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Breves considerações acerca do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC)

Breves considerações acerca do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC)

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O IDC permite ao Procurador-Geral da República, nos casos de graves violações a tais direitos, suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o deslocamento para a Justiça Federal.

Resumo: O presente trabalho, sem a pretensão de esgotar a temática, trata de estudo mais detalhado sobre o incidente de deslocamento de competência, instituto criado com a Emenda Constitucional n. 45, que, tendo por escopo adequar o funcionamento do Poder Judiciário ao sistema de proteção internacional aos direitos humanos, permite ao Procurador-Geral da República, nos casos de graves violações a tais direitos, suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o deslocamento para a Justiça Federal.

Palavras-chave: Incidente de Deslocamento de Competência. Emenda Constitucional n. 45. Poder Judiciário. Graves violações a Direitos Humanos. Justiça Federal.

Sumário: 1. Introdução. 2. O instituto do incidente de deslocamento de competência. 2.1. Conceito e natureza jurídica. 2.2. Finalidade. 2.3. Legitimação e processamento. 3. Outros “deslocamentos” no Direito brasileiro. 4. Conclusão.


1. Introdução:

Pode-se dizer que a Emenda Constitucional n. 45 aborda quatro grandes grupos de temas, quais sejam: a) a democratização do Poder Judiciário; b) a criação de mecanismos que concedam celeridade à prestação jurisdicional; c) o fortalecimento das carreiras jurídicas; e d) a solidificação da proteção aos direitos fundamentais[1].

No que concerne a este último, a emenda traz como inovações a recepção dos tratados internacionais sobre direitos humanos como emendas constitucionais, o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional e a federalização dos crimes de grave violação aos direitos humanos.

Como tema do presente trabalho, cabe destacar a criação do incidente de deslocamento de competência, previsto no art. 109, § 5º, da atual Constituição.

Antes da Reforma do Judiciário, o governo federal, responsabilizado até mesmo frente à opinião pública internacional, dispunha apenas da medida drástica da intervenção nos estados, que nunca foi realizada em razão de violação aos direitos humanos, nos termos do artigo 34, inciso VII, alínea ‘b’ da Constituição.

Agora, em razão do acréscimo do novo parágrafo ao art. 109, da Constituição Federal, o Procurador-Geral da República, e exclusivamente ele, deverá demonstrar que no âmbito estadual ou distrital está havendo descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, e, por conseqüência, grave violação de direitos humanos.

A reforma, é válido ressaltar, não efetuou uma federalização automática da jurisdição, com a mudança nas regras de competência, mas abriu uma possibilidade de deslocamento, através do incidente melhor tratado a seguir.


2. O incidente de deslocamento de competência

2.1. Conceito e natureza jurídica

O incidente de deslocamento de competência é instituto criado com a Emenda Constitucional n. 45, que, adequando o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional aos direitos humanos, permite ao Procurador-Geral da República, nos casos de grave violação a tais direitos, suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça, a competência da Justiça Federal.

De acordo com o Procurador da República Vladimir Aras:

Pode-se conceituar o IDC – Incidente de Deslocamento de Competência como um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte. Cuida-se de ferramenta processual criada para assegurar um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e para preservar um dos princípios pelos quais se guia o País nas suas relações internacionais e obviamente também no plano interno: a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF). [2]

Ademais, sobre a natureza jurídica do instituto, prossegue o autor:

Sendo também, como me parece, uma garantia individual, o IDC tem aplicação imediata, por força do artigo 5º, §1º, da Constituição Republicana. Essa sua natureza decorre da sua própria finalidade, qual seja, a efetiva prestação da jurisdição nos casos de crimes contra os direitos humanos, servindo primordialmente aos interesses da vítima e da sociedade, no ideal de segurança jurídica e de reparação, mas também prestando-se a resguardar a posição jurídica de autores de delitos, no que diz respeito à duração razoável do processo e ao respeito aos seus direitos fundamentais por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal.[3]

Assim, o incidente de deslocamento de competência tem natureza jurídica de garantia à efetividade da prestação jurisdicional e pode ser definido como um incidente processual penal para a modificação da competência nas causas relativas a direitos fundamentais. Ainda, com base na análise feita pelo autor supracitado, pode ser entendido como instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União.

