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Afinal de contas para que serve a filosofia do direito?

Afinal de contas para que serve a filosofia do direito?

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A disciplina filosofia do direito apresenta-se como capaz de oferecer um espaço de estimulo ao pensamento e a atividade crítica que farão diferença em nossa sociedade.

Resumo: Em meio ao alarde causado por mais um resultado pífio obtido pelos bacharéis no exame de ordem, foram ventiladas, entre outras providências, a proposta de que o referido exame passe a contemplar também questões atinentes a disciplina filosofia do direito. Justificou-se tal intenção em vista da necessidade do examinando também demonstrar conhecimento nas disciplinas propedêuticas. Neste contexto, é salutar perguntar qual seria a contribuição dessa disciplina numa época de aparente desinteresse por estudos teóricos de fôlego, quando se prima pela utilidade imediata das coisas. Assim, o presente artigo visa esboçar algumas linhas a respeito da formação histórica da disciplina, sua concepção atual e apontar seu papel na formação do futuro jurista. E para alcançar tais horizontes, a presente abordagem lançará mão do método indutivo e da técnica de revisão bibliográfica.

Palavras-chave: filosofia do direito; disciplina; formação; concepção; papel.


1 INTRODUÇÃO

Não é de hoje que o ensino jurídico é alvo de críticas quanto à formação proporcionada pelas Universidades, Faculdades e Escolas aos seus estudantes[1]. Tais críticas são renovadas e se tornam cada vez mais contundentes a cada divulgação dos resultados do exame a que se submetem os bacharéis junto a Ordem dos Advogados do Brasil. O mais recente não foi diferente, na verdade novo recorde, reprovando quase 90% dos bacharéis, segundo propalou a imprensa[2].

Diante desse quadro alarmante (e preocupante) o Ministro da Educação e o Presidente da OAB assinaram acordo de cooperação técnica, com a formação de grupos de trabalho, a fim de se buscar medidas eficazes de aprimoramento dos cursos jurídicos.

Segundo noticiado[3], atualmente, o país dispõe de 1,2 mil cursos de direito, com 800 mil matrículas em todos os anos da graduação. E de acordo com o último censo do ensino superior, das 220 mil vagas autorizadas, somente 162 mil foram preenchidas. O acordo de cooperação técnica também vai estabelecer critérios para a autorização, o reconhecimento e renovação de reconhecimento do curso de bacharel em direito, além de identificar, periodicamente, a demanda quantitativa e qualitativa de profissionais do direito. Assim, o ministro da Educação ressaltou que o MEC não vai autorizar a abertura de novos cursos de direito enquanto a nova política de regulação não estiver definida. Hoje, há 100 cursos aguardando autorização do MEC para serem abertos. “Não há urgência de abrir novos cursos, já que temos ociosidade de cerca de 25%”, destacou o ministro.

Além dessa iniciativa, o presidente da OAB nacional, Marcus Vinicius Furtado, anunciou que o Exame de Ordem Unificado passará a ter uma ou duas questões de Filosofia do Direito. “Não basta o estudante conhecer as disciplinas profissionalizantes, mas também as propedêuticas, como Filosofia, Sociologia, Introdução ao Estudo do Direito”, afirmou o presidente da OAB[4].

Apesar do presidente da referida entidade nacional compreender a importância e influência do domínio de Filosofia do Direito no desempenho da advocacia, logo surgiram, na internet, comentários de protesto[5], dos quais transcrevo abaixo, por ser representativo, o que possui o seguinte teor, litteris: “Em breve teremos questões de culinária no Exame. Advogado precisa aprender coisas objetivas, relativas ao direito e processo. O resto é enrolação. Filosofia não enche barriga nem ganha causa.” [6].

Apesar da tônica exacerbadamente utilitarista que, de certo modo, afetou o posicionamento suso destacado, destituindo de qualquer utilidade imediata o estudo da Filosofia, e no caso, voltado para a área jurídica (Filosofia do Direito), a objetividade defendida quanto ao estudo do direito pode ser tomada como bem representativa da visão do Direito que imperou no último século. A tal ponto que levou seus operadores, em grande parte, endossarem uma visão eminentemente (quando não exclusiva) positivista do Direito. Esquecendo-se, e muitas vezes desconhecendo mesmo, das outras noções nutridas por eminentes pensadores a respeito do Direito que não se reduz aquela experienciada nas Varas e Tribunais.

