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O princípio da culpabilidade como faceta do Estado Democrático de Direito

O princípio da culpabilidade como faceta do Estado Democrático de Direito

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A culpabilidade pode ser analisada sob três diferentes sentidos: como fundamento da pena, como limite da pena e como forma de impedir a responsabilidade objetiva.

Resumo:Em meio a uma sociedade contraditoriamente defensora dos direitos fundamentais e adepta ao sensacionalismo midiático das penas máximas, faz-se necessário o estudo do princípio da culpabilidade, para constatação de sua essência constitucional. Para tanto, o presente trabalho traz à tona a visão de boa parte da doutrina sobre o tema, bem como recentes julgados. Definido de formas diversas a depender da teoria adotada – teoria psicológica, teoria psicológica normativa e teoria normativa pura –, o mencionado princípio, seja tomado como fundamento ou medida da pena ou ainda como contraponto à responsabilidade objetiva, reafirma o Estado Democrático de Direito, posto que voltado para o resguardo dos direitos fundamentais.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Penal. Estado Democrático de Direito. Princípio da Culpabilidade.


INTRODUÇÃO

Nesta sociedade contraditoriamente defensora dos direitos fundamentais, posto que integrante de um Estado Democrático de Direito, e adepta ao sensacionalismo midiático das penas máximas, camuflagem do anseio de vingança, torna-se relevante o estudo do princípio da culpabilidade, o qual encerra, em sua essência/origem, a luta entre os ideais democráticos e os ideais autoritários (facetas da sociedade referida).

Tomado sob a ótica de visão dos doutrinadores (não exaurida, logicamente, em razão das limitações de um artigo científico) no tópico um e em seu uso concreto – jurisprudência – (selecionou-se alguns julgados!) no tópico dois, o princípio da culpabilidade é trabalhado, no presente artigo, de modo a esclarecer, a partir do conhecimento de seu conteúdo teórico e prático, como e por que o mesmo reafirma o Estado Democrático de Direito, questão-problema norteadora de nosso objetivo – demonstrar que o princípio da culpabilidade vem corroborar com toda principiologia do Estado sobrelevado em nossa Constituição de 1988 (art. 1º).


1 O PRINCÍPIO Da Culpabilidade Na DOUTRINa 

Antes de trazer à baila o princípio da culpabilidade sob a “voz doutrinária”, destrinchado sob a ótica de diversas teorias e direcionado a funções distintas, necessário se faz delineá-lo na e a partir da lei.

Como é sabido, a Constituição Federal de 1988 estabelece no seu artigo 1° que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, tendo como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. O princípio da culpabilidade, insta destacar, é corolário do princípio da dignidade humana.

Sobre o assunto, escreve Dometila de Carvalho (1992, p. 64) :

A Constituição de 1988, fundamentando o Estado Democrático de Direito, por ela criado, na dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III), teria, necessariamente, de contemplar, como corolário dessa dignidade, o princípio da culpabilidade (inciso LVII do art. 5°), ao qual se conexionam princípios outros, como o da presunção de inocência, o da individualização da pena, enfim, todo aquele feixe de princípios que materializam aqueloutro do devido processo legal.

Segundo Lopes (1999, p.101), o princípio da culpabilidade encontra-se implícito em vários artigos da Constituição:

No Direito brasileiro, encontra-se ele, implicitamente agasalhado, em nível constitucional, no art. 1°, III (dignidade da pessoa humana), corroborado pelos arts. 4°, II (prevalência dos direitos humanos) e 5°, caput (inviolabilidade do direito à liberdade), da CF. Vincula-se, ainda, ao princípio da igualdade (art. 5°, caput, CF), que veda o mesmo tratamento ao culpável e inculpável. Costuma-se incluir no postulado da culpabilidade em sentido amplo o princípio da responsabilidade penal subjetiva ou da imputação subjetiva como parte do seu conteúdo material em nível de pressuposto da pena.

