Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/32881
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Desestruturação urbana e insegurança à luz da ordem neoliberal

Desestruturação urbana e insegurança à luz da ordem neoliberal

Publicado em . Elaborado em .

Intentamos, com o presente trabalho, demonstrar que o fenômeno da insegurança é mais perceptível nas localidades onde o Estado Social se faz menos presente. A abordagem da desestruturação urbana, portanto, será o objetivo de análise.

1. Introdução

Partindo da concepção hobbesiana de Estado, ente necessário para a manutenção da vida em sociedade, analisaremos as questões atinentes às formas pelas quais a doutrina justifica e legitima o jus puniendi estatal. Observaremos, quando do estudo da referida questão, que o discurso propalado não se coaduna com a realidade que se descortina.

Quanto aos temas da democracia e cidadania, ressaltaremos a importância que se deve dar à concretização da chamada cidadania plena, sustentáculo da democracia substancial, sendo esta caracterizada quando as decisões de poder do Estado são feitas em prol do bem coletivo. Reside em nosso país, entretanto, a chamada democracia formal, fenômeno que tem garantido a perpetuação da ordem neoliberal.

Tendo por base o modelo econômico que vem se desenvolvendo desde o fim da 2ª Guerra Mundial, relacionaremos uma de suas consequências - a diminuição dos gastos públicos em prol de políticas sociais - com a falta de organização urbana.

Segundo os estudos da Escola de Chicago (MOLINÉ, 2011; PARK, 1984; e, SHAW in WILLIAMS III, 1998), através da comprovação estatística, quanto maior a desorganização estrutural de determinada localidade - ausência de iluminação, poluição sonora e acumulação de detritos são alguns exemplos -, mais elevado será o índice de criminalidade.

Diferentemente das políticas neoliberais de controle social, baseadas no endurecimento do Direito Penal, entendemos que outro caminho deva ser tomado para que possamos chegar a uma verdadeira melhoria na vida das pessoas, cumprindo o Estado, assim, seu papel de fomentador da cidadania plena (FERRI in FARIAS, 2007, p. 49).

2. A justificação do direito de punir estatal e a legitimação

A necessidade de organização do poder decisório nas comunidades é assunto corriqueiro no pensamento político e filosófico ocidental. Kelly (2010, p. 15) nos lembra que Platão, ainda na Antiguidade Clássica, já explicava, em Protágoras, que os homens haviam compreendido a imprescindibilidade de associação com o fim de derrotar ameaças, humanas ou de outros animais. Fundaram-se, dessa maneira, os primeiros agrupamentos sociais.

Mais adiante, já no início da Idade Moderna, Estados Nacionais são forjados em todo o oeste europeu. Necessária se faz, então, a criação de uma base ideológica de justificação de poder para os governantes, pois estes desejavam maior discricionariedade, visto que, durante a Idade Média, possuíam poder fragilizado em razão dos diversos reinos feudais incrustrados nos frágeis Estados medievais. Surge, nesse período histórico, o Leviatã, de Thomas Hobbes, obra que renovaria o pensamento do Estado, reinventando a incipiente teoria contratualista dos gregos. Assim, os conviventes delegariam totalmente, através de um contrato social implícito, sua autonomia para um governante soberano. Combater-se-iam, dessa forma, a selvageria e a anarquia, pois o Estado seria formado para garantir paz e harmonia social.

Hobbes diz que (1979, p. 103):

o fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos [...].

Embora estivesse ligada aos interesses dos governantes sedentos por poder dos novos Estados Nacionais, a obra de Hobbes nos oferece a justificação existencial de qualquer forma de Estado, razão pela qual utilizaremos o seu pensamento para explicar sua necessidade.