2.2. Finalidade

A luta de organizações de defesa da pessoa humana para federalizar crimes contra os direitos humanos é antiga. Encontram substrato, sobretudo, em alguns casos famosos, ocorridos em várias regiões do país, que causaram uma situação injusta para as vítimas e uma sensação de impunidade constrangedora no cenário internacional. Citam-se como exemplos as chacinas e crimes em Eldorado dos Carajás (1996), em Vigário Geral (1993), na Candelária (1993), no Carandiru (1992) e ainda, o assassinato do ambientalista e seringueiro Chico Mendes (1988).

Este último caso, à semelhança do assassinato da missionária Dorothy Stang, que deu ensejo ao IDC n. 1, ocorreu no norte do país em virtude da luta intensa para modificar as condições em que viviam os seringueiros e para a preservação do ambiente da Floresta Amazônica, propagando um desenvolvimento sustentável. Chico Mendes tinha conhecimento do risco à sua vida, em virtude das ameaças que vinha sofrendo, e, embora as tivesse denunciado, as autoridades competentes quedaram-se inertes.

Como bem observa Flávia Piovesan:

Atualmente, há, em média, 100 casos contra o Brasil pendentes na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na Corte Interamericana, há apenas dois casos contra o Brasil – um deles é o caso do Presídio de Urso Branco em Rondônia (em que houve a concessão de medidas provisionais pela Corte) e o outro é concernente à morte da vítima em clínica psiquiátrica no Rio de Janeiro.[4]

E continua a autora:

O balanço desses casos reflete o desafio da universalização de direitos humanos no Brasil. Basta atentar que a maioria significativa deles envolve a violação de direitos civis – especialmente aos direitos à vida e à integridade física. Destacam-se, nesse sentido, casos denunciando execuções sumárias; detenções ilegais e arbitrárias; julgamentos injustos; tortura; impunidade em face da incapacidade do Estado em investigar, processar e punir; bem como o grave padrão de violação aos direitos de grupo socialmente vulneráveis, como os povos indígenas, as mulheres, as crianças e adolescentes, as populações afro-descendentes, dentre outras.

Cabe atentar que, deste universo de cem casos, apenas dois (concernentes a trabalho escravo) apontam a responsabilidade direta da União em face da violação de direitos humanos. Nos demais casos – 98% deles – a responsabilidade é o Estado. Observe-se que boa parte destes casos pendentes na Comissão poderá ser submetida à Corte Interamericana, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Brasil em dezembro de 1998. [5]

Nesse contexto, a finalidade do incidente de deslocamento de competência é, principalmente, a redução da impunidade e a concreta proteção aos direitos humanos, proporcionando mais um mecanismo de solução interna, reforçando as instituições nacionais.

Em outro artigo de autoria conjunta com Renato Vieira, defende Flávia Piovesan:

Ao contrário do que sustenta a Conamp, com a federalização dos crimes contra os direitos humanos passa a existir uma salutar concorrência institucional para o combate à impunidade e para a garantia de justiça, expondo-se à sociedade civil os poderes e os limites estatais no cumprimento de seus compromissos internacionais e domésticos. De um lado, encoraja-se a atuação estatal sob o risco do deslocamento de competência em razão da matéria, e do outro se aumenta a responsabilidade das instâncias federais para o efetivo combate à impunidade das violações aos direitos humanos.[6]

Para Vladimir Aras, o incidente de deslocamento de competência serve também para assegurar a célere tramitação dos feitos criminais, em cumprimento ao princípio incluído no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal pela EC n. 45/04, e para garantir a efetividade do princípio da obrigatoriedade da ação penal, porquanto caberá quando se revelar a inoperância, deliberada ou não, dos órgãos estaduais de persecução criminal e de prestação jurisdicional. Neste sentido:

O deslocamento de causas de competência da Justiça estadual para a Justiça federal é justamente mais um desses meios que garantem a celeridade da tramitação de processos. Trata-se de uma garantia individual posta à disposição tanto de acusados quanto de vítimas de delitos. Em caso de arquivamentos indevidos, omissão ou demora injustificável na prestação jurisdicional em causas de direitos humanos, podem os interessados provocar a federalização, dirigindo-se ao Procurador Geral da República, que, então, decidirá sobre a instauração do incidente, não sem antes realizar uma apuração preliminar.[7]

Incumbe ressaltar, em observação feita pelo supramencionado autor, que tal instrumento serve também à proteção de autores de delitos, já condenados ou não, que venham a ter seus direitos individuais gravemente violados pelo Estado.

