Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/22426
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Fato jurídico: plano da existência

Fato jurídico: plano da existência

Publicado em . Elaborado em .

A despeito de consideráveis opiniões da doutrina brasileira, nos casos de negócio inexistente, é necessária uma declaração judicial a fim de proteger a boa-fé dos envolvidos ou de terceiros, desfazendo a aparência de juridicidade do ato.

Resumo: O presente artigo apresenta uma análise do plano da existência do fato jurídico lato sensu. Nesta análise serão desenvolvidos os conceitos das espécies de fato jurídico, com ênfase no negócio jurídico e em seus elementos constitutivos para, ao final, refletir sobre a teoria dos negócios jurídicos inexistentes e sobre algumas questões que envolvem o plano da existência.

Palavras chave: Fato jurídico, plano da existência, negócios jurídicos inexistentes.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 FATO JURÍDICO. 2.1 Fato jurídico em sentido estrito. 2.2 Ato-fato jurídico. 2.3 Ato jurídico em sentido estrito. 2.4 Negócio jurídico. 3 O PLANO DA EXISTÊNCIA. 3.1 Elementos constitutivos do negócio jurídico. 3.1.1 Manifestação ou declaração de vontade. 3.1.2 Agente emissor da vontade. 3.1.3 Objeto. 3.1.4 Forma. 3.2 A inexistência do ato ou negócio jurídico. 4 ALGUMAS QUESTÕES ENVOLVENDO O PLANO DA EXISTÊNCIA. 4.1 Casamento inexistente. 5 CONCLUSÃO. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1 Introdução          

O mundo jurídico e o mundo da vida nem sempre coincidem.

Há fatos da vida, cujos efeitos, embora relevantes para quem os experimenta, podem não ser atinentes ao mundo jurídico.

Assim, fatos como alimentar-se, vestir-se, pensar em comprar algum objeto, visitar alguém, assistir a um culto, conversar com alguém podem não ter relevância para o mundo jurídico e, ao mesmo tempo, podem ser muito relevantes para outras áreas do conhecimento.

Mas o que poderia interessar ao mundo jurídico? Ou, nas palavras de Rosa Maria de Andrade Nery (2008, p.106), “o que tem o condão de tornar uma experiência qualquer em uma experiência jurídica”?

A resposta clara para este questionamento é dada pela professora Taisa Maria Macena de Lima (1999) em seu artigo “Os planos do mundo jurídico e a teoria das nulidades’’. Em seu texto, leciona a professora que existem dois fenômenos mediantes os quais é possível observar o nexo entre fato e norma jurídica, a saber: a  nomogênese e a juridicização.

Através desses fenômenos, delimita-se o mundo jurídico, através de um corte no mundo social, “separando os fatos irrelevantes para o direito dos fatos juridicamente relevantes”. (LIMA; 1999, p. 209).

Segundo Lima, os fenômenos da nomogênese e da juridicização são assim explicados:

A passagem do meramente factual para o jurídico dá-se com a nomogênese, partindo-se da constatação de que determinado fato natural ou ato humano, por sua repercussão na comunidade, deve ser coibido, incentivado ou simplesmente autorizado. Feita tal avaliação, são elaboradas normas (jurídicas), cuja estrutura comporta a descrição de um fato (hipótese de incidência, suporte fático, tatbestant etc.) e as consequências desencadeadas com a verificação do fato previsto. (...). O fenômeno da juridicização é lógica e cronologicamente posterior ao da nomogênese. Juridicizar significa tornar jurídico, implicando, assim, a entrada de certo evento (fato natural ou conduta do ser humano) no mundo jurídico. O evento somente entra no mundo jurídico quando preexiste norma que o discipline. A juridicização assinala a existência do fato no mundo jurídico, ainda que esse implique violação de norma positivada. (LIMA; 1999, p. 209).

Arrematando este entendimento, Lima (1999, p. 209) pontua que “licitude e ilicitude integram a experiência jurídica”, sendo o adjetivo jurídico um qualificador para “tudo o que é disciplinado pelo Direito e não apenas a conduta tolerada ou imposta pela norma (conduta lícita)”.

Assentadas essas premissas, cumpre discorrer sobre o objeto deste trabalho, qual seja, o fato jurídico analisado a partir do plano de existência.


2 Fato Jurídico

Inicialmente, convém saber o que seja o fato jurídico.

A esse respeito, Caio Mário (2009, p.392), a partir da concepção de Savigny, enuncia que “fatos jurídicos são os acontecimentos em virtude dos quais começam, se modificam ou se extinguem as relações jurídicas”.

Considerando a amplitude do fato jurídico, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p.340) propõem o seguinte conceito: “Fato Jurídico em sentido amplo seria todo acontecimento natural ou humano capaz de criar, modificar, conservar ou extinguir relações jurídicas”.

A partir de tal concepção vislumbra-se a existência de uma variada gama de situações relevantes para o direito. Situações estas que podem depender ou não da atuação humana, devido a grande abrangência dos fatos jurídicos em sentido amplo.

Assim, seriam jurídicos, em sentido amplo, os fatos produzidos ou não por ações humanas, mas que produzissem efeitos (aquisição, modificação, conservação ou extinção de direitos ou obrigações) no mundo jurídico.

Conforme Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:

Nesse diapasão, conclui-se facilmente que a noção de fato jurídico, entendido como o evento concretizador da hipótese contida na norma, comporta, em seu campo de abrangência, não apenas os acontecimentos naturais (fatos jurídicos em sentido estrito), mas também as ações humanas lícitas ou ilícitas (ato jurídico em sentido amplo e ato ilícito, respectivamente), bem como aqueles fatos em que, embora haja atuação humana, esta é desprovida de manifestação de vontade, mas mesmo assim produz efeitos jurídicos (ato-fato jurídico). (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO; 2010, p.340).

