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O crime organizado transnacional e suas consequências socioeconômicas

O crime organizado transnacional e suas consequências socioeconômicas

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As organizações criminosas, antes de serem algo residual ou de atuação localizada, têm-se transformado em um gigante mecanismo paraestatal, um contraordenamento jurídico.

Introdução

Não é nova a certeza de que o Direito visa assegurar a coexistência pacífica entre os homens, de modo que desde que o homem sai do seu estado de natureza e passa a viver em sociedade, fez-se necessário a existência de uma ordem normativa - entenda-se como uma ordem que se impõe através de imperativos legais sob pena de sanções – que impeça a guerra de todos contra todos, valorando determinados bens tidos como indispensáveis para a coexistência social, e impondo jurígenos efeitos às condutas que atentarem contra tais bens, de forma que cada um tenha a cognição de que seu direito se estende até onde não viola o de outrem.

Conforme Zaffaroni e Pierangeli[1],

a função de garantia de coexistência se cumprirá na medida em que se garanta a cada um a possibilidade de dispor – de usar – o que considere necessário para a sua auto-realização.” Temos, então, que pode-se denominar determinado ato humano de “ilícito”, na medida em que tal conduta venha a causar uma violação a um bem juridicamente tutelado por qualquer dos ramos das ciências jurídicas, porquanto causa a outrem empecilho ou até mesmo impossibilidade da fruição normal de tal bem.

Assim, nem toda conduta humana contrária ao direito [antijurídica lato sensu] pode ser denominada um “delito”, embora possa ser afirmado que todo delito é uma conduta antijurídica. Neste esteio de raciocínio, pode-se, ainda, afirmar que toda conduta revés ao direito sofrerá, de alguma forma, uma reprimenda, uma conseqüência jurídica para o “entre humano violador”, e que, dependendo do paradigma que se observa à lesão a este bem se estabelecerá qual ou quais ramos do direito serão responsáveis pela tutela, ou melhor, pelo sancionamento da conduta; se civil, administrativa ou penal.

A lei penal distingue-se das demais existentes nos ordenamentos jurídicos mundiais posto que é a única que faz uma correlação, associação entre infração penal [delito] a uma coerção penal, que, na sua maioria das vezes, exterioriza-se em uma pena.

O Direito Penal, então, busca tutelar bens jurídicos de uma forma essencialmente única e residual, porquanto tais bens podem se encontrar já devidamente tutelados por outros ramos jurídicos e, apesar disto, as sanções extra penais previstas [ressarcimento e/ou reparação] não se fazem suficientes para promover a segurança jurídica almejada.

Em síntese, temos que:

[...] o direito penal tem, como caráter diferenciador, o de procurar cumprir a função de prover à segurança jurídica mediante a coerção penal, e esta, por sua vez, se distingue das restantes coerções jurídicas, porque aspira assumir um caráter especificamente preventivo ou particularmente reparador[2].

O século passado foi marcado por vários fenômenos[3] que, aliados, refletiram-se diretamente na forma de organização da sociedade mundial, e esta pôs em prova o papel dos Estados Nacionais enquanto garantidores da paz, mediante a justiça social.  E o Direito Penal ocupa lugar de destaque no que diz respeito à atuação do Estado nesta nova “ordem mundial”.

O que importa ressaltar é que na sociedade contemporânea, a globalização econômica dinamizou as relações sociais criando novas realidades, e ao lado destas novas realidades surgiram novas demandas para que determinados bens passem a reclamar uma proteção jurídico-penal, outrora inexistente.

Conforme Sánchez[4],

[...] a sociedade atual parece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, repercussões diretas em um incremento do bem-estar individual.[...] O progresso técnico dá lugar, no âmbito da delinqüência dolosa tradicional [a cometida com dolo direto ou de primeiro grau], a adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos; assim mesmo, surgem modalidades delitivas dolosas de novo cunho que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. [...] Nessa medida, é inegável a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade econômica organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados).

Essa nova demanda de amparo jurídico penal não se limita ao âmbito interno do Estado; em uma sociedade global, os bens tendem a possuir amplitude mundial e sua defesa só será eficiente na medida em que o Estado possua meios efetivos de garantia destes, em âmbito, também, mundializador.

O traço marcante da mudança paradigmática do papel do Direito Penal sociedade contemporânea é a

alteração progressiva na concepção do Direito Penal subjetivo (ius puniendi): de uma situação em que se destacava sobretudo “a espada do Estado contra o delinqüente desvalido”, se passa a uma interpretação do mesmo como “a espada da sociedade contra a delinqüência dos poderosos. Isso provoca uma transformação conseqüente também no âmbito do Direito Penal objetivo (jus penale): em concreto, se tende a perder a visão desde como instrumento de defesa dos cidadãos diante da intervenção coativa do Estado. E, desse modo, a concepção da lei penal como “Magna Charta” da vítima aparece junto à “Magna Charta” do delinqüente; e isso sem prejuízo de que esta última possa ceder prioridade àquela.[5]

Sánchez[6] demonstra esta necessidade na medida em que,

o momento atual, em suma, o tema no debate social não é a criminalidade dos despossuídos, letmotiv da doutrina penal durante todo o século XIX e boa parte o séc. XX, senão, preponderantemente, a criminalidade dos poderosos e das empresas (crimes of the powerful – corporate and business crime). [...] Daí a aposta, por uma expansão do Direito Penal, que conglobe a relativização dos princípios de garantia e regras de imputação no âmbito da criminalidade dos poderosos, sendo criticável em si mesma, pode incorrer ademais no erro adicional de repercutir sobre a criminalidade em geral, incluída a dos powerless, algo que aparentemente se ignora na hora de propor reformas antigarantistas.

Seria perfunctório afirmar, categoricamente, que os processos globalizantes que atuaram na forma de organização da sociedade, da política e da economia foram essencialmente negativos. Sem dúvida, há pontos positivos importantes que merecem ser desvelados, porém, a mudança do modelo panóptico para o modelo sinóptico de poder trouxe algumas alterações positivas, dentre as quais se destaca a mudança do enfoque de uma considerável parte da criminologia de esquerda em reconhecer que os sujeitos das classes inferiores da sociedade também são titulares reais de bens jurídicos – aqui destacam-se os direitos difusos e coletivos -  e que, hodiernamente, tais indivíduos afiguram-se muito mais como vítimas em potencial do que como sujeitos em potencial. 

