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Da inexistência de competência federal delegada nos Juizados Especiais Estaduais da Fazenda Pública

Da inexistência de competência federal delegada nos Juizados Especiais Estaduais da Fazenda Pública

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A criação dos juizados especiais estaduais da Fazenda Pública não lhes delegou a competência para processar e julgar causas previdenciárias nas comarcas que não sejam sede de vara federal.

Sumário: O presente trabalho rutila a criação dos juizados especiais estaduais da Fazenda Pública não teve o condão de lhes delegar a competência para processar e julgar causas previdenciárias nas comarcas que não sejam sede de vara federal.


É do conhecimento do meio forense corriqueiras demandas individuais que não envolvem grandes valores contra a Fazenda Pública estadual ou municipal aportarem aos milhares nos gabinetes dos juízes de direito, podendo trazer o prejuízo de se misturarem a controvérsias de grande repercussão social e política, que merecem melhor reflexão, e, no final das contas, todos saborearem transtornos indesejados.

Seguindo a linha da separação desses feitos de natureza distintas, como ocorreu na justiça federal, foram criados, por meio da Lei 12.153/2009, os juizados especiais estaduais da Fazenda Pública estadual e municipal.

Sabedor da maior capilaridade da justiça comum estadual, ocorreu-me o pensamento se teria surgido a competência federal delegada na direção desses juizados. Logo me deparei com os obstáculos intransponíveis erguidos pelo nosso ordenamento jurídico.

Eis o artigo 20 da Lei 10.259/2001:

Art. 20. Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual.

Da sua leitura, percebe a restrição imposta ser uma vedação de procedimento apenas, ou seja, não havendo vara federal no domicílio do autor, o segurado pode ajuizar sua ação, conforme lhe faculta o artigo 109, § 3º, da Constituição Federal, na Justiça Estadual, contudo o rito a ser adotado não poderá ser o especial (previsto na Lei 10.259/2001), mas apenas o comum ordinário ou sumário.

Como em nenhum momento a Carta Magna garante ao segurado o direito constitucional de ter seu feito processado no rito especial, determinando apenas que a "lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal" (CF/88, artigo 98, parágrafo único), nada impede que esta lei venha proibir a aplicação do seu rito em ações que envolvam entes federais no âmbito da justiça estadual, reservando-o às demandas ajuizadas na justiça federal.

Assim, o artigo 20 da Lei 10.259/2001 não retira a competência federal delegada à justiça estadual, pois o segurado pode ajuizar sua demanda na justiça local sem nenhum empecilho, embora, caso queira se valer do rito especial previsto na referida Lei que regulamentou o artigo 98, parágrafo único, da Constituição, deverá ajuizar sua ação na justiça federal.

Não fosse isso, há clara incompatibilidade entre a Constituição Federal (art. 109, I, § 3° e § 4°) e a Lei 9.099/1995 (art. 3°, § 2°, art. 8° e art. 41, § 1°), se fosse aplicado seu rito especial nas causas previdenciárias aforadas na justiça estadual. Veja-se:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.

[...]

§ 3º. Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal , e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

§ 4º. Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau.

Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:

[...]

§ 2º Ficam excluídas da competência do Juizado Especial as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, e também as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial.

Art. 8º Não poderão ser partes, no processo instituído por esta Lei, o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil.

Art. 41. Da sentença, excetuada a homologatória de conciliação ou laudo arbitral, caberá recurso para o próprio Juizado.

§ 1º O recurso será julgado por uma turma composta por três Juízes togados, em exercício no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado.

A primeira delas diz respeito ao órgão recursal quando o processo se desenvolver na justiça comum (competência delegada). Enquanto a Carta da República determina que o recurso será dirigido ao Tribunal Regional Federal, a Lei 9.099/1995 prevê o julgamento dos recursos por uma turma composta por três juízes togados em exercício no primeiro grau de jurisdição.