Enfim, este estudo, apesar de se servir da declaração acima destacada, não visa contradizê-lo, mas tomando-o dentro do cenário, inicialmente descrito, de preocupação quanto ao ensino jurídico, do qual o exame de ordem ainda constitui-se numa das ferramentas de aferição do aprendizado mais aceitas e divulgadas[7], buscará apresentar que as competências e habilidades fornecidas pelo curso (disciplina) de Filosofia do Direito permitem ao “operador do Direito” a posse de um conjunto de informações que não apenas lhe situa no campo jurídico, mas, sobretudo, capacita-lhe a oferecer alternativas contemporâneas as situações enfrentadas nas diversas áreas de sua atuação, advindas de criação própria ou da reordenação das já outrora geridas pelos grandes cultores da ciência jurídica.

Por derradeiro, anote-se que para alcançar todos esses objetivos, a presente abordagem lançará mão do método indutivo e da técnica de revisão bibliográfica.


2 A FILOSOFIA DO DIREITO NO CONTEXTO SÓCIO-JURÍDICO

Por ser o Direito uma realidade que se infiltra praticamente em todos os espaços sociais, como salienta Dworkin em sua obra “Império do Direito”[8], sobreleva-se a importância de se compartilhar uma concepção todo abrangente e cambiante desse fenômeno social.

Para termos uma noção mais concreta da importância dessa forma de apreensão pela sociedade brasileira, sobretudo a jurídica, segundo o censo do INEPE, em 2009 existiam 5.115.896 alunos matriculados no ensino superior, entre os quais 651.600 em cursos de direito. Significava que de cada 100 bancos escolares, 13 estavam ocupados por candidatos a advogados. E entre os 826.928 alunos formados em 2009, 87.523 eram de Direito – o que representa bem mais do que a soma de psicólogos (17.280), jornalistas (13.139), médicos (11.881), dentistas (8.510), economistas (6.922) e químicos (3.434), todos aptos, pelo menos em tese, a ocupar um lugar no mercado de trabalho.

É como se o Direito fosse uma realidade à parte do sistema de ensino superior brasileiro. Enquanto o número total de escolas cresceu 7% nos últimos anos, de 2.164 em 2005, para 2.314 em 2009, a quantidade de cursos de Direito passou de 861 para 1.096 – um aumento de 27%, proporcionalmente quatro vezes mais do que o sistema educacional brasileiro. Na comparação direta, o número de cursos de Direito só é menor do que os cursos superiores voltados para a formação de professores em todos os níveis e em todas as áreas. Não custa lembrar que em 2001 o censo do MEC registrava 426 escolas de Direito instaladas no país[9].

Esse quadro não deixa dúvidas quanto à importância de se nutrir uma concepção fértil do Direito, numa tentativa de suplantar ou, senão, pelo menos, atenuar a crise do ensino jurídico que, pelo visto, irradia-se por toda a sociedade.

Nesse contexto, a pergunta crucial a ser feita não deve se limitar apenas a averiguar o conhecimento das regras jurídicas, a partir das formulações legais, o que não nos informa quase nada a respeito do Direito. Logo, como saber se as regras que definem o que é jurídico são realmente jurídicas, se são do direito ou de qualquer outra coisa? Saber isso, não é questão estritamente jurídica, mas predominantemente filosófica.

A partir daqui começamos a andar por uma seara que tem sido visitada no decorrer dos séculos por diversos pensadores. Suas ideias, não redunda lembrar, sobre o direito e o justo, por exemplo, alimentam as academias que formarão os futuros juristas. Que, por sua vez, ocuparão os mais diversos espaços, formulando leis, aplicando-as ou dizendo a respeito do acerto (ou não) de sua aplicação e, até mesmo, de sua validade.

Assim, para exercer seu trabalho, como diz Troper (2008, p.10), os juristas não dependem apenas de uma definição do direito, mas de definições dos conceitos fundamentais empregados na formulação das regras. O conteúdo das regras, continua o autor citado, exprime, de fato, as preferências políticas e morais daqueles que as criam. Campos estes integrantes do eixo fundamental de formação do bacharel em direito, o qual abrange, entre outras áreas do saber, estudos que envolvam conteúdos essenciais de Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia[10].