A adequação das pessoas às normas é de suma importância para o funcionamento da estrutura estatal, contudo, não podemos entender, somente, que o Direito Penal - ramo mais repressivo da Ciência Jurídica - possa ser utilizado para a organização das pessoas em prol da coletividade. Nessa esteira, segue o raciocínio de Lakatos e Marconi (2006, pp. 236/237) sobre a primeira obra a tratar da temática do controle social:

Na concepção de Ross, o ser humano herda quatro instintos: 'simpatia, sociabilidade, senso de justiça e ressentimento ao mau trato'. Estes instintos permitem o desenvolvimento de relações sociais harmoniosas entre os componentes de grupos e comunidades pequenas e homogêneas. À medida que a sociedade se torna mais complexa, as relações sociais tendem a tornar-se impessoais e contratuais. Nesse período de transição, com o enfraquecimento dos instintos sociais do homem, o grupo tem de lançar mão de determinados mecanismos sociais a fim de controlar as relações entre seus membros. Esses mecanismos constituem o controle social, que visa assegurar o comportamento dos indivíduos e propiciar à sociedade ordem e segurança. Assim, quando as ‘sociedades artificiais civilizadas’ se distanciam das ‘comunidades naturais’, os controles instintivos do homem são substituídos pelos recursos artificiais: a lei, a opinião pública, a crença, a religião, a sugestão social.

Divide-se, então, o controle social em formal e informal.

Natural, espontâneo ou informal é aquele baseado nas relações pessoais e íntimas, como escola, família e religião; artificial, organizado ou formal é aquele exercido, principalmente, em sociedades mais complexas, nas quais há necessidade de utilização de um sistema de regulamentações, de tribunais, da polícia ou exército (LAKATOS, 2006, p. 240).

Valendo-se da concepção hobbesiana de justificação do Estado, teremos necessidade de implementação de um controle social formal para a manutenção do próprio ente estatal; assim sendo, faz-se indispensável a racionalização das normas coercitivas que deverão regrar a sociedade. Surge, por conseguinte, a dogmática jurídico-penal.

Segundo Guimarães (2010, p. 18), a dogmática jurídico-penal trata-se de uma promessa de racionalização do sistema de regrar penais vigentes em um Estado, devendo ter por finalidade a praticidade, ou seja, a instrumentalidade das normas criadas pelo Legislativo. Pode-se dizer que seja um elo entre o que o legislador programou, de forma abstrata, e o que o operador do direito deverá aplicar, in croncreto.

Contudo, ao observarmos aplicação das normas repressivas em nossa sociedade, percebemos que, no sistema jurídico pátrio, muita das vezes não se realiza tal promessa de racionalização do jus puniendi; outra crítica recai sobre a criação das normas por parte do Legislativo, vez que, em sede de neoliberalismo, faz-se da criminalização primária instrumento de imunização das classes que detêm o poder econômico, acarretando, consequentemente, em uma maior eficácia no combate aos crimes de rua, aos crimes patrimoniais, praticados, principalmente, pelos que estão nas castas subalternas (GUIMARÃES, 2010).

A dogmática jurídico-penal é, pois, a ciência que, utilizada de forma correta, garantirá ao Estado verdadeira legitimação para exercitar o seu direito de punir. A doutrina, de forma genérica, expõe as funções da pena privativa de liberdade como elucidações, meios que legitimam o Estado a punir, e que, assim, justificariam a sua própria existência. Infere-se, portanto, que todo o esclarecimento realizado para comprovar o acerto das referidas teorias funcionais passam, necessariamente, pelo estudo da dogmática.

Em síntese, podemos dizer que as funções da pena privativa de liberdade nada mais são do que ilações sobre a dogmática jurídico-penal, sendo não mais do que um capítulo dentro do gigantesco estudo de tal ciência.

Repreendendo-se a atual ciência normativa, criticam-se, também, as funções da pena.

Conforme será tratado no capítulo posterior, enquanto não for exercitada a verdadeira cidadania, consciente e plena, não haverá democracia substancial e, em última análise, não chegaremos ao Estado Democrático de Direito.

O processo de redemocratização do Brasil ainda está em desenvolvimento, desse modo, o Estado, embora faça diversas previsões de direitos e garantias fundamentais em nossa Constituição, não cumpre o seu papel, pois as pessoas que compõem nossa sociedade ainda não atingiram um grau de cidadania compatível com o Estado desejado.

Ao escolher representantes de capacidade duvidável, o povo abre margem para, em sede de Direito Penal, a subjugação advinda da precária criminalização primária.

Podemos dizer, assim, que a dogmática jurídico-penal estará corrompida já em sua gênese, não cumprindo, portanto, o seu papel de instrumentalização da justiça social (GUIMARÃES, 2010).

