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Lei nº 10.259/01: ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo

Lei nº 10.259/01: ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo

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SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Ondas Renovatórias de Mauro Cappelletti. 3. A CRFB de 1988. 4. Juizados Especiais Criminais dos Estados e do Distrito Federal. 4.1. Revolução de Procedimento na Esfera Policial. 4.2. Conceito de Infração Penal de Menor Potencial Ofensivo Dado pela Lei nº 9.099/95. 4.3. O Poder Judiciário e o Ministério Público no Contexto da Lei nº 9.099/95. 5. A Emenda Constitucional nº 22/99 – Juizados Especiais Federais. 6. Vacatio Legis. 7. Restrição de Aplicabilidade da Lei. 8. Conceito de Infração Penal de Menor Potencial Ofensivo na Lei dos Juizados Especiais Federais. 8.1. Contravenções Penais. 9. Conclusões.


1.Introdução

A pós-modernidade parece ser reafirmada a cada momento. A velocidade estonteante da informação frustra o discurso longo e as metanarrativas. Já se disse que se juristas do porte de Hans Kelsen fossem vivos, contemporaneamente, suas idéias não sobreviveriam por muito, principalmente pelas respostas geradas pela internet: a contra argumentação é quase instantânea.

É o que parece estar acontecendo após a publicação da Lei que cria, no âmbito da Justiça Federal, os Juizados Especiais Civis e Criminais. Quase que de forma imediata, juristas brasileiros interpretam a Lei nº 10.259/01, nos mais variados sites jurídicos, trazendo à colação vários enfoques, com posições contrapostas, inclusive problemas de ordem prática e absolutamente pertinentes.

Observe alguns questionamentos:

(I).conceito de crime de menor potencial ofensivo (crimes, com pena máxima, in abstrato, não superior a dois anos, ou multa), aplicável nos Juizados Criminais Federais, ampliou o mesmo "conceito" dado pela Lei nº 9.099/95 (infrações penais, com pena máxima, in abstrato, não superior a um ano)?

(II).Entendendo como ampliado o conceito de crime de menor potencial ofensivo, seria possível sua aplicabilidade no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, ainda que em face da vedação expressa do artigo 20, da Lei nº 10.259/01?

(III).As infrações penais que possuem rito especial (literalmente excluídas na Lei nº 9.099/95 – vide artigo 61, in fine), por exemplo, o abuso de autoridade (Lei 4.898/65); o porte de substância entorpecente (Lei nº 6.368/76); os crimes praticados por funcionários públicos (artigos 513 e seguintes do CPP – rito e artigos 312 a 327, do CP); não o foram na Lei em análise e, por isso, haveria autorização implícita para serem processadas no foro especial?

Antes de se debater as questões propostas, de forma direta, torna-se imprescindível que o leitor adote uma "postura instrumentalista" (Cândido R. Dinamarco), dimensionando a sua interpretação aos reais fins optados pelo legislador, qual seja, o da efetividade.

Seguindo esse raciocínio, far-se-á alguns retrospectos históricos, desde os movimentos doutrinários ocorridos no Brasil, passando pela edição da Constituição de 1988, a implantação dos Juizados Especiais Estaduais (Lei nº 9.099/95), a Emenda Constitucional nº 22/99 e, finalmente, a Lei que cria os Juizados Especiais Federais.


2. As Ondas Renovatórias de Mauro Cappelletti

Há muito se pretendia dar à comunidade brasileira uma nova forma de distribuição de Justiça, pretensamente mais célere e muito menos burocratizada, voltada para uma postura instrumental e efetiva. Tentou-se de duas importantes formas.

A primeira, concedeu-se ao processo uma série de regras que o deixou seguro, científico, independente e "ideologicamente neutro". Filiou-se a esta linha, a tradicional "Escola dos Processualistas da USP" – capitaneada por Enrico Tullio Liebman (quando esteve no Brasil) e seus seguidores primários: José Frederico Marques, Luis Eulálio de Bueno Vidigal e Alfredo Buzaid.

Na segunda corrente, apegados à doutrina de Mauro Cappelletti, perfilaram-se doutrinadores, como, por exemplo, José Carlos Barbosa Moreira, Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco, Ovídio Baptista. Adotaram como bandeira, uma postura instrumental, de acesso à Justiça, de um direito processual muito menos apegado à forma, de ideal renovatório, o que refletiu e vem refletindo fortemente nas legislações que se sucederam (cita-se: Lei da Ação Civil Pública; Lei dos Juizados Especiais; Código de Defesa do Consumidor; Estatuto da Criança e do Adolescente – agora falando-se em Código de Defesa do Contribuinte, do Usuário dos Serviços Bancários, dentre outros).


3. A CRFB de 1988

Essas idéias com o ideal de Justiça menos arraigada às formas teve relevância no contexto jurídico, com suporte para ser alçada ao nível Constitucional, quando da promulgação da Constituição da República (CRFB) em 1988.

Assim, implantou-se no sistema jurídico-processual brasileiro (vide artigo 98, I, da CRFB), as causas de menor complexidade e a idéia de infração penal de menor potencial ofensivo, esta na esfera criminal e àquela na cível; ambas com reflexos no direito material.

