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A norma antielisão e outras alterações no CTN

A norma antielisão e outras alterações no CTN

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SUMÁRIO: 1. Introdução 2. A norma antielisão 3. Imunidade das instituições sociais sem fins lucrativos 4. O fato gerador do imposto de renda 5. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário e parcelamento 6. Extinção do crédito tributário pela dação em pagamento 7. Restrição à compensação 8. Abertura do sigilo fiscal


1. Introdução

A Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, introduziu algumas alterações no Código Tributário Nacional, entre as quais a que tem despertado maior interesse é a inclusão do parágrafo único em seu art. 116, albergando a denominada norma antielisão.

Foram alterados, também: (a) o art. 9º, inciso IV, alínea "c", e o art. 14, inciso I, concernentes a imunidade das instituições sociais sem fins lucrativos; (b) o art. 43, com inclusão de dois parágrafos, relativos à incidência do imposto de renda; (c) o art. 151, em seus incisos, concernentes a hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário; (d) foi incluído o art. 151-A , cuidando do parcelamento de créditos tributários; (e) o art. 156, inciso XI, incluindo a dação em pagamento em bens imóveis (sic ), como forma de extinção do crédito tributário; (f) foi incluído o art. 170-A, vedando da compensação com aproveitamento de tributo objeto de contestação judicial, enquanto não transitar em julgado a sentença; (g) os artigos 198 e 199, relativos ao sigilo fiscal, com descabido alargamento das exceções admitidas.

Pela importância que tem sido atribuída ao assunto, cuidaremos primeiro da denominada norma antielisão, e em seguida abordaremos as demais alterações do Código.


2. A norma antielisão

Ao artigo 116 do Código Tributário Nacional, foi acrescentado um parágrafo único, com a seguinte redação:

"A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária."1

Nesse dispositivo, segundo as autoridades da Secretaria da Receita Federal, de onde se originou o projeto respectivo, estaria consubstanciada a norma geral antielisão, instrumento de que necessita o fisco para coibir a prática da elisão fiscal e, assim, aumentar a arrecadação.

Não há uniformidade terminológica na doutrina. Alguns preferem a palavra evasão para designar a forma ilícita de fugir ao tributo, e a palavra elisão para designar a forma lícita de praticar essa mesma fuga.2 Na verdade, porém, tanto a palavra evasão, como a palavra elisão, podem ser utilizadas em sentido amplo, como em sentido restrito. Em sentido amplo significam qualquer forma de fuga ao tributo, lícita ou ilícita, e em sentido restrito, significam a fuga ao dever jurídico de pagar o tributo e constituem, pois, comportamento ilícito.

Com efeito, elisão é ato ou efeito de elidir, que significa eliminar, suprimir.3 E evasão é o ato de evadir-se, a fuga.4 Tanto se pode dizer elisão fiscal, no sentido de eliminação ou supressão do tributo, como evasão fiscal, no sentido de fuga ao imposto. Elisão e Evasão têm sentidos equivalentes, e como anota Ferreira Jardim, "qualquer dos termos pode revestir licitude ou ilicitude, pois ambos cogitam de economia tributária e podem ser utilizados em harmonia ou desarmonia com o direito positivo."5

Se tivermos, porém, de estabelecer uma diferença de significado entre esses dois termos, talvez seja preferível, contrariando a preferência de muitos, utilizarmos evasão para designar a conduta lícita, e elisão para designar a conduta ilícita. Realmente, elidir é eliminar, ou suprimir, e somente se pode eliminar, ou suprimir, o que existe. Assim, quem elimina ou suprime um tributo, está agindo ilicitamente, na medida em que está eliminando, ou suprimindo a relação tributária já instaurada. Por outro lado, evadir-se é fugir, e quem foge está evitando, podendo a ação de evitar ser preventiva. Assim, quem evita pode estar agindo licitamente.