Observadas tais considerações, o fato jurídico em sentido amplo seria a categoria geral que abrangeria as demais categorias. Neste sentido, seriam jurídicos os fatos naturais, como o nascimento, a morte, o decurso do tempo, incluindo-se os fenômenos da natureza, como terremotos, tsunamis e deslizamentos de terra, por deflagrarem efeitos na órbita jurídica. Também seriam reputados jurídicos aqueles fatos que, oriundos de atuações ou abstenções humanas, gerassem efeitos, ainda que não tivesse havido vontade de os produzir. À categoria de fatos jurídicos também pertenceriam os atos humanos, que, intencionalmente praticados, produzissem efeitos previstos no ordenamento jurídico ou aos quais o ordenamento jurídico atribuísse os efeitos desejados pelo agente. Por fim, também seriam jurídicas as ações ou omissões humanas cujos efeitos fossem contrários à norma jurídica estabelecida.

O fato jurídico em sentido amplo é decomposto por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2010, p.341) através do esquema abaixo reproduzido.

Fato Jurídico (em sentido amplo)

Fato jurídico em sentido estrito (fato natural)

Ordinário

Extraordinário

Ato-fato jurídico

Ação humana

Lícita – Ato jurídico em sentido amplo

Ato jurídico em sentido estrito

Negócio jurídico

   

Ilícita

Ato ilícito

Através desse esquema é possível vislumbrar as categorias jurídicas que são abrangidas pelos fatos jurídicos em sentido amplo, as quais serão analisadas a seguir.

2.1 Fato jurídico em sentido estrito.

Valendo-se dos ensinamentos de Marcos Bernardes de Mello (1998), entende-se que o fato jurídico em sentido estrito encontra seu suporte fático nos fatos da natureza. Pontua o professor que.

Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fático, entram apenas fatos da natureza, independentes de ato humano como dado essencial, denomina-se fato jurídico stricto sensu. O nascimento, a morte, o implemento de idade, a produção de frutos, a aluvião, a avulsão, são exemplos de fatos jurídicos stricto sensu.  (MELLO,1998, p.109).

Exemplificando esta categoria de fato jurídico, Taisa Maria Macena de Lima (1999, p.210) cita a morte e o decurso de tempo, cujas ocorrências deflagram efeitos relevantes para o direito, tais como: fim da personalidade, aquisição de direito sucessório, extinção de contrato de trabalho, pagamento de seguro de vida para os segurados indicados pelo segurado, entre outros, no caso de morte. Com relação ao decurso do tempo, podem ser citados como exemplo: aquisição de capacidade civil ao atingir 18 anos, permissão para exercer o direito de voto aos 16 anos, aquisição ou perda de propriedade (desde que aliada à inércia do titular), entre outros.

Carlos Roberto Gonçalves ensina que fatos naturais também podem ser classificados em ordinários ou extraordinários.

Os fatos naturais, também denominados fatos jurídicos em sentido estrito, por sua vez, dividem-se em: a.1) ordinários, como o nascimento e a morte, que constituem respectivamente o termo inicial e final da personalidade, bem como a maioridade, o decurso do tempo, todos de grande importância, e outros; a.2) extraordinários, que se enquadram, em geral, na categoria do fortuito e da força maior: terremoto, raio, tempestade etc. (GONÇALVES, 2010, p.315). (Grifos no original).

Assim, poderia ser definido o fato jurídico em sentido estrito como todo evento natural, independente da ação humana, que seja capaz de criar, extinguir, conservar ou modificar relações jurídicas.

2. 2 Ato - fato jurídico 

Ato-fato jurídico é o evento que, embora oriundo de uma ação ou omissão humana, produz efeitos na órbita jurídica, independentemente da vontade de os produzir.

Nesta categoria jurídica, que não tem previsão no ordenamento civil, a produção de efeitos jurídicos decorre de uma atuação ou abstenção humana; porém, não importa para o direito se houve vontade de produzi-los. O que importa são as consequências havidas em razão da participação (ativa ou omissiva) do ser humano, não sendo necessário qualquer elemento volitivo para configurá-la.

Por exemplo: o fato de um louco pintar um quadro. Ao fazê-lo, ele adquire a propriedade de sua obra, no entanto, não importa para o direito se ele teve vontade de fazê-lo, basta a sua consequência.

Aos explicar esta categoria, Lima (1999, p.210) pontua que “a passagem de fato para ato já sugere a atuação do ser humano’’ sendo ‘’excluídos os fatos da natureza.

Assim, de acordo com Marcos Bernardes de Mello,

O ato-fato jurídico é essencialmente um ato humano; contudo “A norma jurídica abstrai desse ato qualquer elemento volitivo como relevante. O ato é da substância do fato jurídico, mas não importa para a norma se houve ou não vontade de praticá-lo. Ressalta-se, na verdade, a consequência do ato, ou seja, o fato resultante, sem se dar maior significância à vontade de praticá-lo. (MELLO apud LIMA; 1999, p.210)

Neste instituto o que importa para o direito é a conseqüência do ato, não interessando se houve vontade de produzi-lo ou não. O elemento volitivo não é da essência do ato-fato jurídico.

Segundo Marcos Bernardes de Mello (1998, p.112) “podemos classificar os atos fatos jurídicos em: 1) atos reais, 2) atos fatos jurídicos indenizativos; e 3) atos fatos jurídicos caducificantes.”