A observação de Franco[7] é esclarecedora ao dizer que

os deletérios efeitos da globalização da economia, centrada nas regras do fundamentalismo do mercado, não fecharam, contudo, todos os espaços de reação, nem tolheram a possibilidade de encontrar saídas. [...] Os estados periféricos e, portanto, os menos poderosos do ponto de vista econômico, não querem perder as eventuais vantagens da globalização, mas não querem ser, por ela, absorvidos, nem irremediavelmente sugados. [...] É evidente que nesta perspectiva, os direitos fundamentais e, com eles também, os direitos sociais – que os Estados-nações, isoladamente, se decuram na atualidade, deixando por falta um adequado sistema de garantias, de prestá-los positivamente – terão condições de encontrar um campo mais largo de garantia “fora do velho esquema estatista, mesmo contra os próprios Estados. Essa é a chance, criada pelo processo globalizador e que nenhum defensor dos direitos humanos fundamentais e dos direitos sociais pode desperdiçar.

Assim, os únicos gestores da moral coletiva do mundo moderno, tradicionalmente impregnados de preconceitos burgueses-conservadores dividem espaço, com equilíbrio de forças, no mundo contemporâneo, com as associações ecológicas, de consumidores, feministas, de vizinhos, de bairro, pacifistas – as ONGs em geral – que buscam protestar contra a violação dos direitos humanos, em desfavor das classes menos favorecidas economicamente; uma força de pressão importantíssima para a ampliação do Direito Penal Internacional para a tutela dos seus interesses.

Outrossim, é reconhecida a necessidade urgente de proteção das camadas mais inferiores, e até mesmo da classe média, contra a delinqüência dos poderosos. Importante a lição de Sanchez[8] quando diz que a correlação única entre a delinqüência e o proletariado se mostra absurda no mundo contemporâneo, de forma que esta classe, outrora “perigosa e merecedora de uma constante vigilância” é que reclama uma maior proteção, frente à criminalidade dos poderosos.

O Guia Legislativo para a Aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Econômica Organizada Transnacional[9] é bem esclarecedor de todo este problema ao dizer que,

num clima de crescente preocupação com grupos e operações de criminalidade econômica organizada que ultrapassam as fronteiras nacionais, um número cada vez maior de países tem vindo a estudar a adoptar novas leis, medidas e estratégias para fazer face a este problema. Quanto aos autores, as vítimas e os instrumentos ou produtos do crime se localizam ou atravessam a diversas jurisdições, a abordagem tradicional dos serviços responsáveis pela aplicação da lei, centrada apenas a nível nacional, acaba inevitavelmente frustrada. Quando os criminosos são cosmopolitas, as intervenções não podem ser meramente provinciais. Quando os tipos de crimes transnacionais e o número de associações criminosas parece estar a aumentar, nenhum país fica imune, pelo o que os Estados tendem a auxiliar-se mutuamente na luta contra esses delitos sofisticados e perigosos. Quando os rápidos progressos tecnológicos e uma impressionante mobilidade de pessoas, bens e capitais são aproveitados por criminosos hábeis, que agem sozinhos ou, mais perigoso ainda, em associação com outros, a aplicação da lei não pode ficar para trás. [...] A abundância de meios dos grupos criminosos a influência que estes podem exercer comprometem os processos políticos, as instituições democráticas, os programas sociais, o desenvolvimento econômico e os direitos humanos. As vítimas e testemunhas sentem-se intimidadas e duplamente vitimizadas, caso não seja feita justiça. A mensagem que passa para a opinião pública é a de que determinados crimes compensam, mesmo que os infractores sejam apanhados e punidos com as penas adequadas. 

E continua, mostrando a deficiência dos Estados Nacionais no combate eficaz da criminalidade transfronteiriça organizada, dizendo que,

os acordos e medidas bilaterais e regionais reflectem a consciência de que a criminalidade transnacional apenas pode ser combatida eficazmente através da colaboração e assistência mútua dos serviços de aplicação da lei dos Estados envolvidos ou afectados. Medidas pontuais, tratados de auxílio judiciário e tratados de extradição podem dar um contributo e apresentar alguns resultados positivos, mas são insuficientes perante os desafios atuais.[10]


Conceito de Crime Organizado no Direito Comparado

Na França, o crime organizado é definido como uma associação de malfeitores; é todo grupo formado ou que tende a se estabelecer com vistas à preparação, caracterizada por um ou mais fatos materiais, de um ou vários crimes ou de vários delitos puníveis com o mínimo de cinco anos de prisão[11].

Na Federação Russa, considera-se crime organizado no caso em que for perpetrado por um grupo [ou organização] coeso e organizado, criado para a prática de crimes graves ou especialmente graves ou resultante da combinação de grupos organizados para o mesmo fim.[12]

O Código Penal Polaco, em seu art. 258, define o crime organizado como o que advém da participação em um grupo organizado ou associação que tenha finalidade prática de infrações.

No Código Criminal Canadense[13], o crime organizado está intimamente ligado à noção de “conspiração”, presente nos ordenamentos jurídico-penais em que se aplica a commom law, preconizando que,

467.1 [...] “organização criminosa” compreende-se o grupo, qualquer que seja a forma de sua organização, que:

(a)               é composta por três ou mais pessoas que se encontrem no Canadá ou no estrangeiro; e

(b)               tenha um dos seus propósitos principais ou atividades principais a facilitação ou a prática de uma ou mais sérias ofensas que, uma vez cometidas, resultariam direta ou indiretamente, no proveito material, incluindo o proveito financeiro pelo grupo ou por qualquer membro que faça parte do grupo.

