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A Teoria da Justiça segundo John Rawls

A Teoria da Justiça segundo John Rawls

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No âmbito da filosofia política, várias correntes doutrinárias elaboraram uma justificação teórica do Estado e da Sociedade. A teoria da Justiça rawlsiana objetivou conceber um novo contrato social, voltado à regulamentação das instituições sociais.

Sumário:1 Introdução. 2 Conceito de justiça segundo a axiologia jurídica. Sentido lato e estrito da justiça. Seus elementos essenciais. 3 O Utilitarismo e a crítica de Rawls à sua ideologia. 4 O objeto da justiça. As noções aristotélica e rawlsiana de justiça. Justiça distributiva e diortótica ou comutativa. Justiça procedimental pura, perfeita e imperfeita. A posição original. O pluralismo razoável e a justiça como imparcialidade. O véu da ignorância e a idéia de justiça como eqüidade. Os princípios de justiça que seriam escolhidos sob o véu da ignorância. 5 Algumas noções  sobre a crítica comunitária. 6 Conclusão. 7 Bibliografia


1 Introdução

No início deste novo milênio, percebe-se que ainda está longe de encontrar desate na discussão, operada principalmente nos meios acadêmicos, sobre ser possível ou não a elaboração de um conceito de justiça que se mostre racional e objetivo, e que esteja, desta forma, fundado em princípios que aspirem a uma validade universal.

Esta tarefa – a busca de uma concepção de justiça universalmente válida e objetiva – apresenta-se, porém, muitas vezes dotada de um certo grau de frustração, bem como se afigura um tanto inglória, já que sempre retorna ao pensamento dos espíritos argutos a constatação de que o conceito de justiça se apresenta como um dado historicamente condicionado, centrado nas contingências e particularidades da comunidade que o formula.

No intuito de tentar solucionar este impasse, debruça-se a filosofia política contemporânea – comprometida que está, além de outros, com o tema da justificação e legitimação moral do ordenamento político-jurídico – no desenvolvimento de várias teorias da justiça, muito embora o ponto de partida das especulações sobre o problema da justiça tenha sido a Antiguidade. Foram, realmente, os filósofos pré-socráticos, mais especificamente os pertencentes à escola pitagórica ou itálica – segundo as informações que temos do próprio Aristóteles – que, paradoxalmente, formularam um conceito de justiça.[1]

A paradoxalidade se impõe, pois o que impressiona nesta constatação é exatamente o fato de que o período filosófico a que pertenceram esses (os pitagóricos) e outros pensadores que viveram, aproximadamente, entre os séculos VII e V a.C, foi marcado por uma grande preocupação com as questões relativas à natureza e com a origem do mundo, motivo pelo qual este lapso de tempo também recebe a designação de  período cosmológico.[2]

Foi somente no período seguinte, denominado socrático ou antropológico, que a Filosofia passou a se ocupar com questões primacialmente humanas, investigando assuntos relacionados com a ética e a política, no âmbito das quais se insere o tema da justiça.[3] Ainda assim, conforme sugerido anteriormente, não é neste período que uma primeira tentativa de se conceituar o que seja justiça pode ser verificada, mas exatamente no período antecedente.

Ao longo de todos esses anos, a começar pelo período supra referenciado, diversas têm sido as teorias da justiça, aventadas por brilhantes pensadores, que foram e continuam sendo colocadas sob intenso debate. O objetivo deste artigo é fazer a uma sucinta análise de uma das teorias contemporâneas mais influentes sobre o tema, desenvolvida pelo filósofo americano John Rawls em sua obra Uma Teoria da Justiça.

Porém, uma observação, inobstante corriqueira, se faz necessária. Sabe-se que a questão da justiça encontra-se intimamente vinculada ao tema do direito, comprovando esta assertiva o fato de que se fala, recorrentemente, em lei injusta; ato legal, mas injusto; direito justo etc. Dentre as várias perspectivas através das quais o direito pode ser estudado – por exemplo, direito como sistema de normas, como fato social, como direito subjetivo e como ciência – sobreleva a modalidade que o focaliza como uma exigência da justiça.

