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Endowments no Brasil: a importação de uma estratégia de sustentabilidade

Endowments no Brasil: a importação de uma estratégia de sustentabilidade

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Criados para as mais diversas causas de interesse coletivo, os endowments permitiram às entidades filantrópicas e educacionais edificar uma base financeira sólida, capaz de sustentar ou complementar suas atividades com recursos gerados a partir de seu próprio patrimônio.

Resumo do artigo:

Criados para as mais diversas causas de interesse coletivo, os endowments permitiram às entidades filantrópicas e educacionais edificar uma base financeira sólida, capaz de sustentar ou complementar suas atividades com recursos gerados a partir de seu próprio patrimônio. Dessa forma, tornaram-nas menos dependentes de novas doações e patrocínios, trouxeram maior estabilidade financeira e asseguraram a sua viabilidade operacional, permitindo que essas instituições se organizassem e crescessem a proporções que antes estavam fora de seu alcance. Existe espaço no Brasil para a criação de uma estrutura semelhante, apesar dos desafios que ainda precisam ser enfrentados.

Abstract:

Created to provide for various not-for-profit activities, endowment funds gave to philanthropic and educational institutions the ability to build solid financial basis, capable of supporting or complementing their activities with income generated by their own assets. By doing so, these funds made their parent institutions less dependent on immediate use donations and sponsors, bringing greater financial stability and guarantying minimum operation conditions, allowing them to grow to larger proportions. It is currently possible to create similar structures in Brazil, despite there being a few challenges yet to be overcome.

Palavras-chave:

Endowment, Brasil, sustentabilidade, doação, investimento

Key words:Endowment, Brazil, sustainability, giving, investment

Sumário:1 Introdução – 2 Endowment – 3 Origem e Definição – 4 Política de Investimento – 5 Regras de Resgate – 6 Endowments no Brasil – 7 Glossário


Introdução

A Importação de uma Estratégia de Sustentabilidade

Criados para as mais diversas causas de interesse coletivo, os endowments permitiram às entidades filantrópicas e educacionais edificar uma base financeira sólida, capaz de sustentar ou complementar suas atividades com recursos gerados a partir de seu próprio patrimônio. Dessa forma, tornaram-nas menos dependentes de novas doações e patrocínios, trouxeram maior estabilidade financeira e asseguraram a sua viabilidade operacional, permitindo que essas instituições se organizassem e crescessem a proporções que antes estavam fora de seu alcance. Existe espaço no Brasil para a criação de uma estrutura semelhante, apesar dos desafios que ainda precisam ser enfrentados.

Breve Conceito de Endowment

Consideramos importante, ao escrever um artigo que utiliza, já no título, uma palavra de origem estrangeira e de uso ainda não corrente em nosso território, iniciar por uma breve exposição do conceito, a fim de assegurar que todos os leitores partilhem do mesmo entendimento do termo, pelo menos durante a leitura e interpretação deste texto. Essa breve conceituação inicial, porém, não se pretende exaustiva.

Trataremos mais adiante, de maneira mais detida, da definição e das características essenciais dos endowments. Além disso, incluímos ao final deste artigo um glossário, a fim de fazer uma pequena contribuição à precisão terminológica neste tema, com o intuito de evitar ambigüidades no discurso e facilitar o debate sobre o assunto no futuro. É recomendável, àqueles que se aventuram no tema pela primeira vez, uma leitura prévia do glossário, o que ajudará a precisar o sentido com que alguns termos e expressões comuns foram utilizados ao longo do presente trabalho.

Em poucas palavras, os endowments são estruturas que recebem e administram bens e diretos, majoritariamente recursos financeiros, que são investidos com os objetivos de preservar o valor do capital principal na perpetuidade, inclusive contra perdas inflacionárias, e gerar resgates recorrentes e previsíveis para sustentar financeiramente um determinado propósito, uma causa ou uma entidade.

Apesar de seu conceito poder ser aplicado em benefício de qualquer causa ou entidade, os endowments mostraram-se particularmente eficientes no meio acadêmico, com destaque para os endowments das grandes universidades norte-americanas e européias, cujo volume de recursos financeiros por instituição muitas vezes supera os bilhões de dólares.

Além das universidades, alguns dos maiores endowments do mundo servem a causas sociais, sendo a principal forma de custeio das atividades de diversas fundações e associações sem fins lucrativos.

Antes de avaliar o cenário atual, convém entender de onde surgiram essas ferramentas de sustentabilidade financeira.


Endowment – Origem e Definição

Origem

Não se tem certeza sobre a sua origem exata, mas a figura dos endowments existe desde tempos imemoriais. Em seus primórdios não possuía, certamente, os aspectos jurídicos e financeiros organizados e regulamentados que hoje podemos observar em diversos países, mas o conceito por trás dessa estrutura remonta à época medieval.

Entre os exemplos mais antigos, encontramos a doação de terras agrícolas à Igreja. Essas doações eram consideradas extremamente generosas, uma vez que a propriedade imobiliária era a grande medida de riqueza na época feudal. E, para perenizar o sustento da instituição religiosa, as doações eram realizadas com cláusulas de inalienabilidade, que impediam a venda dos imóveis. A restrição, imposta pelos próprios doadores, resultava na criação de uma reserva patrimonial perene, em ativos reais inalienáveis, que gerava renda para a Igreja por meio da cobrança de aluguéis dos terrenos; da cobrança de impostos feudais, como a talha (parte da produção) e a banalidade (taxa pela utilização de benfeitorias como moinhos e fornos); e da participação na venda ou escambo das mercadorias ali produzidas.

Exemplos posteriores de aplicação da filosofia dos endowments ocorreram nas "guildas" de comércio ou corporações de ofício da Idade Média, que igualmente acumulavam riqueza não apenas como uma reserva para emergências, mas também para servir como fonte perene de sustento para suas causas de longo prazo. (RUSSELL, 2006, p. 1)

Já em tempos modernos, os exemplos mais freqüentes são o das instituições de ensino, principalmente as de ensino superior, americanas, européias e algumas orientais, e o das entidades filantrópicas.

Veremos, no presente artigo, como essa evolução, que levou os endowments de meras doações de terras a estruturas financeiras complexas, resultou também em um amadurecimento do pensamento acadêmico e profissional sobre alguns dos principais aspectos operacionais que os caracterizam, como as Políticas de Investimento e as Regras de Resgate.

Definição

Uma confusão conceitual comum, decorrente de uma simplificação freqüente, é a crença de que os endowments são fundos de investimento. Apesar das estreitas ligações entre os endowments e os fundos de investimento, as expressões não são sinônimas. Cada uma delas carrega significado próprio.

Fundos de investimento são instrumentos jurídicos por meio do qual diversos investidores se reúnem para aplicar recursos, assumindo um determinado nível de risco, que é por eles considerado tolerável, e esperando obter um determinado retorno financeiro. No Brasil, os fundos de investimento são regulados pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, que os define da seguinte maneira: "fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros" .

Os endowments também são uma comunhão de recursos, de uma ou de várias entidades, que são aplicados em ativos financeiros, mas as semelhanças com os fundos de investimento terminam por aí. A grande diferença entre um fundo de investimento e um endowment reside na utilidade de cada estrutura. Os fundos de investimento, conforme mencionado acima, são instrumentos para investidores que buscam retorno financeiro. Já os endowments são instrumentos criados para perenizar a existência e a viabilidade financeira de uma instituição, atividade ou entidade de interesse coletivo. O patrimônio de um endowment é atrelado à sua causa, ao seu propósito, e é desse vínculo que decorrem todas as suas outras características essenciais.

A tradução literal mais aceita para o termo endowment é "dotação", o que remonta ao significado original do termo em inglês. Na origem, "to endow money", significava vincular o dinheiro a uma causa, criando um endowment, ou uma "dotação patrimonial". A dotação patrimonial era um conjunto de ativos atrelado permanentemente ao custeio de um beneficiário. Por sua natureza perene, as dotações patrimoniais passaram a compor "fundos", que ficaram conhecidos como "endowment funds" (no sentido atécnico e genérico da palavra – grupo de ativos, de recursos – o que inclui, mas não se restringe a fundos de investimento). Os "fundos de dotação" hoje são comumente chamados apenas de endowments, termo que, sozinho, passou a carregar o sentido completo daquilo que são atualmente. A tradução como "dotação patrimonial" é, na opinião do autor, insuficiente para carregar todo o significado do termo e, por isso, julgamos mais apropriado traduzir endowment como "Fundo Patrimonial".

