitam primar pela eficiência econômica, já diante da ineficiência, ao agregar seu ônus econômico do tributo, seus preços finais estarão necessariamente fora da realidade de mercado. Na tributação indireta, além de ofensiva a capacidade econômica individual, esconde-se a ineficiência dos agentes econômicos, repassando ao preço final parte de sua ineficiência juntamente com o ônus econômico dos tributos.

2.1 A INCIDÊNCIA JURÍDICA

O surgimento da obrigação tributária cria um vínculo jurídico-obrigacional entre o sujeito ativo e o sujeito passivo. O sujeito ativo se torna titular do direito de exigir a prestação tributária e o sujeito passivo fica na obrigação de cumpri-la.

A relação jurídica obrigacional tributária obedece ao princípio da estrita reserva legal. O fato típico tributário vem previsto em lei e para que surja a obrigação tributária faz-se necessária a subsunção do fato concreto (fato gerador) à hipótese de incidência legalmente prevista.

O sujeito passivo é aquele a quem a lei indica para cumprir a obrigação tributária: se principal, caberá pagar o montante do tributo e/ou penalidade pecuniária; se acessória, deverá cumprir as prestações, positivas ou negativas, de interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

O CTN, em seu art. 121, define o sujeito passivo da obrigação tributária principal. Contribuinte é, então, o sujeito passivo que tem relação pessoal e direta com o fato gerador do tributo. Já no caso da responsabilidade, a sujeição passiva dar-se através de uma relação de vinculação indireta com o fato gerador. O responsável tributário não deu causa diretamente ao surgimento da obrigação tributária, porém, a lei o elegeu para satisfazer a obrigação tributária.

A sujeição passiva por responsabilidade se divide em duas modalidades: transferência e substituição. No primeiro caso, a ocorrência do fato gerador faz surgir a obrigação tributária para o contribuinte, mas, em razão de fato superveniente, alheio à sua vontade, a satisfação da obrigação tributária é atribuído a terceiro, indiretamente vinculado ao fato gerador. Verifica-se, por exemplo, a transferência nos casos de morte, alienação, sucessão e falência. Já na substituição é a lei que, antecipadamente, determina a responsabilidade pelo pagamento do tributo a terceira pessoa vinculada indiretamente ao fato gerador. Antes mesmo da ocorrência do fato gerador, o substituto tributário já vem genericamente previsto em lei.

2.2 A INCIDÊNCIA ECONÔMICA

A obrigação tributária principal é satisfeita com o pagamento do tributo pelo sujeito passivo (contribuinte ou responsável) que a lei indicou. Este pagamento, contudo, não se confunde com o ônus econômico do tributo. A diferenciação entre pagamento e ônus revela-se através de aspectos pessoais, materiais, temporais e espaciais. O aspecto pessoal ressalta a nítida distinção entre o sujeito passivo (contribuinte de direito) que é impelido a satisfazer (pagar) a obrigação tributária e aquele (contribuinte de fato) que suporta o ônus econômico do tributo, aquele que tem seu patrimônio diminuído. Na tributação indireta evidencia-se esta acentuada distinção.

No plano material existe a possibilidade de o montante do tributo pago não coincide com o ônus econômico suportado. Por exemplo, o consumo final de mercadorias é fato gerador do ICMS, cuja alíquota interna é de 17% ou 18%. Neste caso, sobre o consumidor final (contribuinte de fato) recairá a totalidade do ônus econômico incidente sobre toda a cadeia de circulação, enquanto o sujeito passivo (contribuinte de direito) que realizou a venda a consumidor final irá pagar apenas o ICMS incidente sobre o valor agregado nesta operação, em respeito ao princípio da não-cumulatividade. O quadro 2 mostra esta realidade.

Em uma venda a consumidor final no valor de R$ 1.500,00, o ônus econômico do tributo será de R$ 255,00, suportado pelo contribuinte de fato. Por sua vez, a empresa varejista (contribuinte de direito) que realizou a venda a consumidor final irá pagar (recolher) apenas R$ 85,00, tendo em vista a utilização de crédito fiscal de R$ 170,00. Evidentemente que o pagamento do tributo não reduz o patrimônio da empresa, porque este montante encontra-se embutido no preço final pago pelo consumidor, que assume, de uma só vez, a totalidade do ônus do tributo pago em toda a cadeia de circulação (255 = 60+110+85).

