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A proporcionalidade e a razoabilidade como limites da atuação do legislador

A proporcionalidade e a razoabilidade como limites da atuação do legislador

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O Parlamento não está livre de produzir leis abusivas e inconstitucionais. Neste contexto, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade também figuram como parâmetro de controle do processo legal, podendo ser suscitados para defesa dos cidadãos.

A atividade legiferante no Brasil, embora possua o Parlamento como seu Órgão de Excelência, possui diversos operadores, pois, além dos representantes legitimamente investidos em mandato eletivo, que, em âmbito federal, são escolhidos pelos cidadãos para ocupar a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal, também podem figurar como atores deste cenário o Presidente da República e os demais entes autorizados a instaurar o processo legislativo previsto em determinados casos pela Constituição Federal (Procurador-Geral da República, Tribunais, etc).

No entanto, embora existam estes participantes, todo o desencadear de atos da atividade legislativa sempre se encerrará no Parlamento, seja para o caso de projeto de lei de iniciativa privativa de Tribunal ou de medida provisória com força de lei emanada do Chefe do Poder Executivo.

Neste contexto, ainda que haja uma participação da população no processo legislativo, feita, para este caso, indiretamente por meio de representantes eleitos, os excessos ainda podem ser vistos, principalmente nos sistemas onde se admite a livre produção de leis pelo Poder Executivo.

Em vista disso, faz-se necessário o controle de tais atos, como forma de garantir a prevalência do regime democrático e do princípio da separação dos poderes. No Brasil, este controle se efetiva de diversas formas: se o processo legislativo originou no Parlamento, há as comissões que buscam apreciar sua validade e legitimidade, sendo a mais notória a Comissão Permanente de Constituição e Justiça, presente em ambas as casas; após aprovado e remetido para o Presidente da República, este realizará nova análise, o qual poderá vetar se achar que atente contra o interesse público ou se eivada por vício de inconstitucionalidade (art. 66, § 1º, do Texto Constitucional). Caso o processo legislativo seja de origem do Chefe do Executivo, como a Medida Provisória, deverá o Poder Legislativo aferir juízo sobre a validade desta espécie legislativa, verificando se atende os requisitos constitucionais de relevância e urgência (§ 5º do art. 62 da CF/88).

Em ambas hipóteses os juízos de razoabilidade e proporcionalidade devem ser aplicados. Havendo o descumprimento desses requisitos, tem-se como maculado por inconstitucional a norma editada.

Sobre a inobservância dos citados princípios no processo legislativo, Roque Antônio Carrazza chama a atuação desproporcionada e desarrazoada do legislador como hipótese de desvio de poder. Veja-se:

O desvio de poder, no que concerne ao Legislativo, é um vício, de natureza objetiva, caracterizado pelo desencontro entre o conteúdo da lei e aquele que seria o adequado à consecução dos fins traçados pela Constituição[1].

Luís Roberto Barroso, ao versar sobre a interpretação e aplicação constitucional, assim doutrinou sobre a utilização do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade sobre a atividade de legislar:

A possibilidade de controle de razoabilidade dos atos do Poder Legislativo também tem sido discutida no Brasil nas últimas décadas, ainda que incipientemente. A fórmula utilizada para sua aplicação foi a importação de figura tradicional originária do direito administrativo francês, identificada como détournement de pouvir, isto é, o desvio ou excesso de poder. Convencionalmente aplicada no controle dos atos administrativos, o conceito teve seu alcance estendido para abrigar certos casos envolvendo atos legislativos[2].

A cláusula do devido processo legal material (substantive process of law), materializada no texto da Constituição no art. 5º, LIV, visa proteger as pessoas dos excessos praticados, através da verificação de elementos como a necessidade e adequação da medida ou lei tomada para o caso em debate. Ou seja, verificando a proporcionalidade e a razoabilidade da norma.

Tratando sobre a aplicação do devido processo legal neste exato sentido de proteção dos cidadãos, há a lição de Carlos Roberto Siqueira Castro, que assim asseverou:

Nessa visão limitadora do arbítrio legislativo, a cláusula do devido processo legal erige-se em escudo contra as normas jurídicas e as decisões administrativas irrazoáveis ou irracionais. Afasta-se, assim, o totalitarismo na tomada de decisões capazes de interferir com a esfera de liberdade ou com os bens individuais dotados de utilidade social. Por exigência insuprimível de limitação de mérito ou de conteúdo nas decisões de caráter normativo, a nenhuma autoridade constituída, nem mesmo ao legislador legitimamente investido da representação política, é dado deliberar de forma arbitrária e incondicionada[3].

