Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/21569
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O sistema de registro de preços nas compras públicas e a figura do carona: perspectivas práticas e legais

O sistema de registro de preços nas compras públicas e a figura do carona: perspectivas práticas e legais

Publicado em . Elaborado em .

A possibilidade da Administração Pública não realizar certames licitatórios deixa de oferecer oportunidades a potenciais interessados em celebrar os contratos, com preços e condições mais vantajosas à Administração.

RESUMO

As licitações públicas, baseadas na Lei 8.666/93, se dividem em duas fases: a licitatória e a contratual. O sistema de registro de preços, por sua vez, regido por legislação específica, se divide em três fases: a licitatória, a ata de registro de preços e o contrato. A segunda fase do procedimento de registro de preços, qual seja, fase em que a ata de registro de preços (documento que formaliza um pré-contrato unilateral) é firmada, produz efeitos somente para o vencedor da licitação, que se compromete a fornecer o bem ou prestar os serviços à Administração através de futuros e sucessivos contratos pelo prazo de até um ano, sendo mantidas as condições e quantitativos inicialmente apresentadas em sua proposta. Apesar de inicialmente produzir efeitos apenas entre o vencedor da licitação e o órgão que promoveu o certame, o Decreto Federal nº 3.931/01 prevê a possibilidade de utilização desta ata ora firmada por outro órgão da Administração Pública, prática essa denominada pela doutrina de carona. No entanto, ao contrário do que vem sendo argumentado na doutrina, a utilização desse sistema causa sérios prejuízos à Administração Pública, de modo que sua utilização deve ser coibida pelas Cortes de Contas, conforme se demonstrará ao longo deste trabalho.

PALAVRAS CHAVE: Licitação, sistema de registro de preços, carona.

SUMÁRIO: 1 – Introdução. 2 – A regra da licitação pública e a previsibilidade do Sistema de Registro de Preços.  2.1 – A Constituição Federal e o dever de licitar.  2.2 – Sistema de Registro de Preços. 2.3 – A “Ata de Registro de Preços”. 3 – O Sistema de Registro de Preços e a figura do “Carona”.  3.1 – Distorções presentes na prática do carona.  3.2 – Ofensa aos princípios da Constituição Federal e da licitação pública.  3.2.1 – Ofensa ao princípio da legalidade.  3.2.2 – Ofensa ao princípio da isonomia.  3.2.3 – Ofensa aos princípios da impessoalidade, moralidade e probidade administrativa.  3.2.4 – Ofensa ao princípio da vinculação ao Instrumento Convocatório e ao princípio da publicidade.  3.2.5 – Ofensa a princípio da eficiência e da obrigatoriedade da licitação.4 – Posicionamento dos Tribunais de Contas em relação à adesão a ata de registro de preços. 5 – Conclusão.


 1 - INTRODUÇÃO

A Lei Nacional de Licitações (Lei nº. 8666 de 21 de junho de 1993), em seu artigo 15 dispôs sobre o Sistema de Registro de Preços que, por sua vez, foi regulamentado pelo Decreto nº. 3.931/01.

O Decreto Federal nº. 3.931 de 19 de setembro de 2001, ao fazer a regulamentação do Sistema de Registro de Preços, trouxe em seu art. 8º a possibilidade de utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos ou entidades que não participaram da licitação [1].

Esta inovação, trazida pelo mencionado Decreto, ficou conhecida na doutrina sob a denominação carona, haja vista que um órgão/entidade que não participou do certame licitatório poderá utilizar-se da Ata de Registro de Preços oriunda de licitação promovida por outros órgãos/entidades da Administração Pública, visando adquirir determinado bem ou contratar determinado serviço.

Percebe-se que, para muitos doutrinadores, como o renomado Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, há validade nos fundamentos do Sistema de Registro de Preços e do sistema de carona, porque consistem na desnecessidade de repetição de um processo licitatório quando já alcançada a proposta mais vantajosa para a Administração, caracterizando eficiência administrativa.

Porém, sob a ótica de linhas divergentes de doutrinadores, tal como se apresenta Joel de Menezes Niebuhr (2006, p.19), o sistema de carona é inconstitucional e ilegal, por impor agravos veementes aos princípios da legalidade, isonomia, vinculação ao edital, moralidade administrativa, impessoalidade e economicidade.

No desenvolvimento do presente trabalho, será demonstrado o atual posicionamento do Tribunal de Contas da União em relação ao tema e ainda a necessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade e ilegalidade de referido procedimento, uma vez que este carece de suficiente amparo legal.


2 – A regra da licitação pública e a previsibilidade do Sistema de Registro de Preços

2.1              A Constituição Federal e o dever de licitar

A obrigatoriedade de se realizar licitação, que tem por finalidade selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, foi instituída no artigo 37, XXI da Constituição Federal de 1988, in verbis:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações (BRASIL, 2008, p. 49-51).”

Com o intuito de regulamentar o artigo supramencionado, foram instituídas normas para a licitação através da Lei 8.666 de 21 de junho de 1993.

O objetivo da Lei 8.666/93 é estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos pertinentes a obras, serviços, compras, alienação e locações no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Subordinam-se a este regime, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

A Lei 8.666/93, em seu art. 22, prevê licitação nas modalidades concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão. Reza ainda o parágrafo oitavo do mesmo artigo que “É vedada a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação das referidas neste artigo.” (BRASIL, 2008).

Visando minimizar o prazo do processo licitatório regular[2], foi editada a Lei 10.520 de 17 de junho de 2002, de hierarquia idêntica à Lei 8.666/93, que, convertendo medida provisória em lei, criou a modalidade Pregão, destinada à aquisição de bens e serviços comuns.

Com a lei, a União, os Estados, o DF e os Municípios podem utilizar nas licitações para aquisição de bens e serviços comuns, independente do valor, a modalidade pregão, no qual a disputa pelo fornecimento se dá por meio de propostas e lances em sessão pública (pregão presencial) ou Internet (pregão eletrônico).

O pregão diferencia-se das demais modalidades de licitação pelo princípio do informalismo, pois o legislador “procurou introduzir alguns métodos e técnicas compatíveis com os modernos meios de comunicação, sobretudo através da informática (CARVALHO FILHO, 2009).”

Assim, o licitante que apresentar lance eletrônico ou proposta verbal com o menor preço e estiver devidamente habilitado, conforme especificações do edital, será declarado vencedor.

