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As relações entre o Direito e o capital

As relações entre o Direito e o capital

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Somente no modo de produção capitalista é que o direito se desenvolve plenamente, surgindo como um mediador da exploração capitalista e reproduzindo essas relações.

A primeira pergunta que nos devemos fazer quando tratamos do tema é: o que é direito? Através dos anos muitos juristas e filósofos tentaram responder a essa questão. Alguns buscaram sua justificação em Deus, ou o qualificaram como o “justo”; expressão da razão humana. Outros, como o conjunto de normas que regulam o comportamento social, e que adviriam de uma vontade política. Ambos, porém, estudaram o direito enquanto instituição autônoma da sociedade. Os primeiros, por tratá-lo como fruto de algo superior ao homem (Deus) ou anterior ao homem em sociedade (razão). E os últimos por descartarem os elementos sociológicos, políticos e filosóficos da ciência jurídica, que deveria se ater puramente ao funcionamento do ordenamento jurídico. Trata-se da concepção expressa, de maneira geral, nas escolas naturalista e positivista do direito, ou, em última instância, da concepção burguesa do direito. Com efeito, sob qualquer ponto de vista, o que se está procurando defender nessas escolas é, na essência, o modo de produção capitalista, ou seja, a liberdade de contratar, a igualdade formal e a propriedade privada. E mais, de ambas concepções extrai-se uma conseqüência ideológica comum, a de que o direito é eterno e intransponível, elemento necessário tanto para as sociedades do passado, do presente e, invariavelmente, do futuro.O primeiro a ultrapassar os estreitos limites da visão burguesa do direito foi Karl Marx. Muito embora não tenha o autor escrito nenhum texto em específico sobre o direito, podem-se extrair apontamentos nesse sentido em sua principal obra “O Capital”, na “Crítica ao programa de Gotha”, entre outras. O autor traz o direito à realidade e o analisa enquanto fenômeno real, em seu processo histórico. No modo de produção capitalista, com a produção e circulação de mercadorias generalizadas, o que se observa é uma necessária utilização do direito para mediação desse processo. Em “O Capital”, o autor assim desenvolve:Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria. Temos, portanto, de procurar seus responsáveis, seus donos. As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do homem. Se não é dócil, pode o homem empregar força, em outras palavras, apoderar-se dela. Para relacionar essas coisas, umas com as outras, como mercadorias, tem seus responsáveis de comportar-se, reciprocamente, como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que um só se aposse da mercadoria do outro, alienando a sua, mediante o consentimento do outro, através, portanto, de um ato voluntário comum. É mister, por isso, que reconheçam, um no outro, a qualidade de proprietário privado. Essa relação de direito, que tem o contrato por forma, legalmente desenvolvido ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo da relação jurídica ou de vontade é dado pela própria relação econômica[1].Portanto, para que possa existir uma sociedade de produtores de mercadorias, e para que esses produtores possam intercambiar reciprocamente suas mercadorias, é necessário (i) que se reconheçam ambos enquanto proprietários privados, ou seja, é necessária a igualdade formal entre os sujeitos, e (ii) que exista a ampla liberdade de contratação entre os indivíduos da sociedade. E o elemento fundamental para que se possa assegurar essa igualdade, essa liberdade e essa propriedade, será exatamente o direito. Nesse sentido, E. B. Pachukanis, em sua obra “A teoria geral do direito e o marxismo”, assim discorrerá sobre a evolução histórica do direito:A evolução histórica não implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação das instituições enquanto tal. Esta, depois de ter surgido em um estágio determinado de civilização, permaneceu longamente em estado embrionário, com uma fraca diferenciação interna e sem delimitação em relação aos círculos vizinhos (costumes, religião). Foi somente desenvolvendo-se progressivamente que atingiu o seu estágio supremo, sua diferenciação e sua precisão máxima. Este estágio de desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e sociais determinadas. Ao mesmo tempo este estágio é caracterizado pela aparição de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o sistema jurídico como totalidade orgânica.

