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A Constituição Federal de 1988 e seu significado para o novo Direito Constitucional brasileiro: por que não acreditar?

A Constituição Federal de 1988 e seu significado para o novo Direito Constitucional brasileiro: por que não acreditar?

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A Carta foi pioneira no estabelecimento de um novo constitucionalismo brasileiro, definindo a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito, cuja concepção pode ser alcançada em seu conteúdo modificador da realidade.

1 INTRODUÇÃO

Como marco histórico que supera a experiência histórica autoritária e consolida o processo de reconquista de direitos, figura a Constituição Federal de 1988, que abre perspectivas de realização prática dos direitos fundamentais que inscreve em seu corpo normativo, pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de justiça social, fundadas na dignidade da pessoa humana.


2 DESENVOLVIMENTO

A Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela elaboração da nova Carta da República, de 1988, firmou o ingresso do Brasil no rol dos países democráticos, após vinte e cinco anos de repressão conduzida pelos sucessivos governos militares. Prevaleceu a opção de delegação dos poderes constituintes ao Congresso Nacional, não sendo selecionada a fórmula, que obteve amplo apoio na sociedade civil, de eleição de uma Constituinte exclusiva, a dissolver-se logo após a conclusão dos trabalhos.

Os trabalhos da Constituinte foram longos, encerrando-se, formalmente, em 5 de outubro de 1988, data da promulgação do novo texto constitucional. A ausência de um anteprojeto prévio, dada a rejeição, pelo presidente Sarney, do trabalho elaborado pela comissão de notáveis constituída para desenvolvê-lo, contribuiu para alongar as tarefas.

A inadmissão do projeto pelo governo fez-se tacitamente por via omissiva, deixando o Executivo de enviá-lo à Constituinte. Consta que o Presidente não se conformava, dentre outras coisas, com a opção parlamentarista do texto prévio. A consequência imediata desse procedimento,

[...] contrariando a velha praxe dos projetos sobre os quais costumavam trabalhar as Constituintes passadas, foi achar-se o colégio soberano sem um texto a partir do qual pudesse encetar sua tarefa, como fizeram os constituintes republicanos de 1890, 1933 e 1967. Os de 1946, colocados numa situação semelhante se inspiraram na Constituição de 1934. Em 1987, a Constituinte congressual principiou sem nenhum marco de referência. Esse dado de início se mostrou deveras negativo, porquanto as primeiras semanas da reunião constituinte se viram rodeadas de um véu de incertezas que cobria de indecisão os trabalhos iniciais, não raro tumultuados e anárquicos, revelando um aparente despreparo a par de muitas vacilações dos membros da Assembléia, até que as comissões se consolidaram. Mas a falta de um projeto oriundo do poder acabou sendo fator deveras positivo na legitimação do processo de espontaneidade com que foi conduzido (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p.495).

Além dos obstáculos naturais oriundos da heterogeneidade das visões políticas, a metodologia do trabalho serviu para aumentar as deficiências do texto final. Dividida, de início, em 24 subcomissões e, posteriormente, em 8 comissões, cada uma elaborou um anteprojeto parcial, resultando num emaranhado composto de 551 artigos. A falta de coordenação entre as diversas comissões resultou em um texto minucioso e prolixo, extenso demais para um documento dessa natureza, além de corporativo e casuístico, o que pode ser explicado pela influência dos lobbies e dos grupos de pressão. Segundo Luis Roberto Barroso (2006, p. 42), essa crítica,

[...] cabível e necessária, não empana o seu caráter democrático, mas apenas realça a fisionomia ainda imatura de um País fragilizado pelas sucessivas rupturas institucionais e pela perversidade de suas relações sociais. Como protagonista e beneficiária das disfunções atávicas da sociedade brasileira, sobrepaira uma classe dominante – a elite econômica e intelectual – que jamais se interessou ou foi capaz de elaborar um projeto generoso de país, apto a integrar à cidadania, ao consumo mínimo, enfim, à vida civilizada, os enormes contingentes historicamente marginalizados.

Tal constatação, no entanto, foi incapaz de retirar da nova Carta seu enorme significado para a realidade política brasileira que se principiava. A Constituição de 1988 refletiu os anseios de liberdade e democracia de todo o povo, consagrando-se marco inicial da restauração do Estado Democrático no Brasil e reafirmando os direitos fundamentais, especialmente os de cidadania, consagrando-os a partir de novas bases de valores e buscando realizá-los a partir do cumprimento de objetivos específicos.

O texto da Constituição, bastante criticado por entrar em assuntos que não deveriam merecer acolhimento na Lei Maior, evidenciou as pressões dos diferentes grupos da sociedade, não hesitantes na busca, demonstrada nos longos períodos de trabalho da Constituinte, de fixar o máximo de regras no documento como espécie de maior garantia para seu cumprimento.