A Lei 10.520/2002 admitiu o pregão para aquisição de bens e contratações de serviços comuns, quando processadas pelo Sistema de Registro de Preços, previsto no artigo 15 da Lei de Licitações.

Por fim, é mister dizer que será necessário verificar se os produtos e serviços a serem registrados preenchem os requisitos exigidos pela legislação do pregão, tendo em vista que, se não os preencherem, será vedada a utilização da modalidade pregão e a adoção do SRP.

2.2 Sistema de Registro de Preços

O Sistema de Registro de Preços foi criado a partir do advento da Lei Federal 8.666/93, em seu artigo 15, inciso II, tal como se descreve abaixo:

Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:

II - ser processadas através de sistema de registro de preços;

§ 1º O registro de preços será precedido de ampla pesquisa de mercado.

§ 2º Os preços registrados serão publicados trimestralmente para orientação da Administração, na imprensa oficial.

§ 3º O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as peculiaridades regionais, observadas as seguintes condições:

I - seleção feita mediante concorrência;

II - estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados;

III - validade do registro não superior a um ano.

§ 4º A existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios, respeitada a legislação relativa às licitações, sendo assegurado ao beneficiário do registro preferência em igualdade de condições.

§ 5º O sistema de controle originado no quadro geral de preços, quando possível, deverá ser informatizado.

§ 6º Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado.

§ 7º Nas compras deverão ser observadas, ainda:

I - a especificação completa do bem a ser adquirido sem indicação de marca;

II - a definição das unidades e das quantidades a serem adquiridas em função do consumo e utilização prováveis, cuja estimativa será obtida, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas de estimação;

III - as condições de guarda e armazenamento que não permitam a deterioração do material.

§ 8º O recebimento de material de valor superior ao limite estabelecido no art. 23 desta Lei, para a modalidade de convite, deverá ser confiado a uma comissão de, no mínimo, 3 (três) membros (BRASIL, 2008, p.593-693).

O SRP somente foi regulamentado em 2001, por intermédio do Decreto n°3.931, de 19 de Setembro de 2001, alterado pelo Decreto nº 4.342, de 23 de agosto de 2002, que definiu o conceito de Sistema de Registro de Preços em sua redação, in verbis:

Art. 1º As contratações de serviços e a aquisição de bens, quando efetuadas pelo Sistema de Registro de Preços, no âmbito da Administração Federal direta, autárquica e fundacional, fundos especiais, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas, direta ou indiretamente pela União, obedecerão ao disposto neste Decreto.

Parágrafo único. Para os efeitos deste Decreto, são adotadas as seguintes definições:

I - Sistema de Registro de Preços - SRP - conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras (BRASIL, 2008, p.644).

 Hely Lopes Meirelles (1991), ao tratar do tema, conceitua o Registro de Preços como sendo o Sistema de compras pelo qual os interessados em fornecer materiais, equipamentos ou gêneros ao Poder Público concordam em manter os valores registrados no órgão competente, corrigidos ou não, por um determinado período, e a fornecer as quantidades solicitadas pela administração no prazo previamente estabelecido.

Desta forma, vê-se que o SRP é um conjunto de procedimentos com a finalidade de registrar preços para eventuais contratações posteriores, isto é, contratações futuras. O conjunto de procedimentos é constituído pela realização de licitação, nas modalidades concorrência, (do tipo menor preço), e pregão, exclusivamente, nas quais os órgãos possam realizar o Registro de Preços, que por sua vez é formalizado através da Ata de Registro de Preços.

Esse mecanismo de compra, dada sua natureza peculiar, propicia uma série de vantagens à Administração Pública.

A principal vantagem do registro de preços ocorre em relação aos objetos cujo consumo, dentro de um exercício financeiro, seja de difícil aferição de quantitativos, tais como medicamentos, materiais de limpeza, etc. O estabelecimento de quantitativo estimado pode ser insuficiente por diversos fatores e variáveis que não são controlados pela Administração[3], e, nessas situações, o registro de preços possibilita que seja licitado quantitativo superior a sua estimativa e que o fornecimento dos itens seja gradual, sem, contudo, haver a obrigação de se efetivar qualquer aquisição, seja ela parcial ou global.

A aquisição gradual prevista no SRP permite uma gestão de estoques mais eficaz pela Administração Pública (aproximando-a da realidade das empresas privadas, que atualmente trabalham com acervos cada vez menores). Nesse sistema, há considerável redução dos custos decorrentes de armazenamento e estocagem, uma vez que nas contratações regidas pelo art. 57 da Lei 8.666/93 a Administração vê-se compelida a dispor de estrutura adequada para o armazenamento dos objetos que lhe são entregues pelos fornecedores (almoxarifados adequados aos mais diversos itens), o que pode acarretar uma série de gastos e problemas de gerenciamento.

Outra interessante vantagem na utilização do registro de preços é apontada por Niebuhr (2008), ao afirmar que este permite um melhor controle de qualidade dos produtos adquiridos através da licitação. Isso se deve ao fato de que, tendo-se em vista as limitações e dificuldades enfrentadas pela Administração em relação às especificações técnicas, não raro a aquisição de produtos de baixa qualidade ou até mesmo incompatíveis com suas reais necessidades impingem a ela consideráveis prejuízos.

Dessa forma, verificada a incompatibilidade do objeto fornecido às necessidades da Administração, a ela é facultado não mais contratar com o licitante vencedor, sendo possível ainda a realização de nova licitação, visto que não há obrigatoriedade de adquirir todo o quantitativo consignado em ata.

2.10 A ata de registro de preços

Conforme menciona o artigo 1°, parágrafo único, inciso II do Decreto 3.931/2001, a ata de registro de preços é um documento vinculativo, de caráter obrigacional, na qual estarão registrados os valores, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, durante eventual fornecimento, conforme especificações do edital e das propostas apresentadas pelos participantes do certame.

A ata de registro de preços não se confunde com o contrato, posto que o precede e possui natureza jurídica de contrato preliminar ou pré-contrato unilateral, a teor do artigo 466 do Código Civil (NIEBUHR, 2008).

A ata formaliza uma promessa de futura contratação de cunho irrevogável. No registro de preços, o licitante formula proposta para uma promessa de contratação. Assim, o vencedor não é chamado para, desde logo, realizar o contrato. Optando a Administração por convocá-lo, será este obrigado a emitir futura declaração de vontade de natureza contratual.