A estes dois ciclos de desenvolvimento correspondem duas épocas de superior desenvolvimento dos conceitos jurídicos gerais: Roma e seu sistema de direito privado e os séculos XVII e XVIII na Europa, desde que o pensamento filosófico descobriu a significação universal da forma jurídica como potencialidade que a democracia burguesa foi convocada a realizar[2]. Como se observa, acaba aqui a concepção eterna, universal e intransponível do direito. Para Pachukanis, a forma jurídica desenvolve-se plenamente somente no modo de produção capitalista, como elemento fundamental para a reprodução dessas relações sociais de produção. Nesse sentido, em uma sociedade onde o trabalho é simplesmente “trabalho humano abstrato”, ou “dispêndio de força humana de trabalho” e, nesse marco, uma simples mercadoria, se dissociando do produto do trabalho, o direito irá tutelar a relação entre o proprietário dos meios de produção e o “proprietário” da força de trabalho como uma mera relação entre proprietários de mercadorias, iguais e livres para contratar enquanto proprietários privados. Decorre daqui a concepção do direito enquanto mediador da exploração capitalista. Melhor explicando, assim discorre Márcio Brilharinho Naves sobre a forma jurídica:A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da divisão do trabalho, ou seja, em uma sociedade na qual os trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a intervenção de um equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor de troca das mercadorias só se realiza se uma operação jurídica – o acordo de vontades equivalentes – for introduzida. Ao estabelecer o vínculo entre a forma do direito e a forma da mercadoria, Pachukanis mostra que o direito é uma forma que reproduz a equivalência, essa “primeira idéia puramente jurídica” a que ele se refere[3].

No modo de produção feudal, ou escravista, ao contrário, não temos o direito como superestrutura fundamental para a reprodução dos respectivos modos de produção. Muito embora a forma jurídica exista enquanto forma embrionária, ela está muito longe de poder reproduzir as relações sociais. Nas sociedades pré-capitalistas, a forma jurídica não apenas encontra-se pouco desenvolvida, assim como sua distinção de outras formas sociais torna-se difícil. Isto explica porque no feudalismo e na antiguidade o que primava era, respectivamente, a religião e a política[4].Essa concepção é fundamental, pois, o comunismo, enquanto superação das relações sociais de produção capitalista, pressupõe, igualmente, o fim do direito. Assim, transcreve-se trecho do livro “Crítica ao programa de Gotha”, de Karl Marx:Numa fase superior da sociedade comunista, quanto tiver desaparecido a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for apenas um meio de viver, mas se tornar ele própria na primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças produtivas tiverem também aumentado e todas as fontes da riqueza coletiva brotarem com abundância, só então o limitado horizonte do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá escrever nas suas bandeiras: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”[5].Por outro lado, alguns autores como Stucka colocam a questão do direito como um problema das relações sociais, o que poderia se traduzir como uma concepção do direito que o vê enquanto instrumento da classe dominante. Ainda que seja uma visão de classe sobre direito, ela ainda não analisa as relações específicas pelas quais a forma jurídica se desenvolve. Para Pachukanis, na fórmula geral de Stucka, “o Direito não mais figura como uma relação social específica, mas como o conjunto de relações em geral, como um sistema de relações que correspondem aos interesses das classes dominantes e salvaguarda tais interesses pela violência organizada”[6]. Essa visão exprime o conteúdo de classe do direito, mas não é capaz de explicar exatamente por que esse conteúdo deve revestir uma determinada forma, precisamente, a forma jurídica. Ou, por que essas relações sociais específicas transformam-se em instituições jurídicas, diferentemente, portanto, do modo de produção feudal, no qual as instituições religiosas é que se fortalecem enquanto conseqüência das relações sociais. Para a filosofia burguesa do direito que considera a relação jurídica como uma forma natural e eterna de qualquer relação humana, tal questão não está colocada, mas, para a teoria marxista que se esforça em penetrar nos mistérios das formas sociais e de reconduzir todas as relações humanas ao próprio homem, esta tarefa deve estar colocada em primeiro lugar[7].De fato, a concepção do direito como um simples problema das relações sociais pode levar, como na União Soviética, à formulação teórica de que poderia haver um “direito socialista”. Essa concepção normativista do direito, o reconhecimento de um “direito socialista”, a aceitação de um “modo de produção socialista”, são completados por uma concepção do Estado “socialista” fundada na paradoxal assertiva stalinista de que, para desaparecer, o Estado deve antes atingir o grau máximo de seu desenvolvimento. Trata-se de uma teoria que serve à reprodução de uma lógica burocrática que tende à estabilização das relações e não à sua constante transformação.Ora, no próprio Marx essa impossibilidade teórica já fica clara. Ao falar da primeira fase da sociedade comunista, o socialismo, o autor diz que ainda subsiste aqui o direito igual, ou seja, o direito do produtor é proporcional ao trabalho que forneceu: a igualdade consiste aqui no emprego do trabalho como unidade de medida comum.Este direito igual é um direito desigual para um trabalho desigual. Não reconhece distinção de classe, porque cada homem é um trabalhador como os outros; mas reconhece tacitamente como privilégio natural a desigualdade dos dons individuais e, por conseguinte, da capacidade de rendimento. Portanto, no seu teor, é um direito baseado na desigualdade, como todo o direito[8].Já Lênin, em “Estado e Revolução”, coloca a questão da seguinte maneira.Assim, na primeira fase da sociedade comunista, corretamente chamada de socialismo, o “direito burguês” é apenas parcialmente abolido, na medida em que a revolução econômica foi realizada, isto é, apenas no que respeita aos meios de produção. O “direito burguês” atribui aos indivíduos a propriedade privada daqueles. O socialismo faz deles propriedade comum. É nisso, e somente nisso, que o “direito burguês é abolido.