Dito isso, deve-se perceber que o princípio da culpabilidade, como elenca Palazzo (1989), possui uma dupla ‘virtude constitucional’: como fundamento da pena e do próprio direito de punir do Estado, ou como medida, como limite da intervenção punitiva do Estado. Ao fundamentar a pena, o princípio da culpabilidade empresta a esta um aspecto retributivo, que se manifesta concomitantemente com o caráter ético do direito penal, surgindo no centro do sistema o homem, cuja responsabilidade resulta da sua dignidade de pessoa, passível de sofrer reprovação. Quando o princípio da culpabilidade aparece como limite da pena, o Estado é impedido de fazer um uso abusivo e desmedido da sanção penal.

Ao se analisar a dupla função do princípio da culpabilidade, que aparece como fundamento da pena ou limite da sua imposição, constata-se a sua ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana, chegando Dometila de Carvalho (1992, p.65) a escrever:

Considerada a importância ética dessa dupla atuação do princípio, ligado umbilicalmente, à dignidade da pessoa humana, apontada, na constituição, como fundamento do Estado por ela criado e que, por isso mesmo, não pode deixar de ser visualizada pelas normas penais como seu princípio reitor.

Sobre a operatividade estritamente penal do princípio da culpabilidade, escreve Palazzo (1989, p. 56):

Assim, como dissemos, é dúplice a ‘virtude constitucional’ do princípio da culpabilidade; igualmente dúplice é a sua ‘operatividade estritamente penal, no sentido que isso se dá no sistema penal, seja como critério subjetivo da imputação do ilícito, seja como critério de comissuração da pena. E é obviamente neste terreno que se verifica a efetiva influência do princípio constitucional sobre o sistema penal.

O princípio da culpabilidade leva ao entendimento de que não há crime sem culpabilidade. Apesar do princípio nullum crimen sine culpa já se encontrar cristalizado nos ordenamentos jurídicos do mundo civilizado, a história mostra que no início da caminhada do direito penal se adotou a responsabilidade objetiva.

Para que alguém sofresse a punição por parte do Estado, era necessário apenas que fosse estabelecida a relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado delituoso. Tínhamos o direito penal da responsabilidade objetiva, o direito penal do resultado, que predominou por muitos séculos.

Sobre o direito penal da responsabilidade objetiva, escreve Zaffaroni (1999, p.522):

Todo direito penal primitivo caracteriza-se por responsabilizar fundamentalmente em razão da produção de um resultado e raramente dar importância ao aspecto subjetivo da conduta. A imputação da produção de um resultado, fundada na causação dele, é o que se chama de responsabilidade objetiva. A responsabilidade objetiva é a forma de violar o princípio de que não há delito sem culpa, isto é, diz respeito a uma terceira forma de tipicidade, que se configuraria com a proibição de uma conduta pela mera causação de um resultado, sem exigir-se que essa causação tenha ocorrido dolosa ou culposamente.

A ideia de culpabilidade começa a se desenvolver no Direito Romano. Com o passar dos anos, o conceito de culpabilidade começa a ser construído e formulado. A ideia do resultado danoso evitável e do resultado danoso inevitável começa a ser diferenciada pelos autores do direito penal. Ao lado da ideia de evitabilidade do resultado nasce também a ideia de previsibilidade.

Ao tratar da evolução do conceito de culpabilidade, escreve Moura Teles (2001, p.257):

A evitabilidade dos fatos humanos é a idéia básica central sobre a qual vai ser construída a noção de culpabilidade. Só o homem, porque conhece as leis da natureza e porque é livre para agir, pode prever as conseqüências dos atos que praticar, e, prevendo-as, pode desejar que elas se realizem ou querer que não aconteça, evitando-as. Da mesma idéia de evitabilidade nasce o conceito de previsibilidade, que é a possibilidade de ser antevisto um resultado lesivo, uma conseqüência do comportamento humano.