Por isso é que, antes de adentrar, especificamente, o pensamento do filósofo que compõe o título deste trabalho, far-se-á um breve estudo a respeito do conceito, das características, dos elementos e das espécies de justiça que já foram objeto de sistematização, principalmente, pela axiologia jurídica, sendo correto afirmar, outrossim, que alguns desses pontos até mesmo lograram obter determinado consenso por parte de seus formuladores, como é o caso dos elementos que integram esta virtude.

Logo após, proceder-se-á, celeremente, à análise do Utilitarismo e da crítica que Rawls desfere contra esta doutrina, já que, conforme se verá, um dos objetivos que o impulsionou a elaborar sua teoria foi, segundo ele mesmo, propor uma concepção de justiça que pudesse servir de alternativa ao pensamento utilitário, o qual, durante muito tempo, dominou a tradição filosófica e política, principalmente, dos países de língua inglesa.

Por fim, será feita uma breve confrontação entre a escola liberal (à qual Rawls se filia) e a comunitária. Discorrer-se-á sobre a crítica que esta última deflagrou tanto a alguns pontos específicos da doutrina rawlsiana – utilizando como base o pensamento de Michael Walzer, exteriorizado, principalmente, em seu célebre texto Esferas da Justiça – quanto ao pensamento liberal genericamente considerado, já que algumas críticas perpetradas contra este acabam por se aplicar à teoria de Rawls.


2 Conceito de justiça segundo a axiologia jurídica. Sentido latíssimo, lato e restrito da justiça. Seus elementos essenciais.

A palavra direito não constitui termo unívoco, sendo, na realidade, vocábulo que expressa uma pluralidade de significações, cada uma delas se referindo a realidades distintas. É por isso que se diz ser o vocábulo direito um termo análogo, podendo ser utilizado com, pelo menos, cinco significações diversas: norma, faculdade, ciência, fato social e exigência da justiça.

Em virtude desta multiplicidade de sentidos, há várias perspectivas de acordo com as quais se pode estudar o direito, sendo certo que cada perspectiva se correlaciona com uma das significações contidas na palavra em análise. Cabe à axiologia jurídica, ramo da filosofia do direito, estudá-lo em sua acepção de justo ou de exigência da justiça, por entender que, se a estrutura lógica do direito é deôntica, ou seja, se manifesta por meio de uma proposição jurídica que expressa um dever-ser, tem de haver, necessariamente, um ideal que orienta esta proposição ou norma. Em outras palavras, indaga-se o seguinte: se a norma exige um certo comportamento por parte do indivíduo (impõe-lhe um dever-ser), não lhe concedendo o privilégio de agir de maneira contrária, sob pena de sanção, em que valor se fundamenta esta norma para exigir tal comportamento, a que está a norma visando?

Acima de tudo, deve a norma objetivar o que é justo, pois é a noção de justiça que baliza todo o edifício jurídico,[4]  muito embora haja grandes divergências quanto à identificação do direito com a justiça. Assim, questiona-se se todas as exigências do direito estão baseadas nesta virtude, havendo autores, tais como Kelsen, expoente do positivismo jurídico, para quem a justiça é totalmente extrínseca à formação e validade do direito, que, na verdade, identifica-se com a imposição da força social, advogando o mestre, em síntese, que direito nada tem a ver com justiça.[5]

Outra corrente teórica afirma que somente uma parte do direito ou das instituições jurídicas têm a justiça como base, havendo outros valores, de que são exemplos a segurança e a ordem, que igualmente lhe servem de fundamento: Renard chega a dizer que “le droit n’est pas seulement facteur de justice, il est facteur de sécurité. La justice n’est que la moitié du droit; la grosse moitié, si vous voulez.”[6]

Por outro lado, baseados no fato de que, hoje em dia, já não é mais possível conceber a vida em comunidade – na qual se vislumbra a existência de toda uma multiplicidade de concepções de vida e identidades sociais deveras conflitantes – distanciada de padrões éticos, defendem, com razão, outros pensadores, tal como Del Vecchio, que a noção de justiça é essencial às instituições jurídicas, sendo ela o princípio legitimador de sua existência.