A questão temporal também é importante para a diferenciação entre pagamento do tributo e ônus econômico do tributo. Por exemplo, em uma compra à vista de mercadorias, o consumidor final (contribuinte de fato) será onerado no ato desta compra, enquanto a empresa (contribuinte de direito) deverá efetuar o pagamento deste tributo no prazo estabelecido na legislação tributária. Em sentido inverso, em uma compra a prazo de mercadorias, pode ocorrer de a empresa ter de pagar o tributo antes do recebimento pela venda efetuada, como ocorre, por exemplo, quando a empresa concede ao consumidor final um prazo superior ao estipulado para o pagamento do tributo. Neste caso, o ônus econômico do tributo repercutirá no consumidor final em data posterior ao do pagamento do tributo.

Por fim, a questão espacial, que evidencia a possibilidade de pagamento do tributo em determinado circunscrição territorial e o ônus econômico do tributo em outro. Nesta situação, podem ser incluídas as vendas a consumidor final realizadas através da internet.

2.2.1 A classificação econômica dos tributos

A classificação dos tributos em diretos e indiretos não atende a critérios jurídicos, mas econômicos. Segundo Ataliba (2002, p. 143), "é classificação que nada tem de jurídica; seu critério é puramente econômico. Foi elaborada pela ciência das finanças, a partir da observação do fenômeno econômico da translação ou repercussão dos tributos".

Na tributação direta, o contribuinte de fato, aquele que arca com o ônus econômico do tributo, coincide com o contribuinte de direito, aquele que a lei elegeu para cumprir a obrigação tributária. Na tributação indireta, ocorre o distanciamento entre aquele que deve cumprir a obrigação tributária, o contribuinte de direito, e aquele que efetivamente arcará com o ônus econômico do tributo. Neste caso, o contribuinte de fato entregará ao contribuinte de direito não só o valor das mercadorias, produtos ou serviços vendidos, mas também o montante do tributo devido. No entanto, cabe exclusivamente ao contribuinte de direito a obrigação de repassar para os cofres públicos os montantes tributários que oneraram o contribuinte de fato.

A tributação indireta aparta a obrigação jurídica tributária da capacidade econômica, o que implica na impossibilidade de se identificar a capacidade contributiva individual, já que o ônus econômico do tributo não é assumido pelo sujeito passivo, mas por aquele que consome. Vem à tona, então, a questão da justiça fiscal decorrente da separação entre incidência jurídica e econômica.

2.2.1.1 O Direito como técnica

Souto Maior Borges (2007, p. 187) aponta que "[...] ao direito tributário não interessa a figura do contribuinte de fato". Neste mesmo sentido são as palavras de Carrazza (1996, p. 286):

Esta classificação [econômica], em rigor, não é jurídica, já que, perante o Direito, é despiciendo saber quem suporta a carga econômica do imposto. O que importa, sim, é averiguar quem realizou seu fato imponível, independentemente de haver, ou não, o repasse do valor do imposto, para o preço final do produto, da mercadoria, do serviço etc.

Com a devida vênia, talvez não seja o Direito que não se interesse pelo contribuinte de fato ou pela classificação econômica dos tributos. Na verdade – pelos mesmos motivos que a norma jurídica não cuida de disciplinar a natureza constitutiva das coisas ou dos seres naturais, esta é inata à própria coisa ou ser, independe do Direito –, a enumeração na norma jurídica do contribuinte de fato ou da natureza econômica dos tributos apresenta-se desnecessária, tendo em vista que estes são perfeitamente identificados pela própria natureza constitutiva (econômica) da espécie tributária. O que a norma jurídica cuida é de indicar o sujeito passivo, aquele que diante do Estado vai satisfazer a relação jurídico-obrigacional tributária. Mas, isso não implicar dizer que o contribuinte de fato e a classificação econômica do tributo sejam irrelevantes para o Direito.

O Direito como ciência social aplicada enxerga além da técnica, do mero proceder. Aliás, o tecnicismo do Direito, que resulta em seu afastamento da realidade social, tem sido objeto de atentas considerações de Barcellona (2000, p. 142):

[...] il codice dell’individuo moderno è una procedura per produrre codici [...] In questi termini il diritto moderno è essenzialmente una procedura.

Per queste ragioni si può dire che la società moderna è per eccellenza una società giuridica, cioè uma società che si autorappresenta attraverso il suo diritto como diritto degli individui (una forma vuota). [...] Questa forma vuota riduce infatti il diritto a técnica e porta com sé il primado del mezzo sui fini.