No momento em que se começou a construir o conceito de culpabilidade, levando em consideração as ideias da ‘evitabilidade’ e da ‘previsibilidade’, surgiu um novo direito penal, não mais o direito penal da responsabilidade objetiva, para o qual bastava a relação de causalidade entre a conduta e o resultado, mas um direito penal novo, um direito penal da responsabilidade subjetiva, um direito penal da culpabilidade.

Os doutrinadores não apontam com exatidão o momento em que houve essa transformação, chegando Assis Toledo (1994, p.219) a escrever:

Não se pode apontar com exatidão o momento histórico em que tal fenômeno ocorreu, mesmo porque a história do direito penal está marcada de retrocessos. Fora de dúvida, porém, é que, a partir de então, se começa a construir a noção de culpabilidade, com a introdução, na idéia do crime, de alguns elementos psíquicos, ou anímicos, a previsibilidade e a voluntariedade, como condições da pena criminal - nullum crimen sine culpa. E assim teve início uma nova era, do ponto de vista penalistico.

Na caminhada do direito penal, surgiram várias teorias tentando explicar a culpabilidade, destacando-se as seguintes: teoria psicológica, teoria psicológica normativa e a teoria normativa pura.

A primeira tentativa se deu com a teoria psicológica da culpabilidade, para a qual a culpabilidade seria a ligação psíquica entre o agente e o fato. A culpabilidade abarcaria o dolo e a culpa em sentido estrito.

Damásio de Jesus (1999, p.458), ao tratar da teoria psicológica da culpabilidade, escreve:

De acordo com essa tradicional teoria, a culpabilidade reside na relação psíquica do autor com seu fato; é a posição psicológica do sujeito diante do fato cometido. Compreende o estudo do dolo e da culpa, que são suas espécies.

A noção de culpabilidade para os adeptos da teoria psicológica aponta na direção de duas ideias básicas fundamentais, quais sejam: a voluntariedade e a previsibilidade.

Sobre a teoria psicológica da culpabilidade, escreve Moura Teles (2001, p. 258):

Se houver previsibilidade e voluntariedade, haverá dolo. Se o agente previu o resultado e desejou alcançá-lo, agiu dolosamente. Sendo o fato previsível e o sujeito, prevendo ou não, não desejou o resultado, agiu com culpa em sentido estrito.

Ainda sobre a teoria psicológica, escreve Assis Toledo (1994, p. 222):

Ora, ver no dolo simples representação e vontade, para aqueles que entendem a culpabilidade como puro ‘nexo psíquico’, é o mesmo que afirmar um conceito meramente psicológico da culpabilidade. Para os penalistas que adotam tal entendimento, se indagamos o que é culpabilidade e onde está a culpabilidade, a resposta virá logo: 1) a culpabilidade é a ligação psicológica entre o agente e seu fato; 2) a culpabilidade, por isso mesmo, só pode estar no psiquismo do agente.

Outra teoria que tenta explicar a culpabilidade é a Teoria Normativa ou a Teoria Psicológica Normativa da Culpabilidade. Para os adeptos dessa teoria, o elemento que caracteriza a culpabilidade é a ‘reprovabilidade’ da conduta do agente, praticada dolosa ou culposamente.

A reprovabilidade da conduta do agente aparece quando poderia ser exigido um comportamento conforme o direito. A análise das circunstâncias ganha aqui um relevo especial, pois sendo possível uma conduta lícita, conforme o ordenamento jurídico, o agente teve um comportamento contrário, a sua conduta é reprovável.

A culpabilidade passa a ser algo mais do que o nexo psicológico entre a conduta e o resultado. A reprovabilidade aparece como juízo de valor a respeito do fato praticado.