Então, superando as divergências e pondo-se ao lado dos que concebem a justiça como fundamento do direito, pode-se perguntar, afinal, qual é o seu conceito. Em verdade, o termo justiça, assim como o vocábulo direito, é análogo, conseqüentemente, portador de várias significações. Entretanto, dois significados relacionados à justiça exsurgem como principais, sendo um subjetivo e outro objetivo. No primeiro sentido, a palavra justiça designa uma virtude ou qualidade de uma pessoa, podendo ser visualizada mais facilmente quando se diz que um homem é justo. Na acepção objetiva, porém, justiça não se refere a um atributo individual, mas reporta-se a uma qualidade inerente à ordem social, expressa, por exemplo, quando se fala que uma lei é justa. Entretanto, ambos significados, subjetivo e objetivo, não são necessariamente excludentes, mas demonstram-se complementares, pois quando se fala em justiça como qualidade de uma pessoa, pode-se referir, em última análise, à justiça das instituições sociais, na medida em que estas são concebidas e integradas por seres humanos e que os atos emanados de tais instituições são praticados por eles. A divergência surge, às vezes, no momento de se estabelecer qual dos dois significados deve ter prioridade, já que um jurista afirmará que a justiça tem como objeto principal as instituições sociais, fazendo ressaltar seu sentido objetivo; enquanto que um moralista, tendo como preocupação a atividade pessoal do indivíduo, realçará o significado oposto.

Neste passo é que o sentido do termo justiça pode, ainda, ser contemplado de modo diferente, particularmente quando se refere à sua extensão. Em seu sentido lato, a justiça é o conjunto das virtudes sociais ou de convivência humana, pressupondo, conforme se depreende do conceito, a existência de outras pessoas, pois que não pode ser exercida isoladamente, como o podem outras virtudes (coragem, prudência etc). Em sentido estrito, contudo, justiça significa, conforme a definição de São Tomás, dar a outrem o que lhe é devido segundo uma igualdade.[7] Deste último conceito é que são retirados os elementos essenciais que integram a noção de justiça propriamente dita ou strictu sensu.

Assim é que a axiologia jurídica, partindo do conceito de justiça em sentido estrito, enumera três elementos que necessariamente integram esta virtude: a alteridade, ou pluralidade de pessoas; o devido (debitum); e a igualdade. O primeiro deles, a alteridade, é o elemento que distingue a justiça das outras virtudes morais, pois, conforme já mencionado acima, caracteriza este atributo como virtude social, insuscetível de ser praticada a não ser em relação a outrem. A rigor, não pode o homem ser justo ou injusto em relação a si mesmo.

A segunda característica essencial da justiça é o devido, também podendo ser entendido como uma obrigatoriedade ou exigibilidade, de maneira que se entende consistir o ato de justiça em dar a outrem aquilo que é devido. Entretanto, tal característica não é nota exclusiva da justiça, pois resta patente que outras virtudes também possuem um debitum. Há, com certeza, um débito, por exemplo, na amizade e na gratidão. Mas qual é a diferença entre o devido integrante da justiça e o débito que faz parte destas outras virtudes? Tal distinção se relaciona com a existência de dois tipos de dever, um moral e outro mais rigoroso ou estrito ou, ainda, legal. Nas outras virtudes, tais como a amizade e a gratidão, há somente um dever moral, o qual não pode ser exigido. Na justiça, o dever é rigoroso, passível de exigibilidade e legalmente imposto. Não se pode exigir de outrem gratidão por um benefício concedido, mas pode o credor exigir do devedor que, como ato de justiça, lhe pague uma dívida.