O que importa, a rigor, é saber se o comportamento adotado pelo contribuinte para fugir, total ou parcialmente, ao tributo (evasão fiscal, ou tributária), ou para eliminar, ou suprimir, total ou parcialmente, o tributo (elisão fiscal, tributária ), é um comportamento lícito, ou ilícito. Em outras palavras, a questão essencial que deve ser enfrentada é a de saber se em determinado caso ocorreu, ou não, o fato gerador da obrigação tributária e qual a sua efetiva dimensão econômica.

Na norma em análise está dito que é possível a desconsideração de atos ou negócios jurídicos que tenham sido praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

É possível, portanto, desde logo afirmar-se a inutilidade dessa norma, se interpretada, como deve ser, nos limites que permitem sua compatibilidade com os princípios constitucionais, e com outros dispositivos do próprio Código Tributário Nacional, como adiante será demonstrado. Desde logo, porém, fica claro que a desconsideração de atos e negócios jurídicos, pela autoridade administrativa, com fundamento no parágrafo único, de seu art. 116, depende de um procedimento especial, próprio para esse fim, a ser ainda estabelecido.

Com efeito, no projeto enviado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo a norma que a final converteu-se no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional tinha redação ou pouco diferente. Em vez de referir-se a procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária, fazia referência, em sua parte final, a procedimentos estabelecidos em lei.

Qual seria o significado efetivo dessa mudança ?

Primeiro, ficou claro que a lei disciplinadora dos procedimentos é a ordinária. Isto, porém, já estava implícito, até porque uma referência à lei, sem qualificação, já induz essa idéia. Seja como for, ficou afastada qualquer dúvida quanto à espécie normativa na qual devem estar previstos os procedimentos a serem adotados pela autoridade administrativa para a desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Segundo, ficou claro também que não se trata de nenhum procedimento já previsto em lei, mas de procedimentos especificamente destinados a viabilizar a prática da atividade administrativa de desconsideração dos referidos atos ou negócios jurídicos. A expressão a serem estabelecidos o diz claramente.

Como conseqüência tem-se que a vigência da norma do parágrafo único do art. 116, do CTN, com redação dada pela LC 104, somente será plena quando entrar em vigor a lei ordinária na mesma referida. É uma norma cuja aplicação depende da disciplina, em lei ordinária, dos procedimentos a serem observados pela autoridade administrativa.

Seja como for, tem-se de admitir que uma norma geral antielisão nada mais é do que um reforço aos poderes da Administração Tributária. Se colocada em texto de lei complementar pode ter sua constitucionalidade contestada, pois colide com o princípio da legalidade que tem como um de seus desdobramentos essenciais a tipicidade, vale dizer, a exigência de definição, em lei, da situação específica cuja concretização faz nascer o dever de pagar tributo. Por isto mesmo Marco Aurélio Greco, embora admita a norma antielisão cercada de cautelas, assevera com razão que "a própria noção de Estado Democrático de Direito repele uma norma antielisão no perfil meramente atributivo de competência ao Fisco para desqualificar operações dos contribuintes para o fim de assegurar de forma absoluta a capacidade contributiva. O fato gerador é qualificado pela lei e uma pura norma de competência não convive com a tipicidade, ainda que aberta."6

Aliás, ainda que residente em norma da própria Constituição, nesta introduzida por Emenda, a norma antielisão, considerada como ampliação da competência tributária, capaz de amofinar o princípio da legalidade, pode ter sua validade contestada em face da cláusula de imodificabilidade albergada pelo art. 60, § 4º, inciso IV, segundo a qual não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Dir-se-á que a norma geral antielisão constitui simplesmente uma diretriz hermenêutica. Apenas aponta um caminho para o intérprete, que deve dar maior importância à realidade econômica do que à forma jurídica. Essa norma simplesmente deixaria expressamente autorizada a denominada interpretação econômica, que já foi objeto de profundas divergências na doutrina dos tributaristas, no Brasil como em outros países.

Até que ponto, porém, é possível admitir-se tal interpretação das leis tributárias, em face do princípio da legalidade ?