3. Democracia e cidadania

As instituições de um Estado não podem evoluir enquanto perdurarem barreiras para o completo desenvolvimento da cidadania plena, fundamento da espécie substancial de democracia; entretanto, analisaremos, primeiramente, a acepção formal do fenômeno democrático, vigente em países marcados pela desigualdade estrutural.

Democracia formal, portanto, é aquela caracterizada pela vontade da maioria. O desejo majoritário determina o andamento do Estado. Não há limites principiológicos, por exemplo, para a criação ou operacionalização das normas, inclusive, de direito penal. Está alicerçada, logo, na conceituação clássica de cidadania.

Paulo Bonavides, a seguir, analisa as consequências do conceito de cidadania limitada à mera formalidade eleitoreira:

Da cidadania, que é uma esfera de capacidade, derivam direitos, dentre os quais o de votar e ser votado (status activa e civitatis) ou deveres, como os de fidelidade à Pátria, prestação de serviços militar e observância das leis do Estado. Sendo a cidadania um círculo de capacidade conferida pelo Estado aos cidadãos, estes poderão traçar-lhe limites, caso em que o status civitatis apresentará no seu exercício certa variação ou mudança de grau (2010, p. 82).

Percebemos que, segundo o trecho supratranscrito, em tal modelo de cidadania, quem concede os direitos, podendo até limitá-los, é o próprio Estado. Não se tratam, desse modo, de direitos naturais à dignidade da pessoa humana, mas sim esmolas concedidas pelo Estado.

Os deveres parecem ser bem maiores do que as garantias. A status activa é meramente simbólica. Logo, a única vantagem auferida pelos “cidadãos” é o direito de votar, pois a participação social é quase nula no seio da comunidade, delegando-se, assim, todas as decisões de poder para as mãos dos “representantes”.

Segundo Guimarães (2010, p 18), o povo não passaria de “massa de manobra, vez que, apesar de garantido o seu direito de escolha, talvez não lhe tenham sido garantidas opções de escolha”.

Devemos compreender de outra forma a acepção cidadão, visto que poderemos, desse modo, chegar ao verdadeiro Estado Democrático de Direito, no qual as decisões tomadas por nossos legisladores iriam ao encontro dos anseios da sociedade, respaldadas pela justiça e pela moralidade.

Dalmo de Abreu Dallari, Professor Emérito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, nos ensina que:

A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social. Por extensão, a cidadania pode designar o conjunto das pessoas que gozam daqueles direitos (2004, p. 22).

Podemos tomar duas conclusões do trecho acima

Primeiro, a cidadania plena é aquela em que garantem-se os diversos direitos aos cidadãos, para que tenham capacidade de atingir o máximo de suas potencialidades. Podem ser englobados, assim, o direito à educação de qualidade, a um sistema de saúde eficiente e a outros ditames constitucionais que se espraiam por todo o ordenamento jurídico, refletidos, em matéria criminal, na concepção garantista. De forma genérica: através da conformidade com os direitos fundamentais.

Segundo, aqueles que não gozam dos referidos direitos não possuem cidadania. Diga-se: não possuem cidadania plena, mas mera cidadania formal.

Substancial, por outro lado, seria aquela democracia em que os cidadãos teriam, verdadeiramente, participação política, ajudando a incrementar o debate sobre questões decisórias do poder, cruciais para o desenvolvimento econômico e social de um Estado. Pressionados pela conscientização dos representados, os legisladores agiriam de forma a beneficiar a totalidade dos habitantes, não mais libertos para realizarem o que bem entenderem.

Norberto Bobbio faz a distinção entre as democracias formal e substancial da seguinte forma:

[...] a linguagem política moderna conhece também o significado de democracia como regime caracterizado pelos fins ou valores em direção aos quais um determinado grupo político tende e opera. O princípio destes fins ou valores, adotado para distinguir não mais apenas formalmente, mas também conteudisticamente um regime democrático de um regime não democrático, é a igualdade, não a igualdade jurídica introduzida nas Constituições liberais mesmo quando estas não eram formalmente democráticas, mas a igualdade social e econômica (ao menos em parte). Assim, foi introduzida a distinção entre democracia formal, que diz respeito ao conteúdo desta forma (1987, p. 157).

