Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/23126
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Processo eletrônico, software, norma tecnológica e o direito fundamental à transparência tecnológica.

Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico

Processo eletrônico, software, norma tecnológica e o direito fundamental à transparência tecnológica. Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico

Publicado em . Elaborado em .

É preciso pensar e escrutinar o software em termos jurídico-normativos também, não apenas tecnológicos. Somente assim se concretizarão as exigências de transparência.

Resumo: Neste artigo, (i) analisam-se a incorporação das NTICs ao processo e o profundo impacto de uma delas – o software, (ii) evidencia-se o nascimento de uma nova categoria da ciência processual - a norma tecnológica - e (iii) sugere-se a enunciação e constitucionalização do direito fundamental à transparência tecnológica, imediatamente aplicável ao processo eletrônico e que tem de ser adequadamente teorizado. O processo sempre se caracterizou pela supervisão humana contínua (mecanização). O software permite a automação em patamares impensáveis há alguns poucos anos. Um software é um conjunto de instruções codificadas, muitas delas de conteúdo jurídico. Surge, por isso, o ente novo do mundo processual, aqui denominado de norma tecnológica – a versão interpretada do texto jurídico -, a norma kelseniana que ganha expressão tecnológica. O estabelecimento das normas tecnológicas tem sido feito sem qualquer procedimento institutionalizado. As regras propostas, da automação consciente, da legitimação e da transparência plena buscam preencher esse vazio. No processo eletrônico, deve-se reconhecer o direito fundamental processual à transparência tecnológica, um caso particular de um direito fundamental geral que precisa ser constitucionalizado (CF, art. 5º, LXXIX - a todos, no âmbito judicial e administrativo, é assegurado acesso pleno às normas tecnológicas - transparência tecnológica).

Palavras-chave: Processo eletrônico. norma tecnológica. Softwarização. Direito fundamental à transparência tecnológica.

Sumário: Introdução. 1. As novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs). 2. O software e a softwarização do processo. 3. Novas zonas de interesse e reflexão: efeitos da softwarização do processo. 4. software, mecanização e automação. 5. A onipresença poderosa e avassaladora do software. 6. norma tecnológica: a nova categoria da ciência processual. 7. Transparência tecnológica: indo além dos códigos-fonte. A norma tecnológica e as regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena. 8. Enquadrando o software: o direito fundamental processual à transparência tecnológica. 8.1 Na relação processual, o software desloca (assume o lugar de) servidores e também o juiz. 8.2. A softwarização permite evoluir na virtualização e a transparência passa a ser essencial. 8.3. A insuficiência da abertura do código-fonte. 8.3.1. Aspectos do regime legal em vigor que comprometem a transparência. 8.3.2. Aspectos de um regime novo, inspirado na ideia de promoção dos direitos fundamentais processuais, com transparência tecnológica plena. Considerações Finais. Referências bibliográficas.


Introdução

Neste artigo, (i) constata-se a chegada das novas tecnologias da informação e da comunicação ao processo, (ii) passa-se pelo exame do impacto de uma delas – o software - num fenômeno aqui referido como softwarização do processo, (iii) evidencia-se o surgimento de uma nova categoria científica processual - a norma tecnológica - e (iv) chega-se à sugestão, que já parece tardia em tempo de lei de acesso à informação, de enunciação e constitucionalização de um novo direito fundamental à transparência tecnológica.

Usa-se a necessidade processual para demonstrar a urgência de explicitar um direito fundamental à transparência tecnológica1 que tem sido ventilado e justificado, num âmbito mais geral, e que se faz necessário diante do avanço das tecnologias em todas as áreas de egovernança.

Em 2007, nos Estados Unidos, Danielle Keats Citron, professora assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Maryland/EUA, desenvolveu um extenso trabalho de pesquisa e compilação, reportado em artigo sob o título technological due process2 , enfocando a atuação das agências administrativas e suas práticas automatizadas. A pesquisa concentra-se nos chamados BMSs (Benefits Management Systems) norteamericanos e os incontáveis exemplos demonstram o impacto, os problemas e as dificuldades da automação dos processos de adjudicação dos benefícios.

O projeto do novo código de processo civil do Brasil reconhece a presença das inovações e os teóricos falam, aqui também, do devido processo tecnológico.

Em 2011, no Brasil, a lei 12.527 tratou do acesso à informação, sob discurso estribado fortemente na ideia de transparência. Na realidade, entretanto, acrescentou pouco à disciplina processual, toda ela permeada, desde a base, pela publicidade. É estranho que o legislador, em tão extenso e minucioso documento, não se tenha ocupado das novas tecnologias da informação (TIs), colocando sua incorporação, clara e expressamente, sob as luzes da transparência. Nesse especial aspecto, a lei poderia ter efetivamente inovado para o processo, que está sendo invadido por essas tecnologias, mas não o fez.

Diz-se, com insistência, que as tecnologias da informação e da comunicação (TICs) estão revolucionando o processo. Para alguns, está ocorrendo uma transformação de paradigma. Para outros, mais drásticos, vive-se uma situação de emergência3, no sentido sócio-biológico, quando uma situação fática ou orgânica evolui para patamares onde as leis que regiam os fenômenos, na situação anterior, já não vigoram. As assertivas são dadas, muitas vezes, sem fundamentos adequados. Por imposição das circunstâncias, fica-se muito no terreno do opinativo.

O impacto tecnológico está sendo sentido ao mesmo tempo em que a teoria geral do processo se agita, por razões de outra ordem, decorrentes da evolução do pensamento jurídico-político-filosófico. Os grandes eixos tradicionais, norteadores das preocupações da ciência teórica processual (jurisdição, ação, processo, partes, legitimação, ato, funções auxiliares essenciais, prova) passam, sem exceção, por reconsiderações no campo teórico e no político-dogmático4.

O processo, portanto, experimenta a pressão de influxos inovadores oriundos de duas fontes: a evolução do pensamento e a absorção da tecnologia.

A coexistência das transformações, induzidas por esses dois fatores, torna útil e válido tentar distinguir, no todo das metamorfoses, aquelas que advêm da fonte tecnológica, para lhes dar o tratamento adequado à luz do jurídico. Até mesmo para colocar a tecnologia, de forma otimizada e transparente, a serviço dos novos enfoques jurídico-políticos que estão sendo engendrados.

Será mesmo que as tecnologias mencionadas têm o condão de permitir a produção de um processo tão diferente a ponto de se fazerem necessárias novas abordagens teórico-processuais? A teoria geral do processo não pode mais, mesmo, dar conta dessa nova realidade processual? Será?

A resposta a essas perguntas passa pela “revisita” a coisas que estão assentadas, há anos, no âmbito teórico, para ver se continuam válidas e aptas para descrever e explicar o fenômeno de que deram conta no passado.

Nessa revisita, evidenciam-se algumas coisas interessantes:

  1. avultam novos direitos processuais que reivindicam status de fundamentalidade para albergar-se no grande guarda-chuva do devido processo;

  2. ganham destaque aspectos processuais que parecem exigir melhores e mais profundas considerações;

  3. a configuração descritivo-sistêmica do processo (seu padrão de organização5) ganha um elemento novo, escorregadio e poderoso, que a transforma profundamente e

  4. a “humanidade” ou o “tipicamente humano” parece requisitar atenção e espaço, na nova realidade do processo, cuja tendência aponta para a “desumanização” e justifica as preocupações de Dinamarco quando se refere “ [...] a deixar na sombra o valor humano perseguido através do exercício da jurisdição” 6.


1. As novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs)

Quando se fala em novas tecnologias da informação e da comunicação, vem à baila um feixe de inovações. Algumas são muito visíveis e palpáveis, outras nem tanto7.

Falando-se em comunicação, por exemplo, é fácil perceber que as possibilidades das tecnologias a ela vinculadas, ou dedicadas, realmente introduziram muitas inovações na operação processual. Mas será que no processo, em si, também? Ou elas apenas ampliaram as possibilidades mas não mexeram com o âmago e a natureza dessas operações? Atos que, antigamente, eram necessariamente presenciais, hoje se fazem à distância, com as garantias necessárias de autenticidade e integridade, por exemplo. Mas, na sua essência, muitos desses atos, salvo o distanciamento dos atores (que a tecnologia aproxima em termos virtuais), continuam sendo exatamente os mesmos e seus atores idem.