Estabelece a Constituição Federal de 1988 que, sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.7

A propósito desse importante princípio já escrevemos:

Sendo a lei a manifestação legítima da vontade do povo, por seus representantes nos parlamentos, entende-se que o ser instituído em lei significa ser o tributo consentido. O povo consente que o Estado invada seu patrimônio para dele retirar os meios indispensáveis à satisfação das necessidades coletivas. Mas não é só isto. Mesmo não sendo a lei, em certos casos, uma expressão desse consentimento popular, presta-se o princípio da legalidade para garantir a segurança nas relações do particular (contribuinte) com o Estado (fisco), as quais devem ser inteiramente disciplinadas, em lei, que obriga tanto o sujeito passivo como o sujeito ativo da relação obrigacional tributária.8

Não é necessário discorrer a respeito da importância da segurança jurídica como valor fundamental a ser preservado pelo Direito. Sabemos todos que a segurança, além de ser importante para viabilizar as atividades econômicas, é essencial para a vida do cidadão. Nem é necessário demonstrar a importância do princípio da legalidade como instrumento de realização da segurança jurídica. Ela é evidente. E qualquer amesquinhamento do princípio da legalidade implica sacrificar a segurança

Por tais razões o princípio da legalidade tem sido concebido pela doutrina como uma exigência de previsão legal específica das hipóteses de incidência tributária, tendo essa concepção doutrinária sido incorporada pelo Código Tributário Nacional, que o explicitou em seu art. 97, estabelecendo que somente a lei pode estabelecer, entre outros elementos essenciais na relação tributária, a definição do fato gerador da obrigação principal, vale dizer, o fato gerador do dever jurídico de pagar tributo.

Isto quer dizer que temos em nosso sistema jurídico o princípio da legalidade a exigir tipos tributários, tal como no direito penal existem os tipos penais. Ao legislador cabe, para preservar a segurança, definir com precisão esses tipos, pois a segurança jurídica propiciada pelo princípio da legalidade é diretamente a esta diretamente proporcional. Como assevera João Dácio Rolim, com inteira propriedade,

"Quanto maior a precisão desses tipos, menor a margem de incerteza e a possibilidade de arbitrariedade por parte do intérprete da lei ou das próprias regras surgidas da jurisprudência."9

O próprio legislador, no Direito brasileiro, não é inteiramente livre para definir as hipóteses de incidência dos tributos, pois a Constituição Federal, reportando-se às espécies de tributo por ela autorizadas, definiu precisamente as atividades estatais às quais se devem ligar as taxas e a contribuição de melhoria, e quanto aos impostos, ao atribuir competência à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para criá-los, estabeleceu o âmbito de cada um dos impostos atribuídos a essas entidades.

O Código Tributário Nacional, por seu turno, explicitando o que teria de ser entendido, espancou qualquer dúvida porventura existente, ao estabelecer que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.10

Assim, se nem o legislador pode alterar institutos, conceitos e formas de direito privado, é inadmissível que a autoridade administrativa possa simplesmente desconsiderar atos ou negócios jurídicos.

Os defensores da denominada norma geral antielisão sustentam que a mesma tem por objetivo fundamental realizar o princípios da capacidade contributiva e da isonomia. E na verdade o princípio da capacidade contributiva, como temos sustentado, pode ser considerado mesmo um aspecto do princípio da isonomia, especialmente relevante no Direito Tributário.

Ocorre que o exame desse argumento deve ser feito em face dos moldes atribuídos a tais princípios pelo ordenamento jurídico brasileiro, e nos parece que em face deste os princípios da capacidade contributiva e da isonomia não se prestam como suporte para a ampliação, pelo intérprete, das normas de incidência tributária. Primeiro e especialmente porque, no plano da Constituição, tais princípios devem ser entendidos em harmonia com o princípio da legalidade. Depois, no plano da lei complementar, porque temos dispositivo de lei complementar vedando a tributação por analogia.

