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O controle da administração pública

O controle da administração pública

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Os últimos anos do século passado marcam a transição do modelo de gestão pública burocrática para a administração pública gerencial. Diante desse novo modelo, surgiram outros instrumentos e mecanismos de controle da administração pública.

Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam (Pe. Antônio Vieira – O Sermão do Bom Ladrão – 1655).

RESUMO: Os últimos anos do século passado marcam a transição do modelo de gestão pública burocrática para a administração pública gerencial. Essa transição não significa negação aos princípios da burocracia clássica, mas a flexibilização de tais procedimentos e a adoção de novos instrumentos de controle do ato administrativo, destacando-se a transparência como mecanismo de acessibilidade às informações gerenciais dos governos ao mesmo tempo em que fortalece a democracia participativa em governos cooperativos e gestão compartilhada dos interesses coletivos.

Palavras-chave: Administração pública. Controle. 

SUMÁRIO: 1. Introdução  2. A Burocracia como instrumento de Controle dos Atos Administrativos 3. Do Controle enquanto instrumento de consolidação da Democracia  4. Mecanismos de Controle da Gestão Pública Contemporânea  5. Das Formas de Controle 6. Do Controle Interno  7.  Do autocontrole ou autotutela  8.  Do Controle Externo 9. Controle Legislativo ou Parlamentar  10. Do Controle Judicial 11. Do Controle Social  12. Conclusão.  Referências.


1. Introdução

Data de 1215 o primeiro documento formal com tendência a colocar freios nas atitudes daqueles que detêm o poder sobre a gestão dos interesses do povo. A Magna Charta, imposta ao rei João-Sem-Terra, esboçava instrumentos de controle sobre a vontade real, inibindo o absolutismo e liquidando de vez com o poder divino dos reis.

Há que se entender que o documento inglês aponta sua importância histórica não somente pela conquista do povo de uma fatia do poder, antes absoluto, do monarca. Define também o marco inicial do encerramento de uma etapa na história da administração pública, identificada pela doutrina como Administração Patrimonialista ou Patriarcal, em que o bem público e os bens do administrador público se confundiam.

Ao dispor, pela primeira vez em documento positivado, as liberdades públicas, o direito de propriedade e a subsunção da vontade real aos termos da lei, inaugura-se uma nova etapa na história política da humanidade. A Magna Charta é, pois, o estopim, como a criar o embrião de uma sequência de feitos e conquistas a se desenhar ao longo dos séculos futuros até nossos dias, no desejo do homem comum de exercer o controle sobre os atos das entidades que o governam.

Muitos e muitos discursos, postulados, regras, tratados e revoltas foram necessários até o limiar dos dias atuais, quando se consolidou, no elenco dos direitos fundamentais, o direito à administração pública eficiente, proba, eficaz, imparcial e transparente[2].


2. A Burocracia como instrumento de Controle dos Atos Administrativos

A palavra controle – do Latim contra mais rotulus - “rolo, escrito, registro”, descreve a  “ação de verificar os escritos ou as contas dos rolos”, definindo-se como atividade administrativa de aferição, conferência, fiscalização, balizamento. Etimologicamente nos remete ao modelo de administração pública adotado pelos estados modernos, que teve o seu advento no iluminismo do século XVIII, mais precisamente após a Revolução Francesa.

A importância dos postulados defendidos pelos “lumières”, calcados sobre a racionalidade dos procedimentos administrativos enquanto instrumentos de controle do Estado, tem origem na disposição do artigo 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no texto aprovado em 26 de agosto de 1789:

Art. 15. - La Société a le droit de demander compte à tout Agent public de son administration.[3]

Assentando-se como direito indisponível do cidadão e dever do Estado, o exercício e a submissão ao controle positivou-se na Declaração da França Revolucionária, inserido na gama de direitos políticos do cidadão. Surge, daí, a concepção e evolução dos métodos racionais e burocráticos de registro dos atos administrativos, ritualísticos e formais como pressupostos da ação do controle.

No dias subsequentes, a definição de métodos e reformulação das práticas administrativas de então evoluíram de modo a externar certa desconfiança do administrado para com o delegatário do poder, a ponto de o excesso de racionalismo e o exagero da formalidade se tornarem empecilhos para o desenvolvimento seguro, célere e eficaz da ação governamental.

Para definir a burocracia, a Doutrina tem-se firmado nos conceitos do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), considerado o pai da Sociologia da Burocracia por seus escritos, em especial  “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905) e “Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião” (1917/1920).

Entende o pensador, em linhas gerais e absolutamente superficiais de nossa parte, que o êxito das organizações capitalistas se deu, e se dá, exatamente pela adoção de regramentos rígidos e padrões de conduta que podem ser repetidos, calculados, retificados e, a qualquer tempo, avaliados.  A este conjunto de regras que pressupõe divisão do trabalho e qualificação para a atribuição, impessoalidade, supervisão e conferência permanentes e que, pelos avessos, predispõe a aferição da etapa anterior pelo realizador da etapa seguinte, deu-se o nome de burocracia. Grosso modo, burocracia é controle sistemático das etapas do processo visando ao resultado pretendido.