Por fim, chegando à definição, o endowment ou Fundo Patrimonial é a parte do patrimônio de uma organização que é segregada do patrimônio operacional e de suas demais reservas (segregação meramente contábil-administrativa ou mesmo em uma personalidade jurídica distinta), com o objetivo de ser mantido na perpetuidade, de maneira que seu poder aquisitivo seja preservado ou expandido ao longo dos anos. O Fundo Patrimonial deve ser mantido investido com o intuito de gerar receita periódica e previsível para custear toda ou parte da missão da organização beneficiária.

O endowment pode ser criado pela própria instituição, mas geralmente é formado a partir de uma ou de várias doações, realizadas por doadores preocupados com a perenidade da entidade beneficiada. Não existe uma única forma jurídica possível para os endowments – o que os caracteriza é a sua estratégia de sustentabilidade.

Características Essenciais

No Reino Unido, os endowments são classificados em "Permanent Endowments", quando os seus administradores não possuem autorização para gastar qualquer parcela do Principal, "Expendable Endowments" onde esse gasto pode ocorrer, ainda que sujeito a restrições, e "Term Endowments" , quando a orientação é que o capital seja despendido em favor de determinada causa, por determinado período ou até que determinado objetivo seja alcançado. Evidentemente, no terceiro e último caso, o endowment não é criado com a pretensão de perdurar para sempre e, cumpridos seus objetivos, extingue-se.

Apesar de classificados como um tipo de endowment, os Term Endowments são muito menos freqüentes que as outras duas espécies. Isso ocorre porque a estrutura de um endowment, com toda a sua complexidade, geralmente se justifica pela necessidade de proteger e assegurar a viabilidade operacional dos beneficiários para sempre.

Para alcançar esse objetivo, a estratégia geral de um endowment é que o seu patrimônio deve ser preservado na perpetuidade, e investido para gerar retorno. Dessa estratégia decorrem as duas características mais marcantes da estrutura de um endowment, que são, sem dúvidas, sua Regra de Resgate e sua Política de Investimento.

A Regra de Resgate é a norma institucional que estabelece o ritmo de gastos permitido para o endowment. Em alguns casos, diversas regras são compiladas em uma Política de Resgates, podendo combinar cálculos objetivos com decisões discricionárias subjetivas, atribuídas a um indivíduo ou a um órgão colegiado. O ritmo de gastos estabelecido pela Regra de Resgate deve levar em consideração a expectativa de retorno de longo prazo dos investimentos, projeções de perda de poder aquisitivo por efeitos inflacionários, ritmo desejado de crescimento do endowment, entre outros fatores. Para o sucesso de um endowment em preservar-se e continuar capaz de proteger a causa a que se destina, é imprescindível que a Regra de Resgate esteja em perfeita harmonia com a Política de Investimento.

A existência de uma sólida Regra de Resgate é de absoluta importância para o correto funcionamento de qualquer endowment. É ela que proporciona o equilíbrio de oportunidades entre gerações e permite o acúmulo de esforços, ao longo dos anos, capaz de proporcionar o crescimento que transforma pequenos fundos em endowments robustos. Para ilustrar a importância dessa regra, transcrevemos um trecho do relatório do endowment da Yale University, referente ao ano letivo de 2007-2008:

"The spending rule is at the heart of fiscal discipline for an endowed institution. Spending policies define an institution’s compromise between the conflicting goals of providing substantial support for current operations and preserving purchasing power of Endowment assets."

Conforme apontado no trecho acima, a Regra de Resgate – ou o conjunto de regras agrupado sob uma Política de Resgates – é o coração da disciplina financeira que compõe a estratégia dos endowments. É ela que lida com a tensão existente entre a necessidade de atender todas as demandas presentes dos beneficiários e a importância de preservar o Principal, para que a instituição possa continuar provendo para as mesmas finalidades nos anos e décadas que ainda virão.

A Política de Investimento, por sua vez, apresenta peculiaridades que distinguem os endowments de outros fundos e reservas de investidores institucionais ou individuais. Isso ocorre por dois principais motivos. Primeiro, porque os endowments possuem um horizonte de investimento raramente encontrado em outras estruturas: a perpetuidade. Segundo, porque as Regras de Resgates dão aos endowments outra característica que impacta diretamente a Política de Investimento: sua necessidade de liquidez é baixa e previsível.

As duas informações mais importantes que um gestor profissional de recursos precisa saber sobre seu cliente para pautar a criação de uma estratégia de investimento são o horizonte, ou seja, o prazo previsto para permanência dos recursos, e a necessidade de liquidez. A estratégia de investimento ideal para um cliente que, por natureza, manterá os recursos investidos para sempre e terá necessidade de resgatar no máximo um pequeno percentual do patrimônio a cada ano será muito diferente da estratégia de investimento de qualquer cliente individual.

Por isso, a existência da Regra de Resgates, estabelecendo parâmetros para a necessidade de liquidez, permite o surgimento de uma Política de Investimento típica e quase exclusiva dos endowments, em sua busca pela perenidade.

Discutiremos mais aprofundadamente a Política de Investimento e as Regras de Resgate adiante, mas antes há outra característica essencial dos endowments a ser apresentada. Essa terceira característica, que também decorre das Regras de Resgate, é um aspecto operacional relevante para entender a dinâmica dos recursos dentro da estrutura. Os ativos que compõem o Fundo Patrimonial de um endowment simples, ainda que sejam bens fungíveis, estarão permanentemente sujeitos a uma divisão ideal entre Principal e Parcela Livre.

Essa última, que pode ser calculada de diversas maneiras, corresponde à parcela do patrimônio que pode ser resgatada imediatamente do Fundo Patrimonial para as contas operacionais da entidade, para que seja gasta ou consumida com o custeio das atividades beneficiadas pelo endowment. Seu objetivo é atender às demandas do presente, o que é concretizado quando essa Parcela Livre é resgatada e passa a compor o orçamento operacional da entidade ou das entidades para cujo proveito o endowment foi constituído.

Já a outra subdivisão do patrimônio, comumente chamada de Principal, é o núcleo permanente, do qual se origina e se renova a Parcela Livre. Por vezes equivale somente ao montante inicial, que deu origem ao endowment, ou ao seu valor corrigido por um índice que elida os efeitos inflacionários. Na maior parte das vezes, contudo, um endowment eficientemente administrado atrai para si novas contribuições, que se agregam ao valor preexistente, integram o Principal e aumentam a sua capacidade de gerar frutos para as causas que financia. O papel do Principal é existir na perpetuidade, para continuar gerando Resgates Livres e, assim, atender às demandas do futuro.

Em todo endowment, existe um conjunto de normas que determinam como os recursos podem ser transferidos do Principal para a Parcela Livre e, às vezes, de volta para o Principal. A regra responsável por gerar novos recursos a partir do Principal e transferi-los para a Parcela Livre é a Regra de Resgate.

A seguir, discorreremos um pouco sobre a evolução e as práticas correntes dos endowments no que diz respeito às Regras de Resgate e às Políticas de Investimento, que são considerados os aspectos mais marcantes do funcionamento dos Fundos Patrimoniais. A segregação desses dois assuntos em capítulos distintos é resultado de um esforço meramente didático, a fim de tratar um assunto de cada vez. Essa separação, contudo, não poderia ser absoluta, e os assuntos às vezes voltam a se entrelaçar no decorrer do artigo, mesmo nos capítulos exclusivos de cada um.

Os dois temas estão tão invariavelmente interconectados que é impossível tratar de um ignorando o outro. Assim deve ser também na criação e nos eventuais ajustes das normas internas de qualquer endowment. As Regras de Resgate e as Políticas de Investimento precisam ser extremamente congruentes entre si, bem como alinhadas com os objetivos sociais do endowment e a missão da entidade beneficiária.


Política de Investimento

Um endowment é um Fundo Patrimonial que recebe recursos e gera o retorno que deverá dar suporte financeiro vitalício a determinada causa, atividade ou organização. Cada endowment é único quando considerado o conjunto de suas necessidades e disponibilidades financeiras, o que nos leva a concluir que cada endowment deve ter sua estratégia de investimento própria.

Ainda assim, algumas linhas gerais podem ser traçadas, agrupando-os em grandes conjuntos, em razão de suas semelhanças. Entidades semelhantes, com semelhantes metas financeiras de longo prazo e semelhantes níveis de tolerância a risco podem, portanto, compartilhar de uma Política de Investimento unificada, voltada para o cumprimento daquelas metas.

Algumas organizações com endowments têm em seus Fundos Patrimoniais a única e exclusiva fonte de recursos para o cumprimento de suas missões. A maioria, contudo, possui outras fontes de renda, como doações, patrocínios, prestação de serviços, comercialização de produtos, taxas de adesão, mensalidades, etc. Nesses casos, o endowment pode ser um complemento para cobrir os custos operacionais, ou pode ser destinado a financiar projetos e outras atividades específicas dentro da organização. A destinação que é dada ou que se pretende dar aos recursos do endowment é um importante fator a ser considerado quando da determinação da Política de Investimento, pois essa destinação determinará quais são os fluxos financeiros necessários entre o endowment e a instituição.