Na categoria dos atos reais, “enquadram-se os atos humanos de que resultam circunstâncias fáticas, geralmente irremovíveis”. (GAGLIANO; PAMPLONA FILFO, 2010, p.348).

Ilustram essa categoria, o exemplo do louco que, ao pintar o quadro, adquire sua obra de arte; a pessoa que descobre um tesouro, adquirindo sua propriedade, independentemente de sua vontade.

Consideram-se atos-fatos jurídicos indenizativos “as situações em que de um ato humano licito (ou seja, não contrário ao Direito) decorre prejuízo a terceiro com dever de indenizar.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILFO, 2010, p.348).

Cite-se, como exemplo, a deterioração ou destruição de coisa alheia, ou a lesão pessoal a fim de remover perigo iminente, ou seja, “ato praticado no exercício regular de direito ou em estado de necessidade que cause dano a terceiro, gerando o dever de indenizar.” (LIMA; 1999, p.211).

Na categoria dos atos-fatos jurídicos caducificantes estão as situações que dependem de atos humanos, “cujos efeitos constem na extinção de determinado direito e, por conseqüência, da pretensão, da ação e da exceção dele decorrentes” (GAGLIANO; PAMPLONA FILFO, 2010, p.348), tal como ocorre quando um titular de um direito se mantém inerte “em certo lapso de tempo independentemente de seu querer ou de sua culpa” (LIMA,1999,P.211), o que pode gerar a perda de seu direito, como ocorre na perda da propriedade em virtude da usucapião.

2.3 Ato jurídico em sentido estrito.

O ato jurídico em sentido estrito, de acordo com Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2010, p.349), “constitui simples manifestação de vontade, sem conteúdo negocial, que determine a produção de efeitos legalmente previstos”.

Nesta categoria, o agente não tem livre escolha dos efeitos de seus atos, posto que tais efeitos são previamente estabelecidos por lei.

Neste sentido, Taisa Maria Macena de Lima adverte

Além disso, não é dado ao agente o poder de escolher livremente os efeitos do ato: eles estão prescritos em lei. Tem-se, assim, o seguinte processo: o ser humano, por desejar certos efeitos fixados em lei, adota o comportamento nela descrito. (LIMA, 1999, p.211).  (Grifou-se).

Exemplificam esta categoria o reconhecimento de filhos, a fixação de domicílio, o perdão, a confissão, a quitação etc.

Assim, a partir da manifestação de uma vontade, produzem-se os efeitos previstos em lei. Por isso, não goza o agente de “ampla liberdade de escolha na determinação dos efeitos resultantes de seu comportamento” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 350).

Deve-se ressaltar que o que caracteriza o ato jurídico em sentido estrito é o fato de o agente não possuir liberdade de escolha quanto aos efeitos de seus atos. Embora parta de sua vontade, o ato só produz efeitos legalmente prescritos. Não poderia, por exemplo, um homem reconhecer a paternidade de uma criança e pretender se eximir de suas obrigações de pai, que são consequências legais de seu ato. 

2.4 Negócio jurídico

O negócio jurídico talvez seja a mais importante categoria dos fatos jurídicos. Pelo menos é a categoria sobre a qual se verifica maior aprofundamento doutrinário.

Dada a sua relevância, o CC/02 inaugura o Livro III – Dos Fatos Jurídicos – destinando-lhe título próprio e estabelecendo os requisitos para sua validade no artigo 104.

Isto, porém, não ocorreu no Código Civil de 1916. A expressão negócio jurídico não foi utilizada naquele diploma:

Aliás, analisando a suas normas, verificamos que em nenhum momento utilizou-se a expressão negócio jurídico, não obstante o tratamento legal dado ao “ato jurídico” fosse a ele perfeitamente aplicável. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 355).

Conceituar o negócio jurídico não é tarefa fácil, tendo em vista a existência de divergência conceitual entre algumas correntes doutrinárias.

As correntes voluntaristas e objetivas atribuem diferentes nuances ao negócio jurídico. A primeira destaca a manifestação da vontade e a segunda releva o poder de autorregulamentação da pessoa.

Segundo Orlando Gomes (2010, p. 214), “para os adeptos da concepção voluntarista, toda pessoa capaz tem o poder de formar, pela própria vontade exteriorizada, suas relações jurídicas, provocando os efeitos que deseja.”

O estimado professor acrescenta:

O negócio jurídico é, para os voluntaristas, a mencionada declaração de vontade dirigida à provocação de determinados efeitos jurídicos, ou, na definição do Código da Saxônia, a ação da vontade que se dirige, de acordo com a lei, a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. (...). A declaração de vontade seria a causa determinante da consequência pretendida. Emitida conscientemente pelo agente, precisa ter como fim o nascimento, a modificação ou a extinção de uma relação jurídica. (GOMES; 2010, p. 214). (Grifou-se).

Já para a corrente objetiva, segundo Orlando Gomes (2010, p, 214), o negócio jurídico é concebido como sendo a “expressão da autonomia privada. Seu conteúdo seria preceptivo, tendo, pois, essência normativa, um poder privado de autocriar um ordenamento jurídico próprio.”

Referindo-se a esta corrente, Orlando Gomes pontua:

No pensamento de seus adeptos, a essência do negócio jurídico encontra-se na autonomia privada, isto é, no poder de autorregência dos interesses, que contém a enunciação de um preceito, independentemente do querer interno. O negócio jurídico seria “norma concreta estabelecida pelas partes.” Tem, na autonomia privada, seu pressuposto e causa geradora, mas, nem por isso, pode ser qualificado como preceito dessa autonomia. (GOMES; 2010, p. 215).