Sintetizando as finalidades do instituto, Flávia Piovesan:

Para os Estados cujas instituições responderem de forma eficaz às violações, a federalização não terá qualquer incidência maior – tão somente encorajará a importância da eficácia destas respostas.

Para os Estados, ao revés, cujas instituições se mostrarem falhas ou omissas, restará configurada a hipótese de deslocamento de competência para a esfera federal, o que: a) assegurará maior proteção à vítima; b) estimulará melhor funcionamento das instituições locais em casos futuros; c) gerará a expectativa de resposta efetiva das instituições federais; e d) se ambas as instituições – estadual/federal – se mostrarem falhas ou omissas, daí, sim, será acionável a esfera internacional – contudo, com a possibilidade de, ao menos, dar-se chance à União de responder ao conflito, esgotando-se a responsabilidade primária do Estado (o que ensejaria a responsabilidade subsidiária da comunidade internacional). Isto equacionará, ademais, a posição da União no contexto de responsabilidade internacional em matéria de direitos humanos.[8]

Assim, como foi bem delineado no julgamento do IDC n. 1/PA pelo Superior Tribunal de Justiça, é requisito essencial do deslocamento de competência a incapacidade do Estado em cuidar do crime, sob pena de se caracterizar uma ingerência indevida nos assuntos da entidade federativa.

Conforme se observa, no IDC n. 1/PA o Superior Tribunal de Justiça afastou a possibilidade do deslocamento em virtude de faltar requisito essencial, qual seja, a omissão da entidade federativa na investigação, julgamento e punição dos culpados. Entendeu-se que a instituições do Estado do Pará foram eficientes e céleres no cumprimento de suas funções, rejeitando-se o pedido feito pelo Procurador-Geral da República. 

O contrário ocorreu no IDC n. 2/DF. Este foi julgado procedente, o caso do homicídio do ex-vereador Manoel Mattos foi federalizado e passou a tramitar perante a Justiça Federal da Paraíba.

2.3. Legitimação e processamento

De acordo com o art. 109, § 5º, da Constituição Federal, o único legitimado para promover o incidente de deslocamento de competência é o Procurador-Geral da República.

Na opinião de Vladimir Aras, embora seja desejável que outros sujeitos possam provocar o incidente, até mesmo para garantir a efetividade contra eventuais descasos do legitimado, é acertada a escolha do Procurador-Geral da República, pois:

Além de ser o chefe do Ministério Público da União, esta autoridade republicana também dirige o Ministério Público Federal e é o promotor natural perante o Supremo Tribunal Federal, o que vale dizer que ali atua como representante máximo do Ministério Público Nacional, falando em último grau em nome do MPF, do MPM, do MPDFT e do Ministério Público dos Estados. Ou seja, no STF e também no STJ, o Procurador-Geral é o dominus litis por excelência (art. 129, I, da CF). [9]

Igualmente, para o autor:

A legitimação do PGR também se justifica na medida em que, por meio do incidente, o Chefe do Ministério Público Federal age como ombudsman nacional, zelando “[...] pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”. Assim, propondo o incidente o Procurador-Geral da República nada mais faz do que promover medidas para a garantia de direitos fundamentais violados pelos poderes públicos.[10]

Portanto, cabe ao Procurador-Geral da República, na condição de promotor natural, em qualquer fase da investigação ou do processo, suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, o incidente de deslocamento de competência.

Aos demais interessados, cabe provocá-lo para que ele promova o deslocamento, em virtude do direito de petição, assegurado constitucionalmente no art. 5º, inciso XXXIV. O Procurador-Geral da República, então, deverá averiguar se estão presentes os pressupostos do incidente, ouvidas as autoridades envolvidas, sem prejuízo de outras diligências.