O dispositivo constitucional norteou o tratamento que o legislador deverá dispensar às infrações mínimas, adequando-se, para tanto, procedimento próprio, especializado, de modo oral e sumaríssimo, admitindo-se a transação penal.


4. Juizados Especiais Criminais dos Estados e do Distrito Federal

Em 26 de setembro de 1995– sete anos após a Constituinte, o Legislativo brasileiro entregou à Nação a Lei nº 9.099, a qual dispõe – na forma preconizada pelo artigo 98, I, CRFB, pari passu, sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal.

4.1. Revolução de Procedimento na Esfera Policial

Na polícia judiciária, alteraram-se as providências da autoridade policial que, antes, eram externadas na forma de inquérito policial, tratando burocrática e indistintamente todas infrações penais, desde as de menor intensidade até aos crimes potencialmente lesivos, como os definidos como hediondos e os seus equiparados (vide Lei nº 8.072/90). Um verdadeiro contra senso à lógica da prevenção e repressão criminal.

Entrando em vigor a nova lei, os casos considerados de menor potencial ofensivo são apurados de forma distinta, dando-se um tratamento menos formal, sendo levados imediatamente (na prática são agendadas audiências, conforme pauta do Juizados, vide Código de Normas do TJ/PR, item 18.2.1) ao Poder Judiciário na nova modalidade processual que se denomina termo circunstanciado – um formulário padrão, muito menos burocrático que os inquéritos policiais (No Paraná, recebeu a designação de termo circunstanciado de infração penal – TCIP, vide Provimento nº 5/99; em São Paulo, termo circunstanciado de ocorrência policial).

4.2. Conceito de Infração de Menor Potencial Ofensivo Dado pela Lei nº 9.099/95

São infrações penais de menor potencial ofensivo, para a Lei nº 9.099/95 "as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial."

Assim, estando o operador do direito frente a um caso típico penal, observando o quantum da pena máxima se não for superior a um ano, ter-se-á o seu processamento policial e judicial, nos moldes da Lei nº 9.099/95. É o caso do crime de violação de domicílio (artigo 150, do Código Penal - CP); Violação de Segredo Profissional (artigo 154, do CP); Dano (artigo 163, do CP); Porte de Arma "branca" (artigo 19, Lei das Contravenções Penais - LCP); Vias de Fato (artigo 21, LCP), dentre outros. Excetuam-se, como já visto, as hipóteses de procedimento com rito especial, vide artigo 503 e ss. do CPP e Lei nº4.898/65, Lei nº 6.368/76, por exemplo.

4.3. O Poder Judiciário e o Ministério Público no Contexto da Lei nº 9.099/95

A nova lei também alterou, de forma profunda, a intervenção dos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, quando do tratamento voltado para as infrações penais de menor potencial, principalmente no tocante a hipótese de conciliação prévia, a idéia da common law americana, plea bargaining ou plea of guilty (do direito inglês), possibilidade do órgão de acusação negociar, transacionar; a existência de conciliadores.


5. A Emenda Constitucional nº 22/99 – Juizados Especiais Federais

Dentro de uma "onda" que apregoa profundas reformas no Poder Judiciário brasileiro, incluiu-se a Justiça Federal, para que, neste nível, também fossem implantados Juizados Especiais, nos mesmos moldes daqueles já existentes nos Estados e Distrito Federal. Frise-se: com a mesma esteira ideológica de "desburocratizar" os serviços judiciários, dando aos "usuários" do sistema (agora afastando a hegemonia da Fazenda Pública) uma justiça mais próxima e ágil.

Justamente por isso é que o legislador Constitucional trouxe a Emenda Constitucional (EC) nº 22, em 18 de março de 1999, acrescentando à redação do artigo 98, da CRFB, o parágrafo único, visando possibilitar o intento.

Passado um triênio da EC nº 22/99, editou-se a Lei nº 10.259, em 12 de julho de 2001 – a qual institui, no âmbito Federal, os Juizados Especiais Civis e Criminais (JECF).

O conteúdo dos dispositivos da lei dos JECF aplica-se de forma subsidiária e complementar à Lei nº 9.099/95 – no que não conflitar (vide art. 1º), principalmente quanto a especialidade do seu objeto: alçada Federal.


6. Vacatio Legi

s

Estabelece o artigo 27, da JECF, que "esta Lei entrará em vigor seis meses após a data de sua publicação." Portanto, somente em 13 de janeiro de 2002, passará a ter força normativa – período da vacatio legis.

Por óbvio que o período da vacatio legis é bastante salutar até para se divulgar o conteúdo e amplitude do novo texto da Lei e também dar um certo lapso de tempo para que o Poder Judiciário Federal se organize. Notoriamente quanto aos dispositivos contidos no artigo 22, parágrafo único: juizado itinerante; artigo 23: limitação de três anos da competência dos Juizados Cíveis, no que especifica; artigo 24: criação de programas de informática e cursos dirigidos aos magistrados e aos servidores; artigo 25: limitação de remessa das ações já ajuizadas.