Não se colhe em Weber o pensamento axiológico acerca da adoção do sistema burocrático. A noção que se tem, diversa da forma vexatória que hoje conferimos ao termo, é de um padrão de atitudes pré-definido, de rigoroso controle do processo, das etapas de consecução do objeto que leva a êxito as organizações. Vendo por este ângulo, a burocracia é essencial ao resultado. Controla as várias fases e etapas do processo, permitindo a intervenção retificadora no exato ponto da irregularidade, evitando danos maiores ou irreparáveis.

Transportando tal conceito para a administração pública, longe de se traduzir em instrumento de mora e pouca produtividade como hoje definimos, o modelo burocrático instalou a era do controle rigoroso, formal e, dentro do pretendido, satisfatório, em tese, dos atos de governo, realizando-se como forma de obtenção de melhores resultados e exercício de permanente vigilância sobre o patrimônio coletivo.

Para fixarmos um juízo de valor, se a burocracia é benéfica ou não aos interesses do Estado e do administrado, é necessário estabelecer um marco conceitual sobre os estados modernos concebidos no século XVIII e as estruturas de governo que hoje dispomos. Mais amplas e ágeis, as atuais relações de governo tornaram obsoletos os métodos da burocracia tradicional, embora não podemos dispensá-la completamente quando o assunto versa sobre o controle da gestão pública. Há que se modernizar o controle, à medida que o Estado avança sobre outras áreas do social e econômico e torna mais complexas as suas relações usuais, sem, contudo, dispensar ou minimizar sua atuação.


3. Do Controle enquanto instrumento de consolidação da Democracia

A palavra administrar, nos ensinamentos de Chiavenato (1987), tem sua origem no latim, e seu significado original implica subordinação e serviço: ad, direção para, tendência; minister, comparativo de inferioridade; e sufixo ter, que serve como termo de comparação, significando subordinação ou obediência, isto é, aquele que realiza uma função abaixo do comando de outro, aquele que presta serviço a outro.

Isso, no âmbito da gestão pública, consolida e reafirma o conceito de que o gestor imbuído neste mister “tange alheio gado” cuida de interesses coletivos e não próprios. Assim, a definição etimológica de Administração sepulta, definitivamente, o conceito patrimonialista do absolutismo, em que a pessoa do governante se confundia com o Estado.

Quando se tem a dimensão do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, percebe-se que o administrador público age, ou deveria agir, sob o comando do poder originário do povo, em nome de quem exerce a atribuição de gerenciamento:

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Por óbvio, a evolução das relações dos governos e sua abrangência em outras áreas das ciências sociais e econômica ao longo dos anos, como já dissemos, tornaram obsoletas algumas ferramentas da gestão burocrática que se mostram dispendiosas ou morosas em suas respostas à população. A mudança de paradigmas ocorrida no último quarto do século passado, a que se chamou administração gerencial do Estado, por certo não vem abolir os métodos e rituais do modelo burocrático, mas flexibilizar alguns procedimentos, evitando o excesso de formalismo e, consequentemente, instituir novos mecanismos de controle.

Mais que isso, à medida que se exerce efetivo controle sobre as ações de governo, compartilha-se o poder com quem de fato o detém: o povo, aprimorando as relações democráticas. Longe de constituir um olhar desconfiado sobre aqueles que nos governam, o controle mostra-se como aperfeiçoamento da administração cooperativa que consolida o processo democrático.


4. Mecanismos de Controle da Gestão Pública Contemporânea

Seguindo as tendências da administração gerencial do Estado, tem-se como o primeiro embrião da modernização do Estado Brasileiro a Reforma do Estado de 1967, que positiva o controle como ferramenta de gerenciamento com a edição do Decreto Lei 200/67, de 25 de fevereiro de 1967. Tal instrumento ordenou procedimentos de descentralização e desburocratização, sem declinar da necessidade de controle interno dos atos de gestão (art. 13, a), e do controle externo (art. 13, b), excluindo, em parte, as ferramentas de controle do processo (art. 14) que é tendência marcante do modelo burocrático:

Art. 13. O contrôle das atividades da Administração Federal deverá exercer-se em todos os níveis e em todos os órgãos, compreendendo, particularmente:

a) o contrôle, pela chefia competente, da execução dos programas e da observância das normas que governam a atividade específica do órgão controlado;

b) o contrôle, pelos órgãos próprios de cada sistema, da observância das normas gerais que regulam o exercício das atividades auxiliares;

c) o contrôle da aplicação dos dinheiros públicos e da guarda dos bens da União pelos órgãos próprios do sistema de contabilidade e auditoria.

Art. 14. O trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de contrôles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco[4].

Outras ferramentas de transparência fiscal foram concebidas além daquela gama restrita prevista no artigo 13 do Decreto Lei 200/67, quando da revisão constitucional de 1967. Retomou-se o tímido controle interno como um sistema de autotutela, e o controle externo como evolução do modelo criado[5] pela Carta da República de 1891, através dos tribunais de contas, conforme previsto no artigo 71 da Carta de 1967:

Art.71 - A fiscalização financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional através de controle externo, e dos sistemas de controle interno do Poder Executivo, instituídos por lei.

§ 1º - O controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas e compreenderá a apreciação das contas do Presidente da República, o desempenho das funções de auditoria financeira e orçamentária, e o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.

