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Retroatividade da Lei da Ficha Limpa para alcançar fatos pretéritos à edição da norma

Retroatividade da Lei da Ficha Limpa para alcançar fatos pretéritos à edição da norma

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O presente trabalho aborda a possibilidade de a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, considerar fatos anteriores à sua edição como suficientes à caracterização de inelegibilidade, ou seja, ficha suja.

Resumo: O presente trabalho objetiva abordar a possibilidade de a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, considerar fatos anteriores à sua edição como suficientes à caracterização de inelegibilidade, ou seja, ficha suja. O primeiro ponto aborda características e histórico da LC 135/2010. Em seguida, traça análise quanto à natureza jurídica dessa retroatividade, destacando o posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC 29, de que essa retroatividade  se classifica como inautêntica, pois a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes, sendo, portanto, constitucional. Conclui-se com a manifestação de concordância com a decisão da Suprema Corte, destacando-se o compromisso de incessante busca de transparência, probidade e compromisso público com os mandatos eletivos.

Palavras-chaves: FICHA.LIMPA.RETROATIVIDADE.CONSTITUCIONALIDADE.

Sumário: 1. Introdução. 2. Breves Noções sobre os Direitos Políticos. 3. Lei da ficha Limpa. 4. Retroatividade da Lei da Ficha Limpa. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.

         

1 Introdução

Necessária se faz a reflexão a respeito da possibilidade de incidência da Lei da Ficha Limpa em relação às condenações anteriores à edição do referido diploma normativo. O que se questiona é se os candidatos que cometeram fatos anteriores à publicação da referida lei possuem a ficha limpa, ou seja, para a consideração de ficha suja, o fato deve ter ocorrido após a publicação da lei? E em caso de haver alcance de fatos pretéritos pela Lei da Ficha Limpa, essa retroatividade seria autêntica ou inautêntica? Será discutida a constitucionalidade em se considerar fatos anteriores à publicação da lei como configuradores de ficha suja.

2  Breves noções acerca dos direitos políticos

O ordenamento constitucional consentâneo pauta-se na estruturação de um Estado de Direito, para o qual a soberania popular ganha relevante papel na participação da vida política do país, com destaque no art. 14 da Carta Magna:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

Nesse contexto, a CF/88 se preocupou em abordar os direitos políticos em seu Capítulo IV, no qual assegura direitos políticos ativos, como o direito de votos a todos que preencherem as condições legais, bem como disciplina acerca dos direitos políticos passivos, como requisitos e impedimentos para a elegibilidade.

Elenca, ademais, hipóteses de inelegibilidade, estas de cunho constitucional (art. 14, § 7º), do mesmo modo em que autoriza à lei complementar a possibilidade de ampliação do rol constitucional (art. 14, §9º):

§ 7º - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.

 

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

3  Lei da Ficha Limpa

Em cumprimento à autorização delineada no art. 14, §9º, da CF o legislador infraconstitucional aprovou a Lei Complementar n. 135/2010, inaugurando outras hipóteses de inelegibilidade, além das anteriormente previstas na Lei Complementar 64/1990.

“Originada de um projeto de lei de iniciativa popular idealizado pelo juiz Márlon Reis entre outros juristas, reuniu cerca de 1,6 milhão de assinaturas com o objetivo de aumentar a idoneidade dos candidatos.

A lei torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado (com mais de um juiz), mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos.

O Projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 5 de maio de 2010 e também foi aprovado no Senado Federal no dia 19 de maio de 2010 por votação unânime. Foi sancionado pelo Presidente da República, transformando-se na Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Esta lei proíbe que políticos condenados em decisões colegiadas de segunda instância possam se candidatar” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficha_Limpa)

Importante destacar que as hipóteses de inelegibilidade são matérias inerentes ao Direito Eleitoral, não apresentando carga material de Direito Penal.  A finalidade dessas condições negativas é de proteger a moralidade administrativa e a probidade no exercício do mandato, considerando-se o histórico de vida do candidato, com a análise de sua vida pública e privada.

A configuração de inelegibilidade de uma pessoa tem reflexos tão somente em sua capacidade política passiva, ou seja, apenas não pode ser votado, não havendo qualquer interferência, por si só, em direitos políticos ativos ou sequer em outra esfera do Direito.

O cidadão considerado inelegível para a justiça eleitoral não apresenta qualquer pendência ou reflexo na seara penal tão somente por este fato. Dessa forma, as regras atinentes à configuração de inelegibilidade são àquelas do Direito Eleitoral, não se confundindo, em momento algum, com as regras do Direito Penal.

Posto isto, esclarece-se que as condições de elegibilidade dos candidatos são analisadas à época do registro das candidaturas e em conformidade à legislação vigente naquele tempo, de modo a ser possível, no momento de registro, a análise de toda a vida pregressa de um determinado candidato. Portanto, inegável a existência de retroatividade de fatos anteriores à publicação da lei, para a análise em momento posterior à vigência desta.

4 Retroatividade da Lei da Ficha Limpa

A retroatividade da lei da ficha limpa deve ser analisada sob o prima constitucional. Inicialmente, há que se diferenciar retroatividade autêntica de retroatividade inautêntica da norma.

A retroatividade autêntica consiste em a norma apresentar efeitos retroativos, “ex tunc”, ou seja, em aplicar ao caso uma norma que não o abrangia, quando de sua prática, por exemplo, uma lei penal que crie uma nova figura típica, não pode alcançar fatos que, quando praticados, eram atípicos. Na lição de J. J. GOMES CANOTILHO, “[...] Retroactividade consiste basicamente numa ficção: (1) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor; (2) ligar os efeitos jurídicos de uma norma a situações de facto existentes antes de sua entrada em vigor.