O último elemento integrante da justiça é a igualdade. Consiste este elemento em uma espécie de relação de adequação, que, por sua vez, possui três modalidades: a identidade, a semelhança e a igualdade. A identidade é uma relação de conformidade ou adequação relativa à essência; a semelhança o é quanto à qualidade; e a igualdade, referente à quantidade. Deste modo, se afirma que dois seres são idênticos quando possuem a mesma essência, são semelhantes quando têm as mesmas qualidades, e são iguais quando partilham da mesma quantidade. A igualdade, portanto, consiste em uma equivalência de quantidades. Quando se trata da justiça, deve-se proceder a uma adaptação desta equivalência às relações morais entre seres humanos.[8]

Expostos de maneira extremamente resumida, estes são os pontos principais sobre a sistematização feita pela axiologia jurídica a respeito do tema da justiça. Mais adiante, precisamente no item 4, o assunto aqui analisado se mostrará relevante para o entendimento de outros pontos que serão explorados, e cuja compreensão passa, necessariamente, pelo que foi abordado neste tópico.


3 O Utilitarismo e a crítica de Rawls à sua ideologia.

Logo no prefácio à sua principal obra, intitulada Uma Teoria da Justiça, John Rawls deixa transparecer qual foi seu principal objetivo ao escrever este livro: elaborar uma teoria da justiça que sirva como alternativa às concepções clássicas da justiça, mais especificamente ao Utilitarismo e suas demais versões.

Lembrando que não é objetivo deste tópico discorrer sobre o tema exaustivamente, mas oferecer, em poucas palavras, um entendimento geral sobre o assunto a ser tratado, é possível, então, passar à indagação sobre o que é a doutrina utilitarista e de que maneira a teoria de Rawls se opõe a ela. 

Sabe-se que o ordenamento jurídico-político de um Estado, exteriorizado, sobretudo, pela imposição de normas dotadas de poder sancionador, erige-se em uma forma de constrição das liberdades dos indivíduos. Entretanto, a construção de um aparato jurídico-coercitivo não ocorre sem o correspectivo sentimento de que é necessário justificar a sua existência nas sociedades políticas, bem como legitimar o seu funcionamento.

A filosofia política tem como um de seus objetos de especulação exatamente o problema exposto acima. Questiona-se de que forma é possível justificar a imposição de restrições às liberdades das pessoas e, se tais restrições são realmente necessárias para evitar o malogro da vida em sociedade, indaga-se, outrossim, quais são as exigências a que todo o aparato político-jurídico instituído deve se submeter para que o Estado e suas instituições sejam reputados justos.

Portanto, diante do reconhecimento de que a reunião de homens numa comunidade necessita de regras dirigidas à limitação de suas liberdades, com o propósito de que haja o devido respeito para com as liberdades dos demais, várias doutrinas surgiram com o intuito de proceder à tentativa de moralmente justificar e legitimar a existência do Estado na qualidade de ente constritor das liberdades individuais. Como se pode inferir, deixa-se de considerar, aqui, aquelas doutrinas que foram idealizadas com fundamento na concepção de que somente uma sociedade em que impera a absência de normas dotadas de coerção poderia ser legitimada moralmente. Um bom exemplo desta modalidade de doutrina é o anarquismo.

Assim, o utilitarismo pertence à classe de teorias filosóficas que tentaram dar uma resposta ao problema da justificação e legitimação do Estado. Específica e originariamente, entretanto, foi constituída como um credo que radica, na conseqüência das ações humanas individuais, o valor moral da conduta, tendo como fundamento da moralidade a utilidade ou o princípio da maior felicidade, de modo que má ou incorreta é a ação que tende a promover o sofrimento ou a infelicidade, e boa ou correta a que produz prazer ou satisfação.[9] A ética utilitarista, portanto, afirma que as ações virtuosas têm como objetivo a maximização da felicidade dos indivíduos, de cujo somatório decorreria o bem-estar de todos.

Transferindo a ideologia utilitarista para o âmbito do Estado, o ordenamento jurídico-coercitivo estaria justificado e legitimado à medida que se enxergasse o resultado das limitações às liberdades das pessoas como algo útil à produção de felicidade e satisfação para toda a coletividade.