No Código Norte-Americano[14], a conceituação de crime organizado é a seguinte:

Sec. 371 [Conspiração para cometer infração ou defraudar os Estados Unidos]. Se duas ou mais pessoas conspirarem, conjuntamente, para cometer qualquer ofensa contra os Estados Unidos, para defraudar os Estados Unidos ou qualquer de suas agências seja de que maneira for e por qualquer propósito, e uma ou mais pessoas ajam tendo em vista alcançar o objetivo da conspiração, a cada uma delas será aplicada uma multa sob a égide deste artigo ou a pena de prisão não por mais de cinco anos, ou ambas as penas. Se, contudo, a infração, cuja prática seja objeto da conspiração, constitua apenas uma contra-ordenação, a pena aplicável à conspiração não excederá a pena máxima aplicada à contra-ordenação em causa.

Sec. 1962 [Atividades Proibidas].

(a)               Será ilegal que qualquer pessoa tenha recebido qualquer rendimento derivado, direta ou indiretamente, de uma atividade regular de extorsão ou da coleta de uma dívida ilegal em que tal pessoa tenha participado a título principal na acepção da seção 2, do Título 18, do Código dos Estados Unidos, utilize ou invista, direta ou indiretamente, qualquer parte deste rendimento, ou dividendos deste rendimento, na aquisição de qualquer participação ou no estabelecimento ou operação de qualquer empresa envolvida ou cujas atividades afetem o comércio estadual ou internacional. A aquisição de títulos imobiliários no mercado aberto para fins de investimento, e sem intenção de controlar ou participar no controle da entidade emissora, ou de ajudar alguém a fazê-lo, não será considerada ilegal nos termos da presente subseção caso os títulos imobiliários da entidade emissora detidos pelo comprador, membros da sua família imediata e seus cúmplices em qualquer atividade regular de extorsão ou coleta ilegal não totalizem, no seu conjunto, um por cento dos valores imobiliários remanescentes de qualquer classe e não confiram, legalmente ou na prática, o poder de eleger um ou mais diretores da entidade emissora.

(b)               Será ilegal que qualquer pessoa, através de uma atividade regular de extorsão ou através da coleta de uma dívida ilegal, adquira ou mantenha, direta ou indiretamente, qualquer participação ou controle em qualquer empresa envolvida, ou cujas atividades possam afetar o comércio interno e internacional.

(c)               Será ilegal que a pessoa ou serviço de qualquer empresa envolvida, ou cujas atividades possam afetar o comércio interestadual ou interno, ou a ela associada, dirija ou participe, direta ou indiretamente, na direção dos negócios desta empresa, através de uma atividade regular de extorsão ou de coleta de dívidas ilegais.

(d)               Será ilegal que qualquer pessoa conspire a fim de violar quaisquer das disposições contidas nas subseções [a], [b] ou [c], da presente seção.

De acordo com as informações trazidas pelo Guia Legislativo para a Aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Econômica Organizada Transnacional[15]:

o Chile criminaliza até a não comunicação das atividades de uma organização criminosa às autoridades [excepto se um membro da organização for familiar da pessoa em causa].

A Nova Zelândia não exige a qualidade de membro da organização criminosa, mas apenas a promoção ou o favorecimento internacional de suas atividades.

Vários países tipificaram atividades específicas relativas a diversas formas de prestação de assistência ou apoio financeiro a uma organização criminosa [por exemplo, o Equador, a Colômbia, a Alemanha, o Uruguai e a Venezuela]. Algumas leis visam os indivíduos que fornecem à organização armas ou munições [por exemplo, o Equador, o Haiti, a Colômbia, a Hungria, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela], instrumentos do crime [por exemplo, o Haiti], locais de reunião [por exemplo, o Equador], ou qualquer outro serviço [por exemplo, o Equador e o Paraguai]. [...] em diversos países, a participação numa organização de relativamente grandes dimensões constitui circunstância agravante: Itália e Uruguai.

No Primeiro simpósio[16] organizado em nível mundial pela Interpol, ficou definido que se constituía uma organização criminosa qualquer empresa ou grupo de pessoas engajados em uma atividade ilegal contínua, que tem como objetivos principais a geração de lucros, independentemente das fronteiras nacionais.

Posteriormente, a Interpol, através da sua Unidade Contra o Crime Organizado, redefiniu tal conceito preconizando que há o crime organizado quando qualquer grupo, que tenha uma estrutura corporativa, tenha o objetivo principal de obter dinheiro por meio de atividades ilícitas, freqüentemente mantido por força da intimidação[17].

De acordo com anexo I, artigo 2, do relatório da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional[18], executado em Palermo, na Itália, entre os dias 12 e 15 de dezembro de 2000, uma organização criminosa pode ser conceituada como:

um grupo estruturado de três ou mais pessoas, com caráter de permanência, que age com o objetivo de cometer um ou mais crimes sérios ou ofensas estabelecidas de acordo com esta Convenção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, benefícios financeiros ou materiais.

De acordo com o Fundo Nacional Suíço de Pesquisa Científica[19]:

Existe crime organizado [transcontinental] quando uma organização cujo funcionamento é semelhante a uma empresa internacional pratica uma divisão muito aprofundada de tarefas, dispõe de estruturas hermeticamente fechadas, concebidas de maneira metódica e duradoura, e procura obter lucros tão elevados quanto possível cometendo infrações e participando da economia legal. Para isso, a organização recorre à violência, à intimidação, e tenta exercer a sua influência na política e na economia. Ela apresenta geralmente uma estrutura fortemente hierarquizada e dispõe de mecanismos eficazes para impor suas regras internas. Seus protagonistas, além disso, podem ser facilmente substituídos.


Características das Organizações Criminosas

Segundo Ziegler[20], uma organização criminosa se caracteriza por ser uma organização econômica, nos moldes de uma organização capitalista, estruturada sob o supedâneo da maximização dos lucros e controle vertical da produtividade, assemelhando-se a qualquer outra empresa multinacional, comercial ou bancária, legal.