Representando a concepção voluntarista, na doutrina brasileira, Caio Mário (2009, p. 410), conceitua o negócio jurídico como sendo “toda declaração de vontade, emitida de acordo com o ordenamento legal e geradora de efeitos jurídicos pretendidos.”

Partidária da concepção objetiva, Maria Helena Diniz (2010, p. 451) formula a seguinte definição de negócio jurídico: “é o poder de autorregulação dos interesses que contém a enunciação de um preceito, independentemente do querer interno.”

Para a professora, “apresenta-se, então, o negócio jurídico como uma “norma concreta estabelecida pelas partes”. (DINIZ; 2010, p. 451).

Com propriedade, Antônio Junqueira de Azevedo (2002), partindo dos dois grandes campos de conceituação em que se biparte a doutrina, propõe uma conceituação de negócio jurídico que lhe parece mais adequada.

Julgando insuficientes as concepções voluntaristas e objetivas, o professor propõe um conceito que se baseia na estrutura ou composição do negócio jurídico. Assim:

In concreto, negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide. (AZEVEDO; 2002, p. 16). (Grifo no original).

Simplificando a linguagem de Azevedo, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona assinalam que o negócio jurídico:

Seria a declaração de vontade, emitida em obediência aos seus pressupostos de existência, validade e eficácia, com o propósito de produzir efeitos admitidos pelo ordenamento jurídico pretendidos pelo agente. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 361).

A partir deste conceito, verifica-se que uma adequada análise do instituto deve ser feita sob três planos, quais sejam: existência, validade e eficácia.

Esta constatação não é inédita e é devida a Pontes de Miranda, cujo desenvolvimento teórico é seguido por quase toda doutrina brasileira.

Assim, em resumo, verifica-se, no plano da existência, se o negócio possui os elementos mínimos para sua constituição; no plano da validade, observa-se se o negócio atende aos requisitos legais para ser válido e produzir efeitos; e, no plano da eficácia, são estudados os elementos acidentais da declaração, que podem limitar a produção de efeitos do negócio.

Surge, assim, a famosa “Escada Ponteana”, em cujos degraus se assentam, sucessivamente, o plano da existência, o da validade e o da eficácia.

Assim, em regra, para que seja válido, o negócio precisa existir e, para ser eficaz, precisa ser válido.

Porém, isso nem sempre se verifica, pois, pode haver casos em que o negócio jurídico exista, seja válido, mas ineficaz, como no caso do testamento antes do falecimento do declarante, ou, ainda, o negócio pode existir, ser inválido e produzir efeitos, como no caso do casamento putativo em que, em respeito à boa-fé dos cônjuges, ou do cônjuge que assim tiver procedido, “a lei protege a união e preserva-lhe todos os efeitos civis de um casamento válido até a sentença de declaração de invalidade” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR; 2010, p. 163).

Neste sentido, Flávio Tartuce comenta:

Ora, é possível que o negócio seja existente, inválido e eficaz, caso de um negócio jurídico anulável que esteja gerando efeitos. Ilustrando, pode ser citado o casamento anulável celebrado de boa-fé. Também é possível que o negócio seja existente, válido e ineficaz, como é o caso de um contrato celebrado sob condição suspensiva e que não esteja ainda gerando efeitos jurídicos e práticos. (TARTUCE; 2009, p. 330).


3 O Plano da Existência

O primeiro degrau da “escada ponteana” cuida da análise dos elementos constitutivos do negócio jurídico, cuja inobservância implica na inexistência do negócio.

Ainda que a doutrina possa se valer de variadas expressões para se referir aos elementos que compõem o plano da existência, adotar-se-á, neste trabalho, a expressão elementos constitutivos, sem que isso signifique nenhuma crítica às demais expressões, a seguir exemplificadas:

E a divergência começa na própria nomenclatura adotada para caracterizar os elementos existenciais do negócio jurídico: elementos essenciais e elementos particulares (Washington de Barros Monteiro), elementos constitutivos (Sílvio Rodrigues), elementos necessários para a configuração existencial do negócio (Junqueira de Azevedo), elementos do negócio jurídico (Sílvio Venosa), requisitos do ato jurídico (Carnelutti) e requisitos do negócio jurídico (Orlando Gomes). (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 368).

Assim, quais seriam os elementos que constituem o negócio jurídico?

3.1 Elementos constitutivos do negócio jurídico

Cumpre esclarecer que o Código Civil de 2002 não estabeleceu os elementos constitutivos do negócio jurídico, fixando, logo de início, os requisitos de validade no artigo 104.

Talvez seja por esse motivo que não existe um consenso doutrinário na apresentação de tais elementos, o que não é novidade no direito.

Assim, há autores que apresentam quatro elementos, autores que apresentam três elementos e autores que deles não se ocupam, partindo para os requisitos legais do artigo 104 do Código Civil.

Neste trabalho, serão tratados quatro elementos necessários para a configuração do negócio jurídico, quais sejam:

a)      Manifestação ou declaração de vontade;

b)     Agente emissor da vontade;

c)      Objeto

d)     Forma

3.1.1 Manifestação ou declaração de vontade

“A vontade é pressuposto básico do negócio jurídico e é imprescindível que se exteriorize (GONÇALVES; 2010, p. 348). Assim, a declaração ou manifestação de vontade torna-se fundamental para a celebração do negócio jurídico.