Evolução do Pensamento sobre Investimento para Endowments

De acordo com Chris Russell (2006, p. 79), os primeiros endowments no Reino Unido foram criados pela doação de terras, e não dinheiro, e por isso as atividades de investimento dos endowments se resumiam a cobrar aluguéis ou outras taxas pelo uso da terra. A partir dos endowments de terrenos, surgiu e consolidou-se a tradição de gastar somente o rendimento gerado, que eram recursos financeiros líquidos, e nunca o capital principal – os próprios imóveis, que deveriam ser preservados para eternizar o propósito do fundo. Outras formas de investimento mais sofisticadas tinham nenhuma ou quase nenhuma participação dentre os ativos dos endowments, e só passaram a compor uma parte significativa desses fundos a partir do século XX.

Esse cenário de endowments quase exclusivamente imobiliários era o mesmo na Europa e na América do Norte. Com o passar das décadas, a diversificação natural das carteiras levou à permissão para investir em títulos, mas uma restrição permanecia. Endowments eram proibidos de alienar os seus ativos principais, e deveriam destinar aos beneficiários apenas o seu rendimento, que era considerado renovável.

A conseqüência lógica desse tipo de restrição foi que, ao migrar parte de seu patrimônio de propriedade imobiliária para títulos financeiros, os endowments eram obrigados a adquirir somente títulos de renda fixa, devido à característica desses títulos de gerar um rendimento recorrente e previsível, necessário à viabilidade operacional dos beneficiários do Fundo Patrimonial.

Esse modelo vigorou durante muito tempo, e apresentou pouca evolução. Com o avanço do pensamento financeiro, passou-se a descontar da rentabilidade as taxas de inflação, de modo a preservar o poder de compra do Principal.

A restrição à renda fixa só começou a ser fortemente desafiada na década de 1920, notadamente pelo economista John Maynard Keynes, que foi extremamente bem-sucedido em seus investimentos pessoais e, do mesmo modo, à frente das decisões de investimento do King’s College, em Cambridge, e do Eton College, em Windsor.

Durante o seu trabalho no King’s College, entre 1920 e 1945 aproximadamente, o fundo sob a gestão de Keynes que possuía menos restrições estatutárias, o Chest Fund, experimentou o impressionante aumento patrimonial de 11 vezes o seu tamanho original. No mesmo período, o London Industrial Share Index subiu 60% e o índice americano Standard & Poor’s subiu 90% (Russell, 2006, p. 7).

Keynes não acreditava em uma diversificação excessiva da carteira. Preferia concentrar seus investimentos em alguns poucos ativos que ele conhecia e estudava detidamente, ao invés de alocar recursos em vários ativos que não acompanhava tão de perto. Sua filosofia de investimento envolvia três princípios basilares: (i) selecionar cuidadosamente poucos investimentos, baseado no preço praticado e no valor potencial intrínseco dos ativos; (ii) criar e segurar posições relativamente grandes nesses ativos, até que cumprissem sua promessa de valorização ou evidenciassem um erro de julgamento; e (iii) mitigar o risco da carteira pela compra de riscos diferentes, se possível opostos.

A inserção, cada vez mais expressiva, de ativos de renda variável na carteira de endowments trouxe à baila um novo problema. Os administradores responsáveis pelos Fundos Patrimoniais precisavam determinar a forma mais adequada de equilibrar a proporção entre renda fixa e renda variável, dentro da Política de Investimento dos endowments, para assegurar o cumprimento de seus objetivos. A volatilidade dos mercados levava à necessidade de constante revisão, o que gerava incertezas e excessiva flexibilidade, sujeitando o Fundo Patrimonial a maior subjetividade e arbitrariedade.

Ainda na década de 1930, a Universidade de Yale se debruçou sobre essa dificuldade decorrente do novo cenário e pensou ter encontrado a resposta. O "Yale Plan", como ficou conhecido, consistiu no pré-estabelecimento de uma alocação referencial de longo prazo. Isso significava que a Política de Investimento já determinava qual percentual do Fundo Patrimonial deveria estar alocado em redá fixa e qual percentual deveria ficar em renda variável.

As flutuações de preço, principalmente na renda variável, desequilibravam a alocação inicial e, de tempos em tempos, a universidade redistribuía os recursos, retornando aos percentuais referenciais de alocação.

Se os mercados provocassem uma valorização da carteira de renda variável acima de determinado nível, o endowment de Yale vendia esses ativos e adquiria títulos de renda fixa, reequilibrando a carteira. Se os ativos de renda variável se desvalorizassem abaixo de determinado preço, o procedimento inverso era executado.

O método funcionou bem durante um tempo, enquanto os mercados oscilaram em torno de um nível médio, provocando o efeito positivo esperado: Yale vendia ações quando o mercado estava em alta e recomprava suas posições em renda variável quando o mercado estava em baixa.

Essa estratégia, contudo, se mostrou ineficaz durante as décadas de 1940 e 1950, ao longo das quais Yale foi reiteradamente forçada a se desfazer de posições em ações conforme o mercado subia, e adquirir posições em renda fixa, que cada vez mais perdiam valor real e, portanto, perdiam capacidade de gerar resgates.

As respostas que os endowments buscavam para seus novos problemas viriam ao longo da década de 1960. A Ford Foundation, criada em janeiro de 1936, desempenhou um papel importante no desenvolvimento de uma solução.

Em 1962, 1968 e 1969, a Ford Foundation publicou relatórios propondo grandes mudanças de estratégia, que forçaram os administradores de endowments a repensar seu funcionamento. O terceiro relatório, intitulado Managing Educational Endowments, defendia que a Política de Investimento e as Regras de Resgate dos endowments deveriam ser pautados no retorno absoluto da carteira, e não apenas nos rendimentos. Na concepção tradicional, era considerado rendimento apenas o valor gerado que não decorresse da venda de ativos. Assim, tínhamos a divisão objetiva entre o ativo e o rendimento. Na tabela abaixo, é possível enxergar, com exemplos, a nítida distinção entre o ativo (que deveria ser preservado) e o rendimento (que poderia ser gasto).

Ativo

Rendimento

Imóveis

Aluguel, Talha

Títulos de Renda Fixa

Juros (descontada a inflação)

Ações

Dividendos

O que a Ford Foundation defendia é que o cálculo da Parcela Livre deveria levar em consideração não apenas os rendimentos, mas também a valorização dos ativos em si. Isso é o que chamavam de retorno absoluto ou retorno total da carteira. Assim, se um imóvel gerasse 8% do seu valor em aluguel e, no mesmo período, seu valor de mercado aumentasse em 6%, o Retorno Absoluto desse imóvel na carteira do endowment deveria ser contabilizado como 14%, e não apenas 8%.

As estratégias criadas em torno do retorno absoluto revolucionariam a forma como os endowments funcionavam, e ajudariam a moldar as políticas de investimento e resgate até hoje utilizadas.

As publicações da Ford Foundation e o surgimento, naquela época, do Common Fund for Non-Profit Organizations influenciaram a criação de uma nova lei nos Estados Unidos, que ficou conhecida como The Uniform Management of Institutional Funds Act (UMIFA, 1972). A lei, que foi recepcionada na maioria dos estados, oficializou o uso das estratégias baseadas no retorno absoluto e autorizou os endowments a transferirem periodicamente para a Parcela Livre uma "fração razoável" do seu patrimônio, com base na expectativa de retorno absoluto do Fundo Patrimonial. Na prática, o UMIFA aposentou a tradição anteriormente consolidada, de gastar somente os aluguéis, dividendos e juros, sem nunca alienar ativos do endowment. Surgia então a definição atual de Principal e Parcela Livre, que hoje são calculadas e expressas na forma de percentuais do patrimônio total. A UMIFA foi modificada em 1994 pela Uniform Prudent Investor Act (UPIA, 1994) e, mais recentemente, uma atualização legislativa levou à consolidação de antigas e novas diretrizes na Uniform Prudent Management of Institutional Funds Act (UPMIFA, 2006).

Essas mudanças liberaram os gestores da obrigatoriedade de manter grandes posições em renda fixa e de preferir ações que pagassem dividendos com regularidade. Mesmo sem pagar dividendos, algumas ações podem ser alternativas interessantes devido ao seu potencial de valorização. Essas ações passaram a ser adquiridas, já que os endowments não mais dependiam dos dividendos para pagar os Resgates Livres. Tornou-se aceitável vender uma pequena parte das ações, títulos e imóveis, gerando caixa para fazer frente às despesas dos beneficiários. Os investimentos migraram fortemente da renda fixa para a variável, atraídos pelo desempenho dessa classe de ativos, historicamente superior aos títulos de dívida remunerados por juros.