A crise do Estado no final dos anos 80 provocou a redefinição do papel dos governos. Recrudescida, em grande parte, pela queda dos Estados Sociais, inclusive o soviético, a globalização e as novas tendências advindas do modelo neoliberal, edificadas nas cinzas do pensamento Hayek[6], decididamente afetou o modelo de gestão da coisa pública.  A redemocratização dos governos, sobretudo no Brasil, nas duas últimas décadas do século passado, passou a exigir dos mandatários, por um lado, maior eficiência e, por outro, maior transparência, inovando no controle efetuado pelo cidadão.

A adoção de um Estado Garantidor erigido na Carta Política de 1988, em detrimento de um Estado Provedor, que se findava no fracasso do modelo social keynesiano, modificou in totum as relações com o cidadão-contribuinte. Por definição do novo modelo, o cidadão deixa de ser um apaniguado pelo Estado e passa a travar com este uma relação de negócio. O cidadão deixou de ser o assistido passando a ser o cliente, e o gestor público se transformou em um delegatário de poderes, prestador de serviços, e não mais um chefe absoluto de governo. Merecidamente, este novo modelo de gestão passou a se denominar Administração Gerencial.

No mesmo vértice, a minimalização do Estado proposta pelo Consenso de Washington e a delegação de atribuições e compartilhamento de responsabilidades (accountability), em decorrência da proposta neoliberal de Estado Necessário, exigiu a reformulação dos instrumentos de controle.


5. Das Formas de Controle

Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro (2007),

[a] finalidade do controle é a de assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação, impessoalidade; em determinadas circunstâncias, abrange também o controle chamado de mérito e que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa (DI PIETRO, 2007, p.670).

Em estudo preliminar, entendemos que o exercício do controle se vincula aos freios da própria estrutura de Estado enquanto mecanismos criados pelo sistema político-administrativo para se autogerenciar. Obviamente, este sistema constitucional de limitação da ação governamental se infere como modalidade de Controle Interno enquanto sistema organizado de supervisão administrativa. E define-se como modalidade de Controle Externo quando, por delegação, o exercício é entregue a entidades do próprio estado com missão de fiscalização.

Ab initio, definiremos como Controle Objetivo, abstrato e genérico aquele que deriva da forma normativa da Lei, impondo regras e limites ao gestor, direcionando sua atuação de maneira direta. Citamos, como exemplo, a definição dos índices constitucionais de investimentos em educação (art. 212) e em saúde (art.198 com a regulamentação da Emenda 29); os limites máximos de despesas com pessoal (art. 169 c/c art. 19 da LC 101/2000); as  limitações do poder de tributar (art. 150/152); a definição dos percentuais de investimentos do Fundeb (art. 60 do ADCT c/c Lei 11.494 de 20/06/2007), entre outros.

Noutro gume, temos o Controle Subjetivo, concreto, direcionado, é aquele que se impõe por disposições normativas inferiores e se efetivam como sistemas operacionais de atividade estatal, como corolário na aferição dos ditames constitucionais. Especificamente temos, por exemplo, os sistemas de informação da saúde (DATASUS); o sistema de informação de obras públicas (SISOBRAS); o controle de licitações e contratos administrativos (SICOP) e de movimentação de pessoal (FISCAP), estes três últimos mantidos pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais nos moldes de outras cortes de contas do País, que se somam a outras modalidades de prestação de contas da gestão administrativa.

É neste último que se expõe a fragilidade técnica dos governos, que resulta em dezenas de ações judiciais de improbidade administrativa contra os gestores e representa uma barreira instransponível da burocracia para outros tantos. O critério de isonomia com que são tratados os diferentes entes de Estado perante os organismos de controle muitas vezes supera a capacidade técnica dos governos. Os efeitos são danosos.

Didaticamente, os doutrinadores do Direito Administrativo têm dividido o controle dos atos de governo quanto à forma e quanto ao órgão que o exerce e quanto ao tempo do exercício, havendo outras maneiras de estudo distintas da que aqui adotaremos. Seguindo corrente doutrinária majoritária, para este trabalho, dividiremos assim o estudo do Controle da Administração Pública:

I - quanto à sua localização:

a) Interno - quando exercido por ferramentas de gestão do próprio órgão administrativo (aqui incluído o sistema de controle objetivo que já tratamos), e

b) Externo, quando emanado de terceira entidade, do próprio Estado (parlamentar) ou fora dele (sociedade).

II - Quanto ao órgão que exerce:

  1. Autocontrole ou autotutela, quando emana da própria administração, advindo dos mecanismos herdados da administração burocrática, como ferramenta de aferição interna ou por força de lei em procedimentos previamente definidos.
  2. Legislativo ou parlamentar, quando exercido pelo Poder Legislativo, através de seus órgãos próprios (Plenário, Comissões permanentes ou especiais) ou Auxiliares (Tribunais de Contas).
  3. Judicial, quando exercido exclusivamente pelo Poder Judiciário, mediante provocação, detendo-se principalmente à análise da legalidade dos atos administrativos, embora se tenha entendimento mais extensivo de tal alcance, como veremos oportunamente.
  4. Social, quando exercido pela Sociedade, através do cidadão comum, nos termos previstos na Constituição (art. 5º, XXXIII e XXXIV), por meio dos conselhos comunitários e entidades semelhantes enquanto mecanismos de agregação e organização social ou por atuação do Ministério Publico em sua função institucional de defesa de interesses coletivos e difusos à luz do art. 129 da CF/88.