A Academia Nacional de Polícia Federal do Brasil estabelece, como essenciais, dez características do crime organizado, que são:

i. Planejamento empresarial;

ii.  Antijuridicidade;

iii.  Diversidade de área de atuação;

iv.   Estabilidade de seus integrantes;

v. Cadeia de comando;

vi.  Pluralidade de agentes;

vii. Compartimentação[21];

viii.  Códigos de honra;

ix.   Controle Territorial;

x.   Fins lucrativos

Mingardi[22] enumera quinze características, que singularizam as organizações criminosas. São elas:

i.   Prática de atividades ilícitas;

ii. Atividade clandestina;

iii.    Hierarquia organizacional;

iv. Previsão de lucros;

v.  Divisão do trabalho;

vi.  Uso da violência.

vii.  Simbiose com o Estado;

viii. Mercadorias ilícitas;

ix. Planejamento empresarial;

x. Uso da intimidação;

xi.   Venda de serviços ilícitos;

xii. Relações clientelistas;

xiii.  Presença da lei do silêncio;

xiv. Monopólio da violência;

xv. Controle territorial.

Para Gomes[23], as características marcantes da máfia transnacional, são:

Hierarquia estrutural, planejamento empresarial, claro objetivo de lucros, uso de meios tecnológicos avançados, recrutamento de pessoas, divisão funcional de atividades, conexão estrutural ou funcional com o poder público e/ou com o poder político, oferta de prestações sociais, divisão territorial das atividades, alto poder de intimidação, alta capacidade para fraude, conexão local, regional, nacional ou internacional com outras organizações etc.

Por se tratar de uma “empresa” de caráter multinacional – que, cada vez mais, vem se tornando uma corporação transnacional ou uma companhia global – uma organização criminosa, também se beneficiou, sobremaneira, tanto da revolução tecnológica que culminou com a criação e expansão das telecomunicações – em especial, da Internet – bem como da expansão do capitalismo em escala global. Ziegler[24] deixa claro:

Para o crime organizado, a Internet é um presente do céu. [...] Os cartéis criminosos de todo mundo têm ao seu dispor informações de alto nível. A Internet representa um equipamento auxiliar precioso para a maioria das comunicações entre diferentes cartéis criminosos, especialmente os que se associam em joint-ventures internacionais. Suas comunicações são protegidas por programas de criptografia praticamente impenetráveis. Fortemente marcados pela racionalidade americana, os novos chefões surgidos no pós-guerra não se vinculam mais – em primeiro lugar – ao controle da população ou da terra. [...] Os senhores do crime e seus cúmplices prosperam naturalmente nos “principados” que enveredaram pela modernização acelerada, desfrutando de uma inserção rápida no mercado mundial.

Importantíssima é a lição de Fernandes&Fernandes[25] ao inferirem que é

inquestionável, por outro lado, que, hoje, a atuação do crime organizado é praticamente universal. A interligação da economia mundial permitiu ao crime organizado a globalização de suas “atividades”, mormente após a queda do comunismo soviético e da dissolução das fronteiras da Europa por conseqüência da formação da comunidade econômica européia. Com isto a Máfia, seja siciliana ou sua co-irmã norte-americana, tende a crescer ainda mais [...]

Neste flanco, as organizações criminosas tendem a ser apátridas e exercer as suas atividades, através de “filiais” em vários locais do globo, simultaneamente, sem nenhuma relevância quanto à disposição geográfica dos Estados onde atuam, bastando, para tanto, que o mercado seja “promissor”. Tomemos como exemplo a Máfia Siciliana que atua na Rússia, França, Holanda, Inglaterra e Alemanha. Além disso, as máfias tendem a firmar “alianças” entre si cujo objetivo é a dominação, cada vez maior, de mercados ao longo do globo terrestre, tornando praticamente impossível a defesa interna dos Estados contra as suas atividades[26].

Outro traço particularizante de uma organização criminosa é a forma com que estas se organizam internamente: há uma hierarquia meticulosamente organizada, na qual os seus participantes desenvolvem atividades de acordo com suas aptidões, todas convergentes para a maximização dos lucros e controle vertical da produtividade, o que é feito tanto de forma lícita como ilícita. Utilizam-se, para tanto, de um complexo planejamento empresarial mediante a divisão de tarefas[27], e de tecnologia de ponta, de forma que uma organização criminosa pode ser comparada com as mais complexas e avançadas empresas multinacionais lícitas da atualidade.

Galbraith[28] nos ensina que a essência do sucesso de uma organização criminosa encontra-se na divisão do trabalho, totalmente vinculado e submisso aos objetivos da empresa. Esta sujeição dos indivíduos aos desígnios da máfia sugere a existência de um código de honra[29] que envolve o auxílio mútuo entre os membros, a submissão absoluta aos ordenamentos superiores e, ainda, a Omertá, ou lei do silêncio, que impõe a qualquer membro da organização o sigilo absoluto de suas atividades, tal qual é exigido das empresas legais o sigilo profissional ou industrial, com a diferença que, naqueles casos, a penalidade é capital.

Faria Costa apud Franco[30], dá mais detalhes sobre essa complexa estrutura interna das organizações criminosas dizendo:

[...] A teia criminosa que se tece para que se consiga um fluxo criminoso que possa desencadear lucros fabulosos não é uma programação artesanal, mas antes um projeto racionalmente elaborado que passa, sobretudo, por três grupos, de certo modo independentes, mas que, é evidente, têm também pontes ou conexões. Fundamentalmente, os diferentes três grupos assumem-se funcionalmente da seguinte maneira: o grupo central ou nuclear tem como finalidade principal levar a cabo o aprovisionamento, o transporte e a distribuição de bens ilegais. [...] Um outro grupo tem como propósito servir de proteção institucional de toda rede ou teia. É a tentativa de chamar à organização, de forma mais sutil e direta, a política, a justiça e a economia, as quais, através do estatuto de seus representantes, permitem criar bolsas ou espaços onde a atuação política se torna possível. Finalmente, surge um terceiro grupo que tem como fim primeiro estabelecer a lavagem de todo o dinheiro legalmente conseguido. Operam-se, por conseguinte, ligações com instituições bancárias, com cassinos e, ainda, com outras sociedades legalmente constituídas. É o grupo que funciona como placa giratória entre o mundo criminoso e o normal e comum viver cotidiano.