Infelizmente, a UMIFA e os relatórios da Ford Foundation que encorajavam os endowments a ser mais agressivos e criativos foram publicados numa época em que um longo período de ascensão do mercado chegava ao fim. Os endowments da própria Ford Foundation, assim como os das escolas que seguiram seus conselhos, viram seu patrimônio e suas retiradas anuais caírem para cerca da metade do valor original entre 1972 e 1974. A recuperação, contudo, veio sem demora e a maioria dos fundos havia se recuperado antes do final de 1975.

A década de 1970 registrou as piores rentabilidades do século XX para ações e títulos de renda fixa nos Estados Unidos e as contribuições dos endowments para as despesas operacionais encolheram. No longo prazo, contudo, as recomendações da Ford Foundation sobre Políticas de Investimento e Regras de Resgate fundamentadas no retorno absoluto foram validadas e os resultados ajudaram a produzir mudanças estruturais na forma como todos os endowments são administrados atualmente.

Esculpindo as Políticas de Investimento

O padrão de gastos da entidade é um importante fator a ser considerado na hora de determinar a Política de Investimento e das Regras de Resgate. Não só o padrão presente, mas também o padrão projetado para o futuro, principalmente dos gastos que deverão ser suportados pelo endowment.

A identificação desses padrões permitirá avaliar o grau de flexibilidade que o endowment possui para suportar períodos de oscilação negativa dos mercados. Um endowment destinado a manter uma orquestra, por exemplo, precisa ser capaz de proporcionar um fluxo constante de recursos para pagamento dos salários dos músicos. A orquestra não pode diminuir o número de músicos ou abrir mão de seus oboés para adequar-se a um ano de arrocho financeiro, pois esses cortes representariam um grande prejuízo estrutural para o todo, de difícil reversão no ano seguinte.

Já uma entidade que use a Parcela Livre do endowment para outorgar bolsas de ensino poderá com maior facilidade aumentar ou diminuir o número de alunos agraciados a cada ano, de acordo com as suas possibilidades financeiras. É claro que o pagamento de bolsas de ensino, pesquisa ou intercâmbio pressupõe uma regularidade, pois os agraciados geralmente dependem desses recursos, ao longo de um ou mais anos. Porém, se a instituição enfrenta um ou dois anos de mercados difíceis e se vê obrigada a reduzir o Resgate Livre do seu endowment, poderá reduzir o número de novas bolsas outorgadas, temporariamente. Por isso, o endowment dessa instituição poderá tolerar maiores níveis de exposição a risco, em busca de melhor rentabilidade, pois o impacto negativo potencialmente causado por oscilações negativas é menor e menos duradouro do que aquele que seria causado no exemplo da orquestra.

Para ilustrar melhor a diversidade de objetivos e como esses objetivos impactam a Política de Investimento, podemos investigar ainda um terceiro exemplo. Consideremos o endowment de um museu, destinado não à manutenção da estrutura, mas sim à aquisição de novas obras de arte para o acervo. Esse Fundo Patrimonial pode ser orientado a buscar as melhores oportunidades, com alta tolerância ao risco, pois a existência do museu e a manutenção de suas boas condições não dependem do endowment. Se a compra de algumas obras de arte for adiada em alguns meses ou até poucos anos por conta de um período de resultados fracos nos investimentos, o prejuízo causado ao museu será pequeno. E os ganhos potenciais que o investimento pode obter em períodos de alta podem trazer ao museu possibilidades muito maiores do que as disponíveis atualmente.

Por outro lado, a estratégia de investimento seria radicalmente diferente, por exemplo, se o museu determinasse que pretende utilizar o endowment para comprar obras raras. Se a administração do museu entende que já possui recursos suficientes no Fundo Patrimonial para custear um ritmo saudável dessas novas aquisições, e se as oportunidades de compra de tais obras surgem em raros momentos e perduram por pouco tempo, o museu não pode correr o risco de estar com baixa liquidez em seu endowment quando uma boa oportunidade surgir. Nesse caso, seria necessário ter uma carteira mais conservadora, menos sujeita a altos e baixos, sempre pronta para custar a compra das obras sem necessidade de alienar ativos ilíquidos a preços desvantajosos.

Todos esses exemplos, extraídos da obra de Chris Russell (2006, p. 67), ajudam a mostrar o quanto a Política de Investimento está atrelada ao funcionamento operacional da entidade beneficiada e, por isso, às Regras de Resgate do endowment. Esses dois conjuntos de regras – de investimento e resgate – precisam ser criados e aperfeiçoados sempre em conjunto. Nenhum deles pode perder o outro de vista.


Regras de Resgate

As Regras de Resgate determinam o quanto de um endowment pode ser consumido com as necessidades atuais dos beneficiários, ao custo de reduzir sua capacidade de suprir as necessidades futuras. Atualmente, as Regras de Resgate são geralmente estabelecidas por meio de um valor percentual, definido ou calculável, do Fundo Patrimonial, restando superado o antigo pensamento, que restringia o consumo somente aos rendimentos dos ativos detidos.

Na época em que surgiram os primeiros endowments, os ativos originais eram permanentes e intocáveis, e somente o rendimento era destinado às necessidades operacionais correntes da instituição beneficiada. O valor patrimonial de propriedades imobiliárias sofria uma correção monetária natural, e por isso a inflação não era um tópico relevante. Hoje, o efeito corrosivo da inflação sobre o poder de compra de qualquer reserva financeira é amplamente conhecido e os conceitos de ganho nominal versus ganho real foram popularizados dentro e fora do meio acadêmico.

Levando-se em consideração os impactos da perda do valor do dinheiro no tempo, as Regras de Resgate têm como objetivo construir uma disciplina de reinvestimento parcial dos ganhos do endowment, de forma a manter o poder aquisitivo original do Principal e, também, permitir um crescimento natural do Fundo Patrimonial, ano após ano, aumentando sua capacidade de gerar recursos para o dia-a-dia da organização. Ao longo de décadas, o efeito cumulativo de um pequeno crescimento anual pode ser expressivo.

Mas não é apenas pelo potencial crescimento que os endowments devem reinvestir parte de sua rentabilidade. O crescimento cumulativo do Fundo Patrimonial pode levar a críticas – e a história internacional nos mostra que isso já aconteceu algumas vezes – de indivíduos e grupos que exigem maior ritmo de gasto dos recursos, em benefício das causas atuais. Nas palavras de Chris Russell (2006, p. 69), "large sums of money can mesmerize, and they can even become the target of political interest, especially after a long period of strong markets and high levels of return". A frase ilustra o impulso de gastar acima da taxa considerada "razoavelmente segura" e o autor discorre, na obra original, sobre os perigos de ceder a esse impulso. O crescimento gradual do endowment mediante reinvestimento parcial da rentabilidade ajuda a aumentar os resgates futuros, mas também serve de reserva para que o Fundo Patrimonial possa enfrentar períodos de mercados deprimidos, sendo capaz de manter o fluxo financeiro para a instituição beneficiária. O alerta contida na obra da qual foi transcrito o trecho acima ratifica a necessidade de uma rigorosa Política de Resgates, racional e inteligentemente engendrada com a Política de Investimento, de forma a equilibrar de maneira justa as necessidades dos beneficiários de hoje e de amanhã, além de ajudar a reduzir a exposição do Fundo Patrimonial a possíveis subjetividades e arbitrariedades dos seus administradores.

Mesmo com regras firmes, o embate sempre existirá. As demandas do presente são concretas e costumam possuir mais vozes a defendê-las. Já as demandas do futuro são mais abstratas, incertas, difíceis de mensurar – mas não menos importantes. Freqüentemente grupos ou indivíduos argumentam um suposto excesso de zelo dos administradores dos endowments das grandes universidades, alegando a existência de muitos recursos "estagnados" e de uma exagerada rigidez nas Regras de Resgate.

Para enfrentar essas críticas, os administradores dos endowments precisam ter clareza sobre o seu mandato e sólido embasamento para suas estratégias. Como bem observou James Tobin, professor de Economia em Yale, os administradores de um endowment são os guardiões do futuro contra as demandas do presente, sendo o seu papel preservar a igualdade de oportunidades para as próximas gerações. Eles vivem no meio da disputa entre presente e futuro de uma mesma entidade.