III - Quanto ao momento em que se efetiva (art. 77 da Lei 4.320/64)[7]:

  1. prévio (antes da prática do ato);
  2. concomitante (em todas as etapas do ato e durante a sua vigência);
  3. posterior ou subsequente (realizado após a emanação do ato, aferindo resultados ou consequências).

Temos consciência de que a distribuição aqui proposta é meramente didática, haja vista superposição de atuação dos instrumentos de controle, um não dispensando o outro, da mesma forma que não se limita pelo espaço, pelo tempo ou pelo objeto.


6. Do Controle Interno

Instituído pela Lei 4.320/64, com propósito meramente contábil-financeiro, o controle interno se propôs a ordenar o registro dos atos de governo, limitando sua extensão e atividade ao que a lei discorre:

Art. 75. O controle da execução orçamentária compreenderá:

I - a legalidade dos atos de que resultem a arrecadação da receita ou a realização da despesa, o nascimento ou a extinção de direitos e obrigações;

II – a fidelidade funcional dos agentes da administração responsáveis por bens e valores públicos;

III – o cumprimento do programa de trabalho expresso em termos monetários e em termos de realização de obras e prestação de serviços.

Deduz-se a sua instituição na modalidade de controle interno, embora a norma não seja expressa pela continuidade da leitura do texto legal, em que se mantém o exercício do controle externo pela entidade estatal criada com tal propósito:

Art. 76. O poder executivo exercerá os três tipos de controle a que se refere o artigo 75, sem prejuízo das atribuições do Tribunal de Contas ou órgão equivalente.

Equivocadamente, a lei pressupõe o controle apenas como ação ou atividade restrita ao Poder Executivo, omitindo-se quanto aos atos de gerência que, embora atípicos, possam vir a ser praticados por outros Poderes ou personalidades derivadas na modalidade de Administração Indireta.

Inicialmente, poder-se-ia considerar que a unicidade orçamentária e sua gestão concentradas no Poder Executivo conferem a este primazia sobre a arrecadação e as despesas.  No entanto, a ingerência do Executivo na gestão financeira de outro Poder, especificamente na modalidade de controle sobre a execução orçamentária, ainda que se defenda a unicidade do orçamento, fere dispositivos constitucionais de independência dos Poderes.

É bom que se diga que a lei 4.320/64 foi recepcionada pela Carta Constitucional de 1967 e também pela Constituição de 1988.  

Por sua vez, o Decreto-Lei 200/67, igualmente recepcionado pela Carta Constitucional de 1967 e em parte pela Constituição de 1988, deu ao Controle Interno novas dimensões, como já citamos, além de procedimentos meramente contábeis-financeiros, estendendo sua atuação à racionalização de atividades (art. 13/14 do DL 200/67) e busca de maior eficiência no serviço.

Entretanto, a Carta Política de 1988, recuperando a dimensão do texto constitucional de 1967 (art. 71)[8], redefiniu o chamado “sistema de controle interno” (art. 31 e 70), prevendo não apenas uma ferramenta de controle, mas um conjunto articulado de ações com finalidades próprias de auditoria permanente, orientação e normatização, em parte reacendendo ferramentas da antiga burocracia estatal para cumprir o seu mister, extensiva a todos os Poderes da República, em todos os níveis de gestão.

De certa forma, corrigindo a distorção apresentada pela Lei 4.320/64, a Constituição de 1988 estendeu o chamado “sistema de controle interno” a todas as pessoas de Estado, por força do artigo 70, transcrito abaixo com nossos grifos:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Enfatizando a proposta, o artigo 74 da mesma Carta dispõe sobre o sistema de controle interno, definindo seu alcance e atuação, sem perder de vista a unicidade orçamentária, da seguinte forma:

Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:

I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;

II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;

III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;

IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional;

§ 1º - Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.

Depois da entrada em vigor da Lei 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Controle Interno, enquanto procedimento sistêmico da administração, ganhou corpo e importância, convertendo em rotina atividades de auditoria permanente, normatização e avaliação periódica de resultados.

A esse “sistema”, conferiu à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) o dever legal de endossar os atos de gestão financeira e execução orçamentária (at. 54 parágrafo único da LC 101/2000), o que lhe atribui status de órgão permanente e essencial da administração pública:

Art. 54. Ao final de cada quadrimestre será emitido pelos titulares dos Poderes e órgãos referidos no art. 20, Relatório de Gestão Fiscal, assinado pelo:

I - Chefe do Poder Executivo;

II - Presidente e demais membros da Mesa Diretora ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Legislativo;

III - Presidente de Tribunal e demais membros de Conselho de Administração ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Judiciário;

IV - Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados.

Parágrafo único. O relatório também será assinado pelas autoridades responsáveis pela administração financeira e pelo controle interno, bem como por outras definidas por ato próprio de cada Poder ou órgão referido no art. 20 (grifo nosso).

Por sua vez, a LRF dotou o controle interno de atribuições outras, que incluem a fiscalização das metas e alcance das ações de governo, recuperando os ditames do art. 75, III da Lei 4.320/64, e ampliando o alcance do artigo 74, I da CF/88, não se limitando ao controle contábil/financeiro propriamente dito:

Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público fiscalizarão o cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a:

I - atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias;

II - limites e condições para realização de operações de crédito e inscrição em Restos a Pagar;

III - medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite, nos termos dos arts. 22 e 23;

IV - providências tomadas, conforme o disposto no art. 31, para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respectivos limites;

V - destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, tendo em vista as restrições constitucionais e as desta Lei Complementar;

VI - cumprimento do limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver.