Por outro lado, não é razoável admitir-se que o instrumento de realização de um princípio constitucional termine por destruir, ou amesquinhar, outro princípio constitucional. Assim, a norma antielisão, ainda que se admita ser um instrumento de realização dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, e da isonomia, não pode ser admitida na medida em que implica destruir, ou amesquinhar, o princípio da legalidade tributária.

Assim, entendida a norma antielisão como diretriz para o intérprete da lei tributária, deve este utilizá-la sem prejuízo de outros dispositivos de lei complementar, entre os quais o que veda a tributação por analogia.

Realmente, o Código Tributário Nacional, cuidando da interpretação e da integração da legislação tributária, coloca a analogia como um dos meios de integração, mas estabelece expressamente que "o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei."11

Assim, a invocação do princípio da capacidade contributiva, como fundamento para a exigência de tributo cuja hipótese de incidência não esteja configurada, não pode ser admitida porque a aplicação de uma norma de incidência tributária a situações idênticas, ou que produzam idênticas conseqüências econômicas, a pretexto de realizar o princípio da capacidade contributiva, nada mais é do que empregar a analogia para exigir tributo não previsto em lei.

A leitura atenta do próprio art. 116 do CTN demonstra que a questão da elisão fiscal deve ser resolvida pelo legislador ordinário, ao definir a hipótese de incidência dos tributos. Se define a hipótese de incidência tributária como uma situação de fato afasta desde logo quaisquer questionamentos jurídicos que a questionada norma antielisão possa resolver. O aplicador da lei tributária, neste caso, deve simplesmente cogitar da configuração, ou não, daquela situação de fato, para exigir, ou não exigir o tributo.

Entretanto, se o legislador define a hipótese de incidência de um tributo como situação jurídica, caso no qual a norma antielisão poderia ser aplicada, está editando uma norma de incidência tributária que não poderá ser alterada pelo intérprete, seja qual for o elemento de interpretação que utilize. Nem pode a omissão dessa norma ser suprida mediante integração analógica, como acima demonstrado, a não ser que se admita amesquinhado o princípio constitucional da legalidade tributária.

Poder-se-á dizer que a norma antielisão somente abrange os casos em que os atos ou negócios jurídicos tenham sido praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

O que seria, a final, dissimular ?

Na linguagem comum, é disfarçar, camuflar. Ou então, fingir ingnorância.12

Na linguagem jurídica em geral não é diferente. Assim é que dissimulado quer dizer fingido, oculto, disfarçado ou encoberto.13

Existem, outrossim, referências ao significado da palavra dissimulação no Direito Tributário. Indicam que ela, neste campo jurídico quer ocultação de rendimentos pelo contribuinte com a intenção de sonegar.14 Ou até para dizer que o termo dissimulação

É mais próprio à terminologia do Direito Fiscal, para indicar a ocultação de mercadorias, escondidas para a sonegação do imposto.

A dissimulação de rendimentos vem a significar a falsidade da declaração, onde se mencionam as rendas, que estão sujeitas ao pagamento do imposto próprio15.

Na verdade, dissimular, em linguagem jurídica, quer dizer disfarçar, alguém, artificiosamente, a vontade real. Procurar encobrir ou ocultar com astúcia a verdade do ato, ou fato, dando-lhe feição ou aparência diferente.16

Seja como for, a dissimulação a que se refere o parágrafo único do art. 116, do CTN, é sempre um ato ilícito. Não se confunde com a situação na qual o contribuinte, embora com a intenção clara e até confessada de fugir ao tributo, ou de reduzir o valor deste, opta pela prática de um ato, ou a realização de um negócio, em vez de outro. Desde que não se trate de prática abusiva ou anômala, estará no campo da licitude e contra ele o fisco nada pode fazer.