Dessa disputa, surge um dilema. Os endowments são criados para sustentar um propósito perpetuamente, mas não podem ser tratados como uma espécie de poupança destinada a acumular capital indefinidamente. Por essa razão, é papel da Regra de Resgate não somente proteger o futuro, mas também assegurar que os resgates ocorram, provendo para o presente.

Recentemente, a Ford Foundation inovou mais uma vez, adotando uma política não convencional de resgates. Em 2009, ano seguinte a uma das mais severas crises econômico-financeiras do mundo, a grande maioria das instituições possuidoras de endowments cortava gastos para ajudar a preservar seus Fundos Patrimoniais. Na mesma época, a Ford Foundation, mesmo com seu Fundo Patrimonial debilitado pela desvalorização dos investimentos, reforçava os gastos, sob o argumento de que aquele era um dos momentos em que o mundo mais precisava de investimentos sociais.

Esse é um exemplo de uma decisão estratégica do endowment diretamente afetada pela missão da instituição beneficiária. A missão da fundação em questão é combater a pobreza no mundo. A crise global de 2008 afetou diretamente a vida de milhões de pessoas, sendo mais sentida por pessoas em situação de maior fragilidade. No momento em que o mundo mais precisou do seu trabalho, a lógica financeira ordenava que a Ford Foundation poupasse recursos, aguardasse a recuperação dos mercados. Mas a decisão do órgão responsável pela entidade foi pela manutenção dos programas, aumentando seu ritmo de gastos, e debilitando parcialmente sua capacidade de continuar produzindo Resgates Livres no futuro – por uma causa que foi considerada digna desse preço.

 

Gráfico – Resgates da Ford Foundation (1970 a 2010)

Resgate praticado, em percentual (%) do valor patrimonial médio do endowment

Fonte: Seventy-Five Years of Social Change, relatório anual 2010 da Ford Foundation.

Igualdade entre Gerações

A exemplo da Ford Foundation, um endowment pode liberar para consumo todo o seu rendimento em um determinado ano, ou até mais recursos do que conseguiu gerar, visando o atendimento da causa a que se propõe. É comum inclusive que os endowments mantenham o pagamento de Resgates Livres aos beneficiários, mesmo nos anos em que seus investimentos registram rentabilidade negativa.

Contudo, qualquer endowment que, ano após ano, continue liberando resgates superiores à sua capacidade de geração de riqueza, verá seu valor patrimonial reduzido com o tempo, a não ser que existam fontes externas de financiamento realizando novos aportes.

Além da realização dos resgates, também a inflação trabalha contra a perpetuação do patrimônio, causando constante perda de valor do Fundo Patrimonial. Mesmo índices de inflação moderados, quando considerados os impactos compostos ao longo de algumas décadas, podem ser desastrosos. Os endowments, por sua natureza ligada à perpetuidade, são muito sensíveis a quaisquer pequenas variações na taxa média de crescimento anual, que é resultado da combinação das taxas de retorno, resgates, aportes e inflação.

A relação entre essas variáveis pode ser visualizada na fórmula citada na obra de Chris Russell (2006, p.72). Em qualquer período considerado, trabalhando com valores reais, ou seja, descontados os efeitos inflacionários, temos:

Retorno dos Investimentos + Outras Receitas = Resgate Livre + Crescimento do Fundo

Nesse caso, o item "outras receitas" pode incluir novas doações ao endowment, que contribuirão para o crescimento do fundo e dos Resgates Livres, bem como outras receitas operacionais destinadas total ou parcialmente ao Fundo Patrimonial. Nas universidades norte-americanas detentoras dos maiores endowments do mundo, é comum a obtenção de receita a partir da prestação de diversos serviços à sociedade.

A capacidade do endowment de manter o seu valor perpetuamente, corrigido pelo índice de inflação relevante, é conhecida em inglês como capacidade de gerar "intergenerational equity", expressão que poderia ser traduzida como equidade ou equilíbrio entre gerações. O princípio da equidade entre gerações prescreve que os administradores de um endowment devem tentar identificar a quantidade de recursos que deve ser preservada para que as futuras gerações possam obter, daquele mesmo fundo, no mínimo, as mesmas oportunidades que a geração atual obtém. Em termos financeiros, isso significa assegurar que o poder aquisitivo do Resgate Livre possibilitado pelo Fundo Patrimonial no futuro deve ser igual ou superior ao poder aquisitivo do Resgate Livre atual, desconsideradas eventuais oscilações que são, por vezes, inevitáveis. Determinar o ritmo de gastos saudável para cumprir esses objetivos é um dos maiores desafios.

Pesquisas realizadas pela associação americana National Association of College and University Business Officers na década de 1990 revelaram que a maioria dos endowments possuía Regras de Resgate que permitiam a utilização, anualmente, de aproximadamente 5% do seu patrimônio líquido. Nos endowments com maior valor patrimonial, o Resgate Livre estabelecido pelas Políticas de Resgate equivalia a um montante entre 4% e 5% do patrimônio ao ano. Nos menores endowments, essa taxa flutuava até 8% ao ano em 1993, mas depois caiu progressivamente até que a Regra de Resgate mais permissiva entre os endowments pesquisados autorizasse o uso de apenas 5,5% ao ano.

Nos Estados Unidos, a lei prevê que as fundações privadas são obrigadas a gastar anualmente, no mínimo, 5% do seu patrimônio com atividades de impacto social positivo, seguindo seus estatutos, para manter suas isenções e incentivos fiscais. O objetivo, nesse caso, é fazer com que os enormes patrimônio isentos de impostos sejam de fato utilizados para suas finalidades sociais, e não apenas acumulados. Mas essa regra não aplica aos endowments educacionais e, mesmo assim, quase todos convergem para percentuais de resgate muito próximos.

Tentando melhor entender a dinâmica entre as Regras de Resgate e o Fundo Patrimonial, o Commonfund Institute (denominação atual do Common Fund for Non-Profit Organizations) criou um modelo próprio para avaliar o impacto do Resgate Livre, ou seja, das Políticas de Resgate, sobre a taxa de crescimento do endowment e sua a capacidade de gerar equidade entre gerações.

O modelo criado, batizado de Commonfund Allocation Planning Model, procurava responder à seguinte pergunta: "dadas certas condições, como a alocação da carteira e uma taxa de resgate específica, qual a probabilidade de um endowment não conseguir atingir sua meta de equidade entre gerações ou seu objetivo institucional num determinado prazo?"

Adotando premissas iniciais sobre inflação e taxa de retorno, entre outras, bem como simulando as possíveis flutuações desses dados distribuídas de acordo com a probabilidade de acontecerem, o Commonfund Institute analisou o resultado de algumas mudanças na Política de Resgate, e o impacto que essa política teria sobre a capacidade do endowment de cumprir suas metas, preservando-se para sempre, gerando resgates e superando a inflação.

Usando uma Regra de Resgate de 5% do Fundo Patrimonial ao ano, o Commonfund Institute concluiu que a chance de êxito do endowment é de aproximadamente 65% num período de 15 anos e 69% num período de 20 anos. Com uma Regra de Resgate de 4% do Fundo Patrimonial ao ano, a probabilidade de sucesso sobe para quase 80% em 20 anos. Curiosamente, mesmo uma política de não realizar nenhum resgate nunca, a taxa de sucesso encontrada não foi 100%. Ainda havia uma chance de 0,9% de o endowment fracassar (Russell, 2006, p. 75).

Doadores

A disputa entre as necessidades presentes e as necessidades futuras está no cerne das políticas de resgate e de investimento. É evidente que, se os níveis de liberação de recursos do Principal para a Parcela Livre for superior à rentabilidade histórica média, o endowment terá muita dificuldade para manter-se por um longo período, e maior ainda para conseguir apresentar qualquer crescimento real. Esses objetivos só poderiam ser alcançados, nesse cenário, com novos aportes de recursos ao Principal.

Mas a questão do equilíbrio entre presente e futuro vai mais além. Uma Política de Resgates muito protetora, privilegiando a preservação do Principal, permite a fácil criação de equidade entre gerações e crescimento do Fundo Patrimonial, mas pode afastar doadores, que são figuras extremamente importantes para o crescimento do endowment. Filantropos freqüentemente desejam acompanhar em vida o uso dos recursos doados e os benefícios gerados por seu dinheiro. Quanto maior o impacto das doações no presente, maior o incentivo para novas doações.

Por outro lado, se as Regras de Resgate forem muito permissivas, a capacidade de crescimento dos Resgates Livres como resultado do retorno dos investimentos ficará prejudicada e os doadores podem sentir-se desencorajados de contribuir para um endowment cuja trajetória projeta um cenário de enfraquecimento ou estagnação institucional.