Para Moura Teles (2001, p. 259):

A teoria recebeu a denominação de psicológica normativa ou normativa, uma vez que, mantendo o dolo e a culpa, em sentido estrito, não como espécies, mas como elementos da culpabilidade, acrescenta um novo, de caráter normativo, que é o juízo de valor de reprovação que se faz sobre a conduta do agente, pelo fato praticado, quando presente a exigibilidade de conduta diversa.

Para que exista a censurabilidade na conduta do agente é necessário que ele

ao praticar a ação punível, não agiu de outro modo, conformando-se às  exigências do direito, quando, nas circunstâncias, podia tê-lo, isto é, estava dotado de certa dose de autodeterminação e de compreensão (imputabilidade) que o tornava apto a frear, reprimir, ou a desviar sua vontade, ou o impulso que o impelia para o fim ilícito (possibilidade de outra conduta) e que, apesar disso, consciente e voluntariamente (dolo), ou com negligência, imprudência ou imperícia (culpa stricto sensu), desencadeou o fato punível.(TOLEDO, 1994, p. 223)

Assim, para a teoria normativa ou psicológica normativa, a culpabilidade é a reprovabilidade da conduta dolosa ou culposa realizada pelo agente.

Damásio de Jesus (1999, p. 459) aponta algumas falhas na teoria psicológica normativa da culpabilidade:

Embora essa doutrina constitua um avanço na teoria da culpabilidade e seja aceita por inúmeros penalistas, peca por alguns defeitos encontrados na doutrina psicológica. Assim, o dolo persiste como elemento da culpabilidade. Ora, como vimos, o dolo é um fator psicológico que sofre um juízo de valoração. Se é assim, o dolo não pode estar na culpabilidade. Deve estar fora dela para sofrer a incidência do juízo de censurabilidade. É coeficiente da culpabilidade, não seu elemento.

Outra teoria que tenta explicar a culpabilidade é a Teoria Normativa Pura, também chamada de extremada ou estrita. Essa teoria mantém um relacionamento estreito com a teoria finalista da ação.

            Hans Welzel, ao formular a teoria finalista da ação, exibiu uma concepção nova sobre a culpabilidade. Inicialmente, mostrou que o dolo e a culpa integram a conduta, fazem parte do fato típico. Assim, foi modificado o pensamento anterior em que se acreditava que o dolo e a culpa seriam elementos da culpabilidade.

Ao transportar o dolo e a culpa para o fato típico, a ‘consciência da ilicitude’ permaneceu integrando a culpabilidade. Para os adeptos da teoria finalista da ação, a culpabilidade é um puro juízo de valor, um juízo de reprovabilidade da conduta do agente imputável, que possuía a potencial consciência da ilicitude, e que poderia ter agido de modo diferente diante das circunstâncias.

O dolo e a culpa não mais integram, portanto, a culpabilidade como um dos seus elementos. A consciência da ilicitude foi excluída do dolo e colocada na culpabilidade. Assim, diante dessas mudanças, a culpabilidade passou a ter os seguintes elementos: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Segundo Moura Teles (2001, p. 261):

culpável, portanto, é o fato praticado por um sujeito imputável que tinha possibilidade de saber que seu comportamento era proibido pelo ordenamento jurídico, e que, nas circunstâncias em que agiu, poderia ter agido de modo diferente, conforme o direito.

A doutrina ainda apresenta a teoria estrita ou extremada da culpabilidade e a teoria limitada da culpabilidade. Inicialmente, pode-se dizer que as duas procedem da teoria normativa pura da culpabilidade. Um ponto de divergência encontrado nas duas teorias, porém, diz respeito às discriminantes putativas.

Sobre a divergência das teorias no tratamento das discriminantes putativas, escreve Capez (2000, p. 257):

Para a teoria extremada, representada pelos finalistas Welzel e Mourach, e, no Brasil, por Alcides Munhoz Neto e Mayrink da Costa, toda espécie de discriminante putativa, seja sobre os limites autorizadores da norma (por erro de proibição), seja incidente sobre situação fática pressuposto de uma causa de justificação (por erro de tipo), é sempre tratada como erro de proibição. Com isso, segundo Munhoz Neto, evita-se desigualdade no tratamento de situações análogas. Para a teoria limitada da culpabilidade, o erro que recai sobre uma situação de fato (discriminante putativa fática) é erro de tipo, enquanto o que incide sobre a existência ou limites de uma causa de justificação é erro de proibição. Defendem-na no Brasil, Assis Toledo e Damásio E. de Jesus.