Em síntese, parece-nos que essa norma geral antielisão, se interpretada em harmonia com a Constituição, e assim aplicada apenas aos casos nos quais esteja configurado evidente abuso de direito, nada vai acrescentar, posto que nossa jurisprudência já admite a desconsideração de atos ou negócios em tal situação. Por outro lado, se interpretada de forma mais ampla, com alcance capaz de emprestar à autoridade administrativa o poder para desqualificar qualquer ato ou negócio jurídico apenas porque o seu conteúdo econômico poderia estar contido em ato mais oneroso do ponto de vista tributário, estará em flagrante conflito com o princípio da legalidade e em aberta contradição com as normas constantes do próprio Código Tributário Nacional, especialmente as dos artigos 108, § 1º, e 116, caput, inciso I.

Podemos, portanto, sintetizar o que acima foi dito, formulando as seguintes conclusões:

1ª) - O parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 10.01.2001, é norma dependente de outra norma, definidora dos procedimentos a sem observados pela autoridade administrativa sempre que pretenda desconsiderar atos ou negócios jurídicos para exigir tributo que sem isto não seriam devidos.

2ª) – A norma albergada pelo parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 10.01.2001, nos parece um simples alargamento dos poderes da administração em matéria tributária, e sendo assim é flagrante a sua inconstitucionalidade, posto que, como assevera Marco Aurélio Greco, "a própria noção de Estado Democrático de Direito repele uma norma antielisão no perfil meramente atributivo de competência ao Fisco para desqualificar operações dos contribuintes para o fim de assegurar de forma absoluta a capacidade contributiva. O fato gerador é qualificado pela lei e uma pura norma de competência não convive com a tipicidade, ainda que aberta."17

3ª) – O argumento segundo o qual a questionada norma antielisão apenas permite a realização dos princípios da capacidade contributiva e da isonomia é insuficiente para justificá-la, tendo em vista que tais princípios devem conviver com o princípio da legalidade, não podendo amesquinhá-lo. Aliás, entendida como instrumento de realização do princípio da isonomia tal norma se põe em aberto conflito com o próprio Código Tributário Nacional, que em seu art. 108, § 1º, veda expressamente a tributação por analogia.

4ª) – Por outro lado, norma albergada pelo parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 10.01.2001, não se compatibiliza com o próprio caput desse artigo, que distingue as hipóteses de incidência constituídas por situação de fato, e por situação jurídica.

5ª) – Realmente, sendo a hipótese de incidência tributária uma situação jurídica, é inadmissível a desconsideração de atos ou negócios jurídicos que a componham.

6ª) – Em face do que estabelece o art. 116, caput, do Código Tributário Nacional, e tendo em vista o respeito do princípio da legalidade e do Estado Democrático de Direito, a realização do princípio da capacidade contributiva e da isonomia constitui tarefa do legislador, e não da administração tributária.


3. Imunidade das instituições sociais sem fins lucrativos

Foram alterados, também, o art. 9º, inciso IV, alínea "c", e o art. 14, inciso I, concernentes a imunidade das instituições sociais.

A nova redação dada à alínea "c", do inciso IV, do art. 9º, apenas acrescenta, depois de instituições sociais, a expressão sem fins lucrativos. Já a nova redação dada ao inciso I, do art. 14, substitui, na parte final do dispositivo, a expressão a título de lucro ou participação no seu resultado, pela expressão a qualquer título.

A primeira dessas duas alterações teve o propósito de explicitar que as instituições sociais amparadas pela imunidade são somente aquelas sem fins lucrativos. Explicitação inteiramente desnecessária. Primeiro porque uma instituição social é, por definição, sem fins lucrativos. Segundo porque a referência a instituição sem fins lucrativos já está na Constituição Federal.18 Tecnicamente, porém, não configura o absurdo que os burocratas da Receita Federal pretenderam implantar tornando absolutamente impossível a existência de instituições sociais imunes, como adiante se verá.

A segunda dessas duas alterações, operada no inciso I, do art. 14, parece ter tido o propósito de evitar a distribuição de parcelas do patrimônio, ou das rendas de instituições sociais de forma mascarada, ou oblíqua. Na verdade, porém, a pretexto de evitar fraudes que deveriam ser combativa diretamente, o dispositivo terminou albergando grave erro técnico, pois na verdade não há forma de distribuir patrimônio ou renda que não seja a título de lucro ou participação no resultado.