Volatilidade

As Regras de Resgate, como vimos, geram uma necessidade de liquidez muita baixa e previsível, dando liberdade aos gestores para perseguir uma Política de Investimento mais agressiva em ativos de renda variável, em busca de melhor rentabilidade. O horizonte de investimento dos endowments permite aos gestores criar posições estratégicas e buscar as melhores oportunidades de investimento, independentemente do tempo de maturação de cada oportunidade. Mas, por outro lado, o posicionamento em renda variável traz para os endowments o problema da volatilidade, que pode conduzir a períodos de redução temporária do patrimônio e, assim, das possibilidades do fundo de liberar recursos para os Resgates Livres.

Na prática, é impossível fugir da volatilidade e do risco sem abrir mão de rentabilidade. E, quando seu objetivo inclui superar consistentemente a inflação e ao mesmo tempo prover resgates para o sustento de uma causa, fugir do risco não é uma alternativa. Ao longo de décadas, os gestores de endowments aprenderam a lidar com a volatilidade, minimizando o risco de fracassar nos objetivos institucionais do Fundo Patrimonial e maximizando o potencial de retorno no longo prazo.

Contudo, a mesma volatilidade que é aceitável na carteira de investimentos seria desastrosa se atingisse diretamente o custeio das atividades operacionais da entidade beneficiada. A grande maioria das instituições precisa de regularidade e previsibilidade em suas contas, com a finalidade de honrar salários, aluguéis e outras despesas recorrentes. Nesse ponto, surge mais uma atribuição das Regras de Resgate. Elas são responsáveis por proteger a entidade contra a volatilidade do patrimônio do endowment.

Um dos primeiros estudos publicados sobre Regras de Resgate observou que elas, apesar de rígidas, devem possibilitar à organização adaptar seu o ritmo de gastos aos desdobramentos e mudanças de cenários, revisando constantemente as expectativas para o futuro. Porém, quanto mais expressiva a participação do Resgate Livre no orçamento anual da instituição beneficiária, mais sensível essa instituição se torna a variações no valor do resgate. Quanto maior o endowment, mais difícil passa a ser para a instituição adaptar-se a variações no volume de recursos resgatáveis e torna-se cada vez mais importante que as Regras de Resgate proporcionem estabilidade à entidade.

Essa desejada estabilidade, descobriu-se, pode ser alcançada com o uso de cálculos estatísticos relativamente simples, como a média móvel. No estudo supracitado, os autores identificam uma série de características desejáveis para as Regras de Resgate:

- A Política de Resgates deve permitir uma flexibilização dos gastos da organização sem necessidade de alterar a carteira de investimentos;

- O endowment deve ter flexibilidade para ajustar sua taxa de crescimento mediante alteração da carteira de ativos ou alteração do ritmo de gastos;

- A Política de Resgates não deve ameaçar a perpetuidade do Fundo Patrimonial, como acontece quando ocorrem gastos excessivos no presente às custas do futuro;

- As regras devem ser capazes de proporcionar certo nível de estabilidade para os gastos operacionais da entidade; e

- As Regras de Resgate devem ser simples e de fácil compreensão.

Estabelecendo as Regras de Resgate

O primeiro passo para determinar as Regras de Resgate, considerando que já exista patrimônio para o endowment a ser constituído, deve ser uma investigação detalhada dos objetivos sociais da entidade beneficiária. Esses objetivos precisam ser descritos e quantificados em valores monetários, convertidos em projeções de fluxo de caixa para o curto, médio e longo prazo. O próximo passo é segregar uma projeção independente dos fluxos de caixa esperados do endowment para a entidade e da entidade ou doadores para o endowment. Para tanto, é preciso levar em conta as outras formas de financiamento disponíveis, como convênios, patrocínios e doações, com o fim de poder quantificar, com clareza, o que a organização espera do endowment.

Esse é também, aliás, o procedimento que deve ser seguido antes de estabelecer a Política de Investimento. Como vimos, a Política de Investimento e a Regra de Resgate devem ser estabelecidas concomitantemente, uma atrelada à outra, em uma indissociável relação de co-dependência.

As projeções não precisam, evidentemente, prever cada centavo envolvido. A necessidade é de uma previsão realista dos parâmetros esperados de receitas e despesas, bem como dos limites mínimos e máximos aceitáveis de retiradas do endowment. Essencialmente, é preciso responder a duas perguntas que contêm complexidade financeira na simplicidade de suas palavras:

- Quanto é o mínimo aceitável em gastos a cada ano/mês para custear as atividades essenciais e imprescindíveis?

- Quanto é o mínimo aceitável em reinvestimento a cada ano para manter a mesma capacidade de gastos para as gerações futuras?

Novamente, nos deparamos com o clássico dilema dos endowments, a dicotomia entre presente e futuro. Uma vez estabelecidos os limites mínimo e máximo de gastos e de reinvestimento, esses valores podem ser expressos em percentuais do patrimônio do endowment, para ajudar a determinar o retorno esperado dos investimentos e o risco máximo tolerável pela entidade.


Endowments no Brasil

Vimos que os endowments surgiram e evoluíram a partir da necessidade de preservar um patrimônio e gerar uma receita vitalícia para o sustento de uma organização, atividade ou causa. Preservando a dotação patrimonial de seus investidores e estabelecendo um fluxo permanente de recursos para o custeio de atividades operacionais, os endowments são capazes de assegurar às entidades educacionais e do terceiro setor maior autonomia financeira. Entidades sem Fundos Patrimoniais ficam mais vulneráveis a ciclos de abundância e carência de investimentos sociais, o que faz com que as doações, quando presentes, sirvam ao uso imediato, mas tenham pouca capacidade de gerar um crescimento sustentável. Em tempos de escassez, quando as doações rareiam, entidades que possuem um endowment bem estruturado têm mais chances de sobreviver e de fazê-lo com menos impacto sobre as suas atividades, até que um novo ciclo de fartura se inicie e se faça sentir no aumento do volume de recursos disponíveis para doação.

Criados para as mais diversas causas, os endowments permitiram a essas entidades edificar uma base financeira sólida, complementando as atividades sociais com recursos próprios. Dessa forma, os beneficiários tornaram-se menos dependentes de novas doações e patrocínios, e adquiriram a capacidade de planejar a longo prazo, crescer de maneira coordenada e estruturada, alcançando proporções que antes estavam fora de seu alcance.

Durante a trajetória rumo a esses objetivos, os endowments foram se aperfeiçoando para tornar-se uma sofisticada ferramenta de investimento, capaz de unir a boa rentabilidade à previsibilidade do orçamento operacional.

Mesmo com este superficial estudo, fica evidente que os endowments podem alavancar imensamente a capacidade que as organizações educacionais e sociais têm de gerar mudanças no mundo em que vivemos. A realidade em diversas organizações é que os esforços de captação de recursos comprometem o foco de dedicação à atividade-fim, devido à necessidade de lutar diariamente pelos recursos de uso imediato, retornando sempre ao ponto de partida ao final de cada projeto. Com um endowment, esses esforços passam a gerar, também, um efeito cumulativo, que aos poucos é capaz de liberar os agentes para que se dediquem às finalidades preponderantes da entidade.

O Brasil hoje tem maturidade – institucional, política, econômica e financeira – para impulsionar as primeiras iniciativas, seja em centros de excelência no ensino, seja em entidades de ponta no terceiro setor. É preciso enfrentar e derrubar as poucas dificuldades e preconceitos que ainda se apresentam, para que nossas instituições possam usufruir dos muitos benefícios oferecidos por essa estratégia de sustentabilidade.

Dificuldades

Ainda há diversas dificuldades a serem superadas pelas entidades que desejem manter um endowment no Brasil. Neste capítulo final do trabalho, discorreremos brevemente sobre quatro delas: (i) ausência de previsão legal ou de um instituto jurídico específico; (ii) inexistência de incentivos fiscais à instituição e aos doadores; (iii) a cultura de doação atrelada a projetos; e (iv) a incipiência de serviços especializados.

A falta do reconhecimento da figura dos endowments como um instituto jurídico específico e autônomo apresenta-se hoje como a primeira dificuldade para entidades que desejem adotar esse modelo no Brasil.

Historicamente, o funcionamento dos endowments e o papel de seus administradores (os trustees) surgiram a partir da evolução de uma figura pré-existente, o trust. Esta figura jurídica, típica do direito anglo-saxônico, inexiste em nosso ordenamento. Em muitos países, de acordo com Eduardo Salomão Neto, o trust consolidou-se como mecanismo jurídico adaptável a servir a múltiplas finalidades, todas elas tendo em comum a titularidade nominal de patrimônio por pessoa obrigada a administrá-lo em benefício de terceiro (1996, p.19).