Ademais, pode-se asseverar que:

A afirmação da existência de uma regra jurídica pressupõe uma definição geral do direito, de sua estrutura e dos conceitos jurídicos, mas também uma concepção da ciência que permite alcançar o conhecimento dessa regra ou da validade dos raciocínios que a ela são aplicados. Esses pressupostos são, com frequência, inconscientes ou fundamentam unicamente o conhecimento e a prática do direito de um só país, ou ainda, não são ordenados. Desse modo, a filosofia do direito está necessariamente presente, de forma tanto implícita quanto espontânea. (Troper, 2008, p.11).

Desse modo demonstra-se, minimamente, o quanto as preconcepções advindas da realidade estão na base das regras e dos institutos jurídicos, fornecendo amplo temário de análise da Filosofia Jurídica. A qual buscaremos esmiuçar nos próximos tópicos.

No mais, ficamos com o testemunho de Nader (2000, p. XI), que em sua obra “Filosofia do Direito” testifica o seguinte a respeito dessa disciplina:

Em realidade a ciência altior do Direito é indispensável à iniciação, ao desenvolvimento e ao aprofundamento do saber jurídico. À iniciação, porque a disciplina é responsável pela elaboração do conceito do Direito e abordagem de temas satélites, de cuja compreensão depende o raciocínio jurídico; ao desenvolvimento, pois que a assimilação dos institutos jurídicos não pode dispensar a apreciação crítica, sob pena de subserviência ao dogmatismo positivista; ao aprofundamento, de vez que o jurista não deve fixar-se na dimensão imediatista da lei, mas perquirir sempre, na reflexão metódica, a razão última das normas jurídicas e a sua conexão com a ordem natural das coisas.


3 PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO

É cediço que o ato de filosofar sobre o direito é observado desde a origem da filosofia e ao longo de sua história. Apesar de pensadores, dos mais ilustres, terem se debruçado sobre esse objeto cultural, sua abordagem filosófica sobre o direito aparece em obras, tratados e comentários de cunho variado, sem que até o século XIX surgissem tratados específicos sob o rótulo de filosofia do direito (Hervada, 2008, p. 20).

Nesse quadrante, Reale (2002, p. 285) pondera que não se deve estranhar que tenha havido pensamento filosófico-jurídico, desde quando surgiu a Filosofia, no Ocidente ou no Oriente, em cada área cultural segundo distintas diretrizes. É que, na sua visão, o homem é naturalmente levado a filosofar sobre todos os acontecimentos dotados de validade universal, ou seja, sobre todas as formas de vida que se revelem constantemente presentes no decurso de sua experiência histórica. Arremata dizendo que:

Se onde está o homem aí está o Direito, não é menos certo que onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua convivência. (Reale, 2002, p. 285-286)

Dito isso, o que agora realmente importa saber é: Como aparece o nome e como surge a filosofia do direito como ramo autônomo da filosofia?

Em sua obra, Reale leciona que:

O surgimento da Filosofia do Direito como disciplina autônoma foi o resultado de longa maturação histórica, tornando-se uma realidade pienamente spiegata (para empregarmos significativa expressão de Vico) na época em que se deu a terceira fundação da Ciência Jurídica ocidental, isto é, a cavaleiro dos séculos XVIII e XIX. A meu ver, com efeito, se os romanos constituem, pela primeira vez, o Direito como ciência, graças à esquematização predeterminada e institucional das classes de comportamentos possíveis, a segunda fundação do Direito, como estudo sistemático de uma ordem normativa autônoma, ocorre com Cujas e demais representantes da “Jurisprudência culta” do século XVI, para readquirir nova consciência jurídico-positiva fundante, com a elaboração, no início do século XIX, do Código Civil de Napoleão e as contribuições complementares da Escola da Exegese e da Escola Histórica ou dos Pandectistas, ficando superada de vez a pseudociência do Jusnaturalismo Racionalista, duplicata inútil do Direito Positivo.

Pois bem, é por ocasião desse terceiro momento de fundação científico-positiva do Direito que a Filosofia Jurídica começa a configuração que nos vem do século XIX, tendo como fonte inspiradora o criticismo Kantiano, com o qual se esboça a passagem do estudo do Direito Natural para o estudo da Filosofia do Direito propriamente dita, fato este que a nova compreensão da Ciência Jurídica iria esclarecer e consolidar.