Na verdade, a comunicação vale-se de inumeráveis tecnologias – de transmissão, registro, interpretação, certificação de autenticidade e integridade, matemáticas, etc., para não mencionar os aparatos de hardware.

É interessante notar que subjaz a tudo isso uma tecnologia de base, um componente indispensável, o software. Talvez pela sua indispensabilidade para o funcionamento de qualquer das outras, o software muitas vezes nem é lembrado. Fala-se do notebook, por exemplo, mas não dos programas que estão nele. Essa tecnologia, conforme o enfoque aplicado neste trabalho, merece uma especial atenção dos juristas, pois se pode dizer que o processo eletrônico é o processo feito com a mediação de um software. Na verdade, de muitos softwares.

Um sistema vivo, dizem os cientistas sistêmicos, caracteriza-se pelo padrão de organização, pela estrutura e pelo processo vital8. Nos sistemas autopoiéticos9 sociais, também ditos sistemas de comunicação ou de sentido, podem ser identificados os mesmos elementos característicos e, em geral, é a “consciência” que fornece as bases para o processo (o fator dinâmico-operacional) que, no caso, é comunicacional10. Falando-se do processo judicial e tomando-o como sistema social autopoiético (mas não auto-organizador, conforme os conceitos luhmannianos de autopoiese e de auto-organização – ver nota 10), transfere-se, em muitos momentos, para o software, o papel de garantir o componente processual do sistema. Transferem-se certas atividades do homem para o software. Daí a relevância de seu estudo, caracterização e efetivo controle, e a necessidade de aplicar mecanismos que promovam a transparência dessa transferência de atividades.


2. O software e a softwarização do processo

Dentre as novas tecnologias, o software merece destaque porque desempenha um papel central no chamado processo eletrônico. Seu uso só vai se expandir, com o passar do tempo, e suas características o tornam realmente especial nesse emaranhado de tecnologias que impactam o processo. Ele não é apenas um coadjuvante, um instrumento que o humano aciona a cada passo. O software insere-se na cadeia de operação sistêmica deslocando outros atores e ocupando um lugar próprio, muito bem definido e visível. Parece indubitável que, em inúmeras subrelações do sistema processual, ele assume uma das pontas da linha, quando não as duas (sistema que fala com sistema!). Quando se fala em interoperabilidade, na verdade, fala-se do estabelecimento de uma linguagem para os softwares se comunicarem.

O software entra no processo como um novo personagem da configuração processual e, assim, parece que transforma profundamente o que se teorizou, até hoje, a respeito do vetusto método de aplicação da lei. A softwarização do processo, como se pode designar esse fenômeno, é tão forte que obnubila os demais atores. Advogados, juízes e servidores veem-se enredados, involuntaria e obrigatoriamente, no emaranhado construído pelo personagem misterioso e escorregadio que é o software.

Será que esse novo personagem do processo – o software -, com suas mazelas e possibilidades, tem potencial para revolucionar a teoria geral do processo?

A resposta tende a ser sim. Ele mexe em questões cruciais atinentes, em termos muito amplos e profundos, ao devido processo legal e, sem dúvida, alguns princípios consagrados do processo, como o do juiz natural, por exemplo, talvez precisem ser revistos ou reinterpretados.

A presença inovadora desse novo personagem processual suscita enormes questões, muitas das quais estão a exigir atenção e reflexão. Ele demandará, provavelmente, que se mergulhe mais fundo no entendimento da natureza do processo e, com isso, além de levar a um melhor entendimento desse mecanismo de atuação da jurisdição e do poder, também permitirá que se delimitem espaços para a presença válida do software no processo. Isso tem a ver com o entendimento e a estipulação de até onde se pode ir nessa “transferência de execução de atividades” sem desvirtuar o ente processual.

Na verdade, não se sabe se a conclusão, ao final, é a de que se estará desvelando um pouco mais da natureza do processo ou se, pelo contrário, a softwarização do processo está transformando a natureza do método de atuação da jurisdição, num típico fenômeno de reflexão (atuar em reação).


3. Novas zonas de interesse e reflexão: efeitos da softwarização do processo

Um processo pode ser, até certo ponto, “sem humano”, mas não “desumano”.

Neste artigo, lucubra-se, com grande liberdade e um pouco assistematicamente, a respeito da softwarização do processo e seus efeitos. Quer-se chegar a uma questão chave: a da necessidade da transparência tecnológica do sistema eletrônico de processamento de ação judicial (SEPAJ11). Em momento adequado, pretende-se evoluir para cuidar de outras questões cruciais, atinentes ao fenômeno aqui denominado de softwarização, para responder a perguntas como:

O que é esse ente especial, um software? Quem o produz? Qual é o nível de possibilidade desse ente processual? Quanto do regramento processual pode traduzir-se num software? Deve haver limites para isso? Quem, de fato, valida essa cristalização de caminhos processuais traduzida na estrutura algorítmica e dura de um programa?

Além disso, há uma gama de valores processuais que foram descurados, em termos teóricos, ao longo dos séculos, porque sempre se supôs a “humanidade” muito presente no processo. Até hoje, não houve processo sem condução humana a cada passo. Assim, tudo que defluía dessa realidade processual - o homem sempre presente! - mereceu atenção num sentido (os cuidados para evitar o desvirtuamento introduzido pelo humano12) mas não no outro (a garantia de certas qualidades que só o humano está apto a introduzir no curso do processo, como a eqüidade13, a contextualização14, a criatividade15). Como já há os que defendem a automação total do processo, esses aspectos descuidados precisam ser objeto de profunda consideração. Ou reconsideração. Um processo pode ser, até certo ponto, “sem humano”, mas não “desumano”.


4. Software, mecanização e automação

...porque distanciar o homem do processo significa, na prática e atualmente, transferir para um software a execução de certa atividade.

Adota-se, aqui, um conceito operacional de “mecânico” que advém dos primórdios da análise de sistemas e das tecnologias da informação e da comunicação. Ele era utilizado, então, para marcar a passagem para uma estágio novo, caracterizado pela automação. O mecânico era o antigo. O automatizado, o novo, o cibernético. Nesse último, logo o software ocupou lugar de destaque. Nas palavras de George Terborgh, em 1965, “mechanization is one thing; automaticity is something else.” 16 No mecânico, o humano tinha de agir a cada ciclo operativo17. No automático, ao contrário, o humano só intervinha para deflagrar sequências repetitivas automáticas, traduzidas num programa de computador ou software. Se um cálculo de folha de pagamento tinha 100, 500 ou 1000 empregados para os quais se devesse calcular/imprimir os envelopes de pagamento, não interessava. Uma única intervenção humana precedia todos os cálculos: o operador executava o programa. A próxima intervenção seria para retirar da impressora o conjunto dos envelopes de pagamento devidamente impressos.

O que caracteriza a automação, portanto, é uma medida maior de distanciamento do homem do processo operativo e de produção. Essa noção é extremamente relevante porque distanciar o homem do processo significa, na prática e atualmente, transferir para um software a execução de certa atividade. Sai o homem, mas a atividade fica.

Em relação ao processo judicial, os operadores jurídicos estavam acostumados com um processo “mecânico”. Redigir a petição, distribuir, autuar, levar à conclusão, despachar, cumprir despacho, carregar autos de um lado para o outro, juntar, tirar em carga, devolver, instruir, sentenciar. Por trás de cada tecla da digitação da petição, de cada juntada, de cada numeração, de cada despacho, havia uma intervenção humana.

O software chegou ao processo como um tsunami, revolucionando a forma de fazer, afastando pessoas, permitindo novos modos de encarar a execução das atividades, abrindo possibilidades de conexão e inserção do processo num fenômeno de rede, inovando na forma da “interpenetração”, quebrando as linhas de interação. Como verdadeiro atrator estranho18, transformou as linhas descritivas dos fluxos operativos. A projeção das interações desloca-se do homem-homem para o homem-software (só mediatamente ocorre homem-homem), do homem do processo com o homem incógnito, não processual, mas representado, no iter processual, pelo software.