É indiscutível o significado que a Nova Carta representou, acolhendo enfaticamente os princípios do Estado Democrático de Direito, por meio de clássicos instrumentos: voto direto, secreto e universal; tripartição do exercício do poder e garantias da independência do Legislativo e do Judiciário. A isso se alia o decidido engajamento em um compromisso de realização de democracia social, consubstanciado nos fundamentos e nos objetivos fundamentais da República e na anunciação dos lastros de governança da atividade econômica.

As inovações irradiam-se não apenas no campo dos direitos fundamentais, mas, também, na constitucionalização de importantes garantias, como a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo. No que alude à organização dos Poderes, promoveu-se maior equilíbrio, em especial pela atenuação da supremacia do Executivo. Quanto à organização do Estado, realizou-se uma descentralização política, valorizando-se Estados e Municípios mediante o alargamento de suas competências e de suas receitas.

A Carta foi pioneira no estabelecimento de um novo constitucionalismo brasileiro, definindo a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito, cuja concepção pode ser alcançada em seu conteúdo modificador da realidade.

E não é pouca coisa face ao contexto sempre dificultoso de nossas experiências constitucionais, acostumadas ao descumprimento das normas por aqueles que deveriam ser os primeiros a honrá-las e ao caráter utópico das leis, quase sempre separadas, por um grande abismo, da realidade social subjacente. Com efeito:

O processo histórico que se desenrolou na Europa Ocidental a partir do final da Segunda Guerra, no Brasil, só teve início após a promulgação da Constituição de 88. É verdade que já tínhamos controle de constitucionalidade desde a proclamação da República. Porém, na cultura jurídica brasileira de até então, as constituições não eram vistas como autênticas normas jurídicas, não passando muitas vezes de meras fachadas. Exemplos disso não faltam: a Constituição de 1824 falava em igualdade, e a principal instituição do país era a escravidão negra; a de 1891 instituíra o sufrágio universal, mas todas as eleições eram fraudadas; a de 1937 disciplinava o processo legislativo, mas enquanto ela vigorou o Congresso esteve fechado e o Presidente legislava por decretos; a de 1969 garantia os direitos à liberdade, à integridade física e à vida, mas as prisões ilegais, o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura campeavam nos porões do regime militar. Nesta última quadra histórica, conviveu-se ainda com o constrangedor paradoxo da existência de duas ordens jurídicas paralelas: a das constituições e a dos atos institucionais, que não buscavam nas primeiras o seu fundamento de validade, mas num suposto poder revolucionário em que estariam investidas as Forças Armadas (SARMENTO, 2011, p. 85-86).

Ao lado do núcleo liberal vinculado à questão social, a atuação do Estado passa a objetivar uma mudança do status quo, despontando a lei como instrumento de alteração efetiva do fato social, conjugando-se a função promocional do Estado Social com o papel de transformador das relações comunitárias. Nessa visão, diz José Luis Bolzan de Morais (2003, p. 105-108):

Quando assume o feitio democrático, o Estado de Direito tem como objetivo a igualdade, e, assim, não lhe basta a limitação ou a promoção da atuação estatal, mas referenda a pretensão à transformação do status quo. A lei aparece como instrumento de transformação da sociedade, não estando mais atrelada inelutavelmente à sanção ou à promoção. O fim a que pretende é a constante reestruturação das próprias relações sociais. [...] Ou seja, o Estado Democrático de Direito é uma fórmula de Estado Social que vai além de um projeto de bem-estar, como dito acima, previamente fixado e promove uma inovação nas relações entre o princípio democrático e o princípio (função) de garantia que advém das origens do constitucionalismo liberal.

Celebrou-se a redemocratização da vida política nacional, e, pela primeira vez na história constitucional brasileira, elencaram-se os direitos e garantias fundamentais antes da estruturação do Estado, traçando-se metas e objetivos específicos a serem alcançados, o que demonstra o reconhecimento dos sérios males – desigualdade de oportunidades, desemprego, miséria, marginalização etc. – que afligem a sociedade brasileira e a preocupação em assegurar a dignidade da pessoa humana como imperativo de justiça social. Para Judicael Sudário (2004, p.34), o novo texto, apesar de consignar valores liberais,

[...] preconizou um Estado Social baseado na soberania popular, na participação popular como forma de atuar político garantidor de legitimidade. Há, ainda, o título referente à Ordem Social, assim como a forma reiterada com que se define um verdadeiro sistema constitucional de valorização e proteção do meio ambiente, com a previsão de um processo de desenvolvimento sustentável. Destaque-se, ainda a relativização da propriedade em face da função social que esta deve desempenhar. O novo Estado preconizado pela Constituição Federal de 1988 deve seguir o caminho da participação popular, capaz de garantir e evidenciar o compromisso entre os interesses conflitantes do diversos e complexos grupos sociais, assegurando um mínimo de critérios e de valores comuns e legitimando as opções realizadas. [...] Na Constituição Federal de 1988, novos direitos sociais foram definidos, o rol dos titulares foi ampliado, assim como dos bens merecedores de tutela. Houve, inclusive, acréscimo nos direitos e garantias individuais, que alcançaram a condição de cláusulas pétreas e foram instituídos como princípios de aplicabilidade imediata, ensejando, nesse passo, a criação de mecanismos inéditos de controle da constitucionalidade através da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, do habeas data e do mandado de injunção, mantendo-se ainda o mandado de segurança e o habeas corpus, implantando-se, assim, um constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais.