É a partir da correlação entre o conceito do Direito e o fato jurídico concreto (apesar de apenas esboçada por Kante em sua Doutrina do Direito) que o problema filosófico-jurídico começa a ser situado segundo bases próprias, inclusive sob o prisma linguístico, pela substituição, cada vez mais predominante, do termo Direito Natural por Filosofia do Direito. (REALE, 2002, p. 286-287).

Nas palavras de Hervada, (2008, p. 23) o que ocorreu foi que:

Com o advento e a generalização da tese que negava que o direito natural fosse verdadeiro direito, quer admitindo que o direito natural é outra coisa (kantianos), quer negando pura e simplesmente – também contra a postura kantiana – que existia o direito natural (Hugo, Klein, Stephani, Thibaut e a Escola histórica). Tendo sido substancialmente alterado o substrato filosófico – e com ele o modo de entender a disciplina –, os professores e tratadistas da cadeira universitária de “Direito Natural” buscaram de diversas formas mostrar a nova orientação da disciplina, mediante subtítulos e, finalmente, mudando a denominação tanto dos cursos que davam como dos tratados e manuais, terminando por impor-se o nome de “filosofia do direito”.

Hervada, percorrendo a literatura jusfilósifa alemã ainda descreve que:

A expressão Philosophie des Rechts, sem alusão ao Naturrecht, apareceu em 1793 em um documento oficial e em 1800 já no título de uma obra, Aphorismen zur Philosophie des Rechts, de W. T. Krug, editada em Jena. Também foi usada por Stahl, por Hegel e por mais alguns autores, mas caiu em desuso, não sem alguma exceção moderna. O termo que prevaleceu foi Rechtsphilosophie; utilizado por Schmalz, Droste-Hulshoff, Baumbach, Warnkonig, Michelet, Knapp, Lasson, Bergbohm e outros, acabou se generalizando. Da Alemanha passou para os demais países a denominação correspondente a cada língua. (Hervada, 2008, p. 27-28).

Hodiernamente, no Brasil, a Filosofia do Direito é disciplina contemplada na Resolução CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004, que institui as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito, compondo o denominado eixo fundamental de formação do bacharel em direito (Art. 5º, inciso I).


4 O QUE É FILOSOFIA DO DIREITO?

De início, não se pode ver esta tarefa como vã, tendo em conta a citação de Bobbio, para quem “Toda tentativa de definir a filosofia do direito é uma inútil perda de tempo”, pois, segundo Hervada, “em qualquer ciência é fundamental sua caracterização e sua distinção em relação às outras” (2008, p. 13).

Apesar de posicionar-se pela importância de sua definição, Hervada explica que a descrição da filosofia do direito não é outra coisa que uma aplicação da descrição da filosofia ao caso concreto da filosofia do direito. Assevera então: É a mesma definição – a definição de filosofia -, estabelecendo como objeto particular o direito. É dessa forma que deve ser construída, em nossa opinião, a definição da filosofia do direito (2008, p. 15). Assim, Hervada expõe o entendimento segundo o qual filosofia do direito é “o conhecimento da realidade jurídica em suas causas últimas e em seu mais íntimo ser”.

Em consonância com a linha acima traçada, Paulo Nader (2000, p. 3-13), antes de oferecer sua definição, alerta que a pretensão de investigar o direito pela via filosófica exige do pesquisador certa familiaridade com a Filosofia geral, pois compreende que sem a apreensão de seus métodos e funções não é possível alcançar a plena compreensão da Filosofia do Direito, por ser esta espécie daquela.

Assim, quanto a Filosofia, lato sensu, aduz corresponder a uma atividade espontânea, instintiva, pela qual o homem procura captar a realidade como um todo e apreender o profundo significado dos objetos. Porém, adverte que a Filosofia não é puro exercício mental, atividade lúdica ou devaneio. Como modelo de interpretação, ela se projeta na realidade concreta, influenciando as ciências, o comportamento dos homens, os rumos da Humanidade. “À Filosofia compete promover a grande conexão entre todas as perspectivas e ser, assim, a grande intérprete da realidade” (Nader, 2000, p. 9).

Somente após firmar essas compreensões fundamentais lança sua concepção de Filosofia Jurídica, a saber: Filosofia Jurídica consiste na pesquisa conceptual do Direito e implicações lógicas, por seus princípios e razões mais elevados, e na reflexão crítico-valorativa das instituições jurídicas (Nader, 2000, p. 11).