Da leitura dos artigos 20 e 21 de nosso Código Penal, bem como da análise do tratamento das discriminantes putativas fáticas e das discriminantes putativas por erro de proibição, constatamos que o nosso legislador adotou a teoria limitada da culpabilidade.

A responsabilidade subjetiva tem sido a adotada em quase todas as legislações do mundo contemporâneo (os artigos 18 e 19 da nossa legislação penal atestam a adoção da responsabilidade subjetiva), devendo-se observar, no entanto, que a responsabilidade objetiva não foi totalmente banida do ordenamento penal, sinais de sua presença subsiste, como esclarece Mirabete (2000, p. 155):

Apesar do intuito do legislador da reforma da parte geral, denunciado na exposição de motivos quando se afirma que ficaram eliminados ‘os resíduos da responsabilidade objetiva’, alguns permanecem na legislação penal. É o que ocorre na hipótese de crime praticado em estado de embriaguez culposa ou voluntária completa (exceto na preordenada).

No direito penal, os doutrinadores têm atribuído um tríplice sentido ao conceito de culpabilidade. Em primeiro lugar, apresentam a culpabilidade como fundamento da pena. Para que alguém receba a punição pela prática de uma infração penal é necessário que todos os elementos da culpabilidade estejam presentes. A culpabilidade aparece como pressuposto da punibilidade.

Para que exista a punição do autor de um crime todos os pressupostos da punibilidade devem estar presentes. A ausência de um só elemento ou requisito impossibilitaria a aplicação da sanção penal. Como pressupostos da punibilidade, têm-se a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade.

Como elementos da culpabilidade, têm-se a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade da conduta. Ao tratar dos elementos da Culpabilidade, escreve Mirabete (2000, p. 198):

Assim, só há culpabilidade se o sujeito, de acordo com as suas condições psíquicas, podia estruturar sua consciência e vontade de acordo com o direito (imputabilidade); se estava em condições de poder compreender a ilicitude de sua conduta (possibilidade de conhecimento da ilicitude); se era possível exigir, nas circunstâncias, conduta diferente daquela do agente (exigibilidade de conduta diversa). São esses, portanto, os elementos da culpabilidade.

A falta de um desses elementos impediria a aplicação da pena, acarretando, destarte, uma causa de exclusão da culpabilidade.

Outro sentido para o conceito de culpabilidade apontado pela doutrina seria a culpabilidade como elemento de medida ou de determinação da pena:

Nesta acepção a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios como importância do bem jurídico, fins preventivos etc. (LOPES, 1999, p. 100)

A culpabilidade compreendida como medida ou limite da pena orienta o juiz, depois de condenado o autor da infração penal, a encontrar e aplicar a pena de acordo com a culpabilidade do agente. A pena encontrada deve obedecer com precisão à medida estabelecida pela culpabilidade da conduta do condenado.

O juiz deverá observar na fixação da pena o disposto no artigo 59 do Código Penal. Inicialmente, será fixada a pena base; em seguida, serão consideradas as circunstâncias agravantes e atenuantes; por último, as causas de aumento e de diminuição de pena.

A pena base será fixada atendendo ao que estabelece o artigo 59 do Código Penal. Ao tratar das circunst?ncias judiciais, escreve Rogério Greco (2000, p. 85):

A primeira das circunstâncias judiciais a ser aferida pelo juiz é, justamente, a culpabilidade do agente. Nessa fase, esse estudo não mais se destinará a concluir pela infração penal, já verificada no momento anterior. A culpabilidade uma vez condenado o agente, exercerá uma função mediadora da sanção penal que a ele será aplicada, devendo ser realizado um outro juízo de censura sobre a conduta por ele praticada, não podendo a pena exceder ao limite necessário à reprovação pelo fato típico, ilícito e culpável praticado.