Assim, as organizações criminosas trabalham, habilmente, em dois mundos paralelos: o das atividades legais e ilegais, usando, para tanto, dos serviços e vantagens do sistema bancário[31] que não questionam a origem do capital e reciclam seus lucros ilegais, tornando-os legais, para, novamente, em uma cadeia interminável, aplicá-los tanto em atividades lícitas como ilícitas, sendo estas últimas o seu foco principal.

Dados trazidos pelo Instituto Brasileiro Giovani Falcone[32], são esclarecedores acerca dos paraísos fiscais ao dizerem que,

evidentemente, existem os paraísos fiscais continentais, conhecidos como centros on-shore. O estado norte-americano de Delaware é um desses paraísos fiscais e se destaca pela sua famosa lei protetiva: Delaware Corporation Law. Por intermédio dela, as pessoas jurídicas deitam e rolam em isenções e movimentações milionários, sempre cobertas pelo sigilo bancário. Para muitos juristas, um sigilo semelhante ao do confissionário, pois, numa relação contratual, o segredo do banqueiro é igual ao do padre e do médico. O Canadá possui áreas atraentes para lavadores de dinheiro, como demonstra o patrimônio de Alfonso Caruana, um dos dez maiores traficantes internacionais de drogas ilícitas do século XX. Existem, ainda, os conhecidos paraísos de Liechtenstein, Luxemburgo, San Marino, Panamá, além dos portos abertos para grandes, sigilosos e rentáveis armazenamentos de grana, como Gibraltar. [...] Para os interessados no “branqueamento” de capitais de origem duvidosa, os centros off-shore são mais atrativos. E isso deve-se à escassa fiscalização da atividade bancária, -- muitas vezes sem registros de operações precendentes ao depósito--, do obstáculo à cooperação internacional, salvo casos de narcotráfico, da possibilidade de se manter patrimônio despersonalizado. No Panamá, o correntista identifica-se usando fantasias virtuais: Mickey, Tio Patinhas, etc.

Fernandes e Fernandes[33] deixam claro que as atividades ilícitas das organizações criminosas envolvem, especialmente, o tráfico de drogas, a exploração do jogo, o contrabando e a exploração do lenocínio, tráfico de órgãos e seres humanos e, ainda, a lavagem de dinheiro.

Uma característica diversa que também singulariza uma organização criminosa é sua organização paramilitar.

Para conseguir atingir seus objetivos, a máfia transnacional recorre ao exercício da violência através de unidades independentes, especialmente equipadas e treinadas para esta finalidade, que compreendem a segurança física dos operadores da organização, a manutenção da ordem interna, contra eventuais traidores ou suspeitos e, ainda, eliminação sistemática dos concorrentes do setor econômico em questão e de demais indivíduos – em especial autoridades policiais, judiciais e políticas – que venham a causar qualquer interferência no curso de suas atividades[34].

Neste sentido,

uma das principais razões dos lucros não raro astronômicos acumulados pelos cartéis reside no fato de que eles desfrutam de uma posição monopolística no setor que operam. Monopólio obtido pela violência freqüentemente mais brutal[35].

Interessante se faz destacar que a violência exercida pelos cartéis da criminalidade econômica organizada transnacional é, ainda, o principal fator de promoção – de ascensão hierárquica – entre os indivíduos do grupo, de forma que, para Ziegler[36], a organização privilegia aqueles que possuem a melhor astúcia, inteligência, autocontrole e, sobretudo, brutalidade e sangue-frio na realização das ordens exaradas pelos seus superiores.

E exemplifica:

Tomemos o caso de Giovani Brusca, conhecido como “o Porco”, sucessor de Totò Riina à frente da comissão da Cosa Nostra. [...] Brusca é um matador talentoso. Ele deve sua rápida ascensão ao topo a alguns atos de violência particularmente bem-sucedidos. O dia 23 de maio de 1992 é um dia belíssimo: três automóveis blindados, transportando o juiz Giovanne Falcone, sua mulher e seus guarda-costas percorrem a 160km/hora a rodovia Messina – Palermo, ao longo do litoral. Numa colina ao lado de uma ponte, Brusca e seus cúmplices observam. De repente, os dedos de Brusca puxam uma alavanca: lá embaixo, na estrada, uma formidável explosão projeta o comboio nos ares, fazendo em pedaços Falcone, sua mulher e três jovens policiais. Dois meses depois, o colega, amigo e sucessor de Falcone, o procurador Borsellino – carro blindado, guardas – visita sua mãe em Palermo. Seu comboio é lançado aos ares por uma bomba, acionada por Brusca. Tampouco desta vez há sobreviventes. No atentado contra Falcone, um cúmplice ajudara Brusca: Santino Di Matteo. Detido, Santino decide colaborar com a polícia. O Porco, depois de mandar seqüestrar o filho de Santino, Guiseppe, de 11 anos, estrangula-o com as próprias mãos e atira o corpo num banho de ácido. Em maio de 1993, em Agrigento, o papa João Paulo II condena inequivocadamente a criminalidade organizada, seus assassinatos, a Cosa Nostra. Em represália, Brusca ordena o atentado a bomba contra a basílica de São João de Latrão, em Roma, um dos monumentos cristãos mais antigos do mundo ocidental. Esses atos de “bravura” valem ao Porco uma carreira fulminante: aos 29 anos de idade, ele chega ao comando da Cosa Nostra[37].

Uma organização criminosa possui, ainda, a particularidade de atuar paralelamente ao Estado. O abade Sieyès espantar-se-ia com tal constatação e, talvez, classificasse a Máfia como o novo “terceiro estado”.

