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Administração de bens municipais: competência legislativa

Administração de bens municipais: competência legislativa

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O Prefeito tem atribuições de executar a administração do Município independentemente de prévia autorização da Câmara, sendo esta autorização uma excepcionalidade, cujas hipóteses, necessariamente, estarão expressas e claramente previstas na Lei Orgânica local.

BENS MÓVEIS MUNICIPAIS. ADMINISTRAÇÃO. PRO-JETO DE LEI. VÍCIO DE INICIATIVA. INCONSTITUCIO-NALIDADE. Em decorrência dos princípios da indepen-dência e harmonia entre os Poderes (art. 2º, da Constituição Federal; art. 5º, da Constituição do Estado de São Paulo, e art. 15, da Lei Orgânica Municipal), a regra geral é de que o Prefeito tem atribuições de executar a administração do Município independentemente de prévia autorização da Câmara, sendo esta autorização uma excepcionalidade, cujas hipóteses, necessariamente, estarão expressas e claramente previstas na Lei Orgânica local, caso contrário, deve ser objeto de implementação sob responsabilidade exclusiva do Chefe do Executivo, com observância da normatização administrativa geral e das formalidades indispensáveis para sua prática. Prevendo a LOM a indispensabilidade de normatização local quanto à matéria específica analisada, a iniciativa legislativa é prerrogativa do Executivo.


CONSULTA

Consulta-nos Câmara Municipal, por intermédio de seu Presidente, nos seguintes termos:

“...solicitar informações sobre a legalidade e constitucionalidade de Projeto de Lei do Legislativo nº 04/12 ... que disciplina o uso de máquinas e caminhões na prestação de serviço de terraplanagem no município ... e da outras providências.

Justifica-se tal questionamento, vez que a Lei Orgânica do Município de Charqueada não ser expressa em disciplinar a utilização de tais bens, conforme prevê os artigos 102 e 103, in verbis:

‘ARTIGO 102 – A administração dos bens municipais cabe ao Prefeito, ressalvada a competência da Câmara quanto aqueles utilizados em seus serviços e sob sua guarda’. (grifo no original)

‘ARTIGO 103 – O uso de bem imóvel municipal por terceiros far-se-á mediante autorização, permissão ou concessão.’ (grifo no original)

Considerando que o Projeto de Lei em tela e a regulamentação da presente lei naquilo que se fizer necessário, tem por interesse atender os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, vez que o município já vem através de decreto disciplinando à cobrança de tarifas pela utilização de seus maquinários em inúmeros imóveis com o objetivo de atender o munícipe. (grifo no original)

Assim, com o intuito de esclarecer o caso em teles, para que possamos conduzir os trabalhos nessa ‘Casa de Leis’ sempre respaldados pela constitucionalidade e legalidade, aproveitamos a oportunidade para renovar os protestos da mais elevada estima e distinta consideração”.

Encaminhou a consulente cópias do “Projeto de Lei do Legislativo” (negritamos), da “Exposição Justificativa” deste, do Decreto ..., de 2 de janeiro de 2012 (que “Fixa os preços para os serviços públicos prestados pelo Município, para o exercício de 2012, e dá outras providências”), e seu anexo.


PARECER

A Constituição Federal estabelece alguns princípios em seu Título I, a serem obrigatoriamente observados, dentre os quais cabe aqui destacar o da independência e harmonia entre os Poderes, expressamente previsto no:

“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Também o faz a Constituição do Estado de São Paulo, ao estabelecer que:

“Art. 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição”.

A Lei Orgânica do Município, ao tratar do assunto dispõe, a par de fixar as competências do Chefe do Executivo, que:

“Artigo 3º - Compete ao Município, no exercício de sua autonomia legislar sobre tudo quanto respeite ao interesse local, tendo como objetivo o pleno desenvolvimento de suas funções sociais e garantir o bem estar de seus habitantes, cabendo-lhes privativamente entre outras, as seguintes atribuições:

(...)