O terceiro sentido atribuído ao conceito de culpabilidade seria a proibição do uso da responsabilidade objetiva no direito penal. Assim, só responderá pela conduta delituosa o agente que atuou com dolo ou culpa.

Sobre o assunto, escreve Nilo Batista (2001, p.104):

O princípio da culpabilidade impõe a subjetividade da responsabilidade penal. Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. É indispensável a culpabilidade.

Na mesma linha de pensamento, elenca Lopes (1999, p. 101):

A exigência de responsabilidade subjetiva quer dizer que, em havendo delito doloso ou culposo, a conseqüência jurídica deve ser proporcional ou adequada à gravidade do desvalor da ação representada pelo dolo ou a culpa, que integra, na verdade, o tipo de injusto e não a culpabilidade. Com isso, afasta-se a responsabilidade objetiva ou pelo resultado fortuito decorrente de atividade lícita ou ilícita.

Conclui-se, então, que a culpabilidade pode ser analisada sob três aspectos, ou três diferentes sentidos: como fundamento da pena, como limite da pena e como forma de impedir a responsabilidade objetiva.


2 O PRINCÍPIO Da culpabilidade na jurisprudência

Como é sabido, a jurisprudência diz respeito ao conjunto de decisões tomadas pelos órgãos do Poder Judiciário, constituindo-se, tal como a lei e a doutrina, em fonte do Direito.

Dito isso, faz-se necessário esclarecer que foram selecionados para análise/observância três julgados, inscritos em informativos do Supremo Tribunal Federal, inclusive.

O primeiro julgado selecionado diz respeito ao Informativo nº 683, do STF:

INFORMATIVO Nº 683

TÍTULOAP 470/MG - 127

PROCESSOAP - 470ARTIGOOs Ministros Cármen Lúcia e Gilmar Mendes acompanharam integralmente o voto do relator. A primeira registrou ser inaceitável declaração da defesa de que teria havido “caixa 2”, porquanto essa figura, além de criminosa, consistiria em agressão à sociedade brasileira. O segundo observou que a teoria do domínio do fato não seria algo novo. Lembrou que, para parcela expressiva da doutrina nacional, o legislador de 1984 não optara explicitamente por nenhuma das posições dogmáticas relativas ao conceito de autoria e pela distinção entre autoria e participação. No entanto, ao introduzir o dolo na ação típica final, como se poderia depreender da definição de erro de tipo, ao se aceitar o erro de proibição e ao abandonar o rigorismo da teoria monística em relação ao concurso de pessoas, teria reconhecido que o agente responderia na medida de sua culpabilidade. Inferiu, deste modo, que o legislador acolhera as mais relevantes teses finalistas, o que levaria à conclusão de que abraçara também a teoria do domínio do fato. Portanto, a solução do caso não reclamaria grandes debates ou construções teóricas, pois, à luz do princípio da legalidade, a resposta estaria no art. 29 do CP. Em obiter dictum, alinhou-se à tese no sentido da validade ou eficácia de lei, ao manifestar-se a respeito de possível contaminação do resultado da atividade legislativa, aventada pela doutrina, em casos de eventuais desvios. Nesse tocante, o relator consignou que essa ilicitude não se comunicaria, necessariamente, para o produto legislativo, ainda que supostamente decorresse de motivação espúria. O Min. Marco Aurélio, por seu turno, acompanhou o voto do relator, dele divergindo apenas quanto a Geiza Dias, visto que a condenou pela prática do art. 333, caput, do CP. Aduziu que não se poderia atribuir a ela a autoria intelectual do crime. No entanto, seria indubitável sua participação material, dado que seria pessoa de confiança de Marcos Valério e quem transmitiria à agência bancária instruções acerca dos vultosos pagamentos a serem efetuados. No que diz respeito a Anderson Adauto, aludiu que este teria instruído parlamentar sobre como conseguir e a quem procurar para obter verbas, o que seria simples cogitação, a não configurar crime. AP 470/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 9 a 11.10.2012. (AP-470) – Grifo nosso