Mais uma vez, acertada foi a opção do legislador pelo Superior Tribunal de Justiça, já que este detém a competência constitucional para a solução conflitos de competência envolvendo a juízes federais e juízes estaduais. Neste sentido, também se manifestou o autor supracitado:

A opção do legislador constituinte derivado pelo STJ (e não pelo STF) no julgamento do IDC deve-se ao próprio regime de distribuição de competências dos tribunais superiores na Constituição de 1988, pois o STJ, tribunal encarregado da uniformização da interpretação da lei federal em todo o País, é a corte competente para decidir conflitos de competência entre juízes vinculados a tribunais diversos (art. 105, inciso I, alínea ‘d’, da CF). E é exatamente uma espécie de “conflito” de competência que o STJ decide quando julga o incidente de deslocamento, pois, nos casos de grave violação a direitos humanos previstos em tratados internacionais, há uma competência virtual ou potencial da Justiça Federal que se pospõe à competência tradicional da Justiça Estadual, para esses mesmos delitos, caso esta se revele ineficiente. [11]

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça não existe, ainda, norma regimental regulamentando o procedimento do Incidente de Deslocamento de Competência. Contudo, em 18 de fevereiro de 2005, foi editada a Resolução n. 06, dando início às mudanças introduzidas pela Reforma do Judiciário. Tal resolução atribui à Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça o julgamento do incidente.

Entretanto, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 6647/2006, regulamentando o § 5º do art. 109 da Constituição Federal, para disciplinar o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal nas hipóteses de graves violações aos direitos humanos.

O referido projeto foi apresentado em 21 de fevereiro de 2006, pelo Senado Federal (Comissão Mista Especial/Reforma do Judiciário), e no dia 1º de fevereiro de 2007 foi encaminhado à Coordenação de Comissões Permanentes (CCP) para a publicação do parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da relatora Iriny Lopes (PT-ES), pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação, com emendas, sendo esta a última movimentação.[12]

As emendas apresentadas pela relatora não alteraram o teor da proposta. Consistem na inclusão do artigo 1º, renumerando-se os seguintes, e alteração no art. 5º (art. 4º com a numeração anterior). De acordo com a primeira emenda, o art. 1º teria a seguinte redação:

Art. 1º Esta Lei regulamenta o § 5º do art. 109 da Constituição Federal para disciplinar o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal nas hipóteses de graves violações aos direitos humanos.

Destarte, consoante o projeto, para que o deslocamento seja feito, a petição inicial deve conter a exposição do fato ou da situação que constitua grave violação de direitos humanos, a indicação do tratado internacional cujas obrigações se pretende assegurar e as razões que justifiquem o deslocamento de competência para a Justiça Federal (art. 3º). A petição inicial inepta, não fundamentada ou manifestamente improcedente será liminarmente indeferida pelo relator (art. 4º). Dessa decisão, caberá o recurso de agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do incidente (art. 4º, parágrafo único).

Admitido o incidente, o relator deverá requisitar informações por escrito ao Tribunal de Justiça, à Procuradoria-Geral de Justiça e à Secretaria de Segurança do Estado onde ocorreu a grave violação dos direitos humanos, sendo tais informações prestadas no prazo de 30 dias (art. 5º). Observe-se que a emenda da relatora na CCJ modificou o termo para “Secretaria Estadual responsável”.

Ademais, admitiu-se expressamente a figura do amicus curiae no procedimento, pois o relator, considerando a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de outras entidades, mesmo que não tenham interesse estritamente jurídico no processo, dentro do prazo previsto para a apresentação das informações (art. 5º, § 3º). Terminado esse prazo, os autos serão conclusos ao relator que, em 15 dias, pedirá a marcação do julgamento (art. 6º).

A proposta esclarece, ainda, que enquanto o pedido de deslocamento de competência não for julgado, o inquérito ou o processo terá prosseguimento regular perante as autoridades estaduais (art. 5º, § 2º).

Por fim, caso o pedido seja julgado procedente, o Superior Tribunal de Justiça determinará o imediato envio do inquérito ou do processo ao juiz ou tribunal federal, que decidirá sobre o aproveitamento dos atos já praticados perante a justiça estadual, observando o princípio da economia processual (art. 7º). No caso de improcedência, não será admitido outro pedido sem a descrição de fatos novos que, por sua relevância, justifiquem o deslocamento de competência (art. 7º, parágrafo único).


3. Outros “deslocamentos” no Direito brasileiro

Conforme se observa, o deslocamento de competência não é inovação em nosso ordenamento jurídico.

Primeiramente, trazemos o instituto processual penal do desaforamento, hipótese de deslocamento de competência prevista somente nos processos do Tribunal do Júri, através da qual o réu será submetido a julgamento perante comarca diversa.