Caso o licitante vencedor se recuse a cumprir os termos da obrigação assumida na ata, estará sujeito, no entanto, às sanções administrativas e à tutela judicial prevista no art. 81 da Lei 8.666/93, como se contrato entre as partes houvesse.

A ata de registro de preços é válida por um ano, e os fornecedores estão obrigados a manter os preços ofertados pelo mesmo prazo, contado a partir da data de apresentação das propostas. A exceção se dará nos casos em que se sobrevenha, eventualmente, aumento excessivo no mercado dos preços registrados.

Nessas hipóteses, poderá a Administração, comprovada a veracidade dos fatos, liberar o fornecedor do compromisso assumido sem aplicação de penalidades ou convocar os licitantes para renegociação do preço registrado, tal como preceituam os parágrafos 3° e 4° do artigo 12 do Decreto 3.931/2001.

Todo o processo de registro de preços é acompanhado pelo órgão gerenciador, o qual conduzirá o processo administrativo de modo a cumprir todas as etapas previstas na legislação, tal como determina o inciso III do parágrafo único do Decreto 3.931/2001.

No que diz respeito à ata de registro de preços, já decidiu o Tribunal de Contas da União (TCU, 2007):

O conjunto de procedimentos é conduzido pelo órgão gerenciador do certame, que também se incumbe do gerenciamento da Ata de Registro de Preços dele decorrente. Essa Ata tem finalidade específica, tratando-se de documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, onde se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas.

Além do órgão gerenciador, existem também os órgãos participantes, previstos no art. 1°, inciso IV, do Decreto Federal 3.931/2001, que, “sob a coordenação do gerenciador, participam da implantação do SRP, informando a quantidade e qualidade dos objetos pretendidos.” (REVISTA DO TCU, 2007)

Os órgãos participantes estão previstos no Decreto Federal n°3.931/2001, art. 1º, inciso IV, que assim conceitua: “órgão participante – órgão ou entidade que participa dos procedimentos iniciais do SRP e integra a Ata de Registro de Preços (BRASIL, 2008)”.

Ambos os órgãos deverão estabelecer os serviços ou quantidade aproximada de material que pretendem adquirir nos próximos doze meses e estimar o quantitativo mensal de consumo, para assim atender, da melhor maneira possível, aos interesses da Administração.


3. O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS E A FIGURA DO CARONA.

O Sistema de Registro de Preços não se trata de uma modalidade de licitação, mas de um conjunto de procedimentos administrativos que abrange três etapas fundamentais: licitação, ata de registro de preços e contrato administrativo.

Não se pode negar que a utilização do SRP apresenta vantagens em relação às contratações realizadas pelo procedimento administrativo licitatório ordinário, pois se relaciona com a efetivação do princípio da eficiência na medida em que possibilita à Administração gerenciar suas demandas, uma vez que a contratação ocorre de acordo com elas. Ademais, o SRP, além de trazer celeridade na aquisição de bens, diminui o número de licitações, melhora a organização e otimização das estratégias de suprimento e facilita a execução do orçamento.

Entretanto, apesar das vantagens do sistema, a previsibilidade de adesão à ata de registro de preços, que se personifica na figura do carona, apresenta-se como tema deveras divergente na doutrina.

O Decreto Federal n°3.931/01 instituiu o chamado carona, que representa a possibilidade de utilização do SRP por qualquer órgão ou entidade da administração que não tenha participado do certame licitatório que deu origem a Ata de Registro de Preços.

Por intermédio do Decreto n°3931, de 19 de Setembro de 2001, alterada a regulamentação do SRP é instituída no país a possibilidade de a proposta mais vantajosa numa licitação ser aproveitada por outros órgãos e entidades. Esse procedimento vulgarizou-se sob a denominação de carona que traduz em linguagem coloquial a idéia de aproveitar o percurso que alguém está desenvolvendo para concluir o próprio trajeto, sem custos. Órgãos não participantes (caronas): são aqueles que, não tendo participado na época oportuna, informando suas estimativas de consumo, requerem, posteriormente, ao órgão gerenciador, o uso da Ata de Registro de Preços. (Jacoby, 2008)

A possibilidade de adesão ao registro de preços realizado por outra entidade ou órgão está contida no art. 8° e seus parágrafos, conforme se descreve a seguir:

Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.

 § 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.

 § 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas. (BRASIL, 2008).

No que tange a utilização do registro por outros órgãos (carona), Marçal Justen Filho (2009) é incisivo ao afirmar que o regulamento explicitamente admitiu a possibilidade de utilização do registro de preços por entidades não vinculadas originariamente à sua instituição (art. 8°) e que posteriormente, foi introduzida inovação permitindo a superação dos quantitativos máximos previstos na licitação original, o que não apenas configura como ofensivo ao princípio da legalidade, mas também infringe a essência da sistemática constitucional e legislativa sobre licitações e contratos administrativos.

Atualmente, por força não da lei, mas de disposições contidas apenas em Decreto, o instituto de carona vem sendo utilizado pela União, Estados e Municípios e pelo próprio âmbito do TCU.

A legalidade do procedimento adotado pelos órgãos não participantes da licitação vem sendo amplamente discutida pela doutrina. Para uns o efeito carona é legal e salutar para a administração pública, para outros, a figura do carona não pode ser admitida no ordenamento jurídico, posto que é ilegal e inconstitucional.

3.1. Distorções presentes na prática do carona.

Em obediência ao artigo 15 da Lei 8.666/93 o sistema de registro de preços envolve estimativas de quantitativos máximos, que são determinados em face das projeções dos órgãos interessados. Assim, licitam-se objetos em quantitativos que se supõem necessários à satisfação do interesse dos diversos órgãos participantes do sistema.

O Decreto n°. 4342/02 admitiu que os quantitativos referentes a contratações realizadas com outros órgãos administrativos que não participam originalmente do registro de preços não seriam computados para fins de exaurimento do limite previsto na licitação inicial. Entretanto, nas aquisições através do sistema de adesão a atas de registro de preços, o quantitativo ficou limitado a 100% do total licitado, in verbis:

§ 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços. (BRASIL, 2008).