Portanto, enquanto estivermos longe de um modelo de sociedade igualitária, econômica e socialmente, não teremos, concretamente, um regime democrático verdadeiro, base angular do que entendemos por Estado Democrático de Direito.

4. O desenvolvimento do capitalismo

No início do século XVIII, a burguesia europeia passava por um progressivo processo de crescimento econômico. O mercantilismo, forma de organização vigente à época, possuía forte intervenção dos governos soberanos, característicos desse período histórico. Nascia, então, a necessidade de uma base ideológica que iria ao encontro dos anseios da classe ascendente. Surge, assim, a doutrina do liberalismo econômico.

Nessa esteira, procurou-se sistematizar a recém-nascida Ciência Econômica, limitando-se, assim, o poder de discricionariedade do chefe absolutista. Adam Smith, primeiro expoente do liberalismo econômico, expõe algumas características do indivíduo, dizendo que

geralmente, na realidade, ele (o indivíduo) não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país [...] ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções (1996, p. 438).

Compreendemos, desse modo, que Smith (1996) prenunciava os aspectos que se tornariam dogmas do modelo de produção capitalista, amplamente utilizado a partir das revoluções burguesas do século XVIII.

Desenvolveu-se na contemporaneidade, por exemplo, o pensamento de Friedrich Hayek (2010, p. 69), que dizia ser impossível o bom desenvolvimento social de um grupo enquanto perdurar o controle econômico estatal. A crítica do economista austríaco recai sobre a inexistência do chamado “controle consciente” por parte do Estado, visto que este não teria estrutura para lidar com as minúcias do complexo sistema da oferta e da procura (Hayek, 2010, p. 70).

Muitas opiniões, entretanto, foram contrarias ao pensamento do liberalismo do século XX, também chamado de neoliberalismo. Até mesmo entre os defensores do modelo de produção capitalista é possível observar críticas à manipulação das decisões econômicas por parte de entidades privadas.

John Maynard Keynes nos ensina a experiência do intervencionismo estatal no Reino Unido:

Desde o fim do século XIX, a tributação direta – imposto sobre a renda e sobretaxas, e imposto sobre as heranças – vem conseguindo realizar, especialmente na Grã-Bretanha, considerável progresso na diminuição da grandes desigualdades de riqueza e de renda (1996, p. 341).

Observamos, entretanto, o estabelecimento do neoliberalismo como modelo econômico dominantes em quase todo o mundo.

De acordo com Chomsky (2002, p. 9), o novo modelo capitalista possui como regras básicas a “liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação dos preços pelo mercado, fim da inflação e privatização”.

Com a abertura dos mercados, a concorrência causaria queda nos preços e melhoria nos produtos. Todos os Estados sairiam ganhando, visto que as empresas multinacionais iriam transitar por todos os povos, garantindo emprego e bem-estar social para as comunidades.

Entretanto, segundo os ensinamentos de Guimarães:

a realidade que se descortina, principalmente nos países periféricos, parece não coincidir com o que é massivamente divulgado pela ideologia oficial. Há pessoas morrendo de fome, doenças há muito erradicadas nos países desenvolvidos ainda vitimam grandes contingentes humanos, principalmente crianças, os parques industriais estão sendo destruídos pela concorrência desigual e pelo protecionismo, enfim, os países pobres estão em pleno processo de desmanche social (2010, p. 143).

Três anos antes de vir a falecer, o sociólogo francês Pierre Bordieu escreveu artigo para o periódico Le Monde Diplomatique, tratando do que ele entendia ser a essência do neoliberalismo. Segundo o mesmo, o que é divulgado como promessa de liberdade nada mais produz do que “violência estrutural do desemprego, da precariedade e da ameaça”. Trata-se, assim, verdadeiramente de um fenômeno de massas, como diz seu discurso oficial. Contudo, o processo não é de melhoria geral na vida das pessoas, mas sim, de criação de um ‘exército de reserva de desempregados’” (1998).

5. O Estado Social mínimo

Tendo em vista que o neoliberalismo é o novo paradigma do modelo de produção capitalista, através do processo de globalização, entendemos existir relação direta entre sua utilização e a manutenção das desigualdades sociais.

