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Expurgos do FGTS.

Uma parábola... trabalhista

Expurgos do FGTS. Uma parábola... trabalhista

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Afonso, João e Luís, três engenheiros recém-formados, foram admitidos numa empresa no mesmo dia (o ano era 1968) e com o mesmo salário. O primeiro já trabalhara antes, com carteira assinada, e sua conta vinculada ao FGTS, fruto da relação de emprego anterior, apresentava um saldo de Cr$ 400,00, quando ele pediu demissão para assumir o cargo no novo emprego. Os demais eram empregados pela primeira vez.

Dois anos depois, Luís pediu demissão e passou a trabalhar para outro empregador, embora continuasse percebendo um salário igual ao daqueles seus ex-colegas.

Em 1984, coincidentemente, os três foram demitidos sem justa causa. E reuniram-se para trocar lamentações, falar mal dos ex-empregadores, chorar o leite derramado. E conferir as verbas rescisórias recebidas, bem como suas contas vinculadas ao FGTS.

João, um mês antes de ser mandado embora, detinha de saldo Cr$ 12.600.000,00, resultado dos depósitos efetuados pelo empregador em seu nome, devidamente atualizados monetariamente. Sacara, então, para adquirir a sonhada casa própria, Cr$ 12.000.000,00, restando, portanto, apenas Cr$ 600.000,00 de saldo.

Afonso, cujo resultado dos depósitos efetuados em seu favor pelo mesmo empregador que o de João – mais a atualização monetária – era, também, Cr$ 12.600.000,00, jamais efetuara qualquer saque. E ainda tinha, em conta separada, aqueles Cr$ 400,00 transferidos que, atualizados durante os últimos 16 anos, somava quase Cr$ 40.000,00.

Luís, por sua vez, levara transferido do primeiro emprego, em 1970, um saldo na conta vinculada ao FGTS de cerca de Cr$ 3.000,00 (com a correção monetária, esse valor, que ficara em conta separada e rendendo 3% ao ano, totalizava Cr$ 270.000,00) e, depositado pelo segundo empregador, devidamente atualizado monetariamente, tinha, em outra conta vinculada, Cr$ 10.950.000,00.

Que descobriram? João recebera, a título de multa indenizatória pela demissão imotivada, 10% (era antes da CF/88) do total de depósitos, ou seja, Cr$ 1.260.000,00. E levantara, no banco depositário, os Cr$ 600.000,00 ali restantes.

Afonso, recebera como multa os mesmos Cr$ 1.260.000,00 pagos a João, a que somou os Cr$ 40.000,00 de uma conta e os Cr$ 12.600.000,00 da outra.

Quanto a Luís, recebera Cr$ 1.095.000,00 de multa e sacara os Cr$ 270.000,00 mais ao outros Cr$ 10.950.000,00.

Suponhamos que, exatamente no mês em que fora efetuada a última atualização dos saldos, após o saque efetuado por João que praticamente zerara sua conta vinculada, o gestor do FGTS praticara um erro, corrigindo o saldo existente a menor, digamos, em 5% em vez de em 6%.

João cobrou na Justiça Federal essa diferença de 1% sobre os Cr$ 600.000,00 (aproximadamente Cr$ 5.700,00); Afonso, sobre os Cr$ 12.640.000,00 (cerca de Cr$.. 12.000,00); e Luís, sobre os Cr$ 11.220.000,00 (uns Cr$ 10.700,00), que eram os respectivos saldos quando fora praticado o erro.

E na Justiça Trabalhista, quanto pôde ser cobrado de cada ex-empregador?

Afonso reclamou 10% (valor da multa) da diferença entre o que lhe fora pago e o que lhe era devido (Cr$ 1.272.000,00 – Cr$ 1.260.000,00). Luís pediu 10% sobre a diferença entre o que lhe fora pago e o que lhe era devido (Cr$ 1.105.000,00 – Cr$ 1.095.000,00).

E João, quanto pôde reclamar de seu ex-empregador? Reclamou 10% da diferença entre o que lhe era devido e o que lhe fora pago. Como ele efetuara um saque, vultoso, na vigência do contrato, recebeu ... os mesmos Cr$ 12.000,00 reclamados por Afonso.