Da leitura do informativo suprasselecionado, depreende-se o princípio da culpabilidade como medida da pena. Como exposto no tópico anterior, o princípio da culpabilidade é também limite da atuação do Estado-juiz, posto que o impede de agir arbitrariamente, impondo-lhe o dever de, na dosimetria da pena, levar em consideração a culpabilidade do agente.

O segundo precedente escolhido corresponde ao informativo nº 676, do STF:

INFORMATIVO Nº 676

TÍTULOPrincípio da insignificância e concurso de pessoas

PROCESSOHC - 112103ARTIGOA 2ª Turma, por maioria, denegou habeas corpus em que pleiteada a aplicação do princípio da insignificância em favor de condenado pela prática do delito de furto qualificado mediante concurso de pessoas (CP, art. 155, § 4º, IV). A defesa alegava a irrelevância da lesão patrimonial sofrida pela vítima, que seria da ordem de R$ 80,00. Entendeu-se que, conquanto o bem fosse de pequeno valor, o paciente teria cometido o crime em concurso de agentes, portanto sua culpabilidade e a periculosidade do fato seriam maiores. Destacou-se que o paciente seria acusado de diversos delitos contra o patrimônio e contra a pessoa, além de já ter condenação por tráfico de entorpecentes. Vencido o Min. Gilmar Mendes, que concedia a ordem. Sublinhava que, a despeito de haver participação de outra pessoa no furto, o montante seria pouco expressivo, bem como não teria havido violência ou qualquer outro meio para que se efetuasse a subtração. HC 112103/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 21.8.2012. (HC-112103) – Grifo nosso

O princípio da culpabilidade, com efeito, além de ser medida da pena, é também fundamento. No precedente acima, tem-se que o advogado de defesa, levantando o princípio da insignificância, queria afastar a tipicidade do crime de furto, não obtendo êxito justamente porque a conduta praticada (em concurso de pessoas) revelou uma culpabilidade maior que o argumento trazido - pouca ofensividade em razão do pequeno valor do bem furtado. O juízo de valor – culpabilidade -, no caso “in concretu”, fez-se motivo para denegação da ordem de HC requerida.

Por fim, destaca-se o Informativo nº 669, do STF, no qual o princípio da culpabilidade é revelado na exigência de o órgão ministerial ter de, na denúncia (peça inicial), descrever o fato pormenorizadamente, tal como a conduta do (s) agente (s):

INFORMATIVO Nº 669

TÍTULO

Denúncia - Delito societário - Inépcia - Aparente inocorrência (Transcrições)