Entretanto, por expressar a vontade de uma sociedade pluralista, dialética e repleta de contradições, a nova Carta revelou a permanência ainda sólida de uma herança colonial negativa, preservando, em pontos relevantes, a dominação de elites conservadoras e reacionárias. Nesse ponto, a fixação da taxa bancária de juros, o perdão de dívidas a empresários inadimplentes, a timidez com que se desenhou a questão federativa, a implantação de inúmeros dispositivos casuístas e o retrocesso na questão da reforma agrária expressam a resistência de segmentos privilegiados.

Os conteúdos positivos, porém, superam os negativos, especialmente no que se refere a direitos e garantias fundamentais. Avança-se quando se faz do racismo, da tortura e do tráfico de drogas crimes inafiançáveis, quando se reforça a proteção dos direitos e das liberdades constitucionais, quando se restitui ao Congresso prerrogativas roubadas pelos militares, quando se valoriza a função fiscalizadora sobre o Executivo por meio das comissões parlamentares de inquérito, quando se definem os princípios fundamentais de um Estado social, quando se determinam os princípios da ordem econômica, a defesa do meio ambiente, a proteção aos índios e as conquistas da seguridade social (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p.490).

Observa-se, ademais, que a Constituição vigente não mais se apresenta como instrumento jurídico limitado a estruturar poderes, definir competências e declarar direitos. Mais do que isso, estabelece metas, define programas e traça fins a serem perseguidos, buscando concretizar, ao máximo, os direitos fundamentais.

É neste ponto, inclusive, que se concebe o texto fundamental como marco histórico do novo direito constitucional no Brasil, intitulado neoconstitucionalismo, que a Constituição de 1988 e seu processo de redemocratização culminaram por germinar.

A mudança paradigmática embasou-se na superação do modelo europeu que vigorou por muito tempo, no qual a Constituição era vista apenas como um documento formal, retórico e essencialmente político, carente, por conseguinte, de efetividade.

Com a força normativa de seus enunciados intensamente prestigiada pelas novas mentalidades emergentes, ganhou ímpeto, ainda que de modo paulatino, um apreço constitucional de respeito à aplicabilidade direta e imediata da Lei Fundamental, cuja concretização passou a ser o intento dos que se cansaram de promessas e declarações vazias e de insuficiente realização. São emblemáticas as assertivas de Luis Roberto Barroso (2012, p. 191) a esse respeito

Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, e não o ódio, o contrário do amor.

Como se vê, a Carta procurou dotar o Brasil de instituições que o possibilitassem caminhar rumo a uma sociedade moderna, em contraste com a realidade sofrida de um País pouco desenvolvido, esquecido por seus governantes em tantos pontos. Buscou evitar erros passados, protegendo a nação contra golpes, abusos, desvios e ataques à cidadania e alargou o rol de direitos fundamentais e de garantias destinadas a dar-lhes a concretude necessária.


3 CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988 simboliza a travessia de um Estado autoritário para um Estado Democrático de Direito e abraça os sentimentos de uma sociedade ávida de resgatar os ideais cívicos sepultados durante os anos do regime militar. Não são poucas as inovações que o novo texto consagra, merecendo destaque a ampliação do rol de direitos e garantias fundamentais, a enunciação de um projeto principiológico, a definição de tarefas a serem executadas e de objetivos a serem perseguidos e o alargamento da jurisdição constitucional.      


4  REFERENCIAL TEÓRICO

ANDRADE, Paes de. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição BrasileiraSão Paulo: Renovar, 2006. 8ª edição.

_____________________. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

MORAIS, José Luiz Bolsan de. O Brasil pós-1988. Dilemas do/para o Estado constitucional. In: SCAFF, Fernando Facury (Org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

PINHO, Judicael Sudário de. Temas de Direito Constitucional e o Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Atlas, 2004.

SARMENTO, Daniel.  O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: FELLET, André Luiz Fernandes et al. As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodivm, 2011.


Autor

  • Lucas Sales da Costa

    Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lucas Sales da. A Constituição Federal de 1988 e seu significado para o novo Direito Constitucional brasileiro: por que não acreditar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4206, 6 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31667. Acesso em: 24 abr. 2024.