Assim, de acordo com a prática, a única restrição admitida pelo Decreto 4342/02, reside no limite de 100% do quantitativo máximo, objeto do registro por entidade que venha a aderir a ata inicialmente firmada. Esta limitação vem gerando graves distorções, visto que, uma vez que não há limitação quanto ao número de aderentes, vários princípios inerentes à licitação pública são flagrantemente desrespeitados. Tal afronta é apontada pelo próprio TCU, no acórdão TC 008840/2007-3-Plenário (ÂNGELO, 2010) que assim dispõe:

“Diferente é a situação da adesão ilimitada a atos por parte de outros órgãos. Quanto a essa possibilidade não regulamentada pelo Decreto n°3931/2001, comungo o entendimento da unidade técnica e do Ministério Público que essa fragilidade do sistema afronta os princípios da competição e da igualdade de condições entre os licitantes.Refiro-me a regra inserta no art.8°, §3°, do Decreto n°3931, de 19 de Setembro de 2001, que permite a cada órgão que aderir a Ata, individualmente, contratar até 100% dos quantitativos ali registrados no caso em concreto sob exame, a 4ª Secex faz um exercício de raciocínio em que demonstra que a possibilidade real de a empresa vencedora do citado Pregão 16/2005 ter firmado contratos com os 62 órgãos que aderiram à ata, na ordem de aproximadamente 2 bilhões de reais, sendo que, inicialmente, sagrou-se vencedora de serviços no valor de R$32,0 milhões. Está claro que essa situação é incompatível com a orientação que preconiza a competitividade e a observância da isonomia na realização das licitações públicas.”

Assim, apesar de o próprio TCU utilizar-se de da adesão ao Sistema de Registro de Preços em suas aquisições, o mesmo reconhece que há graves distorções no procedimento de adesão dos órgãos não participantes (carona). Para o jurista Marçal Justen Filho (2009):

A solução desbordou os limites da lei e produziu resultado teratológico, especialmente porque propicia contratações ilimitadas com base em uma mesma e única licitação. A figura do carona é inquestionavelmente ilegal e eivada de uma série de vícios.

Franklin Delano (2010) concorda com o entendimento de Marçal Justen Filho e exemplifica:

“Imagine uma Ata de Registro de Preços de computador de configuração comum desktop com um preço de 900 reais. Essa ata foi gerada por um pregão numa cidade de interior de um estado do Brasil por uma quantidade de 2000 computadores e o vencedor foi a empresa fictícia ABC ltda. O vencedor de Ata de Registro de Preços da empresa ABC ltda viaja por todo o Brasil oferecendo seu computador de 900 reais. Aquele órgão que quiser comprar, assina uns documentos e pode comprar até 2000 computadores por 900 reais cada e recebendo os computadores em até 15 dias. Excelente negócio, mas lembre que uma Ata desta usada por uns 10 órgãos utilizando 100% da quantidade da Ata como carona, por exemplo, faz com que a empresa ABC ltda venda 20 mil computadores com um preço de uma licitação de 2000 computadores. Péssimo negócio para a Administração Pública. Essa proposta não é a mais vantajosa, pois o preço conquistado numa licitação de 20 mil computadores é bem menor que o preço conquistado numa licitação de 2 mil computadores.”

A adesão ilimitada de vários órgãos que se aproveitam da instituição do carona configura situação grave que impõe sérios prejuízos à Administração e afronta abertamente o princípio da economicidade. Isso porque, utilizando-se da economia de escala, realidade essa inexorável ao capitalismo (NIEBUHR, 2008), se a licitação fosse destinada inicialmente à aquisição de 20 mil computadores, certamente todos os licitantes teriam condições de oferecer maiores vantagens de preço em suas propostas.

Conforme bem exemplificado por Franklin Delano, vem sendo formado com a ata de Registro de Preços e com a utilização da carona, um mercado paralelo de bens e serviços, que são oferecidos à Administração Pública, burlando assim a regra de licitar imposta pela Constituição Federal.

Sobre o mercado paralelo, deturpação causada pelo carona, descreve Joel de Menezes Niebuhr (2006):

“O carona é um júbilo dos lobistas, do tráfico de influência e da corrupção, especialmente num país como o nosso, com instituições e meios de controle tão frágeis. Os lobistas e os corruptos não precisam mais propor o direcionamento de licitação, basta proporem o carona e tudo está resolvido.”

O referido autor defende ainda que tal assertiva não visa demonstrar que os participantes do carona defendem a imoralidade ou que necessariamente estão envolvidos em esquemas que lhes assegurem vantagem indevida. Na verdade, o autor afirma que a referida prática abre as portas da Administração a essas situações, uma vez que não há controle algum.

Competindo exclusivamente ao representante de cada entidade decidir livremente se adere ou não a determinada ata de registro de preços, há um grande e inegável risco de que o representante aceite alguma espécie de agrado para beneficiar o fornecedor ao optar pela carona.[4]

Outra distorção encontrada na figura do carona é a adaptação do interesse público ao objeto da ata de registro. Como a Ata de Registro de Preços já possui especificações e quantitativos do produto, quando e qual a forma de fazer aquisições, a Administração que pega carona não se preocupa com tais características, somente adéqua o objeto pretendido à Ata, deixando de proceder ao estudo do prévio ou planejamento dos bens ou serviços a serem contratados.

Neste sentido, exemplificam Madeline Rocha Furtado e Antonieta Pereira Vieira (2007):

“Na necessidade de adquirir um bem ou serviço, adere-se as Atas, nas quais o objeto não contempla a real necessidade do órgão interessado, modifica-se o pedido, suas características, suas especificidades, periodicidades, freqüência na execução, prazo de recebimento, quantitativos, métodos, etc. Modifica-se o projeto inicial, visando atender à Ata quando deveria ser o inverso, a Ata poderá ou não atender ao requisitado.”

3.2 Ofensa aos princípios da Constituição Federal e da licitação pública.

A utilização do instituto do carona, conforme se descreve a seguir, frustra os vários princípios aplicáveis a Administração Pública, inclusive aqueles impostos pela CF/88 no seu artigo 37, além dos princípios inerentes à natureza da licitação propriamente ditos, razão pela qual sua utilização pela Administração Pública não merece prosperar.