Neste sentido, os Juizados Especiais Estaduais foram menos privilegiados, visto que o legislador ordinário concedeu aos Estados e Distrito Federal um lapso de sessenta dias após a publicação, para que a Lei começasse a vigorar (vide artigo 96, da Lei nº 9.099/95).


7. Restrição de Aplicabilidade da Lei

Pelo que se infere do texto legal, de forma taxativa, vedou-se a aplicação do conteúdo da Lei nº 10.259/01, no Judiciário Estadual ( art. 20 JECF: onde não houver Vara federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do for definido no art. 4º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta no juízo estadual.) [sem grifos no original]

Esse dispositivo vem sendo o principal alvo das duras críticas expendidas pelos doutrinadores. O argumento acusatório é o de que ao se aceitar a sua validade, princípios constitucionais basilares, como os da reserva legal e da isonomia, estariam sendo frontalmente agredidos.


8. Conceito de Infração Penal de Menor Potencial Ofensivo na

Lei dos Juizados Especiais Federais

O artigo 2º da Lei nº 10.259/01, delimita, numa escala valorativa ampliada – se comparada ao da Lei dos Juizados Estaduais - os crimes de sua competência como aqueles em que a "lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa".

Os crimes de interesse da Justiça Federal estão relacionados diretamente pela CRFB, quando no artigo 109 e incisos, diz ser da competência dos Juízes Federais, processar e julgar: (I) os crimes políticos; (II) as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União e de suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Excluem-se as contravenções e ressalvadas a competência da Justiças especializadas Eleitoral e Militar. (III) Os crimes cometidos a bordo de aeronaves ou navios, exceto se os militares; (IV) os crimes de ingresso ou permanência de estrangeiros; (V) os crimes contra a organização do trabalho; (VI) e os contidos nas Leis nºs: 8.137/90 e 8.176/90, crimes contra a ordem tributária, econômica e contra relações de consumo e ordem econômica – estoque de combustíveis, respectivamente. Importante não esquecer das Súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, as quais ampliam esta relação exemplificativa.

Portanto, o exegeta, ao comparar o texto da Lei nº 9.099/95 e o da lei em comento, observará uma ampliação conceitual do que se tem como infração penal de menor potencial ofensivo, na estrutura jurídico-penal brasileira.

8.1 Contravenções Penais

Como visto no item anterior, o artigo 109, IV, da CRFB, exclui o processamento das contravenções penais, perante a Justiça Federal (vide Decreto-Lei. nº 3.688/41-LCP).

Não bastasse a vedação constitucional, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula nº 38, sedimentou entendimento sobre a matéria: "Compete à Justiça Estadual Comum, na vigência da Constituição de 1988, o processo por contravenção penal, ainda que praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União e suas entidades.".

No entanto, aventa-se a possibilidade de julgamento das contravenções penais, perante a Justiça Federal, quando houver conexidade entre as condutas delituosas e, portanto, estando o processo e julgamento unificados, obrigatoriamente no Judiciário Federal. Também sobre este tópico, há expressa manifestação do Superior Tribunal de Justiça, emanado pela Súmula nº 122: "Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal.".


9. Conclusões

Com a edição da Lei nº 10.259/01, tem-se que (I) o conceito jurídico-penal de infração penal de menor potencial ofensivo - e todas as conseqüências jurídicas decorrentes, foi ampliado pelo legislador ordinário, não se aplicando somente no âmbito da Justiça Federal. Seria uma incoerência interpretar de forma restritiva, dando um tratamento diferenciado somente aos casos abarcados pelo Judiciário Federal. Mais ainda. Ao se entender de forma contraria, afrontar-se-ia os princípios constitucionais da isonomia, da proporcionalidade e da razoabilidade. Não existe justificativa para que um desacato praticado contra um funcionário federal tenha os benefícios da lei e o mesmo crime, só que praticado contra um servidor estadual, não o tenha. (nesse sentido e citando outros autores, como Damásio de Jesus, Luiz Flávio Gomes, Cezar Roberto Bittencourt: Gonçalves, Victor Eduardo Rios. A nova definição de infração de menor potencial ofensivo. in www.direitocriminal.com.br, acessado em 8-8-2001.)

(II) A classificação, adotada doravante, não se aplica tão somente aos crimes, mas também às contravenções penais. Seria um contra senso, em se tratando de técnica legislativa, incluí-las no rol de abrangência da Justiça Federal, se a CRFB as veda taxativamente.

(III) As infrações penais que possuem rito especial, tais como o abuso de autoridade (Lei 4.898/65); o porte de substância entorpecente (Lei nº 6.368/76, artigo 16); prevaricação (artigo 319, CP), ou qualquer outro que a pena máxima não seja superior a dois anos, serão processadas, na esfera policial e judicial, mediante lavratura de termo circunstanciado e rito sumaríssimo, respectivamente.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIRINO, Sérgio Inácio. Lei nº 10.259/01: ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2395. Acesso em: 19 abr. 2024.