As máfias transnacionais atuam através de regras e dispositivos que contrariam as ordens jurídicas nas quais se inserem ignorando as disposições jurídicas do ordenamento jurídico estatal de onde se encontram, antes, elas próprias criam e definem sua “Constituição”, suas leis, seus princípios. É um ordenamento ilicitamente constituído dentro do próprio Estado, atuando em simbiose com este[38]. Para o consectário destes objetivos, as Máfias infiltram seus integrantes dentro de órgãos das instituições estatais, que, através da intimidação e da prática do suborno, aliciam as autoridades públicas para colaborar com suas atividades. E grande parte de seu êxito provém, justamente, disto: o poderio econômico, financeiro e militar que as organizações criminosas translocais possuem, são constantemente usados como mecanismos para a corrupção dos agentes públicos, que têm a opção de colaborar, voluntariamente, em um regime de parceria com a máfia, ou colaborar através de ameaça, de intimidação[39].

Hassemer[40], professor de Direito Penal da universidade de Frankfurt, diz que a criminalidade econômica organizada é caracterizada pela sua capacidade de aterrorizar, entorpecer e, eventualmente, perverter o aparelho judiciário e o aparelho político. Para ele, somente as organizações criminosas são suficientemente poderosas para infiltrar-se nos governos, nos parlamentos, nas administrações policiais e nos palácios de justiça, criando um contra-poder capaz de neutralizar quaisquer comandos legais estabelecidos em um ordenamento jurídico.

Para os senhores do crime organizado, o Estado de Direito não passa de um mero “parceiro” de negócios, que, em nenhum momento, pode impor qualquer norma, lei, ou sanção que seja contrária às atividades mafiosas, sob pena de pagar um preço alto por isso[41].


Conseqüências Socioeconômicas das Atividades Mafiosas

Callegari[42] faz uma observação importantíssima acerca das conseqüências da criminalidade econômica organizada para a humanidade ao dizer que,

Ao menos se pode concluir uma coisa: as conseqüências em termos de disfuncionalidade que o mecanismo do crime organizado produz no sistema de vida social e marcadamente no mercado. O peso específico alcançado pelo crime organizado termina, com efeito, em falsificar a liberdade do sistema econômico, alterando a igualdade e condições e as mesmas regras do jogo do mercado, de modo que os efeitos negativos da ingerência do tipo mafiosas no circuito econômico-financeiro se propagam em grande escala, numa sorte de diabólica reação em cadeia.

Dados estatísticos trazidos por Fernandes[43] deixam claro que os cartéis de crime organizado, levando-se em consideração apenas os Estados Unidos da América, movimentam a soma anual de mais de 600 bilhões de dólares, os quais são advindos, essencialmente da lavagem de dinheiro proveniente apenas do narcotráfico[44].

A Interpol avalia em 500 bilhões de dólares os prejuízos causados aos países da Europa Ocidental, somente no ano de 1996, pela criminalidade econômica organizada[45].

Como foi dito anteriormente, as atividades do crime organizado abrangem um espectro bastante extenso, do qual destacamos a lavagem de capitais, a principal atividade que reflete, nefastamente, na economia global.

Lavagem de dinheiro, ou money laundry é uma atividade que consiste em separar a origem dos bens – essencialmente ilícita – ocultando todos os rastros que poderiam permitir a descoberta de sua natureza ilegal, e reinserindo-os no mercado lícito, dando-lhe aparência de legalidade[46].

Assim, os cartéis do crime organizado retiram o dinheiro do país onde foi produzido através do narcotráfico, lenocínio, tráfico de órgãos de seres humanos, etc., e, através de um complexo mecanismo[47], o reintroduzem em outro mercado financeiro, mais propício a lucros utilizando-se, para tanto, das redes globais eletronicamente interligadas.

O que importa ressaltar é que todo este volume financeiro operacionalizado pelas organizações criminosas não chega a possuir qualquer vinculação socioeconômica, mas, ao invés de gerar empregos, distribuir rendas, fomentar o desenvolvimento, as organizações criminosas utilizam do seu capital ilegal, essencialmente, para o contínuo processo de expansão das suas atividades delitivas (compra e venda de drogas, por exemplo), e quando atuam na seara da legalidade, o fazem com uma vantagem incomensurável em relação às empresas legais que realizam os mesmos misteres, posto que “o lavador não necessita recorrer aos canais legítimos para buscar dinheiro, como por exemplo, o crédito bancário”[48], nem, tampouco, submeter-se às conseqüências sociais do emprego do seu capital. Um fato ainda mais grave: todo o volume financeiro advindo das organizações criminosas através da lavagem de capitais – cerca de 5% do Produto Interno Bruto Mundial, de acordo com Michel Camdessus, ex-diretor gerente do Fundo Monetário Internacional – quando é empregado em setores lícitos da economia do Estado onde se inserem, destina-se, na maioria das vezes, às aplicações financeiras de caráter flutuante, e.g. bolsa de valores, de forma que a qualquer momento e pela mais simples especulação de que o investimento reputar-se-á inconveniente ao objetivo do lucro astronômico, os cartéis do crime organizado, com a velocidade quase instantânea que os inserem na economia, os retiram, deixando, para o Estado, a difícil tarefa de conter os prejuízos advindos desta atividade.

Neste esteio, a organização criminosa transnacional tende a monopolizar o mercado financeiro mundial, alargando a possibilidade de falência de instituições bancárias, empresas lícitas, chegando ao ponto de criar enormes obstáculos para os Estados na fixação das taxas de juros e até mesmo, de sua política econômica. Assim, os criminosos manipulam, com êxito, quase todos os sistemas financeiros do mundo contemporâneo.

Ziegler[49] diz:

O crime organizado funciona à margem de toda transparência numa clandestinidade quase perfeita. Ele realiza a máxima “maximização” do lucro. Acumula a sua mais-valia a uma velocidade vertiginosa. Opera a cartelização ideal de suas atividades: nos territórios que dividem, os cartéis realizam em benefício próprio uma dominação monopolística. Melhor ainda, criam oligopólios. Os buyuk-baba turcos, diretores do BCCI, os bioardos cleoptocratas russos e os senhores chechenos escapam quase que completamente ao controle do poder público, de seu Estado, de suas leis. Suas riquezas fabulosas escapam do imposto. Eles não temem as sanções judiciárias nem as comissões de controle das bolsas. A noção de contrato social lhes é estranha. Agem no imediato e numa liberdade quase que total. Seus capitais atravessam as fronteiras cibernéticas do planeta sem qualquer obstáculo. [...] Ora, a eficácia dos mercados financeiros, dos mercados de investimentos, das operações da bolsa etc. depende em última instância da autovigilância e da cooperação dos protagonistas. Esta autovigilância e esta cooperação estão atualmente em falta.