3.2.1 Infração ao Princípio da Legalidade.

O vício mais evidente da figura do carona é a ilegalidade. A Lei 8.666/93 não faculta a instituição desse sistema, que foi introduzido por meio de regulamento, subjugando assim o prévio e necessário processo legislativo ao qual deveria se submeter. Nesse sentido aponta Joel de Menezes Niebuhr (2006):

“O princípio da legalidade apresenta um perfil diverso do campo do Direito Público e no do campo do Direito Privado. No Direito Privado pode-se fazer tudo que a lei não proíbe. No Direito Público, pelo contrário, existe uma relação de subordinação perante a lei, ou seja, só se pode fazer o que a lei expressamente autorize ou determine.

 (...)

Quem poderia, em tese, criar a carona é o Poder Legislativo, por meio de lei, em obediência ao princípio da legalidade. O Carona jamais poderia ter sido criado, como malgrado foi, pelo Presidente da República, por mero regulamento administrativo. No Estado Democrático de Direito não se deve governar por decreto, mas por lei, conforme preceitua o princípio da legalidade, festejado de modo contundente e irrefutável pela Constituição Federal.”

Assim também entende Marçal Justen Filho (2009).

“O Direito brasileiro não autoriza que uma contratação seja realizada com base em licitação promovida por outros fins. Nem mesmo mediante a invocação da vantajosidade das condições originais. Portanto, a instituição da figura do carona dependeria de uma previsão legislativa, a qual não existe.”

Desta forma o Decreto Federal n°3931/01, que instituiu o carona extrapola sua competência constitucional, pois ignora a ordem jurídica e desrespeita o processo legislativo constitucional, uma vez que a competência para a criação da figura do carona pertence ao legislativo.

3.2.2 Infração ao princípio da Isonomia.

O princípio da isonomia tem como preceito a igualdade aristotélica: tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma diferente. Assim, todos têm direito à licitação pública.

Sendo a licitação conseqüência do princípio da isonomia, por assegurar a todos os interessados que sejam tratados com igualdade, a adesão ao registro de preços viola a isonomia, uma vez que pressupõe contrato sem licitação.

A infração do mencionado princípio ocorre ainda com a adesão à Ata de Registro de Preços por órgão não participante da licitação, pois o acréscimo no quantitativo a ser contratado (fator extremamente relevante no que tange à elaboração das propostas) era desconhecido na fase de licitação, em que a igualdade de condições prevalecia.

Ademais, a prática do carona oculta a vedação à elevação dos quantitativos originais além dos 25%, conforme previsto no art. 65, §§1°e 2° da Lei 8.666/93, pois torna-se possível que as partes pactuem acordo para produzir a elevação dos quantitativos previstos de modo ilimitado.

O posterior aumento do quantitativo a ser contratado pelo carona concede vantagem à empresa que assina a Ata de Registro de Preços em relação aos demais participantes, que ficaram impedidos de oferecer proposta mais vantajosa a partir da consideração da economia de escala.

Para Joel de Menezes Niebuhr (2006):

“A figura do carona é ilegítima, porquanto por meio dela procede-se à contratação direta, sem licitação, fora das hipóteses legais e sem qualquer justificativa, vulnerando o princípio da isonomia, que é o fundamento da exigência constitucional que faz obrigatória a licitação pública.”

3.2.3 A infração aos princípios da impessoalidade, moralidade e probidade administrativa.

Outros vícios relevantes são a infração aos princípios da impessoalidade e moralidade, que estão intrinsecamente ligados, pois buscam regras para a boa administração.

Sobre os mesmos, descreve brilhantemente Niebuhr (2006):

“O carona, no mínimo, expõe os princípios da moralidade e da impessoalidade a risco excessivo e despropositado, abrindo as portas da administração a todo tipo de lobby, tráfico de influência e favorecimento pessoal.”

E Niebuhr (2006) exemplifica:

“Imagina-se o seguinte: a empresa “A” ganhou licitação e assinou ata de registro de preços para fornecer mil unidades de dado produto, com a ata de registro de preços em mão a empresa “A” pode procurar qualquer entidade administrativa, sem limite, propondo aos agentes administrativos responsáveis por ela aderirem à ata, entrando de carona, e, pois, contratarem sem licitação, é de imaginar ou, na mais tênue hipótese, supor que a empresa “A” pode vir a oferecer alguma vantagem (propina) aos representantes destas outras entidades administrativas, para que os mesmos adiram à ata de registro de preços que a favorece e viabilizem a contratação. Nesse prisma, a empresa “A”, que participou de licitação para fornecer mil unidades, pode vender cem mil unidades ou o quanto for, dependendo apenas do seu poder de lobby, do quão ela é competente em tráfico de influência ou do montante da propina que ela se dispões a pagar”.

Burlando os princípios da moralidade e impessoalidade, a prática do carona, ao contrário de buscar uma boa gestão administrativa, facilita o favorecimento pessoal, fazendo com que a Administração se desvie do interesse público.

Por fim, em relação a improbidade administrativa e à economicidade, observa Marçal Justen Filho (2009):

“Com a carona, produz-se a elevação dos quantitativos originalmente previstos sem a redução do preço unitário pago pela Administração. Por isso tudo, não seria exagero afirmar que a prática do carona é intrinsecamente danosa aos cofres públicos, atingindo as raias da improbidade administrativa”.

3.2.4 Infração ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório e ao princípio da publicidade.

O Edital, instrumento convocatório da licitação, fixa normas e condições que devem ser observadas por todos os interessados que participam do certame. Tais normas deverão, obrigatoriamente, ser cumpridas, conforme estabelece o art. 41 da Lei 8.666/93, in verbis:

 “Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada (BRASIL, 2008).”

A adesão à Ata de Registro de Preços, pelos órgãos não participantes não é prevista no Edital, o que fere o princípio da vinculação ao Instrumento Convocatório.

Além da adesão não ser prevista no Edital, o aumento do quantitativo fixado no certame poderá ser alterado quando da adesão, ilimitadamente, modificando o valor estimado da contratação, prazos, condições de entrega e local.

Na obra Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, leciona Marçal Justen Filho (2009):

“A figura do carona configura uma infração ao princípio da vinculação ao edital. Promove-se licitação prevendo que o licitante vencedor poderá ser contratado para fornecer quantitativos determinados e limitados para a Administração Pública. Posteriormente, admite-se que sejam realizadas contratações que superem esse limite. Mais ainda, podem ser realizadas contratações em quantitativos ilimitados, eis que o montante máximo aplica-se por órgão administrativo adquirente.Ademais disso, produz-se a contratação com órgão não participante da licitação e do sistema original, o que também configura uma hipótese de infração as condições previstas no ato convocatório.”