Na Grécia dos anos 500 a.C, com os trabalhos insuperáveis de Fídias e sua escola, introduziu-se o movimento nas esculturas e a humanidade caminhou da rigidez asséptica do período arcaico para a flexibilidade contagiante do período clássico. Em termos tecnológicos, os sistemas caminharam, com a chegada dos computadores e seus programas (com a softwarização), da fase modorrenta mecânica para a fase dinâmica da automação.

Os computadores trouxeram memórias, internas e externas, e também os processadores, umas maravilhosas engenhocas capazes de executar programas. Memórias, processadores e programas. Uma mistura transformadora incrível.

Nessa transformação, nessa passagem do mecânico para o automático, o elemento marcante é o programa (software), porque conduz uma máquina burra e genérica – o computador – durante a execução de passos que, ao final, redundam num trabalho feito sem a intervenção do operador. Como o computador é visível, acaba levando a fama. Mas a genialidade está no programa. É nele que se concentra a inteligência do processo. Se ele contiver um erro, a máquina o seguirá até às últimas consequências. E isso não é indiferente, como se está tentando demonstrar.


5. A onipresença poderosa e avassaladora do software

Desculpe, senhor, mas o sistema não permite!

Para o leitor que ainda não se convenceu do impacto da softwarização e da necessidade de explicitar o direito fundamental processual à transparência tecnológica, pelo qual se pode ganhar certo controle desse novo ente processual – o software – há algumas coisas que podem ser acrescentadas.

O ser humano estava acostumado com a ideia de viver na presença de Deus ao qual, ontologicamente, se vinculava o atributo especial da onipresença. Os operadores processuais, doravante, vão acostumar-se a viver na presença do software, esse ser único, no âmbito do físico-virtual, a merecer o atributo que, até agora, era privilégio divino. Ainda se pode falar apenas em “quase-onipresença”. Mas o “quase” tende a amesquinhar-se e, em tempo muito curto, reclamar-se-á seu desaparecimento e exigir-se-á a onipresença ininterrupta (espacialmente ubíquo e temporalmente contínuo, sem intermitência). E o que os físicos quânticos perseguem para a matéria, com imenso esforço, o software faz, no virtual, sem sofrimento.

Deus opera na quase-imperceptibilidade, praticando uma onipresença incógnita e não massacrante. O software, ao contrário, opera patenteando o operar, numa onipresença vaidosa e exibicionista.

A onipresença divina manifesta-se nas boas coincidências, nas entrelinhas, nas coisas grandiosas. O software também se manifesta nas coincidências, mas não distingue as boas das ruins. E não gosta de entrelinhas. É nas linhas, mesmo, de papéis ou monitores, que costuma se manifestar. Quanto à grandiosidade das coisas, pode-se garantir que o software se faz conhecer, muitas e variadas vezes, pelas coisas pequenas e inconvenientes.

Com quem os atores processuais mais falam, atualmente? Talvez ainda seja com outros atores processuais humanos. Mas esta é uma realidade que se transforma rapidamente. O software tende a ser um interlocutor supremo. Deixando-se o âmbito restrito dos SEPAJS e desaguando para o todo sistêmico pelo qual a Justiça opera e se manifesta (sistemas operacionais - editores - bases de comunicação da internet - SEPAJs), não há dúvida de que um advogado, por exemplo, ou um juiz, já tem o software como o seu grande e contínuo interlocutor.

O computador desligado (sem software) é decorativo. Ligado, ao contrário, ganha vida, com inumeráveis programas em ação. Um ctrl-alt-del permite descobrir a centena (ou quase) de programas que se postam na memória da máquina à disposição do usuário. Chamados de programas, tarefas, aplicativos ou processos, são, todos eles, programas de computador em ação – softwares.

Da leitura do diário oficial à consulta da jurisprudência, da elaboração de uma petição à gravação do PDF respectivo, da comunicação pela intranet à interação com o Tribunal, tudo está mediado pelo software. Às vezes, ele é mais ou menos inofensivo. Em outros, assume ares de “agente”, ditando comportamentos, abrindo e fechando portas, permitindo ou não determinados atos, servindo de pretexto para humanos negarem ou permitirem coisas etc. Quem ainda não recebeu uma resposta do tipo: “desculpe, senhor, mas o sistema não permite!”?

No processo eletrônico, o software tem seu clímax. Processo só existe com ele. Com nomes como Projudi, e-Proc, PJe, ele dita os caminhos, impõe regras, cria obstáculos e facilidades. Acesso à Justiça? Primeiro garanta o acesso ao software. Por trás dele, talvez, se observar o que ele estabelecer, o autor encontrará a Justiça que procura (o órgão). Ele controla o horário, o tamanho da peça, o tempo de sessão, a juntada dos documentos, verifica a assinatura, faz a identificação. Ou se cumprem as determinações ou se morre no caminho. Adeus processo.

Enfim, ele está no processo, ele interfere no processo, ele é muito poderoso no processo, é com ele que os demais operadores mais interagem, ele não “dá jeitinhos” 19, ele é duro, frio, inflexível e incansável. E, pior, ele é um escravo, pois é a cristalização de uma ou algumas vontades. Às vezes, da vontade que alguns dizem que a lei tem, segundo a interpretação que eles mesmos fazem da vontade da lei. Ele também é um escudo por trás do qual se escondem muitos impotentes (ou onipotentes?) do processo. Ele é o SEPAJ, o sistema eletrônico de processamento de ação judicial. É o software.


6. Norma tecnológica: a nova categoria da ciência processual

[...] a interpretação da norma textual, da norma prima facie, escolhida para prevalecer mediante incorporação no algoritmo do sistema processual.

A isso se soma um fenômeno implícito de vinculação, para o bem e para o mal. A partir daquele momento, independentemente de onde o processo corra, está definido que, naquele particular aspecto, será conduzido daquela maneira.

Independentemente de controvérsias ideológicas ou políticas a respeito, a discussão do assunto deste trabalho pode avançar para um nível mais fértil com uma tentativa de aproximação conceitual para norma tecnológica. A distinção dessa categoria de norma parece essencial.

Quando se considera, na ciência processual, uma noção mais profunda de emergência, parece indubitável que o processo judicial, sua disciplina e prática experimentaram, e estão experimentando, a ocorrência efetiva do fenômeno. Um novo ente justifica essa constatação: o nascimento da categoria científica norma tecnológica.

Kelsen fundou as raízes da teoria do Direito em torno das normas, fazendo-as o tijolo elementar, atômico, do edifício teórico da ciência do Direito. Sua obra póstuma - teoria geral das normas - consolida essa abordagem. Após as abordagens inovadoras de Herbert Hart (conceito de direito), que principiou uma subespecificação normativa, o ilustre discípulo Ronald Dworkin revolucionou tudo com a incorporação dos princípios. Sua teoria, que deságua na ideia de integridade sistêmica, consolida-se em império do direito. Teorizar o Direito sem a consideração da norma denominada princípio passou a ser não científico.

Pois bem, doravante, a ciência processual só conseguirá dar conta de uma teorização adequada do seu objeto se lançar mão de uma nova categoria normativa: a norma tecnológica. Ela é especial e justifica seu tratamento à parte. Foge ao escopo deste trabalho o exame exaustivo dessa nova categoria teórica. Mas lançam-se, abaixo, algumas ideias que justificam o destaque dado à mesma.

norma tecnológica é a norma que foi levada à codificação, ou seja, a interpretação da norma textual, da norma prima facie, escolhida para prevalecer mediante incorporação no algoritmo do sistema processual.

Não é preciso lembrar que a complexidade da interpretação20 levou à estruturação de um ramo específico próprio - a hermenêutica - tão caro a todos os cientistas. Parece que a própria hermenêutica deverá debruçar-se sobre essa nova categoria científica - a norma tecnológica - , notadamente para considerar que o momento de incidência de suas diretrizes interpretativas altera-se profundamente, além de outros efeitos de notável alcance para a vida do Direito.

O conceito de norma tecnológica pode estabelecer um critério para separar os códigos-fonte em dois subconjuntos (normativos e não normativos ou jurídicos e não jurídicos), um dos quais - o dos normativos ou jurídicos - deve ser inerente e essencialmente transparente, aberto, não sujeito à confidencialidade, público. O direito de acesso a esse subconjunto de instruções de programa (funções), em linguagem técnica e não técnica, deve ser erigido a direito fundamental processual.