Cabe ainda notar que Nader indica como matérias delimitantes da Filosofia Jurídica as referentes ao estudo ontológico do Direito, a pesquisa de seus elementos universais e necessários e o exame axiológico de suas formas de expressão.

Já para REALE (2002, p. 285-291), essa disciplina, tomada em sua integralidade, pode ser concebida como sendo “o estudo crítico-sistemático dos pressupostos lógicos, axiológicos e históricos da experiência jurídica”.

O renomado autor brasileiro explicita, então, que os temas fundamentais da Filosofia do Direito referem-se ao conceito de Direito, à ideia de Justiça e à respectiva integração no plano histórico, suscitando estas perguntas fundamentais:

- Como se determinar conceitualmente o Direito?

- Como se concebe idealmente a Justiça?

- Como essas exigências de ordem lógica e ética se concretizam na ordem social e histórica do Direito Positivo?

Na sua visão, essas são as três questões básicas, cuja implicação e polaridade preocupam os filósofos do Direito: exigências de ordem lógica, ética e histórico-cultural.

Hervada  (2008, p. 28), por sua vez, leciona que o conteúdo varia de acordo com o sistema filosófico que é ponto de partida de cada autor. Mas com frequência – embora com nuances diferentes – o conteúdo da filosofia do direito costuma ser considerado composto pelas seguintes questões: conceito ou ideia de direito (problema ontológico), princípios de avalição ou que devem informar a legislação em decorrência da justiça (problema ético) e o conhecimento jurídico (problema gnosiológico). Contudo, há os que ampliam e os que reduzem esse conteúdo.

Ademais, Troper (2008, p.17-19) relata a existência de uma distinção entre a “filosofia do direito dos filósofos” e a “filosofia do direito dos juristas”. Assim, para alguns a filosofia do direito dos filósofos seria, antes de tudo, uma filosofia aplicada, que consistiria na transposição das grandes doutrinas filosóficas aos problemas do direito e da justiça. Já a filosofia do direito dos juristas se apresentaria como descrição das práticas jurídicas, que se caracteriza pelo nível elevado de abstração e generalização.

De qualquer modo, é perceptível que não há um acordo a respeito da definição da filosofia do direito, nem sobre as questões que deveria tratar, suas funções ou até mesmo a própria expressão “filosofia do direito”, a qual, para alguns, deveria chamar-se “teoria geral do direito”. No entanto, para Troper, este último dilema não se sustenta, pois “o bom senso manda que tomemos ambas as expressões como sinônimas”, uma vez que, “na prática, é impossível estabelecer correlação entre o título de uma obra e as questões por ela abordadas, o nível de abstração em que se posiciona, o método que emprega ou a corrente doutrinária a qual pertence”. (2008, p. 16).


5 CONCLUSÃO: AFINAL DE CONTAS PARA QUE SERVE A FILOSOFIA DO DIREITO?

Numa época em que a economia, a religião, a família, o Estado, o trabalho, entre muitas outras categorias tratadas tradicionalmente pelo direito, encontram-se sofrendo profundas modificações, outro cenário de crise se anuncia. Um dos sintomas desta crise é a perda de centralidade do direito. Isso se percebe não apenas pela quebra do monopólio dos juristas na produção de discursos sobre o direito, mas também quando outras áreas do conhecimento se tornam pioneiras na produção de discursos sobre categorias tradicionalmente legadas aos juristas (MIAILLE; FONTAINHA, 2010).

A despeito desta crise ou tensão que se avizinha, persiste a incessante produção de um sem número de novas regras. Constatação reveladora de uma tecnicização extrema das profissões jurídicas e de um desinteresse pelas questões teóricas. O que nos força a indagar: O que se pode esperar da filosofia do direito em uma época de predomínio (e tensão) do pensamento técnico-científico?

Para Troper, “as interrogações sobre os fundamentos dessas regras, a adequação dos conceitos jurídicos tradicionais às novas circunstâncias, a apreciação do papel do Estado e da maneira pela qual ele deve assegurá-lo abriram novos campos para a filosofia do direito” (2008, p. 30).