Por haver infração ao instrumento convocatório quando da adesão à Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes da licitação, fere-se simultaneamente o princípio da publicidade, devido ao fato de o quantitativo a ser contratado, definido no edital, poder ser modificado.

O participante da licitação tem o direito de conhecer o quantitativo a ser registrado, pois a ausência de tal informação configura desrespeito ao mesmo e interfere diretamente na possibilidade de apresentação de propostas mais vantajosas e competitivas entre si.

Conclui José Cretella Júnior (2003) “Com efeito, a mais ampla publicidade é pressuposto indispensável a um instituto que se destina a colocar diante do público as condições preliminares para a concretização de contratos de que participa a Administração.”

3.2.5 Infração ao Princípio da Eficiência e da Obrigatoriedade da Licitação.

Dois aspectos relevantes devem ser considerados em relação ao princípio da eficiência. O primeiro a ser destacado é o SRP que, visando à aquisição de bens ou serviços para a Administração, representa por si só, dada sua natureza e praticidade o princípio da eficiência. O órgão gerenciador juntamente com o participante realiza uma única licitação, suprindo a demanda de contratação de todos os interessados.

Lado outro, a adesão à Ata de Registro de Preços, por órgão não participante, caracteriza inércia, desídia e comodismo administrativo, uma vez que os “órgãos poderão esconder ausência de planejamento nas contratações buscando sempre a adesão à Ata de Registro de Preços de outros órgãos que implantaram o SRP (MELO, 2010).”

Assim, a prática do carona macula também o princípio da eficiência, não sendo aplicável nesses casos o argumento sustentado por Jacoby Fernandes (2003), de que o “Sistema de Registro de Preços e do Sistema de carona consistem na desnecessidade de repetição de um processo oneroso, lento e desgastante quando já alcançada a proposta mais vantajosa.”

A seu turno, infração ao princípio da obrigatoriedade de licitação é o principal e mais grave equívoco dos Decretos Federais 3931/2001 e 4342/2002, que criaram o carona, pois o órgão /entidade que não participar da licitação fica autorizado a comprar sem que tenha realizado o procedimento licitatório.

Toshio Mukai (2009) descreve o procedimento de carona como “uma compra feita por um órgão, sem licitação (porque o órgão não fez licitação) e o vendedor, por isso mesmo, relativamente ao que vai lhe vender, não venceu licitação nenhuma, simplesmente porque esta inexiste.”

Nas palavras de Marçal Justen Filho (2009) “a figura do carona corresponde ao aproveitamento dos efeitos de uma licitação anterior, para que uma entidade administrativa promova contratação sem prévia licitação.”

A figura do carona configura uma situação semelhante à da dispensa de licitação, baseada na exclusiva discricionariedade administrativa, e incompatível com o disposto no art.37, inciso XXI da CF/88.

Reza o artigo 89 da Lei n. 8.666/93.

“Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público (BRASIL, 2008).”

Assim, o Decreto 3931/01 bem como o Decreto 4342/2002 “autoriza um crime de licitação. Tudo o mais, como, eficiência, ganho de tempo, não repetição de licitações, etc., decantados pelos defensores desse verdadeiro crime “legalizado”, caem por terra.” (MUKAI, 2009).

Cumpre ressaltar que o Decreto 3931/01 viola o inciso XXI do art. 37 da CF/88, sendo absolutamente inconstitucional, salientando que qualquer obra, serviço, compra e alienação só podem ser contratados mediante processo de licitação pública.

Com efeito, dispõe o artigo supramencionado:

“XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

Dessa forma, fica claro que o órgão que adere a ata de registro de preços firmada por outrem se esquiva de obrigação constitucional que lhe é imposta, além de favorecer o tráfico de influência, uma vez que a escolha do produto a ser adquirido (especialmente no que se refere à marca) é atribuída exclusivamente à discricionariedade administrativa.


4. O Posicionamento dos Tribunais de Contas em relação à adesão a ata de registro de preços.

A Corte de Contas da União, diante da prática excessiva e sem limites de contratações através do instituto do carona, reconhece existir um mercado paralelo de aquisições de bens e serviços contratados sem licitações. Todavia, não reconheceu a invalidade do procedimento.

O TCU, em sua manifestação sobre o tema no Acórdão 1487/2007 apenas limitou o uso do carona, solicitando ao Poder Executivo uma solução destinada a limitar as contratações realizadas através desse instituto, que até o presente momento mantêm-se inerte sobre as contratações pelo sistema de carona.

Sobre esse aspecto, destaca-se da decisão do Tribunal de Contas acerca do carona os dizeres do Ministro relator Valmir Campelo:

“6. Diferente é a situação da adesão ilimitada a atas por parte de outros órgãos. Quanto a essa possibilidade não regulamentada pelo Decreto nº 3.931/2001, comungo o entendimento da unidade técnica e do Ministério Público que essa fragilidade do sistema afronta os princípios da competição e da igualdade de condições entre os licitantes.

(...)

8. Para além da temática principiológica que, por si só já reclamaria a adoção de providências corretivas, também não pode deixar de ser considerado que a Administração perde na economia de escala, na medida em que, se a licitação fosse destinada inicialmente à contratação de serviços em montante bem superior ao demandado pelo órgão inicial, certamente os licitantes teriam condições de oferecer maiores vantagens de preço em suas propostas.