Dados trazidos pela Agência de notícias da Tribune de Genèvre, em 11 de julho de 1997[50] estabelecem que o volume anual de negócios da Máfia Italiana gravita em torno de 50 bilhões de dólares, além seu patrimônio imobiliário superar 100 bilhões de dólares.

Poucas são as empresas multinacionais, ou até mesmo corporações transnacionais que detém tal poderio financeiro.

Pode-se, assim, agrupar alguns efeitos socioeconômicos advindos das atividades mafiosas[51]:

1.   Prejuízos ao setor privado: Por possuírem como atividade principal a atividade ilícita, seu capital não está ligado a qualquer obrigação tributária, de forma que ao ingressarem nas atividades lícitas da economia – em uma rede de farmácias, distribuidoras de alimentos, ou, até mesmo, pizzarias – os cartéis do crime organizado costumam oferecer seus produtos com preço abaixo da média do mercado, e, até mesmo, com o valor inferior ao do fabricante, dificultando senão impossibilitando a competitividade com empresas que atuem, licitamente, nas mesmas atividades. Com a contínua ampliação dos domínios das atividades “lícitas” os cartéis do crime organizado tendem a dominar o mercado privado, eliminando toda e qualquer concorrência.

2.   Prejuízos à integridade dos mercados financeiros: As organizações financeiras que trabalham – na maioria das vezes, inadvertidamente – com o capital advindo da lavagem de capitais podem ter profundos problemas no gerenciamento de seus ativos, passivos e operações, posto que o capital proveniente de lavagem pode desaparecer subitamente, sem qualquer aviso ou comunicação prévia dos investidores, de forma que isto pode afetar profundamente a liquidez das obrigações bancárias.

3. Perda do controle da Política Econômica, por parte dos Estados: Em alguns países emergentes, o volume financeiro advindo do capital mafioso pode chegar a um volume muito superior aos orçamentos governamentais, o que pode fazer com que o Estado tenha profundas dificuldades em controlar sua taxa de juros e sua política econômica em caso de refluxo dos capitais advindos da criminalidade econômica organizada.

4.  Instabilidade de distorções Econômicas: Como a meta essencial é a ocultação da origem ilícita do capital, a máfia transnacional costuma investir em atividades que não refletem diretamente nas necessidades econômicas e sociais do país onde se insere, criando um vácuo bastante profundo entre o volume de capital investido e o crescimento econômico que se espera com o ingresso de tamanha soma de dinheiro na economia.

5. Perda de Receita: Por não adimplir com suas obrigações tributárias, a máfia transnacional força o Estado a compensar o prejuízo causado pela sonegação fiscal aumentando a carga tributária aos verdadeiros contribuintes, o que pode gerar uma profunda recessão econômica.

6. Riscos aos esforços de privatização: Tendo como aliado o capitalismo neoliberal que preconiza a necessidade da privatização de determinados setores estatais, as organizações criminosas – beneficiadas pelos altíssimos lucros advindos de suas atividades ilegais – possuem recursos financeiros suficientes para vencer compradores legalizados em uma disputa para a compra de uma empresa estatal, o que pode ocasionar, em um futuro próximo, que as atividades essenciais prestadas à população através do setor privado esteja sob o controle das máfias.

7.  Riscos à reputação do mercado Financeiro Interno dos Estados: À medida que a criminalidade econômica organizada transnacional domina grande parte do mercado financeiro interno dos Estados, o capital financeiro lícito, produtivo, que poderia servir como instrumento de desenvolvimento social e econômico tende a desaparecer face, justamente, à reputação negativa, em âmbito global, dos Estados em que a criminalidade  econômica organizada atua. 

8. Custos Sociais: Com a lavagem de dinheiro, o poder deixa de ser um dos atributos do Estado, conferido legitimamente pelos seus cidadãos, e transfere-se a uma pequena elite global criminosa, contrariando todos os princípios éticos e morais que sustentam uma sociedade. Assim, o Estado transforma-se em um governante virtual, marionete nas mãos dos senhores do crime organizado.

Além dos incomensuráveis efeitos negativos para o Estado, anteriormente mencionados, a criminalidade econômica organizada transnacional é responsável pela morte de milhões de pessoas ao redor do globo terrestre, através das suas atividades ilícitas [principalmente em conseqüência do tráfico de substâncias entorpecentes e da exploração sexual.


Conclusão

Pelo abordado ao longo do texto, consegue-se observar, claramente, que as organizações criminosas, antes de serem algo "residual" ou "atuação localizada", têm-se transformado em um gigante mecanismo para-estatal - senão, até mesmo, um contraordenamento jurídico dentro de um Estado já, juridamente, organizado.

Observa-se, ainda, o crescente e alarmante poderio econômico-financeiro destas "empresas", bem como o elevado grau de danosidade socio-econômica de suas atividades. Grandes questões podem ser levantadas após a leitura do texto: O que o Estado poderá (ou deverá) fazer para conter a expansão desta máfia? A legislação atual, bem como  e o aparato Estatal são suficientes e eficazes para garantir a persecução e punição dos crimes praticados pelas organizações criminosas? O Direito na contemporaneidade conseguirá enfrentar este novo desafio que lhe é imposto?


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Notas

[1] ZAFFARONI & PIERANGELI, op. cit. p. 94.

[2] Idem, ibidem, p. 101.

[3]Revolução do meios de comunicação; Internacionalização do Capitalismo Neo Liberal e, em conseqüência da junção destes dois processos, a globalização econômica e o seus reflexos no âmbito da soberania do Estados nacionais.

[4] SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

[5] Idem, ibidem, p. 50/51.

[6] Idem, ibidem, p. 54/55.