É o próprio texto legal que não nos permite reduzir o Sistema de Controle Interno às rotinas de auditoria. Valendo dos propósitos de administração por resultados, que emprestamos à iniciativa privada, o sistema de Controle Interno torna-se um canal permanente de autoavaliação da qualidade do serviço público, algo mais abrangente que um simples órgão de estrutura burocrática. Aproximamos dos SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor), mantidos pelas empresas privadas, ou do conceito de ombudsman, trazendo para a estrutura do Controle Interno procedimentos de ouvidoria e manifesta intenção de constante melhoria na qualidade da prestação dos serviços.


7. Do autocontrole ou autotutela

Quando se inicia qualquer discussão acerca do autocontrole da administração pública, não raro citamos como embasamento de nossa convicção a súmula 473 do Supremo Tribunal Federal (STF):

A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação judicial.

No mesmo alcance, a súmula 376 do STF:

A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

Trata-se do poder de revisão do ato administrativo, conferido ao administrador, a fim de o mesmo se preservar de um dano maior ou de ferir a legalidade, mantendo vigente ato reconhecidamente ilegal ou, até mesmo, agir em defesa do interesse público. Pende-se, pois, na presunção de legalidade do ato administrativo, conceito inicial de que o ato, antes de praticado, sofreu análise detalhada da autoridade que o emitiu ou praticou.

Entretanto, o alcance do autocontrole tende a ir além da capacidade revisora, mantendo-se, antes, como preventivo da ilegalidade, orientando o poder discricionário, evitando a tomada de atitudes polêmicas, contraproducentes ou desnecessárias, ainda que legais. Lastreia-se, portanto, nos princípios da Razoabilidade, da Proporcionalidade e da Moralidade Administrativa.  Como nos ensina Hely Lopes Meireles (2010),

[p]or considerações de direito e de moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos: - 'non omne quod licet honestum est' (MEIRELES, 2010, p, 84 e seguintes)


8. Do Controle Externo

Por definição, o controle externo é aquele ao qual a administração pública se submete, exercido por terceira pessoa. Neste universo, temos o Controle Parlamentar, exercido pelo Poder Legislativo e pelos Tribunais de Contas, o Controle do Judiciário e o Controle Social, conquista da Constituição de 1988.

Já a Constituição de 1891 imaginara um órgão técnico capaz de “liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso” (art. 89).  

Evidentemente, o conceito de “liquidar” adotado no texto de 1891 não difere daquele emanado no art. 63 da Lei 4.320, cujo propósito é a aferição da exigibilidade dos créditos (a pagar e a receber) e a legalidade dos procedimentos na sua constituição e escrituração.  Também, forçosamente, pela forma disposta no texto legal, o controle que se pretendia era de natureza posterior, revisora (antes de as contas serem prestadas ao Congresso). Esse embrião dos atuais tribunais de contas, embora o seja na origem, não o é mais nas finalidades ou propósitos.

O Controle Parlamentar, como veremos adiante, insere-se na definição de controle externo (em relação ao Poder Executivo), que pela disposição hodierna se exerce, de per si e com auxilio dos Tribunais de Contas.

Ao instituir entidade cuja atribuição é de controle externo, auxiliar do Poder Legislativo, em relação a esse Poder o controle também permanece como externo, preservando a autonomia dos Tribunais de Contas de fiscalizar,  o Poder Legislativo, do qual é auxiliar. Cabe ainda aos Tribunais de Contas controlar o Poder Judiciário em relação aos atos de gestão financeira (art. 71, IV da CF/88).  

Com o advento da Administração Gerencial e, em especial, pela evolução da informática, o exercício do Controle Externo Legislativo pelos tribunais de contas ganhou contornos mais ágeis. Deixando de ser meramente um controle posterior, os Tribunais de Contas, nos dias atuais, centralizam suas ações no controle prévio (que examina o ato antes de sua consolidação); preventivo (emitindo orientações quanto à prática do ato); concomitante (aferindo a lisura das etapas de realização) e posterior (não mais em caráter revisor, mas mensurando  resultados, verificando eficiência e eficácia nos investimentos públicos). Um grande avanço, sem dúvida.


9. Controle Legislativo ou Parlamentar

A noção de controle, dentro da própria estrutura de poder de Estado, esboçada nos preceitos iluministas, tomou corpo nas teorias de Locke (Ensaio sobre o Governo Civil, 1690) para quem o Parlamento, enquanto órgão prévio de consulta, exerce limitação ao poder do Monarca. Já discorremos rapidamente sobre esta modalidade de controle, a que chamamos Controle Objetivo, imposto pela própria Carta Constitucional como limitador da ação administrativa.

Na mesma esteira, a tripartição de poderes, idealizada por Montesquieu na obra O Espírito das Leis, escrita em 1748, serve, nas palavras do autor, “[p]ara que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder” (2000, p. 166).  