9. A propósito do comentário acima, trago em reforço a lição do Prof. Marçal Justen Filho, (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11ª ed.) em que comenta a necessidade de se contar com uma precisa definição dos quantitativos mínimos e máximos das compras ou serviços a serem licitados, de modo a garantir estabilidade ao certame no que se refere à formação dos preços: “É imperioso determinar os quantitativos máximos cuja aquisição se prevê no período de um ano. Mas, além disso, deverão estabelecer-se os quantitativos para cada aquisição individual. Por outro lado, não se pode admitir formulação genérica para os lotes. Não será válida previsão de que os quantitativos em cada aquisição serão fixados discricionariamente, sem qualquer limite, pela Administração. Será defeituoso, por exemplo, o edital que estabelecer que a Administração poderá requisitar o fornecimento de lotes entre um quilograma e dez toneladas. Ora, isso inviabiliza a formação de preços, atemoriza os fornecedores diligentes e estimula os imprudentes, além de ter outros efeitos como se verá abaixo. Em suma, a adoção de registro de preços não significa afastar a previsão de que os editais devem descrever de modo preciso o objeto da licitação. Ou seja, o sistema de registro de preços não pode gerar a ampliação dos custos de transação para o particular. A incerteza sobre quantitativos mínimos e máximos se reflete no afastamento dos empresários sérios e na elevação dos preços ofertados à Administração. Basta um pequeno exemplo para evidenciar o problema. É possível formular um juízo aplicável a qualquer objeto, numa sociedade industrial razoavelmente desenvolvida. Trata-se do princípio da escala, que significa que quanto maior a quantidade comercializada tanto menor o preço unitário dos produtos fornecidos. Assim, o preço unitário não será o mesmo para fornecer um quilo de açúcar ou dez toneladas. Se não for estabelecido um lote mínimo para requisição, o particular se verá num dilema econômico invencível. Seus custos serão diversos em função das quantidades. O resultado será a formulação de preços médios. Logo, sempre que a Administração formular requisição de lotes de maior dimensão, acabará pagando valor superior ao que poderia ter obtido - se o licitante dispusesse da informação sobre a dimensão dos lotes.

Dito de outro modo, a Administração deve aproveitar o sistema de registro de preços para obter preços por atacado, evitando os preços de retalho. Para tanto, tem de estabelecer lotes mínimos que permitam aos potenciais interessados formular a proposta mais vantajosa.

Por outro lado, a fixação de quantitativos máximos é imposição essencial, derivada das normas orçamentárias, do princípio da isonomia e da economicidade.”

10. Vê-se, portanto, que a questão reclama providência corretiva por parte do órgão central do sistema de serviços gerais do Governo Federal, no caso, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, razão pela qual, acompanhando os pareceres emitidos nos autos, firmo a conclusão de que o Tribunal deva emitir as determinações preconizadas pela 4ª Secex, no intuito de aperfeiçoar a sistemática de registro de preços, que vem se mostrando eficaz método de aquisição de produtos e serviços, de modo a prevenir aberrações tais como a narrada neste processo (TCU. Acórdão n°1.487/2007).”

Acerca da Decisão mencionada, comenta Marçal Justen Filho (2007):

“O TCU incorporou razões jurídicas que devem ser tomadas em conta quando se pretender adotar a prática da carona. O Acórdão 1.487/07 demonstra que a contratação adicional, não prevista originalmente, é potencialmente danosa aos cofres públicos. Daí se segue que a sua adoção envolve a assunção do administrador público do risco de produzir uma contratação equivocada. A comprovação de que a prática do carona produziu enriquecimento injusto e indevido para o fornecedor privado deve conduzir à severa responsabilização dos agentes estatais que a adotaram.”

Diante do acórdão do Tribunal de Contas da União nº. 1.487/2007 – Plenário, a União não regulamentou o uso do carona, somente normatizou o instituto de acordo com a Orientação Normativa da AGU nº. 21, de 1º de abril de 2009, que autoriza a adesão a ata de registro de preços aos demais entes públicos federais e não admite que os seus órgãos utilizem o registro de preços dos Estados, Municípios e Distrito Federal, in verbis:

“ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 21, DE 1º DE ABRIL DE 2009

O ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I, X, XI e XIII, do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, considerando o que consta do Processo nº 00400.015975/2008-95, resolve expedir a presente orientação normativa, de caráter obrigatório a todos os órgãos jurídicos enumerados nos arts. 2º e 17 da Lei Complementar nº 73, de 1993:

É VEDADA AOS ÓRGÃOS PÚBLICOS FEDERAIS A ADESÃO À ATA DE REGISTRO DE PREÇOS, QUANDO A LICITAÇÃO TIVER SIDO REALIZADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTADUAL, MUNICIPAL OU DO DISTRITO FEDERAL (BRASIL, AGU, 2009).”

Como se pode observar, o TCU, reputando juridicidade ao sistema de adesão, apenas recomenda a fixação, pelo poder Executivo, de limites em relação ao número de aderentes. Contudo, outros tribunais também já se manifestaram sobre o tema, tais como o Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso, do Distrito Federal e do Estado de Santa Catarina. (NIEBUHR, 2008).

No Mato Grosso (Acórdão nº 475/2007) e no Distrito Federal (Processo 35.501/2005), as cortes atribuíram legitimidade ao procedimento, autorizando assim a sua prática. A Corte de Contas do Estado do Mato Grosso foi um pouco mais além e proibiu que a adesão à ata de registro de preços, no total, ultrapassasse o quantitativo previsto na ata original acrescido de 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicialmente licitado e registrado na ata original.

O Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, a seu turno, reconheceu a ilegalidade da adesão à ata de registro de preços (Prejulgado nº 1.895). Veja-se:

“1. O SRP, previsto no art. 15 da Lei (federal) n. 8.666/93, é uma ferramenta gerencial que permite ao Administrador Público adquirir de acordo com as necessidades do órgão ou da entidade licitante, mas os decretos e as resoluções regulamentadoras não podem dispor além da Lei de Licitações ou contrariar princípios constitucionais.

2. Por se considerar o que o sistema de carona, instituído no art. 8º do Decreto (federal) n. 3.931/2001, fere o princípio da legalidade, não devem os jurisdicionados deste Tribunal utilizar as atas de registro de preços de órgãos ou entidades da esfera municipal, estadual ou federal para contratar com particulares, ou permitir a utilização de suas atas por outros órgãos ou entidades de qualquer esfera, excetuada a situação contemplada na Lei (federal) n. 10.191/2001.”

Assim, conforme demonstra a decisão ora apontada, o Decreto Federal vai de encontro aos preceitos constitucionais, de modo que sua utilização pelas esferas federal, municipal e federal deve ser considerada como prática maculada pela total ausência de permissivo legalmente instituído para esse fim.

Ratificando o posicionamento acertadamente adotado pelo Tribunal de Santa Catarina, NIEBUHR (2008) assim se manifesta:

“Em Santa Catarina, o Tribunal de Contas deixou bem claro que a adesão à ata de registro de preços é ilegal. Trata-se de decisão que deve ser tomada como referência pelos demais tribunais de contas do país e, inclusive, pelo Tribunal de Contas da União, que, como visto, perdeu ótima oportunidade para extirpar de uma vez a chaga do carona da Administração Federal.”