De acordo com o mesmo autor, seria possível criar a figura jurídica do trust no Brasil, mas as funções do trust já se encontram supridas em nosso ordenamento por figuras como o fideicomisso, a constituição de renda e a fundação, sendo desnecessária a importação do instituto anglo-saxônico como figura jurídica autônoma (1996, p.173).

A ausência do trust não é um entrave exclusivo do ordenamento jurídico brasileiro. Outros países com ordenamentos de origem romano-germânica, como o nosso, também se desenvolveram sem o trust e, na maioria dos casos, devido à ausência do instituto que os originou, sem uma figura jurídica específica para o funcionamento dos endowments.

A lacuna legislativa impõe um pesado ônus, cabendo à organização beneficiária ou aos instituidores do Fundo Patrimonial pesquisar, estudar o tema, os detalhes do funcionamento, e muitas vezes contratar consultores estrangeiros, tudo com o escopo de traçar suas premissas básicas de funcionamento. A falta de parâmetros legais cria para a entidade a necessidade de definir todas as regras em instrumentos particulares, como estatutos, regulamentos e contratos. O resultado disso é um custo proibitivo para muitas organizações, fazendo com que os endowments sejam uma estratégia restrita somente às instituições que já são de grande porte ou que possuem um patrocinador empenhado na constituição do Fundo Patrimonial.

Ademais, ainda que consigam superar o entrave jurídico inicial e constituir seus endowments de maneira satisfatória, suficientemente regrados para assegurar tranqüilidade aos doadores, nossas instituições educacionais e sociais precisam enfrentar mais obstáculos ao crescimento do Fundo Patrimonial. O terceiro setor em nosso país evoluiu visivelmente nas últimas duas décadas, tanto sob aspectos práticos e operacionais, quanto sob a ótica jurídica. Ainda assim, a legislação sobre o tema é esparsa, confusa, omissa e contraditória.

Nos Estados Unidos, há incentivos fiscais para as instituições que mantêm endowments com finalidades educacionais ou sociais, bem como para os doadores que contribuem financeiramente para o crescimento desses Fundos Patrimoniais. No Brasil, não existe qualquer incentivo a essa prática e, pouco tempo atrás, as organizações sociais que investiam temporariamente seu superávit financeiro poderiam até mesmo ser acusadas de desvio de finalidade.

As associações e fundações que conseguem manter endowments funcionando, buscam enquadrar-se em leis de incentivo retrógradas, pouco eficazes e, às vezes, inadequadas à realidade dessas instituições. A conquista de títulos ou autorizações que se convertam em incentivos fiscais aos doadores é um fator determinante da velocidade de crescimento do Fundo Patrimonial.

Além da ausência de previsão legal e da inexistência de incentivos fiscais, o terceiro entrave facilmente observado no Brasil é de ordem cultural. O cidadão brasileiro não está familiarizado com esse modelo de filantropia de longo prazo, e as organizações sociais sofrem o peso da desconfiança. Carregamos um histórico recorrente de mau uso das estruturas legais destinadas às atividades sociais e as entidades idôneas lutam contra um lastro de escândalos, não raro envolvendo malversação de recursos públicos, que prejudicam a credibilidade do terceiro setor. A essas instituições cabe o ônus de provar que desempenham seu papel social com seriedade, responsabilidade, transparência e retidão.

A carência de credibilidade nutre uma cultura de filantropia de curto prazo, voltada a projetos, fazendo com que os doadores brasileiros apresentem preferência por contribuir com planos específicos e concretos, circunscrito por um ciclo de despesas contido em poucos anos, previsto e planejado como condição prévia para a realização da doação, executado em pouco tempo e com conseqüente prestação de contas.

Os endowments, por sua natureza, requerem um voto de confiança mais amplo dos doadores, pois é preciso confiar que os recursos serão bem geridos na perpetuidade, serão cumulados com novas doações, ano após ano, e poderão gerar benefícios sociais a todas as próximas gerações. O doador pode acompanhar as prestações de contas todos os anos, mas nunca poderá conferir todos os dispêndios realizados com os recursos doados, pois se prolongam além de uma geração.

Essa confiança emerge naturalmente, entre o público de cada entidade, a partir da construção de um histórico de administração responsável e eficaz na gestão e na utilização dos recursos. Nesse ponto, nosso País está dando os primeiros passos, que podem ser determinantes na popularização dos Fundos Patrimoniais. É importante que as primeiras instituições a adotar publicamente o modelo o façam com responsabilidade e transparência, pois o desempenho desses primeiros endowments brasileiros tem o potencial de acelerar ou retardar significativamente o desenvolvimento dessa cultura no Brasil.

O quarto obstáculo no qual algumas louváveis iniciativas de constituição de Fundos Patrimoniais esbarraram foi na dificuldade de operacionalizar o funcionamento do endowment. Adotar uma estratégia que, apesar de centenária em diversos países, ainda é completamente inovadora no Brasil, apresenta alguns entraves de aspecto prático.

A estruturação e o monitoramento das regras e estratégias exigem um grau de profissionalismo que está fora do alcance da maioria das instituições, por não poderem arcar com o custo de contratação de equipe própria qualificada para realizar ou conferir a escrituração e a controladoria dos Fundos Patrimoniais. A terceirização desses serviços encontra outros obstáculos, pois a ausência de legislação específica afasta desse ramo de atividade as grandes instituições financeiras, que poderiam oferecer serviços para facilitar a operacionalização dos Fundos Patrimoniais, assumindo uma parte do trabalho normalmente atribuído aos trustees.

Disso resulta a existência de uma demanda reprimida, um público não atendido, de entidades interessadas no desenvolvimento de seus endowments e sem acesso à orientação e serviços profissionais essenciais. Para atender esse público, as instituições financeiras precisariam estruturar departamentos próprios, investir na qualificação de profissionais, contratar o desenvolvimento de sistemas capazes de registrar detalhes das Políticas de Investimento e das Regras de Resgate, automatizando o monitoramento do cumprimento de regras.

Todo esse investimento é inviável num cenário de incerteza jurídica. Com exceção da possibilidade de eventualmente gerir fundos de investimento, grandes bancos permanecem fora do mercado de serviços destinados aos Fundos Patrimoniais, pois a participação nessas atividades envolveria assumir um risco de monitoramento do cumprimento de regras ("compliance") baseado em estratégias e diretrizes ainda não legisladas. Além disso, a insuficiência dos incentivos fiscais dificulta o crescimento dos Fundos Patrimoniais, fazendo com esse seja um mercado pequeno, pouco atrativo para a atuação de grandes instituições financeiras. A omissão legislativa atrasa a profissionalização dos endowments no Brasil.

Possibilidade

Apesar dos desafios, a possibilidade existe. Muitas das instituições brasileiras amadureceram e têm capacidade de empreender nessa seara. O mercado financeiro, testado em sucessivas crises internacionais, vem se mostrando consistente e robusto. Os órgãos reguladores têm se empenhado em assegurar o cumprimento das leis e normativos aplicáveis a esse mercado. No campo jurídico, já existe a discussão voltada para uma revisão e consolidação do novo marco regulatório do terceiro setor. O momento é, por diversos aspectos, propício ao florescimento dos endowments no País.

A despeito da ausência de legislação específica, não há nenhum tipo de vedação à adoção das estratégias de investimento e resgate que podem caracterizar parte do patrimônio de uma fundação ou associação como um endowment.

A França, país de ordenamento jurídico muito semelhante ao nosso, também de origem romano-germânica, adotou em 2008 a Lei de Modernização da Economia, que reconheceu oficialmente, pela primeira vez no país, a figura dos endowments como um instituto jurídico autônomo. O artigo 140 da referida lei define os endowments como entidades jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que recebem e administram propriedade e direitos de todos os tipos, e que usam a capitalização de renda para a realização de uma obra ou uma missão de interesse geral ou redistribuem recursos para ajudar uma organização sem fins lucrativos na execução de seus trabalhos e missões de interesse geral.

Em solo brasileiro, já existem alguns casos de entidades que arcaram com os custos de estruturação e adotaram o modelo, inspirando-se em exemplos internacionais. Para citar dois, começamos com a tradicional Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), que há alguns anos repensou seus métodos de gestão patrimonial e adotou explicitamente a estratégia dos endowments.

Na FMCSV, a Política de Investimento é definida a partir da missão institucional e de processos de governança do Fundo Patrimonial, determinando a exposição a riscos, a alocação dos recursos, os critérios de avaliação dos gestores e outros padrões de funcionamento.

Um Conselho de Curadores, assessorado por um Comitê de Investimento, é responsável por decidir o direcionamento dos ativos e escolher os gestores no mercado. A Fundação tem uma equipe que acompanha, executa e faz propostas para as operações financeiras e a gestão dos recursos.