Outro aspecto que merece destaque, a partir dessa noção, é a aparente ameaça ao vetusto paradigma da escola realista, segundo o qual, nas palavras de Holmes, o Direito é o que os juízes dirão que ele é. Na linha do tempo, há um adiantamento do momento dessa dicção. Ela passa a preceder o caso concreto e situa-se, em termos de situacionalidade, num âmbito quase tão geral e abstrato quanto o do momento da enunciação do texto normativo pelo legislador. Parece sumir, aí, o famoso discurso de adequação, de que se ocupam os adeptos das teorias da argumentação jurídica e que costuma ser entregue ao prudente arbítrio do juiz.

O software pode ser um caminho aberto para a desjuridicionalização (terceirização?) da atividade jurisdicional. Na verdade, quando se faz um software, transforma-se numa estrutura informática (programa) determinada visão interpretativa da norma aplicável naquele momento/ato. Por exemplo: quando a lei fala em “prazo até 24h00”, as 24h00 incluem-se no prazo ou não? Além disso, até que subunidade se deve considerar a contagem (minutos, segundos)? Alguém deve definir a forma como isso entrará no programa. No caso, trata-se da decisão de utilizar, num teste lógico-formal (um if), o sinal < (de menor) ou,então, <= (de menor ou igual). Apenas isso. Se o programador se define por um desses sinais, está “surrupiando” o poder (competência) de alguém que fez concurso, tomou posse e comprometeu-se, sob juramento, a tomar tais decisões sob inspiração de princípios como o da ampla defesa. O mesmo raciocínio é válido para a fixação do tamanho de peças processuais digitalizadas.

Mesmo que haja um “comitê”, como está na moda, para tomar a decisão a respeito da interpretação a ser cristalizada no sistema, percebe-se, primeiro, que há um deslocamento da decisão para fora dos autos (sai das mãos do juiz a decisão a respeito) e, segundo, que talvez a decisão sobre a interpretação a ser aplicada advenha de pessoas que nem sequer são juristas21. Como informa Danielle Keats Citron, reportando-se às constatações feitas na pesquisa em torno dos sistemas de gestão de benefícios, “the computer programmers made new policy by encoding rules that distorted or violated established policy” 22.

A isso se soma um fenômeno implícito de vinculação, para o bem e para o mal. A partir daquele momento, independentemente de onde o processo corra, está definido que, naquele particular aspecto, será conduzido daquela maneira. Evidencia-se aí, com toda força, a rigidez estrutural introduzida pela softwarização. O software é trivial (Heinz Von Foerster23), lógico-formal, binário, causal. Nem de longe se orienta por modelos lógico-modais ou deônticos, como é próprio do jurídico e da análise, caso a caso, daquele particular aspecto nos vários processos.

Uma maior precisão conceitual de norma tecnológica também deixará claro que, neste nível, não há espaço para textura aberta, no sentido de Herbert Hart, para quem comunicar padrões gerais de conduta é essencial para o Direito. Segundo o jusfilósofo, dois veículos são usados nesta comunicação: a legislação e o precedente. Em ambos, existe a ideia de otimização da comunicação pela subsunção de fatos às regras que permite conclusões silogísticas simples. Os teóricos anteriores ignoraram que “[...] há um limite, inerente à linguagem, quanto à orientação que a linguagem pode oferecer.” 24 As técnicas interpretativas reduzem o problema, mas não o eliminam. O formalismo preconizado esboroa-se e, nos silogismos, em muitos casos, “[...] a conclusão constitui na verdade uma escolha, ainda que não possa ser arbitrária ou irracional.” 25 A essa característica das regras, decorrente do fato de terem de ser formuladas com termos gerais, Hart denomina de textura aberta26. A codificação tecnológica da norma exige a eliminação da possibilidade da escolha - exercício da faculdade de julgar - no fechamento do silogismo.

Falando sobre a rigidez estrutural dos códigos (embora não trate de programas de computador), Luhmann faz uma afirmação muito pertinente para o âmbito deste trabalho também: “el código no ofrece ninguna posibilidad de adaptación del sistema a su entorno.” 27 Isso afirmado numa perspectiva operativa da estrutura, não evolutiva, que aliás é a que aqui interessa, pois num horizonte de evolução a adaptação está sempre envolvida.

As lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr.28 são importantes, neste aspecto, também. “ [...] casos há em que o decididor (o juiz, o funcionário administrativo) é convocado a decidir através de avaliações próprias, assumindo papel análogo ao do próprio legislador [...] fala-se, assim, em conceitos indeterminados [...] ”. Na esteira de Hart, diz Ferraz Jr., ainda, que “ [...] toda construção normativa, por se utilizar de linguagem comum mesclada com um jargão técnico, exige interpretação.” Por isso que, “ [...] supõe-se que uma clarificação, por parte do decididor, no momento de aplicação da norma, seja necessária.” Além de somar-se, aí, para o caso do processo eletrônico, a expressão tecnológica da norma, que não se confunde com a técnica referida (jurídica), tem-se de considerar (a) que o momento da aplicação é deslocado no fluxo processual e (b) desaparece aquela interpretação feita à luz da consideração ampla das características do caso concreto.


7. Transparência tecnológica: indo além dos códigos-fonte. A norma tecnológica e as regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena.

As funções jurídico-normativas, por outro lado, serão descritas de forma simples, em linguajar que advogados, servidores, partes e juízes entendam.

[...] abrir os códigos-fonte é apenas a fase terminal de um processo que, pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais, deve começar pela definição da norma que deve se converter em código-fonte.

Em que deve consistir a transparência tecnológica? Ou, considerando-se o dito a respeito da possível conceituação de norma tecnológica, que fatores deveriam estar presentes para se considerar essa norma minimamente válida?

Para alguns significa, de uma forma reducionista, disponibilizar para a sociedade os códigos- fonte do software 29 . Costumam apegar-se à recomendação, feita em lei30, para que se utilize preferencialmente, no desenvolvimento de SEPAJs, os ditos códigos abertos.

Entende-se que isso é útil, mas insuficiente, para a promoção da transparência tecnológica.

Uma política efetiva de transparência tecnológica deveria contemplar ao menos três linhas de ação, que podem ser expressas sob a forma de três regras:

  • a) regra da automação consciente: dar ciência às pessoas, aí incluídos os operadores jurídicos, do alcance que a softwarização tem no processo; todos precisam estar muito cientes do que significa um processo eletrônico, com ênfase para o conhecimento e entendimento de tudo que sai do âmbito decisório de servidores e, principalmente, do magistrado, para se instalar num programa de computador - o SEPAJ;

  • b) regra da legitimação: esta regra quer a abertura de canais efetivos, institucionalizados, para a participação das pessoas na definição da norma tecnológica, ou seja, da versão interpretada da norma processual que será implantada no SEPAJ (qual interpretação vai prevalecer na incorporação no sistema processual); abrir os códigos-fonte é apenas a fase terminal de um processo que, pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais, deve começar pela definição da norma que se vai converter em código-fonte;

  • c) regra da transparência plena: abrir os códigos do programa em linguagem jurídico-normativa, não apenas tecnológica. Trata-se de explicitar e publicizar, de todas as maneiras possíveis, em linguajar acessível para juristas e para o povo em geral, as decisões tomadas na alínea “b”; a transparência não deve estar voltada para a detecção de erros de codificação do programa, conforme sugere a chamada lei de Linus31 ; se o software é uma “máquina trivial” (Foerster), determinada e causal, (dadas certas entradas, sabe-se exatamente que resultados produzirá!), é importante que as pessoas saibam que a função informática terá tal comportamento e não outro. As funções puramente tecnológicas, não jurídico-normativas, não precisam ser expostas. As funções jurídico-normativas, ou com alcance jurídico-normativo, por outro lado, serão descritas de forma simples, em linguajar que advogados, servidores, partes e juízes entendam, sem prejuízo da exibição em linguagem técnica, mesmo que o sistema, como um todo, seja proprietário.

Tais medidas, entre outras que venham a ser implementadas, atenderão ao direito fundamental processual à transparência tecnológica.