Levando em consideração que a violência possa ser caracterizada como “todo ato em que o ser humano é reificado, é tratado como coisa, tratado como objeto” (Dornelles apud Guimarães, 2010, p. 152), podemos perceber o surgimento de uma forma diferenciada de agressão, completamente distante daquela que nos vem à mente. Trata-se, assim, da chamada violência estrutural.

Por não termos assimilado, ainda, a chamada cidadania plena, base do que entendemos por democracia substancial e, consequentemente, por Estado Democrático de Direito, temos uma imensa dificuldades em escolher representantes que realmente busquem o bem geral da população. Assim, nosso processo legislativo é marcado por interesses particulares, em prol, somente, dos grupos que se reproduzem no poder, eleição após eleição.

Com a vigência do neoliberalismo na ordem global, grandes empresas multinacionais, buscando apoio político para concessão de benefícios no âmbito da Administração Pública, realizam doações vultuosas, financiando campanhas eleitorais. Quando o seu candidato for eleito, e provavelmente o será, a financiadora se beneficiará da tomada de decisões por parte dos órgãos públicos, de forma que o agora representante (formalmente, do povo; materialmente, da entidade privada) não intencionará o bem de seus eleitores, mas sim do grupo econômico que o elegera.

Abre-se espaço, então, para a minimização do Estado Social, pois os projetos de lei que iriam ser formulados com o propósito de fomento das políticas públicas e sociais não serão apresentados. As decisões do governo serão aquelas que beneficiarão as já consolidadas classes dominantes. Mitiga-se, dessa forma, o Estado Democrático de Direito, porque as decisões tomadas não serão, verdadeiramente, em prol dos anseios populares, mera massa de manobra durante o pleito.

Exclui-se, parcialmente, o Estado Social. Obstrui-se, também, a democracia substancial. O cidadão é posto de lado, não sendo mais o centro, tampouco o fim da construção dessa nova realidade social.

A quantidade de pessoas que está fora da posição de consumidor, na sociedade neoliberal, não cresce. Assim, desenvolve-se um tenebroso processo de marginalização social, acarretando, por tabela, no crescimento do número de pessoas que são abarcadas pelas condutas tipificadas durante o processo de criminalização primária.

Leciona o advogado fluminense Nilo Batista:

O Direito Penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira.

O estudo aprofundado das funções que o direito cumpre dentro de uma sociedade pertence à sociologia jurídica, mas o jurista iniciante deve ser advertido da importância de tal estudo para a compreensão do próprio direito.

Quem quiser, por exemplo, compreender, por exemplo, o direito assírio, o direito romano, ou o direito do século XIX, procure saber como os assírios, romanos e brasileiros do século XIX viviam, como se dividiam e se organizavam para a produção e distribuição de bens e mercadorias; no marco da proteção e da continuidade desse engrenagem econômica, dessa “Ordem Política e Social” estará a contribuição do respectivo direito (2007, p. 19).

Necessária se faz a correlação entre a estruturação do ordenamento jurídico e a realidade social que subjaz. Percebemos, então, que a utilização do direito, de forma geral, deve ser feita para que a ordem global não seja atingida, devendo-se preservar o status quo. Faz-se uso, por exemplo, do Direito Penal como instrumento de limitação das massas excluídas e, principalmente, contenção dos questionamentos referentes à insatisfação da população.

Além de sofrerem o processo de estigmatização durante a criminalização primária, não terem suas necessidades atendidas pelo Estado ante a falta de políticas públicas, serem repreendidos de forma arbitrária e violenta pela máquina punitiva estatal, as pessoas que se encontram nos loci mais subalternos da sociedade, contraditoriamente, são as que mais apoiam as políticas criminais de lei e ordem, através do endurecimento das legislações criminais (Zaffaroni et al. Apud Guimarães, 2010, p. 150).

O Estado Neoliberal é, por vocação, máximo no âmbito penal (Guimarães, 2010, p. 184). Afora os gastos com a implementação, por exemplo, do reaparelhamento dos órgãos de segurança serem muito menores do que se fossem realizadas políticas públicas de educação, saneamento básico ou estruturação urbana, a resposta simbólica de repressão político-criminal dada à insegurança é muito mais impactante, servindo de propaganda para os políticos que a defendam (Guimarães, 2010, p. 159).