A crítica de Rawls ao utilitarismo fundamenta-se no fato de que esta doutrina estaria comprometida com a multiplicação das satisfações em uma sociedade, sem diretamente se importar com o modo pelo qual esta soma de realizações deveria ser distribuída entre os indivíduos. Assim, afirma ele que, segundo a perspectiva utilitarista, justa é a sociedade cujas instituições mais importantes estão direcionadas à consecução do maior saldo de satisfação possível, que seria obtido por meio do somatório das realizações individuais.[10]

Portanto, não importa a forma de distribuição das satisfações, pois correta e justa é a forma que tenha como objetivo permitir que a sociedade distribua suas riquezas, oportunidades, privilégios e outros bens de uma maneira pela qual possa ser alcançado o mais alto nível de realização dos sistemas de desejos do grupo. Ocorre, entretanto, que, na visão de Rawls, esta doutrina sucumbe enquanto teoria que procura justificar moralmente o Estado porque, em princípio, nada impediria que, sob o argumento de maximizar o bem-estar da coletividade, fossem sacrificados direitos e liberdades de um grupo de pessoas, ainda que pequeno.

Assim sendo, argumenta Rawls que “não há razão para que os benefícios maiores de alguns não devam compensar as perdas menores de outros; ou, mais importante, para que a violação da liberdade de alguns não possa ser justificada por um bem maior partilhado por muitos”.[11]

Movido por esta forte objeção à teoria utilitária, Rawls não se furtou a admitir, em sua mais famosa obra, que o seu objetivo foi elaborar uma doutrina que lhe servisse de alternativa. Sobre esta última é que se discorrerá a seguir.


4 O objeto da justiça. As noções aristotélica e rawlsiana de justiça. Justiça distributiva e diortótica ou comutativa. Justiça procedimental pura, perfeita e imperfeita. A posição original. O pluralismo razoável e a justiça como imparcialidade. O véu da ignorância e a idéia de justiça como eqüidade. Os princípios de justiça que seriam escolhidos sob o véu da ignorância.

Outro objetivo de John Rawls ao conceber as idéias expostas em Uma Teoria da Justiça, além de ter sido elaborar uma doutrina que pudesse ser identificada como uma alternativa ao utilitarismo clássico, foi propor uma  nova teoria do contrato social.[12] Por meio deste, configurar-se-ia um procedimento de deliberação eqüitativo voltado à concretização de um justo modelo de organização das instituições sociais. Explique-se.

Conforme a extremamente notória e tão reiterada sentença de Rawls, a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, o que equivale a dizer que são estas o principal objeto sobre que, na visão do filósofo, a justiça atua. Ainda segundo o mestre, as instituições sociais que constituem o objeto primário de atuação da justiça compõem a estrutura básica da sociedade, que, por sua vez, é identificada com a “maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social”.[13]

Sobre este primeiro tópico, o do objeto da justiça, mister se faz tecer alguns comentários, ainda que, para tanto, seja necessário digressionar um pouco. Rawls, ao enunciar sua mais célebre assertiva,  rompe com a noção tradicional de justiça, vez que a faz assomar ao nível de virtude reguladora da sociedade (justiça social), apartando-se, em certa medida, da concepção aristotélica desse atributo moral. Como se sabe, Aristóteles, ao tratar da justiça, inspirou-se tanto na vertente pitagórica, por cuja crítica concebeu a noção de justiça particular, quanto na vertente platônica, aventando o que chamou justiça universal, que, segundo o próprio Aristóteles, distingue-se da primeira por corresponder à virtude completa, ao conjunto de todas as virtudes, bem como ao que é conforme a lei.[14] Assim, subdividiu a justiça particular – espécie de justiça dedicada à regulação das relações bilaterais – em justiça distributiva e comutativa.[15]

A justiça distributiva, segundo Aristóteles, é a que atua sobre a divisão das honras e dos bens, com o objetivo de que cada membro da comunidade receba uma parte que esteja em conformidade com o seu próprio mérito. Em conseqüência, pessoas com méritos desiguais devem receber porções desiguais dos bens e das honras, conclusão que faz surgir a idéia de proporcionalidade, inerente a esta modalidade de justiça. [16]