Outras implicações daí advindas são que:

  • (i) partes dos códigos-fonte dos sistemas poderão ser mantidas sob confidencialidade, se interesses relevantes tornarem necessária essa confidencialidade; mas sempre se garantirá às pessoas, em linguagem adequada, tecnológica e jurídico-normativa, o acesso pleno e irrestrito às normas tecnológicas (normas jurídicas em expressão tecnológica);

  • (ii) todos - inclusive e principalmente os operadores jurídicos sem conhecimento técnico - poderão, a todo tempo, tomar ciência, criticar e validar os resultados alcançados pelas funções informáticas do sistema que tenham alcance jurídico e

  • (iii) o comportamento do sistema estará legitimado pela democratização das interpretações normativas que vigerão para todos, de forma uniforme.

Por exemplo, em relação a (i), acima, eventuais dificuldades de gestão e/ou financeiras e/ou contratuais (caso de sistemas processuais de terceiros) do poder judiciário poderiam lastrear decisões de confidencialidade de parte dos códigos-fonte (bibliotecas específicas), tratando-se de uma decisão situada no âmbito da discricionaridade administrativa.

Resumindo, então, pensa-se que, na softwarização, a norma jurídica, na acepção kelseniana, de “sentido em que se toma o texto normativo” 32, é que deve ser claramente enunciada. As pessoas devem poder participar dos processos de fixação desse “sentido extraído do texto” (por mecanismos que legitimem sua fixação), as pessoas devem poder saber, com antecedência, que tais decisões serão automatizadas por software, no processo, e, além disso, a descrição da função tecnológica que vincula, trivialmente (no sentido foersteriano), entradas e saídas, deve, esta sim, estar sempre disponível amplamente para os interessados (publicidade do processo).


8. Enquadrando o software: o direito fundamental processual à transparência tecnológica

A transparência não deve ser apenas da informação, mas da ferramenta que trata a informação também.

CF, art. 5°, LXXIX - a todos, no âmbito judicial e administrativo, é assegurado o acesso pleno às normas tecnológicas: transparência tecnológica.

Segundo Oliveira Baracho, “ [...] as Constituições do século XX, com poucas ressalvas, reconhecem a necessidade de proclamação programática de princípio do direito processual como necessário, no conjunto dos direitos da pessoa humana e as garantias respectivas.” 33

Os esforços teóricos parecem indicar ser necessário alargar o famoso princípio do devido processo de uma forma expressa. Os juristas da Common Law sempre se negaram a enquadrá-lo num conceito, deixando-o aberto para movimentos como os que agora se fazem necessários34.

Como informa Paulo Henrique dos Santos Lucon, a manifestação paradigmática do juiz Frankfurter, da Suprema Corte Norte Americana, em 1951, espelha bem esse pensamento. Para o magistrado, o devido processo não cabe nos limites de uma fórmula, “[...] o due process é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos.” 35 Embora, nesse primeiro passo, Frankfurter se volte ao passado e valorize as raízes do instituto, ele não dá a formulação do Due Process como acabada. Ao contrário, ele avança seu raciocínio para a ideia de processo, de contínuo vir a ser, dizendo que o Devido Processo não é mecanicista, nem representa um padrão imutável, sendo “[...] um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício de julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo”. Menciona, pois, um processo de adaptação permanente às circunstâncias externas novas que devem ser enfrentadas pela comunidade. Num linguajar pós-positivista, falar-se-ia em concretização atualizante dos conteúdos. E relembra a profética advertência de John Marshall, de 1819, sobre a durabilidade das constituições – “durar por eras” – e sobre a necessária ductibilidade exegética de seu texto – “ser adaptada às várias crises das atividades humanas.” 36

Assim, o grande guarda-chuva da principiologia fundamental processual precisa albergar mais alguns subprincípios. Tudo indica ser necessária a explicitação de um direito fundamental processual à transparência tecnológica, para espancar perplexidades no assunto. A transparência não deve ser apenas da informação, mas da ferramenta que trata a informação também.

O entendimento do software, seus limites e possibilidades, e a aceitação do caráter duplo-instrumental da tecnologia37 (instrumento a serviço do instrumento), devem levar os juristas a concluir que o devido processo passa a incluir, na nova realidade do processo eletrônico, esse indispensável subprincípio: da transparência tecnológica. Mais ainda quando se caminha da direção da unicidade do sistema eletrônico de processamento de ação judicial, conforme a pretensão do Conselho Nacional de Justiça.

Na construção de uma linha argumentativa em prol dessa previsão, podem-se situar os tópicos adiante que, sem dúvida, mereceriam outras e mais profundas considerações, incompatíveis com a extensão deste artigo.

8.1 Na relação processual, o software desloca (assume o lugar de) servidores e também o juiz.

A tecnologia não é um mal a ser espancado. Ela é um bem a ser controlado. E a transparência é um instrumento efetivo para esse controle.

Os jurisdicionados têm direito à transparência tecnológica, não apenas informacional.

A softwarização do processo já evidencia, a toda prova, que o software assume papéis antes entregues ao prudente arbítrio do juiz, além de aos servidores. E tem de ser assim mesmo, para o bem do processo. Não há porque não ser, embora isso tenha de estar transparente em moldes adequados, sobre os quais se fazem sugestões neste trabalho.

Alguns casos já vividos são notórios, como o famoso e recente caso em que um recurso foi considerado intempestivo porque o horário do sistema processual era o de Brasília e o recurso vinha de um Estado com outra hora. Outros são corriqueiros, como as muito comentadas rejeições de peças porque não se atendem limites de tamanho que “alguém” incluiu no software por conveniências de ordem administrativa ou financeira. Aliás, numa manobra em que direitos fundamentais são desprezados e prevalecem as tais conveniências.

Os processos sempre tiveram atores visíveis e invisíveis. Em legitimação pelo procedimento, ao tratar da autonomia do sistema processual, Niklas Luhmann38 evidencia a preocupação com os atores invisíveis, presentes no processo via papéis externos dos operadores. Mas o software é um invisível permitido, extremamente ativo e que age diretamente, não pela via de outros operadores.

A tecnologia não é um mal a ser espancado. Ela é um bem a ser controlado. E a transparência é um instrumento efetivo para esse controle. Os jurisdicionados têm o direito à transparência tecnológica, não apenas informacional.

8.2. A softwarização permite evoluir na virtualização e a transparência passa a ser essencial.

A tecnologia tem sido usada, no sistema processual, principalmente para a gestão de rotinas e e documentos. Entende-se que o uso da tecnologia deverá avançar para levar o sistema processual à condição de um efetivo sistema de apoio à decisão, quando o juiz passará, finalmente, a utilizar a tecnologia em favor do cumprimento de seu mister constitucional de decidir. Até o presente momento, todos se beneficiaram da introdução da tecnologia no processo (partes, advogados, MP etc), menos os juízes. Esses tiveram sua carga de trabalho ampliada e suas responsabilidades, inclusive administrativas (?), aumentadas ou dificultadas.

Esse maior apoio ao juiz significa transferir mais atividades para o software, o que pode ser expresso sob a forma de “aumentar a inteligência do sistema processual” ou, como se demonstrou em outro trabalho39, de caminhar da “digitalização” para a “virtualização”.

Vê-se que, nessa ampliação da softwarização do sistema processual, mais importante se torna a transparência tecnológica.

8.3. A insuficiência da abertura do código-fonte

É preciso pensar e escrutinar o software em termos jurídico-normativos também, não apenas tecnológicos.

Como visto, para alguns a abertura dos códigos-fonte40 seria um instrumento, previsto em lei, suficiente para garantir a transparência tecnológica.

Este tópico, parcialmente abordado acima, merece considerações adicionais, embora um tratamento efetivo dele exigisse um artigo específico. Apresentam-se, portanto, apenas algumas ponderações pontuais a respeito, tendo em vista a profunda conexão disso com a questão da transparência tecnológica.

8.3.1. Aspectos do regime legal em vigor que comprometem a transparência
  1. No artigo 14, da lei 11.419/2006, lê-se: “os sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário deverão usar, preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização.”

  2. O legislador nacional fala dos “sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário”. O legislador não diz que o processo eletrônico será operacionalizado com sistemas desenvolvidos pelo PJ. Portanto, o regramento do artigo ocupa-se de um subconjunto de tais sistemas, não de todos. Ficam de fora os que não são desenvolvidos pelo PJ. A regra, no plural, claramente aponta para um subconjunto não necessariamente unitário, ou seja, para um sistema único. Tanto é assim que a última recomendação do artigo é de padronização. Não se padroniza o único. Padronizam-se os vários.