VI - quanto aos bens:

a) que lhe pertença: dispor sobre sua administração, utilização e alienação;

(...)

Artigo 71 - Compete privativamente ao Prefeito, além de outras atribuições previstas nesta Lei Orgânica:

(...)

VIII - expedir decretos, portarias e outros atos administrativos;

(...)

XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Lei Orgânica;

(...)

XIII - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

XV - delegar, por decreto, a autoridade do Executivo, funções administrativas que não sejam de sua exclusiva competência;

(...)

Artigo102 - A administração dos bens municipais cabe ao Prefeito, ressalvada a competência da Câmara quanto aqueles utilizados em seus serviços e sob sua guarda. (...)” (negritamos).

Em decorrência de tais disposições e parâmetros, por um lado, cabe reconhecer que se situa dentro do elenco das atribuições do Chefe do Executivo, ou aos seus delegados, quando isto for legalmente viável, o exercício da gestão das atividades da Administração Municipal, cabendo-lhe, observados os critérios de conveniência e oportunidade, e independentemente de autorização do Poder Legislativo, a prática dos atos, ou determinações, destinadas a mais adequada realização ou concretização das atividades de sua competência. Ou seja, para a administração do Município, o Prefeito não dependerá de autorizações do Legislativo local, exceto nos casos expressamente fixados em lei, sendo defeso a este imiscuir-se na prática dos atos de exclusiva competência do Executivo.

É a lição de Hely Lopes Meirelles:

“A Prefeitura é o órgão pelo qual se manifesta o Poder Executivo do Município. Órgão independente, composto, central e unipessoal. Independente por não hierarquizado a qualquer outro; composto porque integrado por outros órgãos inferiores; central porque nele se concentram todas as atribuições do Executivo, para serem distribuídas a seus órgãos subordinados; unipessoal, ou singular, porque atua e decide através de um único agente, que o chefia e representa: o prefeito.(...)

No sistema brasileiro o governo municipal é de funções divididas, cabendo as executivas à Prefeitura e as legislativas à Câmara de Vereadores. Esses dois Poderes, entrosando suas atividades específicas, realizam com independência e harmonia o governo local, nas condições expressas na lei orgânica do Município.

O sistema de separação de funções - executivas e legislativas - impede que o órgão de um Poder exerça atribuições do outro. Assim sendo, a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local”[1] (negritamos).

As normas legais, cuja atribuição é do Legislativo, têm caráter genérico e abstrato (e não o caráter individual e concreto), sob pena de invadir a competência constitucionalmente atribuída a outro Poder, o Executivo, sendo que este também não pode delegar as atribuições que lhe são exclusivas.

Prosseguindo, o mestre aborda os aspectos relacionados às atribuições do Prefeito:

As atribuições do prefeito são de natureza governamental e administrativa: governamentais são todas aquelas de condução dos negócios públicos, de opções políticas de conveniência e oportunidade na sua realização - e, por isso mesmo, insuscetíveis de controle por qualquer outro agente, órgão ou Poder; administrativas são as que visam à concretização das atividades executivas do Município, por meio de atos jurídicos sempre controláveis pelo Poder Judiciário e, em certos casos, pelo Legislativo local. Claro está que o prefeito não realiza pessoalmente todas as funções do cargo, executando aquelas que lhe são privativas e indelegáveis e traspassando as demais aos seus auxiliares e técnicos da Prefeitura (secretários municipais, diretores de departamentos, chefes de serviços e outros subordinados). Mas todas as atividades do Executivo são de sua responsabilidade direta ou indireta, quer pela sua execução pessoal, quer pela sua direção ou supervisão hierárquica.

O prefeito atua sempre por meio de atos concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico. Só excepcionalmente o prefeito edita normas através de decreto regulamentar e a Câmara pratica atos administrativos, de efeitos internos ou externos, consubstanciados em resolução ou em decreto legislativo. O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara provê in abstracto, em virtude do seu poder de regular. Todo ato do prefeito que infringir prerrogativa da Câmara - como também deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do prefeito - é nulo, por ofensivo do princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º, c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Judiciário. (...)