Alinhamo-nos ao grupo que entende as políticas públicas e sociais, implementadas de maneira correta, como única forma de transformação da triste realidade em que vivemos. Não podemos compactuar, de forma alguma, com a ideia de que o simples endurecimento de políticas criminais irá alterar a questão da segurança pública.

Objetivamos, assim, que toda a população perceba que o cerne problemático da insegurança não é de natureza criminal, mas sim social.

Quanto à questão da utilização da força repressiva como único meio para contenção da violência criminal, Zaffaroni diz que:

A imagem bélica do poder punitivo tem por efeito: a) incentivar o antagonismo entre os setores subordinados da sociedade; b) impedir ou dificultar a aliança ou o acordo no interior desses setores; c) aumentar a distância e a falta de comunicação entre as diversas classes sociais; d) potenciar os medos (espaços paranoicos), as desconfianças e os prejuízos; e) desvalorizar as atitudes e discursos de respeito à vida e à dignidade humana; f) dificultar as tentativas de encontrar formas alternativas de solução de conflitos; g) desacreditar os discursos limitadores da violência; h) projetar aos críticos do abuso de poder como aliados ou emissários dos delinquentes; i) possibilitar a utilização da mesma violência contra os acusados (2002, p. 18, tradução nossa).

Das diversas consequências expostas por Zaffaroni (2002) no trecho acima, nenhuma se coaduna com o que é propalado pela ideologia oficial. Há eficiência na utilização dos meios de coerção de forma arbitrária, entretanto, não há indicativo algum de que isso esteja diminuindo a quantidade de vezes em que os tipos penais sejam desobedecidos.

Ao contrário, a sensação de insegurança aumenta a cada dia. O desrespeitos aos órgãos de controle é, na verdade, crescente. Como as políticas de natureza criminal só estão sendo utilizadas de forma paliativa, simbólica, não indo à origem do problema, promovem, paradoxalmente, o inverso: aumento da sensação de insegurança.

Relaciona-se com o assunto exposto o seguinte trecho da obra de Winfried Hassemer (2003, p. 65, tradução nossa):

As experiências [...] com o “direito penal simbólico” ensinam que o agravamento da utilização do direito penal nem sempre demonstram a sua aptidão para a solução de problemas; isso pode originar-se pelo fato de que a subsidiariedade do direito penal em relação com outras estratégias de soluções jurídicas, ou em outros casos, estatais ou sociais, não é um simples princípio normativo, sendo que, ademais, está bem fundamentado empiricamente: os meios de resoluções de conflitos através do direito penal servem somente para algumas poucas situações problemáticas.

Devemos ter, portanto, a ideia que somente através da maximização do Estado Social, por meio de políticas públicas e sociais, teremos condições de realmente combater a questão da insegurança pública; obviamente, se intentamos o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, entendemos que seja necessária a limitação do jus puniendi, em razão do princípio da dignidade humana, alicerce da ordem constitucional vigente desde 1988.

6. Desorganização urbana como causa de insegurança: problemas e soluções

Após o término da 1ª Guerra Mundial, os Estados Unidos tornou-se a grande potência mundial. Embora tenha ocorrido a eclosão da Bolsa de Valores em 1929, o parque industrial norte-americano tornou-se o mais imponente do mundo. Dessa forma, houve um crescimento desordenado nas suas principais cidades.

Preocupados com as consequências que esse processo de desenvolvimento poderiam acarretar no seio da comunidade, um grupo de professores e alunos da universidade de Chicago passou a investigar as características de tal mudança e as suas implicações.

Moliné, de forma clara, expõe as premissas do pensamento desenvolvido pela teórica ecológica da Escola de Chicago:

Robert E. Park desenvolveu esse ponto de vista assinalando que enquanto nas comunidades pequenas existe um controle pessoal da comunidade sobre o indivíduo (o indivíduo realiza toda a sua atividade em um contexto de pessoas conhecidas com capacidade de desaprovarem seu comportamento desviado), nas comunidades urbanas é frequente que a pessoa desenvolva sua atividade fora do escrutínio das pessoas que tenham capacidade de controle. [...]. O marco da cidade dá muito mais possibilidade para que se produza uma desintegração da vida moral, demonstram, assim, maiores taxas de fenômenos tão díspares como o divórcio, a vadiagem ou o crime.