Mas ele subsiste em sua outra função: subsiste como regulador (fator determinante) da repartição dos produtos e do trabalho entre os membros da sociedade[9].Portanto, observa-se que o entendimento do direito enquanto mero instrumento, sem uma preocupação mais profunda com a sua extinção faz com que a lógica burguesa se perpetue. Mas, pergunta-se: se o que se coloca é a abolição do direito no comunismo, qual o caminho a ser trilhado pela revolução socialista? O problema assim se coloca: se o socialismo implica a gradativa reapropriação pelas massas das condições materiais da produção, com a superação da separação entre os meios de produção e a classe operária e, a extinção das formas mercantis, isso significaria que o fundamento último do direito é negado na fase de transição, e a persistência do direito só poderia aparecer como um obstáculo ao socialismo – mesmo que o direito possa, durante certo tempo, cumprir determinado papel “revolucionário”?

Para Pachukanis, o direito do período de transição não é exatamente o mesmo direito burguês, pois ele é afetado pela emergência de formas sociais não mercantis no interior da economia. Embora o direito na fase de transição não possa adquirir um conteúdo socialista, o proletariado deve utilizar as formas do direito de acordo com os seus interesses de classe, esgotando-as completamente. Seria uma espécie próxima do direito burguês sem burguesia citado por Marx em “Crítica ao Programa de Gotha”. Em síntese, diz Pachukanis:A essência do problema é que o período de transição, quando a ditadura do proletariado realiza a transição revolucionária do capitalismo para o comunismo, não pode ser considerado como uma formação socioeconômica especial e completa, e por isso não se pode criar para ela um sistema de direito especial e completo, ou procurar por alguma forma especial de direito, acompanhando a simetria: direito-feudal, direito-burguês e direito-proletário. Isso encerra uma tendência perigosa de retardar o avanço ao socialismo que esta ocorrendo agora. [...] Nós não temos um sistema acabado de relações de produção porque estamos transformando-o a cada dia e a cada hora”[10].Com efeito, o direito não pode nunca estar em nível mais elevado ao estado econômico e ao grau de civilização social correspondente.Do exposto, verifica-se que (i) é impossível uma compreensão do direito por fora das relações sociais de produção, que lhe dão característica, (ii) somente no modo de produção capitalista é que o direito se desenvolve plenamente, surgindo como um mediador da exploração capitalista e reproduzindo essas relações, (iii) é impossível a compreensão teórica de um “direito proletário” na sociedade de transição, (iv) o direito no socialismo deve ser utilizado de modo a esgotá-lo, predominando nas relações cada vez mais os elementos técnicos e organizacionais do conteúdo sobre os elementos formais.

Referências bibliográficasLENIN, V. I. Estado e revolução, Ed. Hucitec: São Paulo, 1987.MARX, Karl. O Capital, V.1. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2008.MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha, Ed. Portucalense.NAVES, Márcio Brilharinho. Marx: Ciência e Revolução.NAVES, Márcio Brilharinho. Marxismo e direito. Boitempo Editorial, 2008.PASUKANIS, E. B. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Ed. Renovar: Rio de Janeiro, 1989.PASUKANIS, E. B., “Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte”. (K nekotorym itogam diskussii), apud NAVES, Márcio Brilharinho. Marxismo e Direito, Boitempo Editorial, 2008.


[1] MARX, Karl. O Capital, V.1. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2008. p. 109. grifos nossos.

[2] PASUKANIS, E. B. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Ed. Renovar: Rio de Janeiro, 1989. , p. 38-39.

[3] NAVES, Márcio Brilharinho. Marxismo e direito. Boitempo Editorial, 2008. p, 57.

[4] NAVES, Márcio Brilharinho. Marx: Ciência e Revolução..

[5] MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha, Ed. Portucalense. p. 21.

[6] PASUKANIS, E.B. op. cit., p, 53.

[7] Idem.

[8] MARX, Karl. Crítica ., op. cit., p.20.

[9] LENIN, V. I. Estado e revolução, Ed. Hucitec: São Paulo, 1987. p. 116.

[10] E. Pasukanis, “Polojenie na teoretitcheskom pravovom fronte. (K nekotorym itogam diskussii), apud NAVES, Márcio Brilharinho. Marxismo e Direito, p. 99.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELLOS, Felipe Gomes da Silva. As relações entre o Direito e o capital. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3432, 23 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23077. Acesso em: 23 abr. 2024.