O prefeito, como chefe do Executivo local, tem atribuições políticas e administrativas típicas e próprias do cargo. (...)

As atribuições administrativas concretizam-se na execução das leis em geral e na realização de atividades materiais locais, traduzidas em atos administrativos (despachos em geral) e em fatos administrativos (obras e serviços). Tais atribuições expressam-se em instrumentos formais, unilaterais ou bilaterais (atos e contratos), e em execução de projetos, devidamente aprovados pelos órgãos técnicos competentes. (...)

Em princípio, o prefeito pode praticar os atos de administração ordinária independentemente de autorização especial da Câmara. Por atos de administração ordinária entendem-se todos aqueles que visem à conservação, ampliação ou aperfeiçoamento dos bens, rendas ou serviços públicos. Para os atos de administração extraordinária - assim entendidos os de alienação e oneração de bens ou rendas (vendas, doação, permuta, vinculação), os de renúncia de direitos (perdão de dívidas, isenção de tributos etc.) e os que acarretem encargos, obrigações ou responsabilidades excepcionais para o Município (empréstimos, abertura de créditos, concessão de serviços de utilidade pública etc.) - o prefeito dependerá de prévia autorização da Câmara. Como tais atos constituem exceção à regra de livre administração do prefeito, as leis orgânicas devem enumerá-los. Todo ato que não constar dessa relação é de prática exclusiva pelo prefeito, e por ele pode ser realizado independentemente de assentimento da Câmara, desde que atenda às normas gerais da Administração e às formalidades próprias de sua prática.

Advirta-se, ainda, que para atividades próprias e privativas da função executiva, como realizar obras e serviços municipais, para prover cargos e movimentar o funcionalismo da Prefeitura e demais atribuições inerentes à chefia do governo local, não pode a Câmara condicioná-las à sua aprovação, nem estabelecer normas aniquiladoras dessa faculdade administrativa, sob pena de incidir em inconstitucionalidade, por ofensa a prerrogativa do prefeito[2] (sublinhados no original e negritos nossos).

Como aponta o mestre, descabe interferência do Legislativo no que se refere à administração ordinária dos bens públicos municipais. Dentre esta se inclui a prática os atos normalmente implementados para o exercício das atividades rotineiras da Municipalidade, ou, como ensina, atividades executivas do Município. No caso específico aqui tratado, poderia ser exemplificado como a utilização das máquinas e equipamentos integrantes do patrimônio municipal para as atividades para o que originalmente se destinam, ou seja, conservação de vias públicas.

No que se refere ao uso extraordinário das mesmas, consoante ensina acima, naquilo que se configure como “exceção à regra de livre administração do prefeito, as leis orgânicas devem enumerá-los. Todo ato que não constar dessa relação é de prática exclusiva pelo prefeito, e por ele pode ser realizado independentemente de assentimento da Câmara, desde que atenda às normas gerais da Administração e às formalidades próprias de sua prática”.

Por outro lado, no caso presente, afigura-se incidir esta hipótese, por força do expressamente previsto no artigo 3º, inciso VI, alínea “a”, da LOM, ou seja, para desenvolvimento daquilo que atenda aos interesses particulares ou privados dos munícipes, em caráter suplementar às atividades próprias da administração (portanto, não ordinário), tais como, por exemplo, manutenção de caminhos ou vias rurais não públicas (mas de interesse para a economia local), quando não ocorra interferência ou prejuízo para aquelas atividades prioritárias para o interesse público (mantida a exclusiva competência do Executivo para sua gestão), impõe-se a preexistência de disciplina legal, na qual sejam estabelecidos os parâmetros que informarão o exercício, pelo Executivo, de tais atribuições.