Assim, o poder limita o poder, não pela simples divisão de tarefas ou atribuições, mas pela supervisão direta ou indireta exercida uns sobre os outros, quanto aos atos praticados. Tal se comprova, mormente pela parcela autorizativa conferida ao Poder Legislativo, como exercício prévio de controle financeiro direto e organizacional sobre os atos dos demais Poderes. Não por acaso, a leitura dos princípios anunciados por Hamilton, Madison e Jay (1979) vão dar à luz a teoria dos freios e contrapesos, amplamente aceita nos dias atuais, em que os poderes, harmônicos e independentes, se consolidam, em verdade, como interdependentes.

Neste cenário, o Princípio da Legalidade, instituído no artigo 37 da Constituição de 1988, consagra o controle prévio parlamentar sobre ações de governo:

Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].   

Sobre o princípio da Legalidade, tem-se que ao administrador público só é possível de fazer aquilo que a lei expressamente autorize ou determine, em uma derivação do enunciado no artigo 5º, II da Constituição Federal de 1988:

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Ainda sobre tal princípio, ensina-nos Celso Ribeiro Bastos (1990):

De um lado representa o marco avançado do Estado de Direito, que procura jugular os comportamentos, quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressão. Nesse sentido, o princípio da Legalidade é de transcendental importância para vincar as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista, este último de antes da Revolução Francesa. Aqui havia lugar para o arbítrio. Com o primado da lei cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei, que se presume ser a expressão da vontade coletiva.

De outro lado, o princípio da legalidade garante o particular contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em consequência, uma mecânica entre os Poderes do Estado, da qual resulta ser lícito apenas a um deles, qual seja o Legislativo, obrigar os particulares (BASTOS, 1990, p. 172).

Essa modalidade de controle prévio-autorizador conferida ao Poder Legislativo não exclui do administrador a parcela de Poder Discricionário inerente à função, todavia o prenuncia e o legitima.

Segundo o conceito de Celso Antonio Bandeira de Mello (1992), o Poder Discricionário é:

a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação (MELLO, 1992, p. 48).

Temos, pois, que a discricionariedade não é completa ausência do comando legal, pois tem sua origem na lei e por ela se norteia, mantendo seus limites no princípio constitucional da moralidade, onde se atrela o autocontrole.

Esclarece Hely Lopes Meirelles (2010) que

a legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso (MEIRELLES, 2010, p. 67).

Em decorrência do princípio da legalidade, a assertiva é que a Administração Pública não pode agir contra a lei (contra legem) ou além da lei (praeter legem), só podendo agir nos estritos limites da lei (secundum legem), ainda que na prática de atos considerados discricionários ou vinculados à atividade administrativa.

Ao controle prévio parlamentar exercido pela progênie da lei se soma o controle concomitante e posterior parlamentar, que se exerce por seus meios (Comissões Internas) ou com auxilio dos tribunais de contas – art. 31 e § 1º da CF/88, no que diz respeito aos municípios, e art. 71, no que se reporta à União, extensivo por força da simetria concêntrica aos Estados e ao Distrito Federal (art. 75).


10. Do Controle Judicial

Não é nosso interesse discutir aqui, em espécie, o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário em face dos instrumentos normativos emanados dos demais Poderes. Cingiremos nossa discussão ao controle judicial da legalidade dos atos administrativos, mediante provocação da parte, nas formas permitidas em lei, ou do Ministério Público em sua função institucional.  

A Constituição de 1988 reserva ao cidadão o direito de questionar judicialmente atos da administração por meio de Mandado de Segurança Individual (art. 5º. LXIX); Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX); Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI); Habeas Corpus (art. 5º, LXVIII), Habeas Data (art. 5º, LXXII) e Ação Popular (art. 5º, LXXIII). Ao Ministério Público, em nome da Sociedade ou na defesa de direitos individuais indisponíveis, cabe a Ação Civil Pública (art. 129, III).

É necessário que se registre que a Ação Civil Pública tem sido amplamente utilizada para repreender atentados à boa governança, punir atos de improbidade administrativa e compelir a realização de atos administrativos olvidados pela inércia do administrador, constituindo-se como importante instrumento de controle repressivo que se faz com apoio do Poder Judiciário.

Não é nosso propósito adentrar as particularidades de cada um desses remédios constitucionais, por meio dos quais o cidadão se opõe aos interesses do Estado, exercendo, por sua vez, o controle popular ou social, por via indireta. Igualmente, não nos interessa aprofundar nas discussões acerca do uso indiscriminado da Ação Civil Pública enquanto ingerência do Ministério Público na ação governamental ou na tutela da boa governança. Limitemo-nos, por ora, a delinear a atuação do Poder Judiciário enquanto mecanismo de controle da gestão pública.

Tratando especificamente do Controle judicial dos atos administrativos, Hely Lopes Meirelles (2010) defende:

O Controle judicial dos atos administrativos é unicamente de legalidade, mas nesse campo a revisão é ampla, em face dos preceitos constitucionais de que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV); conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, individual ou coletivo, não amparado por "habeas corpus" ou "habeas data" (art. 5º, LXIX e LXX); e de que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe (art. 5º, LXXIII). Diante desses mandamentos da Constituição, nenhum ato do Poder Público poderá ser subtraído do exame judicial, seja ele de que categoria for (vinculado ou discricionário) e provenha de qualquer agente, órgão ou Poder. A única restrição oposta quanto ao objeto do julgamento (exame de legalidade ou da lesividade ao patrimônio público), e não quanto à origem ou natureza do ato impugnado.