É de perceber-se que, como vivemos em um Estado de Direito, presume-se que todas as relações que produzem efeitos jurídicos tenham sua situação regulada pela lei, razão pela qual sempre haveria o juízo de controle pelos envolvidos, conforme mencionado.

Contudo, como se sabe, nem sempre as normas existentes são claras ou suficientes para atender os inúmeros casos ocorridos no cotidiano das relações humanas, de modo que a própria lei pode ser razoável para alguns e desproporcional para outros.

Neste diapasão, o princípio do devido processo legal, sem prejuízo dos demais, pode – e deve – ser considerado umas das fontes pelas quais se aplicam os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[4], notadamente em sua expressão substantive process of law, e, por conseguinte, como forma de solução de litígios envolvendo o impasse Lei versus cidadão.

Vale registrar que os dois princípios citados acima não estão necessariamente vinculados a outros, pois ambos existem por si só, como imanentes do próprio regime democrático de direito, sendo, portanto, apenas comumente trazidos à tona como subsídio para a aplicação de um ou outros princípios a eles interligados ou entrelaçados.

Em coletânea coordenada por Mauro Roberto Gomes de Mattos, nomeada o Abuso de Poder do Estado, o então Ministro do STJ José Augusto Delgado versou sobre o abuso de poder de legislar do Estado e o controle pelo Judiciário, no qual, citando Rogério José Bento Soares do Nascimento, destacou:

A função de produzir normas jurídicas, embora política, porque exprime o exercício de uma competência constitucional, só se justifica e só é legítima quando regular, sendo controlável pelo judiciário.

Há abuso do poder de legislar quando a norma produzida satisfaz um interesse particular ou interesse público diverso daquele que motivou a atribuição de competência constitucional, ou porque os motivos determinantes do exercício daquele poder não se configuraram, ou ainda, por inconstitucionalidade do objeto sobre o qual recai a norma. Toda forma de abuso do poder de legislar pode ser fiscalizado e deve ser coibida pelo Judiciário[5].

No âmbito da jurisprudência do Pretório Excelso, oportuno observar o disposto na ADI 2551, de relatoria do Eminente Ministro Celso de Mello, que assim assentou, verbis:

TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. - O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. - A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado[6].

Assim, percebendo o cidadão que a norma que lhe foi dirigida está maculada pelo vício da inconstitucionalidade, pela ausência de preceitos razoáveis e proporcionais, deverá procurar os meios cabíveis para valer seus direitos, sendo o Poder Judiciário o órgão competente de afastar o abuso legislativo, caso existente.

Esta situação apenas reflete o direito assegurado pelo inciso XXXV do art. 5º da CF/88, que garante que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito, que se aplica perfeitamente na hipótese ora debatida.

Dessa forma, ainda que a Lei seja advinda de um processo legislativo regular e constitucionalmente previsto, deverá ela atender não apenas a critérios formais, mas também a critérios materiais, de modo a cumprir fielmente e espírito democrático da Constituição.

BIBLIOGRAFIA:

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Cidade: São Paulo; Editora Atlas, Ano 2008.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI no. 2551. Relator: CELSO DE MELLO. Brasília. 2003. Diário de Justiça [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF.

CARRAZZA, Roque A. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, 2003.

MATTOS, Mauro Roberto G,. O Abuso de Poder do Estado. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005.

SIQUEIRA, Castro. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

Http://www.stf.jus.br


[1]CARRAZA, Roque A. Curso de Direito Constitucional Tributário. Ed. Malheiros: São Paulo, 2003, pg. 314.

[2]BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Ed. Saraiva: São Paulo, 2009, pg. 241.

[3]CASTRO, Carlos Roberto S. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Editora Forence: Rio de Janeiro, 2005, pg. 146.

[4]Esta é uma das posições assumidas pelo STF, no qual trata do substantivo processo legal.

{C}[5]{C}MATTOS, Mauro Roberto G,. DELGADO, José. O Abuso de Poder do Estado. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, pg. 241.

[6]ADI 2551 MC-QO, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 02/04/2003, DJ 20-04-2006 PP-00005 EMENT VOL-02229-01 PP-00025


Autor

  • Leonardo Carneiro Vilhena

    Pós-graduado latu sensu em Direito Tributário e Finanças Públicas. Advogado da União. Atuou na Procuradoria Regional da União na 1ª Região e atualmente oficia na Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Desenvolvimento Regional.

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