A justiça diortótica, ou comutativa, (que, aliás, é detentora de vários outros epítetos, tais como, justiça retificadora, igualadora, sinalagmática e corretiva), ao contrário, não leva em consideração o mérito das pessoas. Isto porque visa assegurar que, numa relação intersubjetiva, as partes fiquem numa situação de paridade, no sentido de que uma não tenha dado nem recebido mais do que a outra, motivo por que se diz ter ela uma função corretiva, isto é, retificar eventual desigualdade. Assim, são os termos objetivos da relação (as coisas) que devem ser igualados, e não os termos subjetivos (as pessoas), pois estes se pressupõem iguais.[17] Também se encontra presente, nesta modalidade, a noção de proporcionalidade, porém trata-se de proporção aritmética, enquanto que na distributiva a proporção é geométrica.[18]

Utilizando o conhecimento exposto na parte deste artigo que tratou dos elementos fundamentais da justiça, essas duas espécies podem ser definidas por meio da análise desses elementos, sendo correto que, segundo o que foi afirmado antes, estão eles presentes em qualquer modalidade de justiça. Apenas para recordar, tais características são a alteridade, o devido e a igualdade. Antes, porém, advirta-se que o ideal seria, antes de proceder à definição das duas espécies de justiça, fazer um estudo percuciente sobre as diferentes realidades que cada um desses elementos fundamentais representa quando nos referimos à justiça distributiva e à comutativa separadamente. Como, entretanto, tal estudo refoge ao escopo deste trabalho, por ser bastante extenso, abster-se-á de fazê-lo; mas, ao mesmo tempo, aproveita-se para exortar o leitor à pesquisa do tema nas obras referenciadas ao final.

Conceitua-se, então, a justiça distributiva como a virtude pela qual a comunidade dá a cada um de seus membros (alteridade) uma participação do bem comum (devido), observada uma igualdade relativa (igualdade). A justiça comutativa, ao revés, pode ser conceituada como a virtude pela qual um particular dá a outro particular (alteridade) aquilo que lhe é rigorosamente devido (débito), observada uma igualdade simples ou real (igualdade). Percebe-se que, em ambas, os elementos não se referem às mesmas realidades, pois, sem descer a maiores detalhes, na primeira a relação bilateral se dá entre a comunidade e seus membros, enquanto que na segunda a mesma relação ocorre entre indivíduos.[19]

Retornando, então, à questão inicial, que trata da ruptura que a concepção de justiça em Rawls operou com a noção aristotélica deste atributo moral, vê-se que o primeiro filósofo não identifica essa virtude com as duas espécies de justiça particular expostas acima, isto é, como primitivamente reguladora de relações particulares e bilaterais. Ela é, primeiramente, regedora das instituições sociais, incidindo, de maneira prioritária, sobre a estrutura básica da sociedade para que a divisão dos bens resultantes da cooperação dos seus membros seja feita de maneira justa.

Importa dizer que, muito embora o próprio Rawls afirme que sua concepção de justiça se conforma com a noção tradicional concebida por Aristóteles, nota-se claramente, pelas palavras do primeiro, que esta possível congruência de idéias ocorre, sobretudo, quando se leva em consideração o fim último objetivado pelas duas concepções, qual seja, evitar a pleonexia. Esta coincide com “evitar que se tire alguma vantagem em benefício próprio tomando o que pertence a outrem, sua propriedade, sua recompensa [...] ou recusando a alguém o que lhe é devido [...] e assim por diante”.[20]

Seja-nos permitido, contudo, expor um posicionamento parcialmente divergente ao que se acabou de afirmar quanto à distinção das noções de justiça presentes em Aristóteles e em Rawls. Desta forma é que, para Paul Ricoeur, pode-se pensar que a concepção rawlsiana a respeito dessa virtude, a princípio, se aproxima muito mais da concepção platônica do que da aristotélica, pois que Platão é muito mais holístico ao afirmar que a justiça é a virtude do todo, não se coadunando esta idéia com a de justiça particular de seu discípulo estagirita.