[...]

(i) a retroatividade autêntica: a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeito sobre situações pretéritas, ou, apesar de pretensamente possuir eficácia meramente ex nunc, atinge, na verdade, situações, direitos ou relações jurídicas estabelecidas no passado; e

(ii) a retroatividade inautêntica (ou retrospectividade): a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes, tendo-se, como exemplos clássicos, as modificações dos estatutos funcionais ou de regras de previdência dos servidores públicos (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 261-262).”

Na situação ora analisada a norma vigente à época do fato é aquela em plena validade no momento do registro de candidatura, sendo este o fato que a norma rege. Portanto, a análise em questão revela-se como retroatividade inautêntica, com a criação de efeitos futuros para fatos pretéritos.

Dessa forma, não há que se falar em retroatividade autêntica da norma para alcançar fatos pretéritos em prejuízo do candidato, porque, em verdade, o que ocorre é a análise de toda a sua vida pregressa em consonância com as normas vigentes ao tempo do pleito.

Por essas razões, afirma-se que, a aplicação da LC 135/2010 a fatos que ocorreram anteriormente à sua vigência é plenamente possível, pois se trata de retroatividade inautêntica e, nesse sentido, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, observe-se:

Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima defendido por MATOS PEIXOTO e referido no voto do eminente Ministro MOREIRA ALVES proferido no julgamento da ADI 493 (j. 25.06.1992): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente. Repita-se: foi o que se deu com a promulgação da Emenda Constitucional nº 41/03, que atribuiu regimes previdenciários diferentes aos servidores conforme as respectivas datas de ingresso no serviço público, mesmo que anteriores ao início de sua vigência, e recebeu a chancela desta Corte.

A aplicabilidade da Lei Complementar n.º 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta Corte. (...)

A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico - constitucional e legal complementar - do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito).

 

(ADC 29 / DF - DISTRITO FEDERAL AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. Relator(a):  Min. LUIZ FUX Julgamento:  16/02/2012. Órgão Julgador:  Tribunal Pleno)

No julgamento da ADC 29/DF, de relatoria do Min. LUIZ FUX, julgado pelo Tribunal Pleno, em 16/02/2012, o STF delineou as seguintes razões que autorizam e justificam a aplicação da Lei 135/2010 a fatos pretéritos:

1. A razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético-profissional.)

2. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito eleitoral.

3. O direito político passivo (ius honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigência constitucional da razoabilidade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social, sob os enfoques da violação à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político.

4. O princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela Lei Complementar nº 135/10, na medida em que: (i) atende aos fins moralizadores a que se destina; (ii) estabelece requisitos qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de candidatar-se a cargo público eletivo que não supera os benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus publico.

5. O exercício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos), em um juízo de ponderação no caso das inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 135/10, opõe-se à própria democracia, que pressupõe a fidelidade política da atuação dos representantes populares.

6. A Lei Complementar nº 135/10 também não fere o núcleo essencial dos direitos políticos, na medida em que estabelece restrições temporárias aos direitos políticos passivos, sem prejuízo das situações políticas ativas.

7. O cognominado desacordo moral razoável impõe o prestígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pregressa, constante do art. 14, § 9.º, da Constituição Federal.

8. O abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibilidade dos detentores de mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibilidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o art. 55, § 4º, da Constituição Federal e o art. 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta transposição dos limites da boa-fé.

9. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer, e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos, cujas hipóteses são previstas no art. 15 da Constituição da República, e que importa restrição não apenas ao direito de concorrer a cargos eletivos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius sufragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade e a suspensão de direitos políticos.

10. A extensão da inelegibilidade por oito anos após o cumprimento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionalidade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado, cumprindo, mediante interpretação conforme a Constituição, deduzir do prazo posterior ao cumprimento da pena o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o trânsito em julgado.  (ADC 29 / DF - DISTRITO FEDERAL AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE.).

5 Conclusão

A aplicação da Lei da Ficha Limpa a fatos que ocorreram ante de sua edição é medida constitucional e que visa à garantia da moralidade e probidade na escolha dos representantes públicos do povo.

A retroatividade aplicada no caso em comento se trata de retroatividade inautêntica, na qual, tão somente são criados efeitos futuros para situações pretéritas, não havendo falar-se em violação à garantia constitucional de direito adquirido e de vedação ao retrocesso, mas medida adequada à exigência constitucional da razoabilidade, considerando a reprovabilidade social pelo fato de um candidato utilizar de abuso de poder econômico ou de poder político para a chegada ao poder, desprovido de moralidade e probidade.

Desse modo, acertada e aplaudida a decisão da Suprema Corte pela constitucionalidade de que a lei da ficha limpa possa considerar fatos pretéritos, seguindo uma trilha incessante em busca de transparência, probidade e compromisso público com os mandatos eletivos.

6 Bibliografia

ALMEIDA, ROBERTO MOREIRA, Curso de Direito Eleitoral, 7ª edição, Jus Podium;

BULOS, UADI LAMMÊGO, Curso de Direito Constitucional, 6ª edição, Saraiva;

CANOTILHO, J.J. GOMES, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5. edição. Coimbra: Almedina;

GOMES, José Jairo, Direito Eleitoral, 3ª edição, Del Rey;

MENDES, Gilmar Ferreira, Direito Constitucional, 8ª edição, Saraiva.

MORAIS, Alexandre, Direito Constitucional, 28ª edição, Atlas;

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficha_Limpa, acesso em 12/09/2014;

www.stf.jus.br, acesso em 12/09/2014;


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