  3. Nos termos da lei, portanto, se o Poder Judiciário desenvolver sistemas, ficará sujeito à observância da disposição que vem a seguir: tais sistemas deverão “[...] usar, preferencialmente, programas com código aberto”.

  4. O “dever”, esvaziado ou matizado, logo a seguir, pelo advérbio “preferencialmente”, cria a falsa ilusão da obrigação. Na verdade, joga-se a decisão para a discrição do administrador.

  5. Depois, no mesmo trecho da norma, o legislador utiliza a famosa locução código aberto. Ela é indutora de muitas confusões, porque ambígua: a abertura dos códigos, preconizada pelo legislador, tem a ver com confidencialidade (transparência) ou com código proprietário? Com toda a vênia, pensa-se que a redação se apresenta equívoca. Aparentemente, nasceu das mãos de alguém não afeito à redação legal ou, então, de alguém que não sabia exatamente do que estava tratando. Parece que o redator pensou numa coisa e o técnico que o auxiliava pensou noutra. Ambos acharam um ponto comum de pensamento na expressão código aberto, e a incluíram na lei, lançando, na norma, fonte de enorme ambigüidade.

  6. Como o legislador fechou o foco nos sistemas que o Poder Judiciário desenvolve, parece razoável excluir a hipótese de aberto referir-se ao oposto de proprietário, no sentido adotado no mundo tecnológico.

  7. Assim, a interpretação da locução código aberto, para a promoção da transparência tecnológica, deveria ser tomada no sentido de não confidencial. Pensa-se, aliás, que o legislador mirou nisso ao incluir a locução, ao contrário do técnico, que embalado pelas disputas empresarial-ideológicas por trás da propriedade dos softwares, pensava em dificultar a vida do código-proprietário.

  8. O regime legal, entretanto, para os fins da transparência, é capenga porque (a) permite a utilização de sistemas proprietários (e, portanto, imanentemente confidenciais) e (b) pode ser interpretado no sentido de deixar ao alvitre do administrador a questão da abertura ou confidencialidade dos códigos.

8.3.2. Aspectos de um regime novo, inspirado na ideia de promoção dos direitos fundamentais processuais, com transparência tecnológica plena
  1. É preciso pensar e escrutinar o software em termos jurídico-normativos também, não apenas tecnológicos. Somente assim se concretizarão, em plenitude, as exigências de transparência. Não haverá transparência se os juristas, todos eles, não receberem a expressão dos códigos em linguagem que lhes permita entender e acompanhar, sem dificuldades, os meandros pelos quais os sistemas eletrônicos alcançam conclusões a respeito do jurídico. Todas as funções tecnológicas (software) que incorporam normas jurídicas, processuais ou materiais, deverão ser transparentes nos três sentidos: a) as pessoas devem ter ciência plena e prévia de que a aplicação daquela função está sendo transferida de um humano para um software; b) procedimentos democráticos devem permitir a mais ampla participação nos processos de definição da interpretação normativa a ser incorporada (legitimação) e c) do acesso pleno à função, em expressão tecnológica (códigos-fontes) e, principalmente, em expressão em linguagem acessível aos juristas (não técnica).

  2. Em todos os SEPAJs, proprietários ou não, do Poder Judiciário ou de terceiros, a obrigação de abertura dos códigos deve ser imperativa, e não preferencial, em relação a todas as normas com alcance jurídico; as regras da legitimação da norma tecnológica e da transparência plena devem estar presentes para promover, acima de tudo o mais, os direitos fundamentais processuais.

  3. No desenvolvimento dos sistemas processuais pelo Poder Judiciário deveria ser vedado utilizar/aproveitar, diretamente ou via terceiros contratados para a prestação de serviços, qualquer ferramenta, código-fonte, trecho de código-fonte, algoritmo e qualquer outro instrumental ou elemento cujas condições de licenciamento/autorização de uso implicassem a transferência, em relação ao software produzido, de quaisquer obrigações, para o Estado brasileiro, na condição de desenvolvedor direto ou encomendante, referentes à titularidade, cessão, licença, permissão de uso, dação de créditos ou derivação estipuladas em licenças postas por terceiros (contágio). A titularidade do sistema processual, ao final do desenvolvimento, deve ser do Estado brasileiro, exclusivamente e sem quaisquer limitações;

  4. Um regime adequado para a área, portanto, voltado à concretização máxima dos ditames constitucionais do artigo 5°, da Constituição, deve fundar-se (a) na explicitação e promoção das regras de transparência propostas no item 7, (b) em conceitos operacionais claros e explícitos de código-aberto, código-fechado ou proprietário e confidencialidade de código, (c) na distinção dos níveis tecnológico e jurídico das expressões das normas e (d) na conceituação de norma tecnológica (a versão interpretada do texto normativo incorporada num software).

  5. Num regime como o aqui preconizado, diferenciando-se os níveis jurídico-normativo e tecnológico, dever-se-ia estabelecer plena e irrestrita publicização das normas tecnológicas, na linguagem fonte (técnica) em que foi codificada para o sistema processual e a partir da qual as versões executáveis são geradas, e, também, em código jurídico-normativo, que deve ser a expressão, semanticamente válida, para os juristas e o público em geral, da função “trivial” aplicada em linguagem tecnológica, em cada caso. Na lei de software, no artigo 3°, § 1°, II, encontra-se a menção à “descrição funcional do programa de computador” 41. Entende-se que a descrição jurídico-normativa deva atender a requisitos específicos, em termos da linguagem a ser utilizada e dos conteúdos.


Considerações Finais

O método de adjudicação judicial do Direito passa, no presente momento, por uma fase de intensa softwarização. A tendência inexorável desse movimento é no sentido de aprofundar-se. Por ora, o regramento formal está sendo submetido ao fenômeno. Mas já despontam, no horizonte, cogitações de levá-lo para além da forma, avançando para espaços substanciais (de mérito).

O software é uma das tecnologias da informação e da comunicação. Poderoso e envolvente, permite avanços significativos no cumprimento, pelo Poder Judiciário, de deveres constitucionais fundamentais ligados à prestação jurisdicional.

O software tem um potencial apreciável para viabilizar a automação de atividades, inclusive do processo judicial. Um potencial tão significativo que requer, em muitos aspectos, a reconsideração do regramento processual e o avanço da ciência teórica do processo - a teoria geral do processo.

Parece indispensável, nesse movimento de renovação teórica, que se passe a considerar o surgimento de um ente novo no âmbito do direito processual, uma nova categoria teórica, muito peculiar, na estruturação do grande arcabouço do método utilizado para a prestação jurisdicional: a norma tecnológica.

Do seu estudo e conceituação, surgirão normativas para sua estipulação, vinculadas à legitimação, validez e publicização (regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena).

De sua natureza, eminentemente tecnológica, nascem a necessidade e a importância da explicitação do direito processual fundamental à transparência tecnológica, uma outra categoria teórica para a fase de egovernança.

Com o presente trabalho, espera-se contribuir para o aprofundamento do debate do assunto.


Referências bibliográficas

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 408p.

BRASIL. Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9609.htm.

BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei11419.htm.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo:Cultrix, 2000. 256p.

CITRON, Danielle Keats. Technological due process.Washington University Law Review. St. Louis, v.85, p. 1249, 2008.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. são Paulo:Martins Fontes, 1999. 513p.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1980. 111p.

GAZZANIGA, Michael S. Who´s in charge? Free will and the science of the brain. New York: Harper Collins Publishers, 2011. 260p.

GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. são Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.

HART, H. L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. 348p.

HEGEL, Guillermo Federico. Filosofia del derecho. 3.ed. Buenos Aires: Claridad, 1944. 285p.

KELSEN, Hans. Teoria pura do directo. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 427p.

LAMY, Eduardo de Avelar; RODRIGUES, Wanderley Rodrigues. Curso de processo civil. Teoria geral do processo. Florianópolis:Conceito Editorial, 2010. 373p.

LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Devido processo legal substancial. Disponível em: <https://www.cpc.adv.br/doutrina/devido_processo_substancial.htm>. Acesso em: 27 fev. 2004.