O Direito como técnica tem resultado na imposição de normas que afetam negativamente toda a coletividade. Aqui não se trata de por dúvidas no caráter democrático ou na legitimidade dessas normas jurídicas. Pelo contrário, apesar de democráticas e formalmente legítimas, determinadas normas são suficientemente danosas à própria sociedade. Democracia e justiça social podem, não raras vezes, apresentar conflitos, cuja natureza meramente procedimental das regras do jogo democrático (BOBBIO) não tem se mostrado capaz de atenuar. Na verdade, o Direito como técnica possui exacerbado apego à coerência interna da ordem jurídica: o que importa é a verificação da adequação constitucional e/ou legal das normas, pouco importando se essas são socialmente justas, se afetam a dignidade da pessoa humana ou, ainda, se subtraem as possibilidades materiais de sobrevivência humana digna.

O resultado mais imediato do Direito como técnica é o esvaziamento do discurso jurídico, que se apresenta à sociedade cada vez mais desprovido de sentido e distante da realidade cotidiana das pessoas.

2.2.2 A capacidade contributiva

Atualmente assume foro de grande relevância a questão do limite possível da intervenção estatal na riqueza individual através dos tributos. O estabelecimento de critérios objetivos que compatibilizem a capacidade econômica individual com o limite possível da interferência estatal é impreciso, quando não impossível.

Ao longo da evolução da política tributária brasileira, o tema capacidade contributiva sempre mereceu destaque. Um primeiro mecanismo foi introduzido pela Constituição do Império do Brasil de 1824, que explicitou em seu corpo o princípio da proporcionalidade tributária. Na atualidade, a Constituição Federal de 1988 estampou, em seu art. 145, §1º, que os impostos, "sempre que possível, [...] serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]".

A possibilidade de graduar os impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte só é possível naqueles cuja incidência econômica seja direta, tais como o Imposto sobre a Renda, o IPTU e o IPVA. Em relação aos tributos indiretos, a questão do respeito à capacidade econômica se torna impossível, porque aquele que realmente assume o ônus econômico do tributo, o contribuinte de fato, não coincide com o contribuinte de direito.

De concreto, a capacidade contributiva tem de coincidir com a possibilidade máxima de interferência estatal na riqueza individual, sob pena de provocar a supressão de recursos financeiros necessários à sobrevivência humana digna. Uma política tributária que promova a desoneração tributária direta do capital, do lucro e do patrimônio, por exemplo, e opte por tributar de forma indireta o consumo, afasta qualquer possibilidade de determinação da capacidade contributiva individual.


3 O MODELO TRIBUTÁRIO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Neste ponto, faz-se necessário pontuar a ordem jurídica tributária inaugurada pela Constituição Federal de 1988. Passadas 2 (duas) décadas da promulgação da Constituição, observa-se que o modelo de financiamento estatal adotado pouco contribuiu para a resolução dos infindáveis problemas sociais brasileiros. Coincidência ou não, mas a verdade é que a redemocratização brasileira ocorre concomitantemente com o ressurgimento do liberalismo econômico, travestido agora do neoliberalismo.

O resultado concreto desta infeliz coincidência histórica se fez presente no texto constitucional, que no caso específico do modelo de financiamento estatal adota dois eixos centrais: i) severa tributação sobre a renda e o consumo individuais; e ii) desoneração do patrimônio, do capital e do lucro.

Deve-se salientar que ambos têm íntima relação com a ideologia neoliberal, que defende, de um lado, o afastamento da incidência tributária sobre o capital e o lucro; e, por outro, a maciça transferência de recursos públicos da sociedade para a atividade econômica, por meio de empréstimos de agentes financeiros estatais, subsídios, obras de infra-estrutura e benefícios fiscais. Esta realidade deixa transparecer as tênues fronteiras entre os sistemas político, econômico e legal. Neste sentido, Barcellona (2000, p. 153) afirma:

Il sistema econômico definisce in ultima istanza i fini e gli obiettivi entro cui l’agire político viene collocato come puramente strumentale e contestualmente definisce lo spazio delle regola giuridiche como regola del gioco, procedure e tecniche funzionali allá negoziazione degli interessi economici.

Da Rosa (2009, p. 51) é mais enfático ao alertar para a criação de um novo princípio jurídico "[...] «o do melhor interesse do mercado». O Direito é um meio para atendimento do fim superior do «crescimento econômico»".

Evidentemente que as repercussões sócio-econômicas provocadas pela ordem jurídica atual podem ser alcançadas e mensuradas quantitativamente. Isto não representa um reducionismo, um enclausuramento de uma realidade social em uma fórmula matemática, em um resultado exato; mas uma possibilidade objetiva de confrontar uma face mensurável realidade concreta (plano material) com o plano normativo.