No projeto do qual a final resultou a Lei Complementar nº 104 foram propostas alterações mais profundas no art. 14, que chegavam a tornar inteiramente impossível a existência de instituições sociais. Entre elas tinha-se a inclusão de dispositivos que exigiam fossem os serviços da instituição social prestados gratuitamente a toda a coletividade.

Felizmente o Congresso Nacional não aprovou a proposta que era na verdade teratológica.


4. O fato gerador do imposto de renda

No art. 43, foram incluídos dois parágrafos, relativos à incidência do imposto de renda. No primeiro está dito que a incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção. E no segundo está dito que na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido no artigo, vale dizer, para fins de incidência do imposto de renda.

Como já tivemos oportunidade de demonstrar, o legislador não é livre para definir renda, conceito utilizado pela Constituição Federal para a atribuição de competência tributária à União. Se fosse, o imposto não seria apenas sobre a renda. Poderia incidir sobre toda e qualquer outra situação econômica, a critério do legislador. Haveria verdadeira subversão da hierarquia normativa, o que evidentemente não se pode em Direito admitir.

É curioso observar que o novo dispositivo refere-se a receita como se fosse esta sinônimo de renda. Qualquer pessoa razoavelmente informada, porém, sabe que receita e renda são realidades inconfundíveis.

Pela mesma razão não se pode admitir, sem afronta evidente afronta à Constituição, que o legislador estabeleça livremente as condições e o momento em que se dará a disponibilidade da renda. O fato gerador do imposto, diz o caput do art. 43, é a aquisição da disponibilidade da renda ou dos proventos. Essa aquisição da disponibilidade é uma realidade que escapa às definições legais.


5. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário e parcelamento

Ao art. 151, que enumera as causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, foram acrescentados dois incisos, a dizer que também suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial;

VI – o parcelamento.

Com o inciso V, acima, fica superada a orientação jurisprudencial de franciscana pobreza que, fundada em interpretação simplesmente literal, restringia o efeito de suspender a exigibilidade à medida liminar em mandado de segurança. Em se tratando de proposta originária da Receita Federal, fica demonstrado que infelizmente muitos juizes são na verdade mais realistas do que o rei. Ou, mais leoninos que o próprio leão.

O inciso VI, ao incluir o parcelamento entre as causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, choveu no molhado. O parcelamento nada mais é que uma forma de moratória.

A LC 104/01 incluiu, ainda, no CTN, o art. 155-A, estabelecendo que

Art. 155-A – O parcelamento na forma e condição estabelecidas em lei específica.

§ 1º - Salvo disposição de lei em contrário, o parcelamento do crédito tributário não exclui a incidência de juros e multas.

§ 2º - Aplicam-se, subsidiariamente, ao parcelamento as disposições desta Lei, relativas à moratória.

Não continha o Código nenhum dispositivo albergando restrição ao parcelamento de tributos, que vinham sendo concedido com relativa freqüência, de sorte que o art. 155-A constitui uma notável inutilidade. Seu parágrafo primeiro parece ter sido colocado na tentativa de superar o entendimento jurisprudencial a final adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo ao contribuinte que pratica a denúncia espontânea da infração e pede o parcelamento do débito o direito a esse parcelamento com exclusão de multas. Não se pode, todavia, interpretá-lo como excludente do direito do contribuinte, decorrente da incidência do art. 138, do mesmo Código. O que impede a cobrança da multa não é o parcelamento, mas a denúncia espontânea da infração que, nos termos do art. 138 do Código, exclui a responsabilidade pela infração que ensejaria sua aplicação.

Outra norma inteiramente inútil é que foi encartada no parágrafo segundo, do malsinado art. 155-A, pois a aplicação subsidiária das normas relativas à moratória resulta automática pelo fato de que o parcelamento, como se disse acima, nada mais é do que uma forma de moratória.