Entretanto, tal desintegração da vida moral a que alude Park parece não se distribuir de maneira homogênea na cidade, concentra-se, pois, em algumas partes dela (2001, p. 81, tradução nossa).

O sociólogo canadense Ernest W. Burgess foi quem primeiro passou a investigar as consequências do desorganizado processo de crescimento urbano na cidade de Chicago.

No processo de crescimento urbano acelerado, as indústrias passaram a se localizar nas áreas centrais. As residências dessas zonas começaram, naquele período, a perder o seu poder aquisitivo, visto que as manufaturas produziam muito barulho e sujeira. Os trabalhadores recém-chegados iniciaram o seu processo de assentamento, até então, naquela parte da cidade, pois não possuíam dinheiro para residir, ainda, nas áreas periféricas, que tinham um valor da terra mais elevado. Entretanto, “na medida em que os habitantes das áreas centrais melhoravam sua posição econômica, tendiam a abandonar aquelas zonas e passavam a se estabelecer nas áreas mais afastadas” (Burgess apud Moliné, 2001, p. 82, tradução nossa).

A correlação, contudo, entre a questão da falta de organização urbana e os índices de criminalidade foi feita por Clifford Shaw e Henry McKay, em 1942, quando estudaram as taxas de delinquência juvenil nas diferentes áreas de Chicago. Constataram, desse modo, que nas áreas mais desorganizadas urbanisticamente, os índices de criminalidade eram muito superiores às zonas periféricas (Moliné, 2001, p. 82).

Podemos citar, assim, as conclusões da pesquisa feita nos tribunais juvenis de Chicago, durante as décadas de 30 e 40 do século XX.

Os resultados principais da análise, pelas taxas de delinquência, são os seguintes: a) se produz uma grande diferença de delinquência entre as diversas áreas da cidade (enquanto que existem zonas que praticamente não têm criminalidade juvenil, existem outras nas quais quase 20 de 100 jovens já passaram por tribunais juvenis); b) há uma grande concentração de delinquência nas áreas centrais (25% da população produz metade dos delinquentes de toda a cidade); c) não existem variações muito significativas entre esses dados nos três períodos estudados (Shaw-McKay apud Moliné, 2001, p. 83, tradução nossa).

Como as pessoas não passavam muito tempo nas áreas centrais da cidade de Chicago e os índices de criminalidade, adulta e juvenil, permaneceram quase que inalterados, Shaw e McKay expõem o seguinte:

É claro que a partir dos dados incluídos neste livro existe uma relação entre as condições nas comunidades locais das cidades americanas e os diferentes índices de delinquência. Localidades com alta taxa possuem características sociais e econômicas que as diferenciam das localidades cm baixo índice. [...].

Além disso, o fato de que em Chicago as taxas de criminalidade, por muitos anos, tenham permanecido constantes nas áreas adjacentes ao centro comercial e às áreas de indústria pesada, apesar da sucessiva mudança de pessoas de diversas nacionalidades, dá suporte enfático para a conclusão de que a produção da criminalidade se deve por fatores inerentes ao meio comunitário (Shaw in Williams III, 1998, pp. 63-64, tradução nossa).

Diferentemente da sociedade estadunidense da primeira metade do século XX, analisada pelos professores da Escola de Chicago, as péssimas condições de vida e o baixo valor da terra, na maioria das vezes, no Brasil, não se devem pela instalação de indústrias poluidoras próximas, nem pelo crescimento de centros comerciais desprotegidos.

Observamos a construção e perpetuação de cortiços e favelas nas grandes cidades brasileiras desde o início do século passado; contudo, as causas – péssimas condições de vida – apontadas por aqueles sociólogos – de um grupo social totalmente diferenciado do nosso – são as mesmas que se reproduzem em nossa sociedade.

Devemos fazer uma interpretação extensiva quando Moliné (2001, p. 82) fala sobre “contaminação, sujeira e barulho” como causas que provocam a diminuição na qualidade de vida das pessoas e o aumento nos índices de criminalidade em determinada localidade. A falta de políticas públicas que possam organizar determinadas localidades de forma que as pessoas se sintam mais respeitadas, certamente, traria benefícios muito maiores do que a implementação de políticas repressivas de combate ao crime. O Estado deve se fazer notar quando do implemento de alternativas que sejam capazes de minimizar a questão da violência criminal de forma verdadeira, não através da adoção de repressão simbólica como meio anódino de contenção das massas.