Segundo Marcos Bernardes de Mello (1998, p. 120), “do ponto de vista do direito, somente vontade que se exterioriza é considerada suficiente para compor o suporte fático do ato jurídico.”

Como pode ser feita a manifestação de vontade?

A manifestação de vontade pode ser expressa, quando o agente a evidencia de maneira clara, ou pode decorrer do comportamento do agente.

Expressa é a que se realiza por meio da palavra, falada ou escrita, e de gestos e sinais ou mímicas, de modo explícito, possibilitando o conhecimento de imediato da intenção do agente. (GONÇALVES; 2010, p. 349). Exemplos: contratos verbais ou escritos, gestos e mímicas utilizados por surdos-mudos, ou nos pregões das bolsas de valores.

A manifestação tácita decorre do comportamento do agente. A conduta da pessoa pode levar a crer que ela tem a intenção de celebrar determinado negócio jurídico. Pode ser visualizada nos casos de aceitação da herança deduzida pelo comportamento da pessoa que pratica atos próprios de herdeiro, conforme o artigo 1805 do CC/02. Também se verifica nos casos de aquisição de propriedade móvel pela ocupação, conforme o artigo 1263 do CC/02.

Deve-se lembrar que, nos contratos, a manifestação de vontade só pode ser tácita quando a lei não exigir que seja expressa.

A manifestação presumida, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 349), “é a declaração não realizada expressamente, mas que a lei deduz de certos comportamentos do agente”. Exemplifica esta forma de aceitação a presunção de aceitação de herança, quando o herdeiro for notificado a se pronunciar sobre ela em prazo não maior de trinta dias e não o fizer, conforme o artigo 1807 do CC/02 e a presunção de aceitação de doação, quando o doador fixar prazo ao donatário para declarar se aceita ou não a liberalidade e este se omitir, conforme o artigo 539 do Código Civil de 2002. (GONÇALVES; 2010, p. 349).

Carlos Roberto Gonçalves difere a manifestação tácita da presumida proclamando que:

Difere a manifestação tácita da vontade da presumida porque esta é estabelecida pela lei, enquanto aquela é deduzida do comportamento do agente pelo destinatário. As presunções legais são juris tantum, ou seja, admitem prova em contrário. Destarte, pode o agente elidi-las, provando não ter tido a vontade que a lei presume. (GONÇALVES; 2010, p. 349-350).

As declarações de vontade também podem ser classificadas em receptícias ou não receptícias.

São receptícias de vontade as manifestações que precisam chegar ao conhecimento da outra parte para surtir efeitos, por exemplo: a revogação do mandato.

Já as não-receptícias são aquelas que produzem efeitos independentemente de recepção e de qualquer declaração de outra pessoa, por exemplo: promessa de recompensa, elaboração e revogação de testamento, estando, neste caso, o testador ainda vivo.

Deve-se observar que não se considera manifestada a vontade em casos de coação física ou de hipnose. Nestes casos, a manifestação de vontade seria neutralizada; o agente não emitiria sua vontade conscientemente, portanto, o negócio jurídico seria inexistente.

Dentro da manifestação de vontade, duas questões precisam ser discutidas: o silêncio e a reserva mental.

a) a questão do silêncio

O silêncio pode ser aceito como manifestação de vontade?

Segundo a doutrina de Vicente Ráo (1997, p. 124), o silêncio produziria efeitos jurídicos quando, em razão das circunstâncias, a atitude omissiva e voluntária de quem assim permanecesse pudesse induzir a outra parte, como a qualquer outra pessoa, à convicção de que o silente tenha expressado uma vontade que fosse incompatível com a expressão de uma vontade contrária.

Verifica-se, assim, que, em regra, o silêncio não é manifestação de vontade. Depende, pois, das circunstâncias e do fato de o silêncio ter sido suficiente para convencer a outra parte, ou a qualquer outra pessoa, de que o silente tenha demonstrado uma vontade incompatível com a vontade oposta.

 Assim, há situações em que a abstenção do agente ganha juridicidade (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 369).

Excepcionalmente, o silêncio pode produzir efeitos, conforme prescreve o artigo 111 do CC/02:

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.

O silêncio, também, pode ser considerado manifestação de vontade conforme o artigo 432 do Código Civil:

Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa.

É o que Sebastião José de Assis Neto (2009, p. 167) chama de efeito vinculante do silêncio ou o que Francisco Amaral (2003, p. 405) denomina silêncio circunstanciado.

b) a reserva mental

De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 351), “ocorre reserva mental quando um dos declarantes oculta a sua verdadeira intenção, isto é, quando não quer um efeito jurídico que declara querer.” O objetivo é enganar o outro contratante ou declaratário.

A reserva, que não foi tratada pelo Código Civil de 1916, está disciplinada no artigo 110 do atual Código:

Art. 110. A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.

A reserva desconhecida de outra pessoa é irrelevante para o direito. A vontade declarada produzirá os seus efeitos normalmente. Porém, se o declaratário conhecer a reserva, a solução é outra. Nesse caso, a declaração será inexistente e, em consequência, não se forma o negócio jurídico.

3.1.2 Agente emissor da vontade

Não haveria negócio jurídico se não houvesse a pessoa para manifestar sua vontade.

A participação do sujeito, pessoa natural ou jurídica, é indispensável para a configuração do negócio jurídico.

Há parcela da doutrina que trata este elemento juntamente com o anterior, formando um só elemento, denominado manifestação ou declaração de vontade ou, apenas, vontade.

Ressalte-se que o fato de haver, neste trabalho, separação desses elementos não significa ruptura com a doutrina que não o faz; reflete, apenas, a tentativa de uma abordagem mais didática.