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft). Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 13/01/2003. Disponível em: https://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/el-derecho-de-la-sociedad-niklas.html. Acesso em: 10 nov. 2011.

________. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. De Ana Cristina Arantes. 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 2010. 414p.

________. Introducción a la teoria de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. México: Universidad Iberoamericana, 1996. 304p.

_______. legitimação pelo procedimento. Trad. de Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: UnB, 1980. 210p.

MURPHY, Mark c. Philosophy of Law: the Fundamentals. Oxford: Blackwell, 2007. 214p.

PEREIRA, S. Tavares. Devido processo substantive (Substantive due process). Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. 266p.

__________. O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1937, 20 out. 2008. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/11824/o-processo-eletronico-e-o-principio-da-dupla-instrumentalidade>. Acesso em: 16 mar. 2009.

__________. Processo eletrônico no novo CPC: é preciso virtualizar o virtual . Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/21242/processo-eletronico-no-novo-cpc-e-preciso-virtualizar-o-virtual>. Acesso em: 3 abr. 2012.

SANKAR, Shyam. The rise of human-computer cooperation. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/shyam_sankar_the_rise_of_human_computer_cooperation.html>. Acesso em: 16 set. 2012.

SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido Processo Legal. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

TERBORGH, George. The automation hysteria. New York: Norton & Company, 1965. 104p.


Notas

1 Entende-se que este assunto merece um tratamento geral, com fundamentos ampliados. Neste artigo, fecha-se o foco no processo judicial e explicita-se o direito fundamental geral como um caso particular para o processo.

2 CITRON, Danielle Keats. Technological due process. Washington University Law Review. st. Louis, v. 85, p. 1249, 2008. O paper está disponível em: https://ssrn.com/abstract=1012360. Acesso em: 25 jun. 2012.

3 Sobre o fenômeno da emergência, nas ciências naturais, em sentido fraco e forte, ver GAZZANIGA, Michael S. Who´s in charge? Free Will and the science of the brain. New York:Harper Collins Publishers, 2011. p. 124-128. O que se quer captar, da visão científica exposta, é que, na realidade transformada, ou emergente, “ […] the laws cannot be predicted by an underlying fundamental theory or from an understanding of the laws of another level of organization.”

4 Sobre a teorização contemporânea do processo e o intenso movimento de transformação existente nesse âmbito científico, ver LAMY, Eduardo de Avelar; RODRIGUES, Wanderley Rodrigues. Curso de processo civil. Teoria geral do processo. Florianópolis:Conceito Editorial, 2010. p. 193-205. Dizem os autores, na p. 193, que “o processo não possui uma teoria geral definida e adaptada à realidade atual. Sua epistemologia e seus institutos fundamentais merecem ser analisados em perspectivas claras. Ainda é necessário que a doutrina analise, detidamente, a ação, a jurisdição e o processo – institutos elementares do direito processual – sob a ótica constitucional.” [sem grifo no original]

5 A evolução do pensamento sistêmico trouxe à posição central do palco científico a ideia de “[...] padrão de organização - uma configuração de relações características de um sistema em particular [...]”. CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo:Cultrix, 2000. p. 76 e 135. Sobre a valorização da relacionalidade na visão estruturalista, inclusive parsoniana, e na transição para a fase de valorização do padrão, dos sistêmicos e ciberneticistas, ver LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Trad. De Ana Cristina Arantes. 2. Ed. Petrópolis:Vozes, 2010. p. 323 e seguintes.

6 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11.ed. São Paulo:Malheiros, 2003. p. 200.

7 Para uma visão muito rápida do espectro das novas TICs, sugere-se uma consulta à Wikipédia.

8 CAPRA, Fritjof. A teia da vida, p. 135.

9 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Para os fins deste estudo, trabalha-se com o conceito de autopoiese na formulação sociológica proposta por Niklas Luhmann na elaboração de sua teoria dos sistemas sociais: “Autopoiese significa [...] determinação do estado posterior do sistema, a partir da limitação anterior à qual a operação chegou.”(p. 113) Com tal afirmação, Luhmann separa conceitualmente autopoiese e auto-organização, no que aproveita lições de Foerster e de Ulrich e se distancia de Maturana e Varela. “Auto-organização e autopoiesis são dois conceitos que devem manter-se claramente separados.” (p. 112) Sobre as diferenças apontadas por Luhmann, para os dois âmbitos (social e biológico), notadamente em relação à diferenciação mais aguda de estruturas e operações (que espelham o processo), vejam-se as páginas 119-127. Na p. 123, por exemplo, o tradutor Javier Torres Nafarrate, um especialista no pensamento luhmanniano, acrescenta a nota 10 onde explica: “cabe observar que Luhmann generaliza o conceito de autopoiesis e que outros sistemas como [...] os neuronais, podem ser definidos como sistemas autopoiéticos. Maturana e Varela descrevem [...] como sendo autorreferente, mas não autopoiético.”

10 Sobre a interação, pela via do acoplamento estrutural, de comunicação e consciência, ver LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas... , p. 271 e seguintes.

11 Sigla criada com as iniciais do nome do sistema previsto no artigo 8° da Lei 11.419/2006: Sistema Eletrônico de Processamento de Ação Judicial- SEPAJ. Com ela não se faz referência a um sistema específico - que são vários (Projudi, eProc, PJe etc) - mas a qualquer deles.

12 Inserem-se, aqui, por exemplo, as preocupações constitucionais e legais com a magistratura (prerrogativas e demais mecanismos de promoção da imparcialidade e isenção). São muitos, ainda, os estudos sociológicos e filosóficos preocupados com o processo. Niklas Luhmann já se ocupava desse aspecto, há quatro décadas, ao tratar da autonomia do processo judicial civil: LUHMANN, Niklas. legitimação pelo procedimento. Trad. de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília:UnB, 1980, p. 61-64. Klauss Günther marca bem sua posição pelo estabelecimento de uma “lógica de adequação” para utilização pelo magistrado ao formular sua decisão. Segundo Günther, os juízes precisam estar preparados para a liberdade inerente aos juízos de adequação (o que é correto dependerá da situação!) e para a reconexão das teorias da Moral, do Direito e da Sociedade, num movimento oposto ao que orientou a formação de muitos deles sob um enfoque positivista estrito.Nas palavras do jusfilósofo, criticando o pensamento de Tugendhat, é necessário derivar a ideia de imparcialidade dos pressupostos inevitáveis de uma argumentação moral; mas é preciso que se sistematize uma lógica da argumentação da adequação que demonstre “[...] com quais meios argumentativos nós vamos, em discursos de aplicação, aproveitar uma descrição ampliada da situação e conseguir resolver as colisões dali oriundas”: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. são Paulo:Landy Editora, 2004, p. 335. E Ronald Dworkin, ao mesmo tempo em que entrega ao juiz a tarefa hercúlea de decidir monologicamente, dá-lhe a contrapartida obrigacional de fazê-lo com a promoção da integridade sistêmica. DWORKIN, Ronald. O império do direito. são Paulo:Martins Fontes, 1999, capítulo IX, p. 377 e seguintes.

13 Hegel, na sua Filosofia do Direito, ao tratar da administração da justiça, já se preocupava a respeito: “La equidad encierra una derogación del derecho formal por consideraciones morales o de otra naturaleza, y se refiere ante todo al contenido de la contienda jurídica. Un tribunal de equidad, em­pero, debe tener el significado de decidir sobre el caso individual, sin atenerse a las formalidades del procedimiento jurídico y, en particular, a los medios objetivos de prueba que pueden ser reco­gidos legalmente; y de resolver de acuerdo al interés propio del caso singular como tal, y no ya en el interés de una disposición legal de hacerlo general.” Ora, derrogar o direito e conduzir-se por considerações de ordem moral ou de outra natureza, é fenômeno tipicamente “humano”. HEGEL, Guillermo Federico. Filosofia Del derecho. 3.ed. Buenos Aires:Claridad, 1944. p. 194.