Em suma, com fundamento nos arts. 427 e 428 do Código de Processo Penal, poderá haver o desaforamento nas seguintes situações: quando o interesse da ordem pública o determinar; se houver dúvida sobre a imparcialidade do Júri ou sobre a segurança pessoal do réu ou se o julgamento não se realizar em razão do comprovado excesso de serviço no período de seis meses, contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia, desde que para a demora não haja concorrido o réu ou a defesa.

Neste último caso, o desaforamento deverá ser requerido pelo réu ou pelo membro do Ministério Público, em todos os outros também poderá haver representação do juiz, sempre com audiência da defesa, nos termos da súmula 712 do Supremo Tribunal Federal: “é nula a decisão que determina o desaforamento de processo da competência do Júri sem audiência da defesa”.

Para o interesse da ordem pública, é preciso que haja fundados motivos de que a ocorrência do julgamento causará riscos à tranqüilidade no local da comarca onde o júri seria realizado. No tocante à imparcialidade do corpo de jurados, motivo principal para o deferimento do pedido, não bastam meras suposições de parcialidade, é preciso que reste demonstrada a tendência da população local a uma determinada postura, em razão do repúdio e da comoção que o crime causou.

Acerca dos motivos ensejadores do desaforamento, esclarece Guilherme de Souza Nucci:

Não basta, para essa apuração, o sensacionalismo da imprensa do lugar, muitas vezes artificial e que não reflete o exato sentimento das pessoas. O juiz pode apurar tal fato ouvindo as autoridades locais (polícia civil, polícia militar, Ministério Público, entre outros). Pode-se, ainda, incluir nesse contexto o volume excessivo de feitos a ser julgado, que, com certeza, determinará atraso considerável, provavelmente superior a um ano, causando revolta e grande possibilidade de rebelião nos estabelecimentos penitenciários, especialmente no que se refere aos réus presos. Assim, vislumbrando tal hipótese, pode o magistrado ou qualquer das partes solicitar o desaforamento. Essa situação não afasta a aplicação, obviamente, do processo levar mais de um ano para ser julgado, como previsto no parágrafo único do art. 424. Entretanto, a diferença entre um motivo e outro é que, no parágrafo único, prevê-se, unicamente, o atraso de mais de um ano, sem a necessidade de prova de efetivo comprometimento à ordem pública.[13]

Mais adiante, afirma:

A notoriedade da vítima ou do agressor não é, por si só, motivo suficiente para o desaforamento. Em muitos casos, homicídios ganham notoriedade porque a vítima ou o agressor – ou ambos – são pessoas conhecidas no local da infração, certamente provocando o debate prévio na comunidade a respeito do fato. Tal situação deve ser considerada normal, pois é impossível evitar que pessoas famosas ou muito conhecidas, quando sofrem ou praticam crimes, deixem de despertar a curiosidade geral em relação ao julgamento. [14]

A decisão do desaforamento pertence ao tribunal de hierarquia jurisdicional competente, pois importa em modificação de competência, envolvendo comarcas distintas e, conseqüentemente, juízos distintos. Deferida a alteração de competência o processo deverá ser encaminhado à comarca mais próxima.

Sobre a constitucionalidade do instituto, também se pronunciou Guilherme Nucci:

Não há ofensa ao princípio do juiz natural, porque é medida excepcional, prevista em lei, e válida, portanto, para todos os réus. Aliás, sendo o referido princípio uma garantia à existência do juiz imparcial, o desaforamento se presta justamente a sustentar essa imparcialidade, bem como a garantir outros importantes direitos constitucionais (como a integridade física do réu e a celeridade no julgamento). [15]

Além do desaforamento previsto no processo penal, verifica-se a previsão do art. 144, § 1º, da Constituição Federal, segundo o qual a polícia federal destina-se a apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija representação uniforme, segundo se dispuser em lei.

Nessa esteira, a Lei nº. 10.446/02 possibilita ao Departamento de Polícia Federal do Ministério de Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição, em especial das polícias militares e civis dos Estados, proceder à investigação de determinadas infrações penais, constando no rol as relativas à violação aos direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte.

A diferença substancial para a inovação da EC n. 45 de que aqui se trata é que, não há, na hipótese da Lei n. 10.446/02, a substituição da polícia civil pela polícia federal, mas atuação conjunta e simultânea das duas instituições. Já no tocante ao incidente de deslocamento de competência, em que o Ministério Público Federal e a Justiça Federal efetivamente substituem os respectivos órgãos estaduais.