3.1.3 Objeto

Não há que se falar de negócio jurídico sem objeto, pois “todo negócio jurídico pressupõe a existência de um objeto – utilidade física ou ideal – em razão do qual giram os interesses das partes” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 370).

 Há que se ressaltar que não se pode reduzir o objeto a um bem material, pois há negócios que não se baseiam apenas em bens materiais, mas visam à prestação de alguma atividade, como, por exemplo: o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviços.

No casamento, por exemplo, o objeto pode ser a formação de uma vida em comum, ou uma união de ideais e sentimentos.

Ao analisar o objeto, Sebastião José de Assis Neto (2009, p. 167) observa que o conteúdo das obrigações contraídas pelas partes também está englobado no objeto. Segundo ele:

Daí que se deve observar que o objeto do negócio engloba não só um bem especificamente descrito na declaração de vontade, mas também o conteúdo das obrigações contraídas pelas partes. Veja-se que, mesmo quando existe uma coisa sobre a qual incide a prestação, o conteúdo do negócio vai além da sua simples existência. Voltemos, por exemplo, à compra e venda: o conteúdo do negócio não é apenas a coisa a ser vendida, mas, também a criação da obrigação de sua entrega para o alienante e do pagamento do preço pelo adquirente. (ASSIS NETO; 2009, p. 167).

3.1.4 Forma

Antônio Junqueira de Azevedo (2002, p. 126) concebe a forma como sendo “o meio através do qual o agente expressa sua vontade.  A forma poderá ser oral, escrita, mímica, consistir no próprio silêncio, ou, ainda, em atos dos quais se deduz a declaração de vontade.”

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2010, p. 371) advertem que, embora “guardem íntima conexão, a manifestação de vontade e a forma não podem ser confundidas, pois a forma deve ser entendida “simplesmente como o revestimento externo da manifestação volitiva. Tal manifestação, por sua vez, inicia-se internamente, no plano psicológico, com a reflexão do agente, até se revelar como uma declaração exterior.”

Não se pode confundir, também, a forma como se exterioriza a declaração, que é elemento constitutivo, com a forma legalmente prescrita, que é requisito de validade.

Assim, é possível que um negócio exista, mas não atenda ao requisito da forma legalmente prescrita, o que poderia torna-lo inválido, embora existente.

3.2 A inexistência do ato ou negócio jurídico

Como se verificou, elementos constitutivos dão existência aos negócios jurídicos.

Assim, todos devem estar presentes para que o ato se realize; do contrário, será considerado inexistente.

Ocorre que, como o ordenamento jurídico não estabeleceu os pressupostos existenciais do negócio jurídico, tratando diretamente da validade, o estudo da inexistência do negócio jurídico ficou a cargo da doutrina, o que dá margem a muitas divergências.

Nascida do raciocínio de Zacchariae, a propósito da ineficácia do casamento devido à falta de consentimento, a teoria do ato inexistente é, por alguns, aceita, mas, por muitos, criticada. (PEREIRA; 2009).

É verdade que esta teoria da inexistência, que também ingressou no campo dos negócios jurídicos, foi concebida, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 471), “para contornar, em matéria de casamento, o princípio de que não há nulidade sem texto legal”, porque “as hipóteses de identidade de sexo, falta de celebração e de ausência de consentimento não estão catalogadas expressamente nos casos de nulidade”.

Embora muitos critiquem a expressão ato ou negócio inexistente, julgando-a absurda ou ambígua, alegando que seria impossível reputar inexistente algo que foi praticado, Orlando Gomes (2010) explica que a verdadeira intenção da locução é demonstrar que o ato, embora praticado, não existe para o mundo jurídico:

A denominação é ambígua. Objeta-se com a impossibilidade lógica afirmando-se que, se ato foi praticado, existe. Mas o que se quer exprimir com tal locução é que, embora existente porque realizado, o ato não possui substantividade jurídica. O que se quer dizer é, em suma, que não se formou para o Direito. (GOMES; 2010, p. 364). (Grifou-se).

Diferenciando ato inexistente de ato anulável, Caio Mário (2009, p. 553) propõe que “o ato inexistente não passa de mera aparência de ato, insuscetível de quaisquer efeitos, plenamente afastável com a demonstração de sua não realização”.

A par dessas considerações, surge a dúvida: partindo-se de tais premissas, qual seria o devido procedimento diante de um negócio jurídico evidentemente inexistente? Haveria a necessidade de um pronunciamento judicial no sentido de declarar sua inexistência?

A doutrina também diverge quanto a esse aspecto.

No entendimento de Cezar Fiuza (2011, p. 673), não haveria necessidade de manifestação judicial, pois, do contrário, o ato não seria inexistente, mas, sim, defeituoso.

Por outro lado, Taisa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2011, p. 674) defendem “que há necessidade de pronunciamento judicial para declarar a inexistência do ato jurídico, destruindo, assim, a mera aparência de juridicidade. Tal medida garantirá a proteção dos terceiros de boa-fé e, sobretudo, do incapaz”.

Nas lições de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 471), seria justificável a propositura da ação para discutir e declarar a inexistência do ato, sendo que, a seu ver, os efeitos práticos de tal declaração teria as mesmas consequências da declaração de nulidade.

Nesse sentido é o magistério de Orlando Gomes (2010, p. 365-366) ao defender que essa “aparência de ato” (o ato inexistente) precisa ser desfeita, através de pronunciamento judicial, equivalendo, sob o aspecto prático, o negócio inexistente ao negócio nulo.