[7] FRANCO, Alberto Silva. op. cit. p. 254.

[8] Idem, ibidem, p. 62.

[9] Guia Legislativo para a Aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade econômica organizada Trasnacional , p. 7.  Disponível em: <http://www.gddc.pt/cooperacao/materia-penal/textos-mpenal/onu/GuiaConv.pdf>.  Acesso em: 15 de abril de 2007.

[10] Idem, ibidem, p. 8.

[11] Código Penal Francês, art. 450-I.

[12] Código Penal Russo, art. 35°, nº 4.

[13] Código Penal Canadense, 467.1. Disponível em: <http://laws.justice.gc.ca/en/showdoc/cs/C-46/bo-ga:l_XIII//en#anchorbo-ga:l_XIII>. 

[14] Código dos Estados Unidos da América do Norte. Título 18, Crimes e Processo Penal, Parte I [Crimes], Capítulo 19 – Conspiração, seção 371 e Capítulo 96 [Organizações Criminosas Corruptas e influenciadas por extorsão], seção 196 2 [Atividades Proibidas]. Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/uscode/html/uscode18/usc_sec_18_00001962----000-.html> .

[15] Guia Legislativo para a Aplicação da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade econômica organizada Transnacional, p. 26.

[16] Primeiro Simpósio Internacional sobre Crime Organizado. St. Cloud, França, Maio de 1968. 

[17] BLAKESLEY, Christopher. The Criminal Justice Systems Facing the challenge of Organized Crime – Section I Parte Genéral  -  In Revue Internationale de Droit Penal. Vol. 67, n. º 3-4, Toulouse: Ed. Érès, 1996, p. 585.

[18] Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Relatório Integral da Convenção disponível em: <http://www.uncjin.org/Documents/Conventions/dcatoc/final_documents/383e.pdf>.

[19] Fundo Nacional Suíço de Pesquisa Científica, programa de pesquisa Violence au qoutidien et Crime organisé, Berna, 1995, exposição de motivos, p. 6.

[20] ZIEGLER, Jean. op. cit. p. 26.

[21] Esta característica faz com que as atividades das diversas etapas ou níveis de organização não sejam conhecidas por ouros setores. Presta-se, principalmente, como elemento de segurança contra as tentativas de infiltração das Agências de Controle” (Polícia de prevenção e repressão a entorpecentes – Departamento de Polícia Federal, 2001).

[22] MINGARDI, Guaracy. O Estado e o crime organizado. 1996. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia  e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.

[23] GOMES, Luís Flávio. Crime Organizado: Que se entende por isso depois da Lei nº 10.217/01? Apontamentos sobre a perda de eficácia de grande parte da Lei 9.034/95. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, nº 56, abr. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2919>.

[24] ZIEGLER, Jean, op. cit. p. 58, 129, 270 e 271.

[25] FERNANDES, Newton e Valter.  Criminologia Integrada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 510. 

[26] Tal colocação será mais bem analisada no tópico que se segue.

[27] Os profissionais que fazem parte das organizações criminosas são altamente qualificados para o desempenho de suas funções.

[28] GALBRAITH, John Kenneth. Anatomia do poder. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 60.

[29] ZIEGLER, Jean. op. cit. p. 77.

[30] FRANCO. Alberto Silva.  Globalização e Criminalidade dos Poderosos. In: PODOVAL, Roberto (Org.). Temas de Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 260-261.

[31] Os famosos paraísos fiscais.

[32] Instituto Brasileiro Giovani Falcone. Com o Mouse se Lava mais branco.  Disponível em: <http://www.ibgf.org.br/index.php?data[id_secao]=3&data[id_materia]=151>. 

[33] FERNANDES, Newton e FERNANDES, Valter. op. cit. p. 527.

[34] ZIEGLER. Jean. op. cit. p. 68.

[35] Idem, ibidem. p. 68.

[36] Idem, ibidem. p.  69.

[37] Idem, ibidem, p. 70-71.

[38] Guilio Vassali, ex-ministro da Justiça Italiano, definiu a máfia como “um sistema extraconstitucional de controle social que tende a sobrepor-se à autoridade constituída”.

[39] É comum que as máfias usem da prática da intimidação, através da ameaça, para obrigar aos agentes estatais a fazerem ou deixarem de fazer algo que beneficie a atividade criminosa. Não raro, os senhores do crime seqüestram familiares dos atores públicos, os ameaçando de morte, caso não seja obedecida a ordem exarada pelo cartel. Qualquer comunicação do ocorrido às autoridades policiais é considerada passível de penal cabal para toda a família do indivíduo.

[40] HASSEMER, Winfried. Três Temas de Direito Penal. Porto Alegre: Publicação Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993, p. 85.

[41] É comum a associação das máfias com grupos terroristas, além de que as próprias máfias podem praticar atividades terroristas para a imposição de seus desígnios – ver o caso prático do “Porco” colacionado anteriormente.

[42] CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro: Aspectos Criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 31.

[43] FERNANDES, Newton e Valter. op. cit. 510. 

[44] Como já tocado, as atividades mafiosas ainda têm largo proveito financeiro com o jogo ilegal e a exploração da prostituição.

[45] Idem, ibidem, p. 69.

[46] FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo. El Delito de Blanqueo de Capitales. Madrid: Colex, 1988, p. 49.

[47] Para mais informações sobre o mecanismo de lavagem de dinheiro, vide: CALLEGARI, André Luís.  Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro: Aspectos Criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

[48] CALLEGARI, André Luís.  Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro: Aspectos Criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 92.

[49] ZIEGLER, Jean. op. cit. p. 52.

[50] Idem, ibidem, p. 59.

[51] McDOWELL & NOVIS. John e Gary. As Conseqüências da Lavagem de Dinheiro e dos Crimes Financeiros. Disponível em: <http://usinfo.state.gov/journals/ites/0501/ijep/ie0502.htm>.  


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGUES, Antonio Carlos Iranlei Toscano Moura. O crime organizado transnacional e suas consequências socioeconômicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3617, 27 maio 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24538. Acesso em: 20 abr. 2024.