Todavia, ao analisar detalhadamente o pensamento de Rawls, principalmente quando afirma que o objeto primário da justiça é a maneira segundo a qual as mais relevantes instituições sociais distribuem direitos e deveres fundamentais, defende Ricoeur a tese de que “Rawls junta-se a Aristóteles sem trair Platão”.[21] Portanto, conforme este autor, a concepção de justiça em Rawls seria, ao mesmo tempo, holística e distributiva, pois, se o sistema social também pode ser perspectivado como um processo de distribuição de vantagens, benefícios, papéis, pode a justiça distributiva ter a estrutura básica da sociedade como objeto.[22]

De qualquer maneira, ainda que se adote este segundo posicionamento, verifica-se que continua sendo verdade o que foi dito inicialmente a respeito das duas concepções de justiça confrontadas, isto é, ambas não se identificam. Percebe-se que o próprio Ricoeur reconhece a dessemelhança entre elas, pois que, logo no início de sua exposição sobre o tema, afirma: “[...] façamos duas observações gerais sobre o ‘sujeito da justiça’. Primeira observação: a justiça não é primitivamente uma virtude intersubjectiva, uma virtude regedora das relações bilaterais, mas sim regedora das instituições sociais [...]”.

Retomando, agora, a análise específica da doutrina de Rawls, este concebe uma teoria segundo a qual os indivíduos, reunidos com o intuito de chegar a um consenso sobre certos princípios fundamentais que serão escolhidos para governar o funcionamento da estrutura da sociedade e da distribuição de bens, encontram-se em uma situação hipotética denominada posição original. Esta situação é caracterizada, dentre outras coisas, pelo fato de que as pessoas nela inseridas desconhecem qual função, cargo ou posição irão ocupar na sociedade. Sobre esta característica, porém, se discorrerá com maiores detalhes mais adiante.

Assim, esta situação inicial, que Rawls chama de posição original, é definida sob a perspectiva de uma concepção contrafática – isto é, nunca existiu de fato – e se identifica com um recurso de representação mediante o qual os participantes do processo deliberativo estão aptos a celebrar um acordo de cooperação – que, reitera-se, é hipotético – e escolher princípios de justiça cuja função será a de assegurar, na sociedade democrática que pretendem construir, sua liberdade e igualdade.

Rawls, portanto, pressupõe que a sociedade democrática – aquela que resulta do consenso hipotético a que chegaram os indivíduos que, na posição original, escolheram os princípios de justiça – é um sistema eqüitativo de cooperação social, composto por pessoas que, num primeiro aspecto, são livres, pois possuem o direito de participar da construção das instituições sociais, constituindo, assim, fontes autônomas de reivindicações, no sentido de que estas possuem um valor próprio que não decorre de deveres em relação à sociedade nem a outras pessoas, mas somente de deveres das pessoas para com elas mesmas.[23] São livres, sob outro aspecto, porque são dotadas de capacidades morais e capacidades da razão. A primeira permite-lhes entender e se comportar de acordo com os princípios da concepção pública de justiça, ou seja, é a capacidade de ter um senso de justiça. A segunda equivale a possuir uma capacidade de racionalmente perfilhar uma idéia de bem. Por outro lado, são iguais porque essas duas capacidades estão presentes nos indivíduos de uma forma e em um nível adequados o bastante para fazer deles pessoas cooperativas na sociedade.[24]

Ainda no que respeita à posição original, explica Rawls que esta situação possui um alto nível do que se entende por justiça processualística pura. A noção de justiça processualística pura significa que, no procedimento de escolha dos princípios inerentes à concepção de justiça pública, não há qualquer critério independente e previamente definido do que é justo ou eqüitativo. Conseqüentemente, não importa quais princípios serão selecionados a partir de uma lista de possíveis escolhas, pois, ao se lançar mão desta modalidade de procedimento, todos eles serão justos. Esta noção se opõe ao que Rawls denomina justiça processualística perfeita e justiça processualística imperfeita. Na perfeita, já foi previamente estabelecido um critério do que é eqüitativo ou justo, e o procedimento adotado irá apenas assegurar que o resultado seja conforme este critério.