6. Extinção do crédito tributário pela dação em pagamento

Ao art. 156 foi acrescentado o inciso XI, incluindo a dação em pagamento em bens imóveis (sic ), na forma e condições estabelecidas em lei, como forma de extinção do crédito tributário. Esse dispositivo, rigorosamente inútil, nada acrescenta ao Direito Tributário brasileiro. Na verdade o contribuinte continua tendo o dever de pagar o tributo em dinheiro. Apenas nos casos estabelecidos em lei poderá obter a extinção do crédito tributário, vale dizer, poderá quitar sua dívida para com o fisco, mediante dação em pagamento. Dação de imóveis, em pagamento, e não dação em imóveis, como erroneamente foi redigido o dispositivo.


7. Restrição à compensação

Outra alteração consistiu na inclusão, no Código, do art. 170-A, vedando da compensação com aproveitamento de tributo objeto de contestação judicial, enquanto não transitar em julgado a sentença.

Certamente essa norma não impede o deferimento de liminar, ou a antecipação de tutela, autorizando a compensação. É previsível o surgimento de questões em face de sua aplicação. Com certeza as autoridades da administração tributária pretenderão impor mais uma restrição ao direito de compensar.

O que seria um tributo objeto de contestação judicial ?

A norma em questão pode ser tomada como um estímulo à compensação automática que temos preconizado. Pago um tributo indevidamente, o contribuinte, em vez de pedir a sua restituição – hipótese em que haverá, com certeza, contestação – simplesmente fará a compensação cabível.


8. Abertura do sigilo fiscal

Foram alterados também os artigos 198 e 199, relativos ao sigilo fiscal, com descabido alargamento das exceções admitidas.

O art. 198 passou a ter a seguinte redação:

Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

§ 1º. Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes:

I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça;

II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração de regular processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa.

§ 2º. O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo.

§ 3º. Não é vedada a divulgação de informações relativas a:

I – representações fiscais para fins penais;

II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública;

III – parcelamento ou moratória.

Com a nova redação dada ao art. 199, ficou estabelecido que a Fazenda Pública da União, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, poderá permutar informações com estados estrangeiros no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos.

Na prática, pode-se dizer que já não existe o sigilo fiscal, pelo menos para impedir o que as autoridades da administração tributária mais gostam de fazer, que é utilizar a publicidade sensacionalista como forma de constranger o contribuinte.

O sigilo fiscal passou a ser apenas para constar. A norma que o garante está inteiramente esvaziada pelas exceções. Podem ser divulgadas à vontade as listas de devedores. Basta que as dívidas estejam inscritas. Ou então, basta que seja caso de representação fiscal para fins penas. Assim, a Fazenda Pode arruinar qualquer empresa com publicidade sensacionalista. Basta que seja lavrado um auto de infração em que é cobrado tributo inteiramente indevido, mas no entender da autoridade administrativa se esteja diante de caso em que deve ser feita representação fiscal para fins penais.

Também não importa que a exigência tributária seja descabida. Quando o contribuinte conseguir decisão judicial que o diga, a notícia já estará divulgada e os danos, moral e material, definitivamente consumados.

Note-se que nos termos do parágrafo terceiro, acima transcrito, não é vedada a divulgação de informações... Assim, formulada representação fiscal para fins penas, por exemplo, não se cogita mais de sigilo fiscal. A Fazenda Pública poderá divulgar informações sobre os fatos que ensejaram a representação fiscal para fins penais.

E se a representação for improcedente ? E se a divulgação causar danos morais a quem a final seja absolvido da imputação, ou até nem mesmo seja denunciado pelo Ministério Público ?

Uma coisa é o juízo formulado pela autoridade administrativa quando faz a representação fiscal para fins penais. Outra é o juízo a ser feito pelo Ministério Público a respeito da configuração do delito e da responsabilidade penal daqueles contra os quais vai fazer a denúncia. E outra, ainda, o juízo a ser formulado pela autoridade judiciária, já no ato de receber a denúncia, já no ato final do processo, ao julgar o denunciado.