A utilização de políticas públicas para a satisfação das pessoas deve ser amais ampla possível. Senão, vejamos o que Park, Burgess e McKenzie disseram ao tratar do crescimento da população de Chicago:

Expansão, como vimos, lida com o crescimento físico da cidade, e com a extensão dos serviços técnicos que fizeram a cidade não somente ser habitável, mas sim confortável [...].

Algumas dessas necessidades básicas da vida urbana só são possíveis através de um enorme desenvolvimento da existência comum. Três milhões de pessoas em Chicago são dependentes de um sistema de água unificada, uma companhia de gás gigante, e uma planta de luz elétrica enorme (Park, 1984, pp. 52-53, tradução nossa).

Observamos que o Estado faz questão de garanti o funcionamento dos serviços técnicos de larga escala ou demonstrar suas intenções de fazer cresce-los. A construção de uma série de usinas hidroelétricas em nosso país é um exemplo desse fenômeno.

Nas cidades, ninguém vive sem energia elétrica; automaticamente, a população iria fazer questionamentos ao ente estatal pela falta de uma de suas necessidades básicas. Mas pode-se viver sem um sistema educacional de qualidade, pensam os arquitetos do grupo dominante.

Assim, percebemos que o Estado Social mínimo somente se fará notado quando for imprescindível determinada ação em prol da sociedade, de forma que a doutrina neoliberal não consiga imaginar alguma explicação para que não se direcionem verbas públicas com fins sociais.

Os ensinamentos de Farias (2007, pp. 57-58) dizem que

o planejamento urbano é fundamental na elaboração do planejamento estratégico das atividades de uma cidade, instrumentalizando a segurança como direito social, individual e coletivo. O combate à violência, assim como o planejamento da cidade, deve envolver políticas de setores distintos como educação, saúde, lazer, iluminação pública, trabalho e moradia, sendo os últimos diretamente vinculados às funções urbanísticas.

Por fim, entendemos que somente através da adoção de políticas públicas e sociais básicas – incluindo-se, aqui, aquelas últimas tratadas por Farias (2007) – poderemos lograr êxito no combate ao desmanche social pelo qual vivemos, fulminando, assim, nossa democracia e, consequentemente, o tão sonhado Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS:

BARATTA, Alessandro. Criminología y sistema penal. Buenos Aires: B de f, 2004.

BATISTA, Nilo. Intridução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

BORDIEU, Pierre. A essência do neoliberalismo. Le Monde Diplomatique, Paris, mar. 1998. Disponível em: http://www.monde-diplomatique.fr/1998/03/BORDIEU/10167

CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.

CHRISTIE, Nils. Una sensata cantidad de delito. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2004.

FARIAS, Paulo José Leite. Respeito às funções urbanísticas e a prevenção da criminalidade urbana: uma visão à luz da Escola de Chicago. Direito Público, Porto Alegre, ano 04, n. 15, pp. 40/64, jan./mar. 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 1995.

GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy. Buenos Aires: Ad-hoc, 2003.

HAYEK, Friedrich August. O caminho da servidão. 6ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 2ª ed. São Paulo: Abril, 1979.

KELLY, John Maurice. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Maria de Andrade. Sociologia geral. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

MOLINÉ, José Cid; PIJOAN, Elena Larrauri. Teorías criminológicas. Barcelona: Bosch, 2001.

PARK, Robert E.; BURGESS, Ernest W.; McKENZIE, Roderick D. The city. Chicago: Universitu of Chicago PRess, 1984.

ROMERO, Alberto. Globalización y pobreza. San Juan de Pasto: Universidad de Nariño, 2002.

SHAW, Clifford Robe; McKAY, Henry Donald. Juvenile deliquency and urban areas. In: WILLIAMS III, Franklin P.; McSHANE, Marilyn D. Criminology theory. 2ª ed. Cincinnati: Anderson Publishing, 1998.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SLOKAR, Alejandro; ALAJIA, Alejandro. Derecho penal. 2ª ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002.


Autor

  • Vinicius Novaes

    Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (2015) e pós-graduando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Damásio. Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Maranhão (2015).

    Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/3592448579986214

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.