3.1 OS RESULTADOS MACROECONÔMICOS

Embora o Brasil ainda se encontre distante de ser reconhecido como um Estado que proporciona uma ampla rede de segurança social, é patente o fenômeno do crescimento das receitas tributárias. Neste sentido, os dados levantados, relativos ao período de 1990 a 2007, indicam que a carga tributária brasileira (CTB) teve um incremento real superior, por exemplo, ao PIB e à Conta Nacional Salários e Remunerações, conforme mostrado no gráfico 1.

Gráfico 1 – Variação real acumulada das contas nacionais

No período de 1990 a 2007 a carga tributária brasileira teve um incremento de 101,58%, superior ao próprio crescimento do PIB no mesmo período (67,04%). Por outro lado, os dados indicam que, entre 1990 a 2006, a carga tributária teve um incremento real de 83,77%, enquanto a conta nacional Salários e Remunerações [01] de apenas 51,52%. Isto implica em um maior comprometimento da renda individual destinada ao pagamento de tributos e, consequentemente, uma diminuição da renda individual disponível. Além disso, existe a perda do poder aquisitivo da renda dos trabalhadores, resultante das próprias condições do mercado de trabalho. Por exemplo, entre 1990 a 2006, os salários e remunerações apresentaram um incremento de 51,52%, inferior, portanto, ao do crescimento econômico (PIB) no período analisado.

Outros dados demonstram que, no período analisado, a carga tributária foi suportada prioritariamente pela pessoa física, conforme mostrado no gráfico 2.

Gráfico 2 – Carga tributária incidente sobre pessoas físicas e jurídicas

O Gráfico 2 mostra que, no período de 1990 a 2007, a carga tributária em relação ao PIB teve uma elevação de 28,79% para 34,74%. Mas, em todo o período analisado, os tributos indiretos e diretos suportados pelas pessoas físicas corresponderam, aproximadamente, a 2/3 da carga tributária nacional.

O resultado acima induz a discussão sobre a questão do limite dos tributos indiretos na composição total da carga tributária nacional. Os dados estão dispostos no gráfico 3.

Gráfico 3 – Composição da carga tributária brasileira

No período analisado, a participação dos tributos indiretos na carga tributária total passou de 52,45% para 43,45%. Longe de comemorar o decréscimo da incidência dos tributos indiretos, há sérias preocupações quanto à repartição da carga tributária brasileira, principalmente porque em aproximadamente metade da carga tributária se verifica a impossibilidade de mensuração da capacidade contributiva individual. A experiência internacional (DUE, 1974) tem apontado que a tributação indireta acima de 30% da carga tributária passa a ter natureza regressiva.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão sobre o modelo político-econômico dominante, para se efetivar, necessitará perpassar temas controversos que a cultura de poder no Brasil nunca autorizou discuti-los, posto que envolvem interesses econômicos inestimáveis, imprevisíveis e, até então, intocáveis. São comportamentos políticos que veiculam privilégios históricos e indevidos, que afetam direta e indiretamente à sociedade brasileira. Dentro deste contexto, inclui-se a questão do ônus econômico do tributo, um dos temas mais controvertido, exatamente porque a democracia e o consenso social não foram capazes ainda de equacionar a relação entre tributação e justiça social.

Como fenômeno associado ao exercício do poder, a esfera política apresenta-se vulnerável a grupos de pressão. A norma jurídica, neste caso, representa o instrumento através dos quais os grupos dominantes satisfazem seus interesses. Por exemplo, contrapondo-se à vontade geral e em atendimento à vontade econômica dominante, é possível ocorrer o direcionamento da política tributária com o fim de desonerar a atividade econômica privada (capital, lucro e patrimônio) e imputar uma maior carga tributária à sociedade (consumo e renda). Neste sentido, os dados da realidade sócio-econômica apontam que a carga tributária é suportada prioritariamente pela pessoa física. No período de 1990 a 2007 o PIB brasileiro experimentou uma elevação de 67,04%; os Salários e Remunerações incremento, até 2006, de 44,11%; enquanto a carga tributária elevou-se em 101,58%. A primeira conclusão a se tirar desse fenômeno é que a carga tributária eleva-se independentemente da geração de novas riquezas. O problema é saber de onde estão sendo retirados esses recursos.

Os dados indicam que a realidade brasileira neste período pouco foi alterada, com a tributação suportada pela pessoa física permanecendo em torno de 2/3 do total da carga tributária. À atividade econômica privada restou arcar com os outros 1/3 da carga tributária no período.