Seja como for, certo é que a Fazenda Pública não tem necessidade nenhuma de divulgar informações, sejam elas a respeito de representação fiscais para fins penais, ou relativas a inscrições na Dívida Ativa, nem quanto a parcelamentos ou moratórias concedidas. Tem, é certo, interesse escuso em fazê-lo, como forma de denegrir o conceito do contribuinte em certas situações vexatórias.

Ressalte-se que o contribuinte, em situações dessa natureza, em que tenha contra ele formulada exigência tributária absurda, pode notificar judicial ou extra judicialmente as autoridades e agentes envolvidos de que os vai responsabilizar, pessoalmente, pelos danos que porventura venha a sofrer em virtude de divulgação dos fatos. E essa responsabilidade pessoal do servidor público é na verdade o único caminho para impedir atitudes levianas e abusivas deste.

Há, de fato, um clima de absoluta irresponsabilidade daqueles que exercitam o poder estatal. Na melhor das hipótese para o cidadão que seja vítima de atitudes levianas e abusivas, tem-se a indenização que é paga pelo ente público. Esta, porém, termina sendo suportada pelos contribuinte, enquanto o agente do poder público resta imune a qualquer conseqüência de suas arbitrariedades.

A questão do sigilo fiscal, agora praticamente anulado, está intimamente ligada à questão do sigilo bancário.

A Lei Complementar n° 105, de 10 de janeiro de 2001, estabelece que não constitui violação do sigilo a que estão obrigadas as instituições financeiras, entre outras hipótese, a prestação de informações nos termos e condições que estabelece (art. 1°, § 3°). Delega ao Poder Executivo atribuição para disciplinar, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços (art. 5°), e as informações obtidas das instituições financeiras serão conservadas sob sigilo fiscal (art. 5°, § 5°).

As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento administrativo fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente (art. 6º).

A questão da quebra do sigilo bancário, porém, será objeto de um outro artigo que vamos escrever, analisando os dispositivos da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, e do Decreto nº 3.724, da mesma data.


Notas:

1 CTN, art. 116, parágrafo único, introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 10.01.2001

2 Antônio Roberto Sampaio Dória, Elisão e Evasão Fiscal, Bushatsky/IBET, São Paulo, 1977, p.39

3 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986, p. 627

4 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986, p. 736

5 Eduardo Marcial Ferreira Jardim, Dicionário Jurídico Tributário, 3ª edição, Dialética, São Paulo, 2000, p. 84.

6 Marco Aurélio Greco e Elisabeth Levandowski Libertuci, Para uma Norma Geral Antielisão, IOB, São Paulo, Outubro de 1999, p. 10

7 Constituição Federal, art. 150, inciso I.

8 Hugo de Brito Machado, Curso de Direito Tributário, 18ª edição, Malheiros, São Paulo, 2000, p. 34

9 João Dácio Rolim, A conveniência ou não de uma norma geral antielisiva. Conciliação da liberdade e da segurança com a igualdade. em Revista da Associação Brasileira de Direito Tributário, ABDT/Del Rey, Belo Horizonte, ano III, nº 5/6, janeiro/agosto 2000, págs. 44

10 Código Tributário Nacional, art. 110

11 Código Tributário Nacional, art. 108, § 1º.

12 Silveira Bueno, Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa, Saraiva, São Paulo, 1964, 2º Vol., pág. 1035.

13 Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 2, pág. 201.

14 Maria Helena Diniz, Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo, 1998, vol. 2, pág. 201.

15 De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio de Janeiro, 1987, vols. I e II, pág. 103.

16 Pedro Nunes, Dicionário de Tecnologia Jurídica, 8ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro/São Paulo, s/d,, vol. I, pág. 518,

17 MARCO AURÉLIO GRECO e ELISABETH LEVANDOWSKI LIBERTUCI, Para uma Norma Geral Antielisão, IOB, São Paulo, Outubro de 1999, p. 10

18 Art. 150, inciso VI, alínea "c".


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo de Brito. A norma antielisão e outras alterações no CTN. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2558. Acesso em: 24 abr. 2024.