Também são dignas de registro as palavras do jurista e escritor alemão Bernhard Schlink  ante uma provocante pergunta[11] a respeito da existência de novos temas a merecer o cuidado da filosofia do direito tendo em vista o desenvolvimento da ciência e tecnologia, no que asseverou:

Sempre existem novos temas. Sempre existem os antigos, que se renovam. Perguntas sobre justo e injusto, responsabilidade... São antigas, mas podem estar sempre novas. Mas, com o desenvolvimento da Biomedicina da indústria e da técnica e das mudanças na comunicação, existem novos ajustes entre as pessoas, novas possibilidades sobre o que fazem pelas outras, para o bem ou para o mal, novas perguntas sobre o que é justo ou não... Disso se ocupam os filósofos do Direito.

Já Guerra Filho (1999, p. 93-94) apresenta uma reflexão mais extensa a respeito da utilidade ou papel da filosofia do direito em nossos dias, de molde a ser trabalhada para estar à altura do momento histórico em que vivemos, aduzindo que tal disciplina propõe:

Uma reflexão sistemática, em sintonia com o pensamento que outros manifestaram, sobre temas residuais, dos quais não pode dar conta o pensamento científico, por algum dos seguintes motivos:

a) Por não ser matéria adequada à reflexão levada a cabo pela ciência, em virtude do modo mesmo como essa se estrutura, enquanto forma de produzir conhecimento. Entre essas matérias, aparecem aquelas que podem ser consideradas centrais em filosofia do direito, envolvendo toda problemática relativa aos valores e, especificamente, aquele da justiça.

b) Por cuidar de problemas criados para o homem pelo desenvolvimento das ciências e técnicas delas extraídas, tais como a destruição do meio ambiente e a produção de armas de extermínio, que ameaçam a própria vida sobre a Terra, ou a manipulação genética do material biológico, humano ou não, e a crescente interferência médica na constituição natural do ser humano (inseminação artificial, mudança de sexo, transplante de órgãos, etc.).

c) Por envolver o questionamento a respeito do próprio conhecimento científico, das condições que o possibilitam e do balizamento de seus limites, demarcando o seu território, hoje tão vasto, mas ainda circundado (e influenciado) por outros modos de aquisição de conhecimento, mais antigos como são a filosofia, a arte, a religião, a mitologia e, pelo menos em (grande) parte, o direito.

d) Por demandar uma meditação globalizante sobre o momento histórico em que vivemos, para se poder alcançar um entendimento sobre nosso presente e dos possíveis mundos futuros que se nos apresentam. Essa perquirição do futuro e o caráter indiviso de seu objeto são características que, reconhecidamente, são incompatíveis com o pensamento científico. Vale notar, aqui, ser o desenvolvimento desse ponto que fornece a “quadratura” dentro da qual se há de desenvolver a reflexão sobre os demais.

De modo geral, o grau de complexidade da cadeira de filosofia do direito colide com a atual tendência do corpo discente (e muitas vezes docente) de desprezar as reflexões mais profundas e as discussões mais abstratas, considerando-as, ingenuamente, como “perfumaria” (FARIA, 1987, p. 73).

Tal postura, ainda vigente, pode ser atribuída em boa medida ao viés tecnocrata que animou ampla reforma educacional pós-64 (Lei nº 5.540/68) dissociando o ensino superior do contexto sócio-econômico brasileiro. Faria descreve os desdobramentos dessa reforma:

Seu princípio inspirador descartava a tradição bacharelesca e “humanista” de Universidade, assentada numa concepção de ensino e cultura como meio de realização e plenitude individuais. [...], na lógica dos autores dessa reforma, às instituições universitárias caberiam um papel eminentemente pragmático e utilitarista: ou seja, elas deveriam concentrar sua atenção na formação dos quadros técnicos e gerenciais necessários à implementação do tipo de desenvolvimento econômico então vigente. Aos idealizadores dessa reforma apenas interessava, em nome dos objetivos “maiores” do regime burocrático-militar pós-64, substituir o conceito “humanista” de formação cultural por uma progressiva racionalização e especialização do ensino superior, sob os requisitos da eficácia econômica e do avanço tecnológico. (1987, p. 17-18).