Certo é que o Judiciário não poderá substituir a Administração em pronunciamentos que lhe são privativos, mas dizer se ela agiu com observância da lei, dentro de sua competência, é função específica da Justiça Comum, e por isso mesmo poderá ser exercida em relação a qualquer ato do Poder Público, ainda que praticado no uso da faculdade discricionária, ou com fundamento político, ou mesmo no recesso das câmaras legislativas como seus interna corporis. Quaisquer que sejam a procedência, a natureza e o objeto do ato, desde que traga em si a possibilidade de lesão a direito individual ou ao patrimônio público, ficará sujeito a apreciação judicial, exatamente para que a Justiça diga se foi ou não praticado com fidelidade à lei e se ofendeu direitos do indivíduo ou interesses da coletividade (MEIRELLES, 2010, p, 67 e seguintes).

No mesmo sentido, os ensinamentos doutrinários de José dos Santos Carvalho Filho (2010):  

Todos os atos administrativos podem submeter-se à apreciação judicial de sua legalidade, e esse é o natural corolário do princípio da legalidade. Em relação aos atos vinculados, não há dúvida de que o Controle de legalidade a cargo do Judiciário terá muito mais efetividade. Com efeito. Se todos os elementos do ato têm previsão na lei, bastará, para o Controle da legalidade, o confronto entre o ato e a lei. Havendo adequação entre ambos, o ato será válido; se não houver, haverá vício de legalidade.

No que se refere aos atos discricionários, todavia, é mister distinguir dois aspectos. Podem eles sofrer controle judicial em relação a todos os elementos vinculados, ou seja, aqueles sobre os quais não tem o agente liberdade quanto à decisão a tomar. Assim, se o ato é praticado por agente incompetente; ou com forma diversa da que a lei exige; ou com desvio de finalidade; ou com o objeto dissoante do motivo etc.

O controle judicial, entretanto, não pode ir ao extremo de admitir que o juiz se substitua ao administrador. Vale dizer: não pode o juiz entrar no terreno que a lei reservou aos agentes da Administração, perquirindo os critérios de conveniência e oportunidade que lhe inspiram a conduta. A razão é simples: se o juiz se atém ao exame da legalidade dos atos, não poderá questionar critérios que a própria lei defere ao administrador. (FILHO, 2010, p. 81 e seguintes).

A fim de se preservar a independência dos Poderes, o art. 2º da CF, em tese, limita o Poder Judiciário à análise da legalidade formal do ato combatido, sem adentrar à motivação, à oportunidade e a outros fatores insertos na esfera da discricionariedade. Não obstante, tal limitação não tem impedido o Poder Judiciário de deferir medidas protetivas de direito individual, impondo atribuições ao Poder Executivo, especificamente no que tange ao atendimento na área de saúde. Neste particular, pondera o Judiciário o conflito entre dois princípios – a defesa da vida e a independência dos poderes –, não raro optando pelo primeiro[9]. É ampla a jurisprudência nesta seara. Entretanto, é uma tendência preocupante, posto que já existem decisões judiciais neste mesmo sentido prolatadas em defesa do meio ambiente e do Patrimônio histórico, por exemplo, em que o Judiciário tem-se imiscuído em assuntos administrativos, a nosso sentir, numa clara subversão ao princípio constitucional da separação dos poderes.[10]


11. Do Controle Social

A redemocratização do país ocorreu no momento de valorização dos movimentos sociais oriundos da abertura política que antecedeu o fim do Regime Militar. Experiências como o movimento da Anistia (final dos anos 70) e Diretas Já (1984) prepararam a alma do brasileiro para a politização em massa após anos de silêncio. Não por acaso, a Carta Política de 1988 mereceu de um de seus defensores a alcunha de Constituição Cidadã. Nunca o cidadão comum obteve tamanho espaço para exercício de poder em defesa de interesses individuais, coletivos ou transindividuais oponíveis em face do Estado como previsto na Constituição de 1988. A própria sistemática de elaboração do texto constitucional, que permitiu emendas populares, deu sinais evidentes de uma democracia mais direta e menos representativa.

Ao definir o modelo democrático brasileiro, cuja recente lembrança da tirania ainda o supliciava, quis o legislador dignificar a cidadania, inserindo no texto constitucional ferramentas para defesa do indivíduo ante a fúria leviatã do Estado.

Preceitua o artigo 1º que a cidadania é um dos fundamentos da República (inciso II), estabelecendo no parágrafo único:

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O exercício do poder de forma direta, inclusive como limitador do Poder Estatal, é o objeto de nossa discussão neste tópico. Sobre os mecanismos de controle através de provocação ao Poder Judiciário, já os delineamos em outra oportunidade.

No elenco de garantias individuais do art. 5°, a Constituição Federal  prevê que todo o cidadão tem o direito à informação e de petição perante os órgãos públicos. Tal permissivo emerge como mecanismo de controle do ato administrativo para defesa de direito ou esclarecimento de situações individuais ou coletivas e, especialmente, em defesa de direito ou contra ilegalidade e abuso de poder.

Art. 5°:

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder;  

Difere o instrumento de Controle Social do exercício da soberania popular anunciado no artigo 14 da CF e seus incisos (voto secreto e universal, plebiscito, referendo e proposição de lei de iniciativa popular). A própria Constituição, na concepção do Estado meramente garantidor de direito sociais, estabelece mecanismos e oportunidades de participação, definição e controle social de políticas públicas.