Não fosse isso, a leitura do art. 109, parágrafo 4º, da Constituição Federal conduz a um vácuo do sistema recursal: a) a Turma Recursal de juizados especiais federais não tem competência para apreciar os recursos interpostos por sentença de juízes investidos em delegação federal (é o TRF); b) o Tribunal Regional Federal aprecia recursos contra decisões dos juízes com competência delegada, entrementes não a tem para apreciação de recursos de juízes federais em exercício nos juizados especiais federais (é a Turma Recursal). Impossível ainda conferir competência recursal à Turma Recursal do juizado especial estadual por total ausência de amparo legal.

Por fim, a própria Lei 9.099/1995 exclui da competência do juizado especial estadual as causas de interesse da Fazenda Pública, além de não admitir como parte na demanda processada sob seu rito pessoa jurídica de direito público.

Para tanto foi promulgada a Lei 12.153/2009, que criou os juizados especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios. Em todo caso, seu art. 1° registra os juizados especiais da Fazenda Pública integrarem o sistema dos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal, o art. 2° determina a competência desses Juizados para processar, conciliar e julgar causas cíveis de interesse dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios até o valor de 60 (sessenta) salários mínimos – isto é, não se inclui interesse de ente federal – e o art. 5° [01] não prevê entidade federal com possibilidade de ocupar o polo passivo da lide processada sob sua ritualística.

Por todo o exposto, diante desses regramentos, não há competência federal delegada no âmbito dos juizados especiais estaduais, tampouco o juiz estadual, investido de competência delegada, pode aplicar, em matéria previdenciária, o rito de competência do juizado especial federal.

Há interesse julgado do STJ neste mesmo tom:

RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. APLICAÇÃO DO RITO ESPECIAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS ÀS CAUSAS JULGADAS PELO JUIZ DE DIREITO INVESTIDO DE JURISDIÇÃO FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. VEDAÇÃO EXPRESSA CONTIDA NO ARTIGO 20 DA LEI Nº 10.259/2001. 1. Em razão do próprio regramento constitucional e infraconstitucional, não há competência federal delegada no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, nem o Juízo Estadual, investido de competência federal delegada (artigo 109, parágrafo 3º, da Constituição Federal), pode aplicar, em matéria previdenciária, o rito de competência do Juizado Especial Federal, diante da vedação expressa contida no artigo 20 da Lei nº 10.259/2001. 2. Recurso especial provido. (REsp 661.482/PB, Sexta Turma, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. p/ acórdão Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 05/02/2009, DJe 30/03/2009)

Não há acolhida para analogia ou interpretação ampliativa da competência da justiça federal, de modo a atribuir ao juizado especial estadual competência para causas de natureza previdenciária, em virtude de a competência federal ter natureza constitucional, não se falando em ampliação ou restrição mediante lei infraconstitucional ou construção jurisprudencial [02].

Por todas essas razões, inexiste a figura da competência delegada em sede de juizado especial estadual, tendo em vista a vedação da utilização do rito previsto na Lei 10.259/2001 na justiça estadual (art. 20), haver incompatibilidade dessa suposição com a Constituição Federal e a Lei 9.099/1995, e a Lei 12.153/2009 ter instituído os juizados especiais da Fazenda Pública dentro do sistema dos juizados especiais dos Estados e do Distrito Federal, não havendo qualquer previsão de tutela a interesse público federal.


Notas

01 Art. 5° Podem ser partes no Juizado Especial da Fazenda Pública:

I – como autores, as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, assim definidas na Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006;

II – como réus, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os Municípios, bem como autarquias, fundações e empresas públicas a eles vinculadas.

02 STJ, CC 18.926/SP, Segunda Seção, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 18/02/2002, DJ 15/04/2002.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Henrique Jorge Dantas da. Da inexistência de competência federal delegada nos Juizados Especiais Estaduais da Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3022, 10 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20174. Acesso em: 26 abr. 2024.