5. CONCLUSÃO

O sistema de registro de preços e o sistema de carona são dois institutos correlacionados, porém muito divergentes. O primeiro eleva o princípio da eficiência da administração, pois, de uma única vez, registra preços para aquisição futura ou eventual, precedidos de uma ampla pesquisa do mercado e estrita observância aos preceitos legais. O segundo, regulamentado pelo artigo 8º do Decreto nº. 3.931 e não por lei, fere cabalmente o princípio da legalidade e o dever de licitar imposto pela Constituição Federal, burlando os princípios da licitação pública, facilitando, inclusive, o tráfico de influência e a corrupção, conforme ora demonstrado.

A possibilidade da Administração Pública não realizar certames licitatórios deixa de oferecer oportunidades a potenciais interessados em celebrar os contratos, com preços e condições mais vantajosas à Administração. O aumento de quantitativos e a manutenção das condições iniciais da proposta inicialmente apresentada produzem lucros extraordinários à empresa fornecedora, que se beneficia da economia de escala, caracterizando um mercado paralelo, desvirtuando a real finalidade da utilização da ata de registro de preços disposta na legislação em vigor.

Dessa forma, é crucial que se reconheça, no âmbito da administração pública, que a prática do carona, ao contrário daqueles que a apontam como medida promotora de celeridade e economia, seja reconhecida como prática ilegal e causadora de flagrantes prejuízos à Administração.

Por essa razão, corroborando com o posicionamento do Tribunal de Contas do Estado de Sana Catarina e com os dizeres NIEBURH, faz-se necessária a total vedação da utilização de Atas de Registro de Preços por órgãos que não participaram da licitação, consagrando-se, assim, a transparência dos processos de licitação e a efetiva seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, fim último de todo processo licitatório.


REFERÊNCIAS

ANGELO, Fernando Henrique Cherem. Registro de preços. Análise Crítica do acórdão TC.008840/2007-3 do Plenário do TCU. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/10586>. Acesso em: 20.12.2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 05/10/88. Rio de Janeiro:RT. 8º edição. 2008.

BRASIL. Decreto 3931.19/09/2001. Regulamenta o sistema de Registro de Preços no art. 15 da Lei 8666, de 21 de junho de 1993 e dá outras providências. Rio de Janeiro: RT. 2008. 8ª ed. pp. 643-648.

BRASIL. Lei 8666.21/06/1993. Regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Rio de Janeiro: RT. 8ª ed. pp. 593-636.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1487. Ministério da Saúde. Relator Valmir Campelo. Data do julgamento 03/08/2007. Processo 008.840/2007-3.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 531- Plenário. Relator Ministro Ubiratan Aguiar. Data do Julgamento 04/04/2007.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen júris. 2009. p. 400.

CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

DELANO, Franklin. Minha avó sempre dizia que carona é um perigo. Disponível em: <http://delanoconsulting.blogspot.com/2010/01/minha-avo-sempre-dizia-que-carona-e.html >Acesso em: 23.12.2010.

FURTADO, Madeline Rocha e VIEIRA, Antonieta Pereira. Cuidado nas aquisições pelo sistema de registro de preços. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte, ano 6. n°67, jul 2007, p.70-72.

JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Carona em sistema de registro de preços: uma opção inteligente para redução de custos e controle. Disponível em: <http://www.jacoby.pro.br/utilpub/CAC58T8N.doc>. Acesso em: 10/01/2011.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialítica. 13° Ed. 2009. p.197-199.

_______________. Marçal. TCU restringe a utilização de carona no Sistema de Registro de Preços. Revista O Pregoeiro. Ano III – Junho/2007. p.12-13.

MEIRELLES, Helly Lopes. Licitação e contratos administrativos. São Paulo: RT, 1991. p.62.

MUKAI, Toshio. Revista do Tribunal de Contas da União. O Efeito carona no Registro de Preços: Um crime legal?. Brasil. Ano 41. número 114. janeiro/abril 2009. pp.103-108.

NIEBUHR, Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços: Atentado veemente aos princípios do Direito Administrativo. ILC – Informativo de Licitações e Contratos, n°143. Curitiba: Zênite. Jan. 2006. p. 13-19.

Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Pareceres e Decisões. Março. 2009. v.70. n°1 – ano XXVII. p. 200 - 203.

Revista Fórum de Contratações e Gestão Pública – FCGP. Belo Horizonte. Ano 4, n.45. 2005. Artigos. Antônio Flávio de Oliveira. p. 6008 – 6012.


Notas

[1] “Art. 8º. A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem. (grifo nosso)”.

[2] “As modalidades licitatórias previstas na Lei nº. 8666/93, em muitos casos, não conseguiram dar celeridade desejável à atividade administrativa destinada ao processo de escolha de futuros contratantes (CARVALHO FILHO, 2009).”

[3] Nesse sentido, Joel de Menezes Niebuhr (2008).

[4] Para Niebuhr, “Só alguém muito ingênuo e completamente alienado da realidade nacional pode supor que isso não aconteça com certa freqüência no Brasil.” (2008)


ABSTRACT

The public bidding, based on Law 8.666/93, are divided in two phases: the bidding and the contractual. The Prices Registration System in its turn, ruled by specific laws, is divided in three phases: the bidding, the minute of prices registration and the contract. The second phase of the procedure, the one in which the minute of prices registration (document that formalizes an unilateral pre-contract) is signed, cause effects only to the bid winner, who promises to supply the items or provide a service to the Management through future and successive contracts along one year, being the conditions and the quantities initially presented in its offer kept. Although it produces effect only between the bid winner and the Authority which has promoted the bidding, the Federal Decree-law nº 3.931/01 presents the possibilities of using this registered minute by other authorities which has not initially taken part of the process, this practice was named “hicht-hiking”. In spite of what have been argued by the doctrine, the use of this system cause serious damages to the Management, in a way that its use must be forbidden by the Audit Office, according to what will be shown along this article.

KEY WORDS: Bid, Prices Registration System, Hitch-Hiking


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

XAVIER, Ana Flávia. O sistema de registro de preços nas compras públicas e a figura do carona: perspectivas práticas e legais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3215, 20 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21569. Acesso em: 25 abr. 2024.