Por último, como medida mais traumática, visando assegurar a observância dos direitos da pessoa humana, o art. 34, inciso VII, alínea b, da Constituição Federal, permite à União intervir nos Estados e no Distrito Federal, mitigando a autonomia dos entes federativos, preconizada no art. 18, caput, da Lei Maior.

 Um dos pressupostos para a decretação da intervenção federal pelo Chefe do Executivo é a ação direta de inconstitucionalidade interventiva, proposta pelo Procurador-Geral da República, perante o Supremo Tribunal Federal. Esta será indispensável nos casos em que se almeja a decretação da intervenção para assegurar a observância aos chamados princípios sensíveis constitucionais, quais sejam: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações de serviços públicos de saúde.

Consoante observação de Alexandre de Moraes:

A ação direta interventiva possui dupla finalidade, pois pretende a declaração de inconstitucionalidade formal ou material da lei ou ato normativo estadual (finalidade jurídica) e a decretação de intervenção federal no Estado-membro ou Distrito Federal (finalidade política), constituindo-se, pois, um controle direto, para fins concretos, o que torna inviável a concessão de liminar.[16]

Ainda sobre a ADIN interventiva, o mesmo autor afirma:

A decretação da intervenção federal será sempre realizada pelo Presidente da República (CF, art. 84, X), porém na presente hipótese dependerá de requisição do Supremo Tribunal Federal, cujo Decreto se limitará a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade. Caso não seja suficiente, será decretada a intervenção, rompendo-se momentaneamente com a autonomia do Estado-membro.[17]

A intervenção federal, embora consista em meio idôneo para a proteção dos direitos humanos, por ser medida drástica, foi relegada quase ao esquecimento. Para atender aos mesmos objetivos, o incidente de deslocamento de competência mostra-se como uma forma mais sutil, entretanto, por ser instituto relativamente recente, só foi utilizado duas vezes, no caso do homicídio da missionária Dorothy Stang e do advogado e vereador pernambucano Manoel Mattos, assassinado na cidade de Pitimbu/PB.


4. Conclusão:

Um dos grandes desafios da Reforma do Judiciário é transpor o abismo que existe entre o discurso teórico e a efetivação dos direitos fundamentais. Assim, dentre uma série de medidas, o incidente de deslocamento de competência pode ser entendido como um importante passo legislativo na concreção desses direitos, pois representa mais um instrumento do ordenamento jurídico, a fim de que os tribunais internos respondam eficientemente às graves violações.

Ademais, serve à preservação da responsabilidade internacional do Estado brasileiro perante as cortes e órgãos internacionais e ao estímulo a uma concorrência saudável entre os entes federativos no atinente a assegurar uma eficaz prestação jurisdicional. Todavia, esta última função só será efetivamente cumprida com a adequada utilização do incidente, respeitada a excepcionalidade da medida, sob pena de caracterizar inegável arbitrariedade e ingerência desmedida nos assuntos internos dos Estados-membros.


REFERÊNCIAS:

ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 6647/2006, de 21 de fevereiro de 2006. Disponível em: <www.camara.gov.br/proposicoes>.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Federalização de crimes contra os direitos humanos: o que temer? Boletim IBCCRIM. São Paulo, maio / 2005, nº 150.

RENAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo. Primeiro Passo. In: RENAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005.

TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. (Org.). Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.


Notas

[1] RENAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo. Primeiro Passo. In: RENAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo (Org.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 5.

[2] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> . Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

[3] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> . Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

[4] PIOVESAN, Flávia. Reforma do Judiciário e Direitos Humanos. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. (Org.). Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, p. 78.

[5] Idem, p. 78.

[6] PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Federalização de crimes contra os direitos humanos: o que temer? Boletim IBCCRIM. São Paulo, maio / 2005, nº 150. p. 123.

[7] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo. Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

[8] PIOVESAN, Flávia. Reforma do Judiciário e Direitos Humanos. In: TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. (Org.). Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005, pp. 80/81.

[9] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> . Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

[10] Idem.

[11] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> . Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

[12] BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 6647/2006, de 21 de fevereiro de 2006. Disponível em: <www.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em: 9 de abril de 2013.

[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 693.

[14] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 694.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 693.

[16] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 630.

[17] MORAES, Alexandre de. op. cit., pp. 630-631.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Marcela Baudel de. Breves considerações acerca do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3590, 30 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24267. Acesso em: 24 abr. 2024.