Assim, apesar do advento de uma nova ordem constitucional, a organização do ensino superior permaneceu sendo regido por uma norma (perspectiva) erigida dentro de um contexto mais alienante e repressor. A mudança legislativa só ocorreu em razão da derrogação da Lei nº 5.540/68, da qual restou apenas o art. 16, que cuida da nomeação e do prazo de mandato dos dirigentes das IES federais, pela Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Foi no contexto dessa última Lei que entrou em vigor, após ampla discussão, a Resolução CNE/MEC nº. 9/2004, estabelecendo as novas diretrizes curriculares do curso de Direito prevendo, entre outros objetivos, uma formação geral, humanística, capaz de analisar e interpretar o fenômeno jurídico, aliada a uma postura crítica como referencial do perfil do graduando.

Em vista desse desafio, levando em conta todos os pontos antes remarcados, a disciplina filosofia do direito apresenta-se como capaz de oferecer um espaço de estimulo ao pensamento e a atividade crítica que farão diferença em nossa sociedade. De molde a sobejar o ensino meramente técnico do Direito, cuja ênfase histórica vem formando somente “operadores” no sentido pejorativo.

Em seu livro, Faria (1987, p. 37) transcreve trecho significativo de um trabalho de um aluno de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, do longínquo ano de 1981, que já então denunciava:

O ensino do Direito como está posto favorece o imobilismo de alunos e professores. No esforço de renovação, uns atingem o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os outros, além do mítico título de “doutor”, obtêm a habilitação profissional que lhes permite viver de um trabalho não braçal (white collar). A tarefa do ensino para o aluno é cumprida nestes termos: aprendido o “abc” do Processo e do Direito Civil, já está habilitado a viver de inventários e cobranças sem maior indagação. [...]

Diz ainda a pesquisa: É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser inconsciente? [...] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no processo de tomada de decisão e no planejamento.

E mais: 

O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do Estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar.

De lá para cá não mudou muita coisa, o menosprezo a disciplinas fundamentais, como a filosofia do direito, acaba formando bacharéis que dificilmente se encontram preparados para as mudanças bruscas deste novo mundo, que dificilmente vão ser assimilados por uma burocracia estatal saturada. É diante deste novo mundo, destes novos paradigmas que a faculdade de Direito tem que repensar seus objetivos específicos, e se pretende ainda direcionar o estudo para o mercado de trabalho, precisa repensar que tipo de estudo seria mais adequado para esta nova sociedade que está se formando (SALGADO, 2010).


REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre, Fabris, 1987.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito: aplicada ao direito processual e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, 2001.

_____________. Introdução à filosofia e à epistemologia jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. Tradução Elza Maria Gasparotto; revisão técnica Gilberto Callado de Oliveira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

LOPES, José Reinaldo de Lima; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. Curso de história do Direito. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009.

MIAILLE, Michel; FONTAINHA, Fernando de Castro. O ensino do direito na França. Rev. direito GV vol.6 n.1 São Paulo Jan./June 2010. http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322010000100004. Acessado em 16.4.2013. 

NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SALGADO, Gisele. Ensino Superior e a faculdade de direito. WebArtigos. 26 de maio de 2010. http://www.webartigos.com/artigos/ensino-superior-e-a-faculdade-de-direito/38808/. Acessado em 16.10.2012.

SCHLINK, Bernhard. Pode haver uma educação ao se confiar na Justiça. http://www.conjur.com.br/2013-jul-12/ideias-milenio-bernhard-schlink-jurista-escritor-alemao. Acessado em 12.7.2013.

STRECK, Lenio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis! http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-perguntas-imbecis. Acessado em 28.2.2013.

TROPER, Michel. A filosofia do direito. Tradução de Ana Deiró. São Paulo: Martins, 2008.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.


Notas

[1] Além da realidade empírica, levou-nos a redigir essa assertiva a leitura das obras “Curso de história do Direito” (LOPES; QUEIROZ; ACCA) e “História do direito no Brasil” (WOLKMER), que, sob roupagens distintas, delineiam a implantação, o desabrochar e a decadência (crise) do ensino jurídico no Brasil, suscitando reflexões a respeito de eventuais alternativas de superação.

[2] Índice de reprovação no 9º Exame da OAB chega a 90%. Apenas 10,3% dos bacharéis em Direito foram aprovados no 9º Exame de Ordem Unificado. Dos 114.763 candidatos que prestaram a prova desde a primeira fase, 11.820 obtiveram êxito em todas as etapas e vão receber a carteira de advogado, exigida de quem quer atuar como tal. O baixo índice de aprovação já era esperado, já que apenas 18% passaram na primeira fase. Fonte: http://www.cidadeverde.com/ndice-de-reprovacao-no-9-exame-de-oab-chega-a-90-128294. Acessado em 24.3.2013.