14 Segundo Klaus Günther, indispensável para legitimar a decisão. “Contrariamente, a tese da indeterminação estrutural pelo entendimento hermenêutico de que não conseguimos compreender um texto, independentemente da sua situação de interpretação , foi radicalizada pela afirmação de que cada norma em si só passará a ser uma norma determinada no próprio ato de interpretação .” Embora critique essa radicalização, Günther afirma que “ [...] a indeterminação não é um problema da estrutura da norma, contudo uma perífrase do procedimento de aplicação imparcial .” Ou seja, a norma não pode ser libertada de sua vinculação com o contexto de aplicação. [sem grifos no original] GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral..., p. 397-398.

15 “Os humanos são incríveis - como pensamos, nossas abordagens não lineares, nossa criatividade, hipóteses interativas, tudo muito difícil, mesmo se possível, para os computadores fazerem.” SHYAM, Sankar. The rise of human-computer cooperation. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/shyam_sankar_the_rise_of_human_computer_cooperation.html>. Acesso em: 16 set. 2012. [tradução livre]

16 “mecanização é uma coisa; automaticidade e algo mais.” [tradução livre] TERBORGH, George. The automation hysteria. New York: Norton & Company, 1965. p. 15. O termo “automaticity”, que se pode representar pelo neologismo “automaticidade”, era um dos vários termos utilizados, na época, para se referir à “automation”, o termo cunhado, em 1947, pela Ford Motor Company para designar um novo departamento, o “automation department”, da divisão de engenharia de manufatura. Antes, utilizava-se o termo “automatization”, de onde vem a palavra automatização, conforme informa o mesmo autor, p. 1. Terborgh transcreve, ainda, um precioso texto de John Diebold, que se tornou clássico, no qual o autor faz a equiparação de automação com engenharia de sistemas (ver p. 19-21).

17 Sobre o processo de produção mecânico, diz John Diebold: “But no mattter how small a portion of brute strength was involved in running a machine, a human worker was always needed to operate and control it.” DIEBOLD, John, apud TERBORGH, George. The automation hysteria…, p. 20.

18 Sobre o conceito de atrator estranho, ver CAPRA, Fritjof. A teia da vida, p. 113 e seguintes, especialmente no sentido da afirmação da p. 114: “ [...] as propriedades dinâmicas gerais de um sistema podem ser deduzidas da forma de seu atrator.” O software entra no processo com essa força para atuar fortemente sobre as propriedades do sistema. Sobre o mesmo tema, realçando o pensamento do estudioso das ciências da complexidade Jeffrey Goldstein, ver GAZZANIGA, Michael S. Who´s in charge..., p. 127.

19 No sentido de “contextualizar” a aplicação da regra processual. A avaliação da regra prima facie à luz dos fatores relevantes da situação fica restrita às previsões estrutural-softwarianas.

20 Sobre as dificuldades da interpretação, veja-se MURPHY, Mark c. Philosophy of Law: the fundamentals. Oxford:Blackwell, 2007, p. 70 e seguintes.

21 MURPHY, Mark c. Philosophy of Law…, p. 69-70: “Ser juiz é ser designado pelas regras como alguém cujas aplicações das regras daquele sistema, ou alguma das regras daquele sistema, é considerada autoritativa. Você poderia ser extraordinariamente bem informado sobre o direito na sua sociedade, sobre os casos que estão em disputa, e sobre os fatos relevantes que precisam ser considerados; e você pode então ter coisas extremamente inteligentes a dizer sobre como tais casos deveriam ser entendidos. Mas falta-lhe o poder de decidir os casos [...]”. [tradução livre]

22 “Os programadores de computador fizeram novas políticas ao codificar regras que distorceram ou violaram as políticas estabelecidas.” [tradução livre] CITRON, Danielle Keats. Technological..., p. 1279.

23 Sobre máquinas triviais e não triviais e o pensamento de Heinz Von Foerster, ver PEREIRA, S. Tavares. Processo eletrônico no novo CPC: é preciso virtualizar o virtual. Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/21242/processo-eletronico-no-novo-cpc-e-preciso-virtualizar-o-virtual>. Acesso em: 3 abr. 2012; ver, também, LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoria de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. México:Universidad Iberoamericana, 1996. p. 82 e seguintes.

24 HART, H. L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 2.ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 139.

25 HART, Herbert L. A. O conceito de Direito, p. 140.

26 HART, Herbert L. A. O conceito de Direito, p. 141.

27 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft). Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 131003. Disponível em: https://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/00432-el-derecho-de-la-sociedad-niklas-luhmann.html. Acesso em: 10 nov. 2011. p. 133.

28 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2.ed. São Paulo:Atlas, 1980. p. 96.

29 Danielle Keats Citron compartilha esse entendimento: “Access to an automated program's source code—the programmer's instructions to the computer—might provide a meaningful way for individuals to challenge an agency's claims and dispel the influence of automation bias.” CITRON, Danielle Keats. Technological…, p. 1284.

30 “Art. 14. Os sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário deverão usar, preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização.” BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei11419.htm.

31 Assertiva feita pelo hacker Eric S. Raymond, em defesa da ideia de open source (código aberto): “dados olhos suficientes, todos os erros são triviais (Given enough eyeballs, all bugs are shallow)”. O hacker focou a questão da correção técnica dos códigos, como se vê, não a jurídica.

32 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5.ed. São Paulo:Martins Fontes, 1996, p. 6.

33 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro:Ed. Forense, 1984, p. 125.

34 Para maior desenvolvimento desta ideia, ver PEREIRA, S. Tavares. Devido processo substantivo (Substantive due process). Florianópolis:Conceito Editorial, 2007. p. 67 e seguintes.

35 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Devido processo legal substancial. Disponível em: <https://www.cpc.adv.br/doutrina/devido_processo_substancial.htm>. Acesso em: 27 fev. 2004. A afirmação foi feita, segundo o autor, em voto do caso Anti-Facist Committee v. Mc Grath, 341 U.S. (1951).

36 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido Processo Legal. 3.ed. Belo Horizonte:Del Rey, 2001. p. 33.

37 PEREIRA, S. Tavares. O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1937, 20 out. 2008. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/11824/o-processo-eletronico-e-o-principio-da-dupla-instrumentalidade>. Acesso em: 16 mar. 2009. “A tecnologia é instrumento a serviço do instrumento – o processo - e, portanto, sua incorporação deve ser feita resguardando-se os princípios do instrumento e os objetivos a serviço dos quais está posto o instrumento.”

38 LUHMANN, Niklas. legitimação pelo procedimento, p. 61-64.

39 PEREIRA, S. Tavares. Processo eletrônico no novo CPC: é preciso virtualizar o virtual.

40 Código-fonte é a expressão ordenada das instruções constituintes de um programa de computador, em linguagem de alto nível, técnica. Precisa ser compilado ou interpretado para se tornar passível de execução por um computador. Fala-se em código-fonte, em geral, para distinguir do código-objeto, que é a expressão do código-fonte, em linguagem de máquina, produzido por meio de um processo de compilação. O código-objeto de um programa é o seu executável, ou seja, é o programa que o usuário executa para efetuar determinado trabalho no computador, como o editor de textos, por exemplo. Se o programa apresentar um problema, volta-se ao código-fonte, faz-se a correção do problema e, mediante nova compilação, gera-se outro código-objeto, executável.

41 BRASIL. Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9609.htm.


Autor

  • S. Tavares-Pereira

    Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC e pós-graduado em Direito Processual Civil Contemporâneo. Autor de "Devido processo substantivo (2007)" e de <b>"Machine learning nas decisões. O uso jurídico dos algoritmos aprendizes (2021)"</b>. Esta obra foi publicada em inglês ("Machine learning and judicial decisions. Legal use of learning algorithms." Autor, também, de inúmeros artigos da área de direito eletrônico, filosofia do Direito, direito Constitucional e Direito material e processual do trabalho. Várias participações em obras coletivas.

    Teoriza o processo eletrônico a partir do marco teórico da Teoria Geral dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Foi programador de computador, analista de sistemas, Juiz do Trabalho da 12ª região. e professor: em tecnologia lecionou lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados; na área jurídica, lecionou Direito Constitucional em nível de pós-graduação e Direito Constitucional e Direito Processual do Trabalho em nível de graduação. Foi juiz do trabalho titular de vara (atualmente aposentado).

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, S. Tavares-. Processo eletrônico, software, norma tecnológica e o direito fundamental à transparência tecnológica. Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3438, 29 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23126. Acesso em: 23 abr. 2024.