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Consumo de drogas ilícitas é fato atípico

Consumo de drogas ilícitas é fato atípico

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Usuário só é punido se praticar determinadas condutas, dentre as quais não figura fumar, injetar-se ou inalar entorpecentes.

O oncologista, escritor e apresentador Drauzio Varella, em sua coluna quinzenal na Folha de S. Paulo, defendeu a legalização da maconha no Brasil. Na avaliação do respeitável profissional, autor de "Estação Carandiru", o expressivo contingente de usuários brasileiros (cerca de 7,8 milhões de brasileiros em 2012, descontados os menores de idade) inflacionaria ainda mais o falido sistema carcerário brasileiro:

Como se trata de droga ilegal, poderíamos considerá-los criminosos, portanto passíveis de prisão. Quantas cadeias seriam necessárias? Quem aceitaria ver o filho numa jaula superlotada, porque foi pego com um baseado?("Legalização da maconha", FSP, 26/7/2014)

Ora, se desde outubro de 2006 portar, adquirir, guardar ou cultivar maconha para uso próprio são condutas cominadas com penas restritivas de direito, jamais com privativas de liberdade, quem dirá CONSUMIR a droga. Tal conduta não está tipificada na legislação, logo não é crime, muito menos punível com prisão, ao contrário do veiculado na "Folha".

O que o art. 28 da lei 11.343 pune são outras CONDUTAS que, por tratar-se de crime próprio, são praticadas pelos usuários; adquirir, guardar, depositar, transportar, trazer consigo, semear, cultivar ou colher substâncias que causem dependência:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas II - prestação de serviços à comunidade III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

Argumenta-se não ser possível consumir a droga sem que o usuário pratique ao menos um dos tipos penais mistos elencados no caput e no § 1º. Com a devida vênia, imagine-se uma festa cujos convidados se deparem com alguns gramas de crack enfileirados em uma mesa. Ainda que estes confessem haver consumido a droga, nenhum crime terão cometido, pois a droga não lhes pertence. Não a adquiriram, nem a transportaram ou a mantiveram em depósito. Diferentemente de quem a tivesse disponibilizado, que, evidentemente, incorreria no art. 28 ou no Capítulo II da Lei de Drogas, dependendo das circunstâncias do caso.

Transportar, manter em casa, plantar ou cultivar drogas ilícitas representa um risco ao bem jurídico saúde pública. Ou seja, o usuário é "punido" não por ameaçar a própria higidez, mas por representar perigo à coletividade ao ter a posse de uma droga, ainda que em pequena quantidade (para o próprio consumo).

O consumo, decerto é prejudicial ao usuário, mas autolesão não é punida pelo ordenamento penal brasileiro (princípio da alteridade). A expressão "para consumo pessoal" é utilizada apenas para diferenciar traficantes de usuários. Para aqueles (traficantes) aplicam-se as penas previstas no Capítulo II da lei de drogas.

Em sua atual campanha publicitária ("O que a Folha pensa"), o diário paulista reafirma sua postura editorial em defesa da legalização do uso de drogas, mediante plebiscito ou referendo, a começar pela maconha, a exemplo do que ocorre em vários estados norte-americanos e no Uruguai.

O uso de drogas não deve ser considerado crime, mas uma questão de saúde pública. A produção e a venda dessas substâncias, se taxadas e controladas, podem gerar recursos para prevenção e tratamento. A legalização deve ser cautelosa e gradual. O ponto de partida deve ser a maconha, com limitações e campanhas educativas parecidas com as do álcool e do tabaco.

No editorial "Drogas às claras", texto publicado há dez anos (6/11/1994), a "Folha" já dizia que "é hora de a sociedade civil passar a discutir com serenidade, isenção e sem falsas hipocrisias os prós e os contras de uma eventual descriminalização do uso das drogas". Entretanto, o consumo de drogas ilícitas tampouco era crime na vigência da legislação anterior (Lei n. 6.368/76), que previa penas privativa de liberdade e de multa para usuários.

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.

A menos que a lei especial venha tipificar o consumo, usuários não são criminosos. Segundo prescreve os princípios da legalidade e da anterioridade, estampados no art. 1º do Código Penal e no inciso XXXIX da Constituição da República, "não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".


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