Resumo da história:

A demissão imotivada dos três amigos, dadas as peculiaridades de cada caso, resultou em:

Afonso João Luís

Multa Inicial (empregador)

1.260.000,00

1.260.000,00

1.095.000,00

Multa Adicional (empregador)

12.000,00

12.000,00

10.000,00

Saque inicial (gestor)

12.640.000,00

600.000,00

11.220.000,00

Saque adicional (gestor)

12.000,00

5.700,00

10.700,00



Mas como? se os três trabalharam o mesmo tempo e ganhando o mesmo salário, pode-se indagar.

O exemplo demonstra, sobejamente, que um mesmo erro (no caso, 1% a menos numa correção) provoca diferentes efeitos e acarreta responsabilidades financeiras distintas para o gestor e para o ex-empregador do empregado demitido sem justa causa.

Acrescente-se que o gestor viu-se obrigado a aplicar a mesma correção na conta vinculada de todos os empregados e sobre os respectivos saldos existentes, enquanto o empregador ficou obrigado a efetuar aquela correção somente em favor dos empregados que foram demitidos sem justa causa e sobre o total, devidamente atualizado, de todos os depósitos efetuados por ele; não sobre o saldo existente, porque o saldo existente na conta vinculada inclui estes depósitos mais os valores transferidos de empregos anteriores, que não integram a base de cálculo da multa devida, como parte das verbas rescisórias, pelo empregador que demitiu sem justa causa.

Será que basta para convencer os relutantes, sem restar qualquer dúvida, que as duas ações (perante a Justiça Federal, em desfavor do gestor do FGTS, e perante a Justiça Trabalhista, em face do empregador) são absolutamente autônomas e desvinculadas uma da outra? Que o percentual que cabe a um pagar é, ou pode ser, diferente do percentual que cabe ao outro pagar? E que se um quarto empregado, admitido e demitido nas mesmas condições de tempo de serviço e salário – sem mudar de emprego –, houvesse sacado tudo antes de ser cometido o erro, não teria direito de cobrar um centavo sequer do gestor do Fundo, mas permaneceria com o direito de reclamar do ex-empregador a diferença conseqüente daquele erro?

Nesse exemplo "simplório", nem tão hipotético assim (aliás, muito real), em que foram adotados números redondos para facilitar o raciocínio,

Empregado

devido pelo Gestor

devido pelo Empregador

Afonso

0,949% = 12.000,00

0,952% = 12.000,00

João

0,950% = 5.700,00

0,952% = 12.000,00

Luís

0,953% = 10.700,00

0,913% = 10.000,00

Manoel (*) –quarto colega z e r o 0,952% = 12.000,00

(*) Quando da demissão imotivada, Manoel recebera a multa de Cr$ 1.260.000,00 (do empregador, como parte das verbas rescisórias) e mais nada (do banco depositário/gestor do FGTS).


Como haver uma ação acessória de outra? Qual das duas seria a principal?

Somente no caso do Luís, o valor cobrado do gestor do FGTS foi um pouco maior que o valor reclamado do ex-empregador. Se houvesse uma ação acessória, seria, na maioria esmagadora dos casos, aquela perante a Justiça do Trabalho, porque, já nas Institutas de Justiniano (séc. VI d.C.), Livro 3, Título 21, Parágrafo 5º., havia essa máxima, óbvia, evidente, lógica: "Uma coisa não pode ser acessória, se for maior do que a coisa tida por principal." (Nec plus in accessione potest esse, quam in principali re).

Pode haver ação acessória, no Direito Processual brasileiro, que não implique prevenção de juízo? Pode haver prevenção entre juízos cujas competências sejam absolutas, imodificáveis, improrrogáveis, ratione materiæ ou ratione personæ?

As Instituições de Justiniano, do séc. VI d. C., já ensinavam essa máxima, óbvia, evidente, lógica: "Uma coisa não pode ser acessória, se for maior do que a coisa tida por principal." A soma de todos os depósitos, devidamente atualizados, na maioria esmagadora dos casos, será maior que o saldo remanescente em conta (pois inclui os saques efetuados). Se não tiver havido saques na vigência do contrato, o saldo se confunde com o total dos depósitos.

Por oportuno, segundo a doutrina, é o Autor quem indica se considera a ação acessória, ao ajuizá-la perante o mesmo juiz, prevento, que conhecera antes a outra ação, dita principal.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CELSO NETO, João. Expurgos do FGTS. Uma parábola... trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2006. Acesso em: 25 abr. 2024.