Por fim, Caio Mário (2009, p. 554-555) não discorda que seja necessário um pronunciamento judicial para apontar a inexistência do ato, mas, não crê que isso induza à equivalência entre a nulidade e a inexistência, havendo, na prática, diferença entre os efeitos. Em suas palavras:

No campo do direito de família, que foi onde nasceu a figura do ato inexistente, é mais flagrante a diferenciação. Será nulo o matrimônio celebrado por juiz incompetente, nulidade que fica, entretanto, sanada pelo decurso de dois anos. Se os nubentes fizeram uma farsa de casamento, perante pessoa que é incompetente ex ratione materiae (por exemplo, o presidente de uma sociedade anônima ou um delegado de polícia), nem há casamento que possa produzir qualquer efeito, nem o decurso de dois anos pode convalidá-lo, transformando uma pantomima em ato gerador de consequências jurídicas. (PEREIRA; 2009, p. 555).

 


4 Algumas questões envolvendo o Plano da Existência

4.1 Casamento inexistente

O estudo do casamento inexistente teve seu início com Zacharie, partindo-se de uma discussão do Código Civil Francês de 1804, que, em seu artigo, 146, estabelece que a ausência absoluta de consentimento obsta à formação do casamento, e que, “por isso, passou-se a defender que, nessa hipótese, deveria ser proclamada a inexistência e não a nulidade do casamento. Adotou-se o princípio de que não há nulidade sem texto legal (pas de nullité sans texte). (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR; 2010, p. 151).

Diante de referido princípio, como não há previsão normativa para o casamento inexistente, a doutrina desenvolveu a teoria do casamento inexistente.

Neste sentido, a doutrina apresenta três hipóteses de casamento inexistente: a) identidade de sexos; b) ausência de consentimento; c) ausência de celebração.

Tendo em vista que não poderia ser declarado nulo o casamento se a nulidade não estivesse prevista em lei, a teoria do casamento inexistente permite que, naquelas hipóteses, a inexistência do matrimônio seja judicialmente declarada.

a) Identidade de sexos

A primeira hipótese de inexistência de casamento foi, até pouco tempo, verdadeiro óbice para a legitimação de uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Ainda assim, renomada doutrina defendia a possibilidade da realização do casamento civil entre pares homossexuais.

Atualmente, porém, a situação foi alterada, pois, em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que devia haver a equiparação entre as uniões entre pessoas do mesmo sexo e as uniões estáveis, “para todos os efeitos, inclusive, para a conversão em casamento, aplicando-se o artigo 1726 do CC/02” (TARTUCE; 2011, p. 1016).

Em virtude disso, já houve decisão judicial admitindo a conversão de união homoafetiva em casamento.

Neste sentido, há quem sustente que esta hipótese de casamento inexistente “deve desaparecer do sistema civil.” (TARTUCE; 2011, p. 1016).

Por outro lado, a situação não se encontra pacífica, pois, há quem discorde, alegando não haver amparo legal para a conversão da união homossexual em casamento.

É o que aconteceu no Estado de São Paulo, na cidade de São Carlos, no mês de agosto de 2011. O Juiz de Direito desta Comarca proferiu sua sentença negando a conversão da união estável homoafetiva dos requerentes em casamento, alegando que tal não poderia acontecer enquanto não houvesse alteração legislativa, sem com isso, deixar de reconhecer a qualidade de entidade familiar da união e reconhecendo, também, que lhes fossem aplicáveis as regras e efeitos jurídicos da união estável, que fossem compatíveis.

b) Ausência de consentimento

A manifestação de vontade é elemento constitutivo do negócio jurídico. Em sua falta, não há que se falar que o ato se realizou.

Assim, casamento sem manifestação expressa do nubente não existe.

Poderá, também, ser inexistente o casamento celebrado mediante procuração em inobservância ao artigo 1542, §3º, do CC/02, ou seja, estabelecido o mandato, se o casamento for celebrado após o prazo de 90 dias (§3º), será tido por inexistente, devido a perda de eficácia do mandato.

Outra hipótese de ausência de consentimento refere-se ao casamento realizado mediante procuração. Tal hipótese foi ilustrada por Lima e Sá (2011, p. 672).

Ilustram as autoras o caso de uma pessoa que constitui procurador para representá-la no dia de seu casamento, em virtude de uma viagem para o exterior já agendada. Ocorre que, entre a outorga e a celebração do casamento, a pessoa que estabeleceu o mandato sofre um acidente que a leva ao estado de coma profundo.

Perguntam as professoras: poderia o casamento ser realizado, ainda assim? O elemento constitutivo vontade estaria presente? (LIMA; SÁ; 2011, p. 672).

Em virtude do estado de incapacidade absoluta em que se encontra, conforme o artigo 3º, III do CC/02, a resposta é não.

Ainda que o representante legal do absolutamente incapaz possa praticar atos para proteger o próprio incapaz e ao seu patrimônio, não lhe seria possível “praticar atos de natureza personalíssima como o reconhecimento de filiação, a adoção e casamento. (LIMA; SÁ; 2011, p. 672).

Caso o casamento seja celebrado, ainda assim, deverá ser declarado inexistente, pois não se realiza mediante a vontade do nubente, mas, sim, pela vontade “de quem já não tem o poder especial de representação” faltando o requisito do consentimento para a realização do casamento, pois, neste momento, o nubente não teria condições de elaborar ou de expressar sua vontade. (LIMA; SÁ; 2011, p. 673).

Mais duas hipóteses de casamento inexistente podem ser apresentadas.