Já o artigo 29, XII preceitua:

XII - cooperação das associações representativas no planejamento municipal;

Na sequência, o parágrafo 3º do artigo 31 estende aos munícipes a função fiscalizadora dos atos dos seus mandatários:

§ 3º - As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.

O artigo 49 da LRF, por sua vez, ampliou o alcance deste instrumento de controle ao dispor sobre obrigatoriedade de acesso livre às contas dos Chefes do Poder Executivo:

Art. 49. As contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, concebida para disciplinar o alcance do artigo 163, I, da CF, nas suas definições preliminares conceitua a administração pública como ação planejada e transparente (art. 1º, § 1o: A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente (...)).

A transparência, inicialmente atrelada ao princípio constitucional da publicidade, não se basta, todavia, apenas no seu cumprimento. Por definição legal, o alcance da transparência evidencia a efetiva participação do cidadão contribuinte na discussão, formulação e implementação das políticas públicas e na decodificação, para linguajar popular, dos termos técnicos adotados na gestão financeira do Estado. Assim, prescreve a Lei de Responsabilidade Fiscal, merecendo destaque os incisos I e II do parágrafo único do artigo 48, transcrito abaixo com nossos grifos:

Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.

Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:

I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos;

II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público;

III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.

Na definição, implantação e controle das políticas públicas para as quais a participação social é essencial, na forma prevista na Constituição, o efetivo controle social se dá pelos Conselhos comunitários, ferramentas de gestão participativa, como define o Portal da Transparência do Governo Federal:

O controle social pode ser feito individualmente, por qualquer cidadão, ou por um grupo de pessoas. Os conselhos gestores de políticas públicas são canais efetivos de participação, que permitem estabelecer uma sociedade na qual a cidadania deixe de ser apenas um direito, mas uma realidade. A importância dos conselhos está no seu papel de fortalecimento da participação democrática da população na formulação e implementação de políticas públicas.

Os conselhos são espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa e consultiva, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais. Os conselhos são o principal canal de participação popular encontrada nas três instâncias de governo (federal, estadual e municipal).

O Controle Social, a despeito dos demais mecanismos de controle, apresenta-se de maneira propositiva, como parceiro efetivo na formulação e definição de políticas públicas, em um ativismo democrático capaz de compartilhar de maneira harmoniosa o exercício do poder político com os agentes públicos eletivos em uma modalidade de “controle cooperativo”.  

Os conselhos comunitários, ainda que careçam de aprimoramento em nosso sistema político-administrativo, seja por comprometimento e preparo dos seus agentes, seja pela abertura e transparência dos mandatários, em alguns municípios têm se transformado em espaços de democracia participativa, reunindo valiosas contribuições para melhoria da qualidade dos serviços públicos.

Como fórum permanente de discussões, os Conselhos se revelam valiosos mecanismos de controle preventivo, propositivo e aglutinador. Tal atuação tem possibilitado o aprimoramento e a maior transparência do processo decisório na viabilidade, formulação e implementação das políticas públicas, bem como na efetividade dos resultados.


12. Considerações finais

É indiscutível a necessidade do controle quando se tem por horizonte a probidade e a eficiência administrativa. Contudo, não se pode aceitar que o controle emperre a administração de maneira a inviabilizar a ação governamental. Nesse sentido, torna-se, pois, imperioso criar uma consciência administrativa proba, gestão responsável e efetivamente planejada, compartilhada com o cidadão comum, que mais de perto pode acompanhar as políticas públicas que se desenvolvem no seu microcosmo. No mesmo diapasão, os sistemas de controle devem simplificar procedimentos na medida em que se qualifica o quadro técnico dos entes de Estado.


Referências

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BRASIL. Decreto Lei 200/67 de 25/02/1967. Disponível em https://www.planalto.gov.br. Acesso em 04.01.2014.

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HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. In: Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita Editor, 1979.

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Notas

[1] Israel Quirino, advogado, mestrando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, especialista em Administração Pública, professor da Faculdade Presidente Antonio Carlos de Mariana – MG.

[2] O direito à boa administração foi positivado no artigo 41 da Carta de Nice - Declaração dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em Dezembro de 2000.

[3] A Sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público de sua administração. (Tradução nossa.)

[4] A grafia do texto legal transcrito está de acordo com a época.

[5] Constituição da República de 1891: Art. 89 - É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso.

[6] Frederick August von Hayek (1899/1992), economista austríaco, é considerado o pai do Neoliberalismo.

[7]  Art. 77. A verificação da legalidade dos atos de execução orçamentária será prévia, concomitante e subsequente.

[8] Constituição da República 1967: Art.71 - A fiscalização financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional através de controle externo e dos sistemas de controle interno do Poder Executivo, instituídos por lei.

[9] Veja, por exemplo, os julgados 041749.91.2011.8.13.0000 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (disponível em tjmg.jus.br); REsp 900458 STJ DJ 13/08/2007 e REsp 1218800 DJE 15.04.2011

[10] Sobre o tema veja os recentes julgados: 0081449.60.2011.83.13.0000; 3943120.89.2009.8.13.0672; 0431421.72.2009.8.13.0071 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, dispon[iveis em tjmg.jus.br.


Autor

  • Israel Quirino

    Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel. O controle da administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3932, 7 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27258. Acesso em: 19 abr. 2024.