PROCESSO

MS - 30822

ARTIGO

Denúncia - Delito societário - Inépcia - Aparente inocorrência (Transcrições) HC 112166 MC/SP* RELATOR: Min. Celso de Mello DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, restou consubstanciada em acórdão assim ementado: “PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’ SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS LEGAIS. CRIME DE AUTORIA COLETIVA. EXCEPCIONAL CONDIÇÃO QUE PRESCINDE DA DESCRIÇÃO PORMENORIZADA DA PARTICIPAÇÃO DE CADA AGENTE. 1.  [...] Na realidade, incide, sobre o Ministério Público, o gravíssimo ônus de formular denúncias que sejam formalmente corretas, processualmente aptas e juridicamente idôneas, tal como esta Suprema Corte - apoiando-se em clássico magistério doutrinário (JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, “O Processo Criminal Brasileiro”, vol. II/183, item n. 305, 4ª ed., 1959, Freitas Bastos; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “O Processo Penal na Atualidade”, “in” “Processo Penal e Constituição Federal”, p. 13/20, 1993, APAMAGIS/Ed. Acadêmica, v.g.) - tem advertido: “(...) PROCESSO PENAL ACUSATÓRIO - OBRIGAÇÃO DE O MINISTÉRIO PÚBLICO FORMULAR DENÚNCIA JURIDICAMENTE APTA. - O sistema jurídico vigente no Brasil - tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático - impõe, ao Ministério Público, notadamente no denominado ‘reato societario’, a obrigação de expor, na denúncia, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação de cada acusado na suposta prática delituosa. - O ordenamento positivo brasileiro - cujos fundamentos repousam, dentre outros expressivos vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, no postulado essencial do direito penal da culpa e no princípio constitucional do ‘due process of law’ (com todos os consectários que dele resultam) - repudia as imputações criminais genéricas e não tolera, porque ineptas, as acusações que não individualizam nem especificam, de maneira concreta, a conduta penal atribuída ao denunciado.  [...] Sendo assim, e sem prejuízo de ulterior reapreciação da matéria, quando do julgamento final do presente “writ” constitucional, indefiro o pedido de medida liminar, ante a inocorrência de seus pressupostos legitimadores. Publique-se. Brasília, 05 de março de 2012. Ministro CELSO DE MELLO Relator *decisão publicada no DJe de 8.3.2012 **nomes suprimidos pelo Informativo INOVAÇÕES LEGISLATIVAS 4 a 8 de junho de 2012 Lei nº 12.662, de 5.6.2012 - Assegura validade nacional à Declaração de Nascido Vivo - DNV, regula sua expedição, altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e dá outras providências. Publicada no DOU de 6.6.2012, Seção 1, p. 3. Decreto nº 7.746, de 5.6.2012 - Regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, para estabelecer critérios, práticas e diretrizes para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas contratações realizadas pela administração pública federal, e institui a Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública – CISAP. Publicado no DOU de 6.6.2012, Seção 1, p. 9. Decreto nº 7.747, de 5.6.2012 - Institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, e dá outras providências. Publicado no DOU de 6.6.2012, Seção 1, p. 9. – Grifo nosso

As acusações devem, indubitavelmente, ante o sistema da responsabilidade subjetiva, ser individualizadas, não se aceitando denúncias genéricas, posto que violadoras do princípio da presunção de inocência e inviabilizadoras da ampla defesa, possível tão só quando a culpa está descrita detalhadamente.


CONSIDERações FINais

O princípio da culpabilidade, como visto acima, pode ser conceituado de formas diversas a depender da teoria adotada – teoria psicológica, teoria psicológica normativa e teoria normativa pura -, assumindo, ainda, funções várias (de fundamento ou limite da pena ou ainda de forma que impede a responsabilidade objetiva), sendo, porém, de sua essência, o repudio ao autoritário sistema da responsabilidade objetiva, que condena sem considerar as circunstâncias que envolvem o fato, a culpabilidade que lhe move.

Objetivando assegurar a justiça, impedindo condenações injustas por consequência, o princípio da culpabilidade vem reafirmar o Estado Democrático de Direito, fundado na garantia dos direitos fundamentais, isso porque, seja traçando a culpabilidade como fundamento ou limite da pena, controla as ações autoritárias do Estado e assegura os direitos fundamentais do indivíduo/réu/condenado, principalmente o princípio da presunção de inocência.

Com efeito, o culpado assim é considerado apenas depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, de modo que a culpa não é a condenação prévia da sociedade, mas a reprovação traçada após a análise do caso concreto, sob a égide do devido processo legal.


REFERÊNCIAS

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2000.

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MARACAJÁ, Luciano de Almeida. O princípio da culpabilidade como faceta do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3663, 12 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24939. Acesso em: 23 abr. 2024.