A análise da composição da carga tributária revela que os tributos indiretos ainda têm forte participação no total arrecadado, apesar do decréscimo de 52,45%, em 1990, para 43,45%, em 2007.

Evidentemente que este panorama torna-se potencialmente mais ofensivo quando a realidade econômica subjacente restringe a renda individual decorrente do trabalho. Por um lado, as regras de mercado impõem uma renda habilmente mensurada para fornecer, apenas, o mínimo necessário à sobrevivência humana, calculada em função apenas das necessidades mais elementares, como alimentação e vestuário, restringindo ou impossibilitando o consumo autônomo de bens e serviços fundamentais à existência humana digna, como saúde, educação e laser. Por outro, as escolhas políticas das bases econômicas de incidência tributária privilegiam o consumo e a renda individuais, desonerando o capital, o lucro e o patrimônio. Em adição, constata-se a pífia presença social do Estado, cuja prestação de bens, serviços e equipamentos públicos essenciais, tais como a saúde, educação, segurança, transporte público e tutela jurisdicional, são mínimos e precários. Evidentemente que a sobreposição desses fenômenos tem colocado uma parcela considerável da sociedade brasileira em situações de vulnerabilidade social.


BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Eduardo de Carvalho. Externalidades. In: BIDERMAN, Ciro; ARVATE, Paulo. Economia do setor público. 4. reimpr. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 16-33.

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

BARCELLONA, Pietro. L’individuo e la comunità. Roma: Edizioni Lavoro, 2000.

______. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. Tradução Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 1995.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009

BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1996.

COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho y economía. 2. reimpr. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2002.

DA ROSA, Alexandre Morais. Crítica ao discurso da Law and Economics: a exceção econômica do direito. In: DA ROSA, Alexandre Morais; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 3-140.

DUE, John F. Tributação indireta nas economias em desenvolvimento. São Paulo: Perspectiva, 1974.

ESTIGARA, Adriana; PEREIRA, Reni; LEWIS, Sandra A. L. Bardon. Responsabilidade social e incentivos fiscais. São Paulo: Atlas, 2009.

FEITOSA, Raymundo Juliano. Finanças públicas e tributação na constituinte: 1987/1988. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.

______. Política tributária no Brasil: 1966/1984. Passo Fundo: Universitária, 2006.

FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Política Tributária e Justiça Social: relações entre tributação e os fenômenos associados à pobreza. Campina Grande: EDUEP, 2007.

GARCÍA, Maria J. Sánchez. Reflexiones sobre la medición de la pobreza en el Estado de Bienestar. In: MARCÍAS, José Ignacio Sánchez; ORTEGA, Rafael Calvo; LÓPEZ, Fernando Rodríguez. Economia, Derecho y Tributación. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2005, p. 281-303.

GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tributação e direitos fundamentais. In: FISCHER, Octavio Campos (Coord.). Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, p. 9-17.

JANNUZZI, Paulo de Martino. Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados a aplicações. 2. ed. Campinas: Alínea, 2003.

KERSTENETZKY, Célia Lessa. Desigualdade como questão política. 2003. Social Watch. Disponível em: <www.socwatch.org.uy>. Acesso em: 07 de abr. 2004.

LEHNER, Moris. Consideração econômica e tributação conforme a capacidade contributiva: sobre a possibilidade de uma interpretação teleológica de normas com finalidades arrecadatórias. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurelio (Coord.). Direito tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 143-154.

PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e Mercados. 4. reimpr. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

PINTO, Márcio Percival Alves; BIASOTO JR., Geraldo (orgs.). Política fiscal e desenvolvimento no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.

POHLMANN, Marcelo Coletto; IUDÍCUBUS, Sérgio de. Tributação e política tributária: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2006.

SABBAG, César de Moraes. Orçamento e desenvolvimento: recurso público e dignidade humana, o desafio das políticas desenvolvimentistas. São Paulo: Millennium, 2006.

SANTOS, Nélida. A capacidade contributiva e os símbolos de riqueza. São Paulo: Lex, 2007.

SHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

______. Ética e justiça tributária. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurelio (Coord.). Direito tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 173-196.

ZILVETI, Fernando Aurelio. Capacidade contributiva e mínimo existencial. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurelio (Coord.). Direito tributário: estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 36-47.

ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel (orgs.). 2 reimp. Direito & economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.


Nota

01 Os dados das Contas Nacionais de 2007 ainda não estão disponíveis.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Alexandre Henrique Salema; FEITOSA, Raymundo Juliano Rego. A incidência econômica dos tributos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3012, 30 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20055. Acesso em: 24 abr. 2024.