A matéria, a ser tratada em projeto de lei do Executivo, acentue-se, deverá estabelecer, dentre outros, os requisitos a serem atendidos pelos munícipes que postulem a disponibilização de tais serviços e as condições em que estes serão desenvolvidos, além de ser fixado se o uso será gratuito ou oneroso, sendo certo que não caberia ao decreto local tratar desta questão, que é de cunho legal e não regulamentar, razão pela qual deve o Prefeito providenciar a sua revogação.

Enfocando o Projeto de Lei do Legislativo trazido, resta reconhecer que, indiscutivelmente, o teor da propositura bem evidencia o objetivo buscado na mesma:

“Art. 1º: O uso de máquinas, tratores, motoniveladoras, caminhões basculantes, e outros equipamentos necessários ara a realização de terraplanagem, remoção de terras e atividades afins, ficam (sic) disciplinados por esta Lei.

Art. 2º: A prestação de serviço ao cidadão no que se refere a remoção de terras, (...)” (negritamos).

Pretendeu o legislador, por intermédio deste instrumento, inconstitucionalmente e invadindo a seara da iniciativa normativa própria do Executivo, ditar a este as regras para a sua execução.

Como evidenciado nas lições transcritas, a regra geral é de que o Prefeito tem atribuições de executar a administração do Município independentemente de prévia autorização da Câmara, sendo esta exigida somente em situações de excepcionalidade, cujas hipóteses necessariamente estarão expressa e claramente previstas na Lei Orgânica local, caso contrário, deve ser objeto de implementação sob responsabilidade exclusiva do Chefe do Executivo, com observância da normatização administrativa geral e das formalidades indispensáveis para sua prática.

Não prescreve a Lei Orgânica Municipal vigente que a utilização dos bens móveis, ou mesmo a disponibilização dos serviços indicados aos munícipes, mediante a utilização dos bens móveis municipais, dependa de prévia autorização do Legislativo local.

Entretanto, a correta previsão expressa em seu artigo 3º, inciso VI, estabelece a competência legislativa local para a disciplina do uso dos bens em geral, dentre os quais se incluem os móveis, o que implica na necessidade de previa submissão de proposta, de iniciativa do Executivo, ao Legislativo local.

Isto posto, respondendo objetivamente à questão trazida pela consulente, incumbe reconhecer que padece a propositura encaminhada à análise de inconstitucionalidade por vício de iniciativa, conforme detalhadamente exposto neste estudo.

Complementarmente, é indispensável reconhecer que a matéria deve, por força do disposto no artigo 3º, inciso VI, da LOM, merecer disciplina, com a amplitude anteriormente mencionada, por iniciativa do Executivo.

É o parecer.

São Paulo, março de 2012

GUILHERME LUÍS DA SILVA TAMBELLINI


Notas

[1] Direito Municipal Brasileiro, 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 722/723.

[2] Idem, p. 726/727 e 734/736.


Autor

  • Guilherme Luis da Silva Tambellini

    Guilherme Luis da Silva Tambellini

    Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é Chefe de Gabinete do Secretário da Fazenda do Estado de São Paulo. Integrou a Assessoria Jurídica do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (Gabinete Conselheiro Sidney Beraldo), foi Gerente Jurídico da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura e Rádio Cultura de São Paulo). Foi Dirigente da Controladoria Interna e integrou também o corpo Técnico-Jurídico da Coordenadoria de Assistência Jurídica, e Procurador Jurídico, todos da Fundação Prefeito Faria Lima/CEPAM. Foi Assessor Técnico dos Gabinetes dos Secretários da Fazenda e Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, Chefe de Gabinete da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo, além de Secretário Executivo e Membro do Conselho de Defesa dos Capitais do Estado-CODEC, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Foi também Membro dos Conselhos de Administração da CDHU/SP e da EMTU/SP e do Conselho Fiscal da COSESP/SP, assim como Dirigente da Consultoria Jurídica da Banespa - Serviços Técnicos e Administrativos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAMBELLINI, Guilherme Luis da Silva. Administração de bens municipais: competência legislativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3190, 26 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/21368. Acesso em: 24 abr. 2024.