Em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça declarou inexistente um “casamento” realizado mediante fraude no Estado do Rio Grande do Sul. A vítima, uma mineira, surpreendeu-se ao dar entrada dos documentos para contrair matrimônio e descobrir que havia se casado no Rio Grande do Sul com um homem que jamais conhecera. Provado o golpe, falsificação da assinatura da vítima, o TJMG declarou a inexistência do matrimônio. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR; 2010, p. 152-153). (MINAS GERAIS, TJMG - Proc. Nº 1.0000.00.150701-1/000(1) – Rel. Carreira Machado – Data da publicação: 04/04/00).

Outra declaração de inexistência se deu no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em que se reconheceu a ausência de vontade, considerando que “o nubente se apresentava em situação de debilidade emocional quando da celebração do casamento” (TARTUCE; 2011, p. 1016-1017). (TJRJ, Acórdão 4091/1995, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Ligiero, j. 24.09.1996).

c) Ausência de celebração

O casamento celebrado por autoridade incompetente em razão da matéria é considerado inexistente.

Assim, não seria casamento se fosse realizado por Juiz de Direito, Promotor, Delegado ou um cidadão qualquer.

Para que exista, o casamento deve ser celebrado conforme previsão legal.

No entanto, em defesa da boa-fé, é possível subsistir um casamento celebrado por pessoa que não tenha a competência exigida em lei, mas que exerça publicamente as funções de juiz de casamento e, nessa qualidade, tiver registrado o ato no Registro Civil, conforme asseveram Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2010, p. 153).

Segundo Flávio Tartuce (2011, p. 1217), tem-se reconhecido na jurisprudência que a inexistência do casamento pode ser conhecida de ofício pelo juiz, como nas hipóteses de casamento celebrado por autoridade incompetente em razão da matéria (TJMG, Acórdão 1.0223.99.031856-8/001, Divinópolis, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Dídimo Inocêncio de Paula, j. 14.06.2006, DJMG 11.07.2006).


5 CONCLUSÃO

A constatação da relevância e da repercussão de determinado fato e sua posterior entrada no mundo jurídico, definidas como nomogênese e juridicização, respectivamente, representam um dos mais importantes temas de estudo na área do direito.

A discussão do fato qualificado como jurídico não é de imediata compreensão e, tampouco, apresenta uma única concepção; ao contrário, várias são as concepções e interpretações do fenômeno jurídico; a exemplo do negócio jurídico, que, além das correntes voluntaritas e objetivas, pode ser definido a partir de sua estrutura ou composição.

Neste trabalho, analisou-se o fato jurídico sob o plano da existência, sem a pretensão de esgotar o tema. Para tanto, inicialmente, partiu-se da sua categoria mais ampla, o fato jurídico lato sensu, abrangendo suas espécies, até chegar ao negócio jurídico, a respeito do qual se verifica maior atenção doutrinária.

Em seguida, foram analisados os elementos que constituem o negócio jurídico e discutida a questão da sua inexistência, tema que, mais uma vez, divide opiniões doutrinárias.

Verificou-se que, apesar de não haver previsão legal, o problema da inexistência do negócio jurídico não deixa de ser debatido pela doutrina.

Constatou-se, por fim, que, a despeito de consideráveis opiniões da doutrina brasileira, nos casos de “aparência de fato” ou de negócio inexistente, é necessária uma declaração judicial a fim de proteger a boa-fé dos envolvidos ou de terceiros, desfazendo a aparência de juridicidade do ato.

Reconhece-se que, devido à importância e à extensão do tema, muitos assuntos não puderam ser devidamente abordados, mas, espera-se ter lançado luzes em direção ao estudo da existência do fato jurídico, tema imprescindível em qualquer ramo do direito.


6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil. Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 5 ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

ASSIS NETO, Sebastião José. Curso Básico de Direito Civil: Vol. 1. Parte Geral. Niterói, RJ: Ímpetus, 2009.

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: Existência, validade e eficácia. 4 ed. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002.

BRASIL. Códigos Civil; Comercial; Processo Civil e Constituição Federal/ obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Cespedes. – 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 1. Teoria geral do Direito Civil. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. Volume I. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 1. Parte Geral. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Revista, atualizada e aumentada, de acordo com o Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

LIMA, Taisa Maria Macena de. “Os planos do mundo jurídico e as teorias das nulidades.” IN: Revista do Tribunal Regional do Trabalho 3ª Reg. - Belo Horizonte, 30 (60): 209-219. Jul/Dez 1999.

LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. “Aplicação da teoria das nulidades aos fatos jurídicos existenciais.” IN: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Coord.). Manual de Teoria Geral do Direito Civil.  Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 667/675.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da existência. 8 ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998.

NERY, Rosa Maria de Andrade. “Fenomenologia jurídica: o direito como experiência.” IN: Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do Direito Privado. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 104/135

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. Introdução ao Direito Civil: Teoria geral do Direito Civil. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

RÁO, Vicente. Ato Jurídico: Noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais: o problema do conflito entre os elementos volitivos e a declaração. 4 ed. anotada, rev.e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. 1.  Lei de introdução e parte geral. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método, 2009.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método, 2011.


ABSTRACT: The present article presents an analysis from the existence plane of the juridical fact lato sensu. In this analysis will be developed the concepts of  the sorts of juridical facts, with emphasis in the juridical act and in his constitutive elements to, at last, to reflect about the inexistent acts’s theory and reflect about some questions that involve the existence plane.

Key words: Juridical fact, existence plane, juridical inexistent acts.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Aluisio Santos de. Fato jurídico: plano da existência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3336, 19 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22426. Acesso em: 19 abr. 2024.