[3] MEC e OAB assinam acordo para aprimorar cursos de Direito no país. Acordo vai viabilizar estudos visando à melhoria da qualidade dos cursos. O ministro da Educação, Aloizio Mercadante, e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Furtado, assinaram acordo de cooperação técnica com objetivo de realizar estudos para subsidiar o estabelecimento de nova política regulatória para o ensino jurídico, visando à melhoria da qualidade dos cursos de direito no país. Atualmente, o país dispõe de 1,2 mil cursos de direito, com 800 mil matrículas em todos os anos da graduação. De acordo com o último censo do ensino superior, das 220 mil vagas autorizadas, somente 162 mil foram preenchidas. Regulação e Supervisão – Mercadante também ressaltou que o MEC não vai autorizar a abertura de novos cursos de direito enquanto a nova política de regulação não estiver definida. O acordo de cooperação técnica também vai estabelecer critérios para a autorização, o reconhecimento e renovação de reconhecimento do curso de bacharel em direito, além de identificar, periodicamente, a demanda quantitativa e qualitativa de profissionais do direito. Atualmente, há 100 cursos aguardando autorização do MEC para serem abertos. “Não há urgência de abrir novos cursos, já que temos ociosidade de cerca de 25%”, destacou o ministro da Educação. No final deste ano, o MEC divulga avaliação completa de todos os cursos de direito, com base nos indicadores do Índice Geral de Cursos (IGC) e Conceito Preliminar de Curso (CPC). Fonte: http://www.cidadeverde.com/mec-e-oab-assinam-acordo-para-aprimorar-cursos-de-direito-no-pais-128354. Acessado em 24.3.2013.

[4] O anúncio foi feito por Marcus Vinicius ao proferir aula magna para os alunos da Faculdade de Direito da PUC de Minas Gerais, nessa segunda-feira (18/3/2013), em Belo Horizonte. Fonte: http://www.cidadeverde.com/exame-de-ordem-dos-advogados-tera-questoes-de-filosofia-do-direito-127960. Acessado em 20.3.2013.

[5] Visualizando excesso existente nos exames da OAB, encontra-se comentário que propugna que a avaliação se atenha a mensurar o aprendizado básico para o exercício da advocacia. Pois, segundo seu autor, ex-Presidente da OAB-RJ, “o novo advogado precisa é ter domínio sobre os instrumentos elementares da profissão, porque o aperfeiçoamento e o refinamento virão da prática, do constante estudo do direito e da permanente abertura para as novidades que se apresentam no mundo jurídico”. http://www.conjur.com.br/2013-abr-05/octavio-gomes-exame-ordem-medir-aprendizado-basico-estudantes. Acessado em 5.4.2013.

[6] http://www.conjur.com.br/2013-mar-19/exame-ordem-questoes-filosofia-direito-furtado-coelho. Acessado em 20.3.2013.

[7] Como ponderação a essa colocação deve-se consignar o questionamento de Lenio Luiz Streck respeitante à indexação da qualidade do curso oferecido aos índices de aprovação no Exame de Ordem. Em muitos casos, esse fator acaba por levar a uma espécie de “vestibularização do direito”.

[8] Nesta obra, entre outros pontos, o autor descreve o campo de abrangência e penetração das leis.

[9] A 4ª edição da cartilha OAB Recomenda (p. 10) traz os seguintes números: em 1991 os cursos jurídicos no Brasil eram 165; em 2001 (no primeiro retrato do OAB RECOMENDA) passaram para 380; em 2004 (segunda versão do OAB RECOMENDA) eram 733; em 2007 (terceira edição do OAB RECOMENDA) somavam 1.046; e em 2011, data desta quarta edição, já totalizaram 1.210 cursos de graduação em Direito no país.

[10] Art. 5º, inciso I, da Resolução CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004.

[11] A propósito, o questionamento foi formulado por ocasião de entrevista concedida à jornalista Leila Sterenberg, para o programa de entrevistas Milênio, da Globo News, pelo canal de televisão por assinatura Globo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO JÚNIOR, João Batista do. Afinal de contas para que serve a filosofia do direito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26287. Acesso em: 25 abr. 2024.