A estratégia de investimento encontra limites estabelecidos em decorrência da missão da fundação ("gerar e disseminar conhecimento para o desenvolvimento integral da criança"). Como suas finalidades institucionais são amplamente ligadas à promoção da saúde infantil, a FMCSV não investe em ações de empresas de bebidas alcoólicas, tabaco e armamento.

Por fim, a Regra de Resgate da FMCSV limita o Resgate Livre a 5% ao ano, que são retirados do Fundo Patrimonial e transferidos para o fundo operacional da fundação, destinado a cobrir as despesas administrativas e os programas sociais.

O segundo caso é o Endowment da Escola Politécnica da USP, lançado em 2010 para mobilizar, gerenciar e repassar recursos para uma das mais tradicionais escolas de engenharia do País. Por meio da construção de um Fundo Patrimonial, a comunidade politécnica está trazendo para uma instituição pública de ensino uma forma de financiamento complementar à arrecadação tributária, para aumentar a destinação de recursos ao ensino, pesquisa e extensão.

Trata-se de uma conquista estrutural para contornar alguns dos obstáculos envolvidos na realização de doações à Universidade Pública. Aspectos burocráticos, assim como a dificuldade de acompanhar o uso dos recursos, fazem com que diversos bem-sucedidos empresários brasileiros, tendo cursado a graduação na Universidade Pública e investido em uma pós-graduação no exterior, hoje realizem doações somente às instituições estrangeiras onde estudaram.

No Endowment da Escola Politécnica da USP, um Conselho Deliberativo será responsável por determinar as diretrizes de investimento e selecionar os gestores no mercado. As diretrizes serão revisadas anualmente, registrando as expectativas de cenário macroeconômico, limites de alocação, de concentração e requisitos de liquidez.

Já a Regra de Resgates prevê a liberação de 0,5% ao mês, do Principal para a Parcela Livre, calculado com base no patrimônio líquido do Fundo Patrimonial. O sistema inclui, ainda, uma regra de suavização da volatilidade com utilização da média móvel do patrimônio líquido dos últimos três anos, atribuindo pesos diferenciados a cada ano.

Essas duas iniciativas são sinais do amadurecimento das atividades filantrópicas no nosso terceiro setor, em busca de um crescimento estruturado e sustentável para instituições cujo trabalho tem grande relevância social.

Os esforços ainda são incipientes, mas representam o primeiro passo. A cultura de filantropia educacional ou social sustentável ainda tem uma longa jornada até tornar-se lugar comum no Brasil, mas o País já dá sinais de que está pronto para ela. Para se tornar uma realidade amplamente difundida, os endowments precisarão principalmente de estímulos do Poder Público.

Definidas as características essenciais mínimas para que um patrimônio seja reconhecido como Fundo Patrimonial, restará livre o caminho para que União, Estados, Municípios e Distrito Federal estruturem suas próprias políticas de renúncia fiscal e incentivo, estimulando o surgimento e o desenvolvimento de iniciativas nesses moldes.

Esperamos, com o presente estudo, ter oferecido uma pequena contribuição ao debate, na esperança de catalisar a consolidação de uma nova cultura, de uma nova ferramenta que, temos certeza, terá importante participação no desenvolvimento social, cultural e educacional do nosso Brasil.


Glossário

Beneficiário. Aquele para cujo benefício o endowment foi constituído. É ao beneficiário que são destinados os Resgates Livres, para que custeiem suas atividades. O beneficiário pode ter qualquer natureza, mas geralmente é uma instituição de ensino, uma entidade sem fins lucrativos, ou outra organização que promova atividades ou finalidades de interesse social. Os endowments também podem ser constituídos em benefício de uma atividade escolhida pelos instituidores (ainda que não revestida de forma jurídica específica) ou uma causa (com um mandato amplo, de identificar e financiar as organizações que defendam a referida causa). Ao longo do texto, utilizamos com o mesmo sentido algumas variantes como "instituição beneficiada" e "entidade beneficiada", entre outras.

Endowment. A origem do termo remonta a "dotação patrimonial", no sentido de ter um conjunto de ativos atrelado permanentemente ao custeio de um beneficiário. Por sua natureza perene, as dotações patrimoniais passaram a compor "fundos", que ficaram conhecidos como endowment funds (no sentido atécnico e genérico da palavra – grupo de ativos – o que inclui, mas não se restringe a fundos de investimento). Os "fundos de dotação" hoje são comumente chamados apenas de endowments, termo que, sozinho, passou a carregar o sentido de Fundo Patrimonial, conforme definido mais adiante neste mesmo glossário.

Fundo de Investimento. Instrumento jurídico por meio do qual investidores aplicam recursos, assumindo um determinado nível de risco e esperando obter retorno financeiro. No Brasil, os fundos de investimento são regulados pela Comissão de Valores Mobiliários, que assim os define: "fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros".

Fundo Patrimonial. Parte do patrimônio da organização que é segregada do patrimônio operacional e das demais reservas (segregação meramente contábil-administrativa ou mesmo em uma personalidade jurídica distinta), com o objetivo de ser mantido na perpetuidade, de maneira que seu poder aquisitivo seja preservado ou expandido ao longo dos anos. O Fundo Patrimonial deve ser mantido investido com o intuito de gerar receita periódica e previsível para custear toda ou parte da missão da organização beneficiária.

Liquidez. Termo que diz respeito à facilidade com que um ativo pode ser convertido dinheiro. O grau de agilidade de conversão de um investimento em dinheiro sem perda significativa de seu valor mede a sua liquidez. Quanto mais rápido e fácil essa conversão, diz-se que o ativo é mais líquido ou tem maior liquidez.

Parcela Livre. É a parcela do patrimônio que pode ser resgatada imediatamente do Fundo Patrimonial para as contas operacionais da entidade, para que seja gasta ou consumida com o custeio das atividades beneficiadas pelo endowment.

Política de Investimento. Estratégia de investimento ou documento que declara e estabelece essa estratégia. Por vezes contém os limites de alocação de recursos, exposição a riscos, entre outros detalhes que compõem a estratégia, bem como algumas regras de governança aplicáveis aos processos de decisão.

Política de Resgates. Vide Regra de Resgate.

Principal. É o núcleo permanente, do qual se origina e se renova a Parcela Livre. Por vezes equivale somente ao montante inicial, que deu origem ao endowment, ou ao seu valor corrigido por um índice que elida os efeitos inflacionários. Na maior parte das vezes, contudo, um endowment eficientemente administrado atrai para si novas contribuições, que se agregam ao valor preexistente, integram o Principal e aumentam a sua capacidade de gerar frutos para as causas que financia. O papel do Principal é existir na perpetuidade, para continuar gerando Parcelas Livres e, assim, atender às demandas futuras dos beneficiários.

Regra de Resgate. É a regra que estabelece o ritmo de gastos permitido para o endowment. Em alguns casos, diversas regras são compiladas em uma Política de Resgates, podendo combinar cálculos objetivos com decisões discricionárias subjetivas, atribuídas a um indivíduo ou a um órgão colegiado. O ritmo de gastos estabelecido pela Regra de Resgate deve levar em consideração a expectativa de retorno de longo prazo dos investimentos, projeções de perda de poder aquisitivo por efeitos inflacionários, ritmo desejado de crescimento do endowment, entre outros fatores. Para o sucesso de um endowment em preservar-se e proteger a causa a que se destina, é imprescindível que a Regra de Resgate esteja em perfeita harmonia com a Política de Investimento.

Resgate Livre. Valor gerado pela Regra de Regate a cada período ou ciclo, que pode ser imediatamente resgatado para as contas operacionais da instituição beneficiada ou permanecer no Fundo Patrimonial, somando-se à Parcela Livre, para que seja resgatado a qualquer momento, por decisão dos administradores da instituição.

Spending Policy. É a Política de Resgates, ou seja, o conjunto de regras que determina a forma de calcular o valor do Resgate Livre gerado a cada período ou ciclo (que pode ser anual, semestral, mensal). Vide Regra de Resgate.

Spending Rate. É a "taxa" ou o "ritmo" de gastos do endowment. Para maiores informações, vide Regra de Resgate.

Spending Rule. Vide Regra de Resgate.


Referências

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Informações sobre o texto

Texto originalmente publicado na <a href="http://www.scribd.com/doc/78341873/Endowments-no-Brasil-a-importacao-de-uma-estrategia-de-sustentabilidade">Revista de Direito do Terceiro Setor - RDTS nº 10, de jul-dez/2011</a>.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOTTO-MAIOR, Felipe Linetzky. Endowments no Brasil: a importação de uma estratégia de sustentabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3127, 23 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20918. Acesso em: 19 abr. 2024.