Para ilustrar a modalidade de justiça processualística perfeita, oferece ele o seguinte exemplo, que considera a hipótese mais simples de uma divisão tida como justa:

Um certo número de homens deve dividir um bolo: supondo que a divisão justa seja uma divisão eqüitativa, qual será o procedimento, se é que existe um, que trará esse resultado? Questões técnicas à parte, a solução óbvia é fazer com que um homem divida o bolo e receba o último pedaço, sendo aos outros permitido que peguem os seus pedaços antes dele. Ele dividirá o bolo em partes iguais, já que desse modo pode assegurar para si próprio a maior parte possível. Esse exemplo ilustra os dois traços característicos da justiça procedimental perfeita. Primeiro, há um critério definido em separado e antes de o processo acontecer. E, segundo, é possível criar um procedimento que com certeza trará o resultado desejado. [...] O essencial é que haja um padrão independente para decidir qual resultado é justo e um procedimento que com certeza conduzirá a ele.[25]

Rawls, em um de seus escritos, com o intuito de clarificar a diferença entre as duas espécies de justiça processualística – pura e perfeita – discorre sobre a primeira com as seguintes palavras: “a característica essencial da justiça processualística pura, distinta da justiça processualística perfeita, é a ausência de um critério independente de justiça. O que é justo se define apenas pelo resultado do próprio procedimento”.[26]

No que se refere à terceira modalidade, a justiça processualística imperfeita, afirma o filósofo que sua principal característica é o fato de que há um critério independente para conduzir a um resultado correto, mas o que não existe é um processo que indubitavelmente chegue a ele. O exemplo que fornece para ilustrar essa terceira espécie é um julgamento, pois que, neste, é possível atingir um resultado errado ainda que a lei haja sido estritamente observada e que os procedimentos tenham sido seguidos justa e adequadamente.[27]

A importância de se descrever a posição original nos moldes de uma situação que tem como uma de suas peculiaridades o predomínio da justiça procedimental pura, com a conseqüente exclusão das outras duas espécies, é, segundo o próprio Rawls, o fato de que tal circunstância resulta na constatação de que as pessoas envolvidas na escolha dos princípios de justiça são dotadas do atributo da autonomia racional, que, aliás, se contrapõe à autonomia completa.[28]  Assim, como empregam, em suas deliberações, a justiça procedimental pura, são os parceiros, na posição original, racionalmente autônomos, sob uma primeira perspectiva, porque não se lhes exige seguir ou aplicar princípios de justiça previamente existentes.[29] Destarte, são eles livres para aquiescer a qualquer concepção de justiça apresentada e racionalmente proceder a uma avaliação sobre o grau em que ela (a concepção de justiça proposta) atenderá aos seus interesses. Em última análise, a autonomia racional lhes confere a possibilidade de estabelecer uma idéia de justiça política que se compatibilize com uma sociedade democrática.[30]

Repisando o que foi afirmado anteriormente, com o objetivo de melhor explicar o que vem a seguir, Rawls estabelece como premissa que, nesta sociedade democrática, impera uma idéia intuitiva básica segundo a qual a sociedade é um sistema eqüitativo de cooperação entre indivíduos livres e iguais, donde decorrem duas outras idéias básicas. A primeira já foi exposta acima e deriva, precisamente, do que foi dito na sentença anterior, isto é, do fato de que os membros desta sociedade são pessoas livres e iguais, já que possuem capacidades morais e capacidades da razão. A segunda idéia básica harmoniza-se com a noção de sociedade bem ordenada.

Ocorre que, no âmbito de uma sociedade democrática bem ordenada, um aspecto relevante caracteriza os cidadãos livres e iguais que dela participam . Possui cada um deles uma concepção própria de vida, uma perspectiva de enxergar o mundo, estando todos comprometidos com diferentes, e até incompatíveis, valores culturais, religiosos, filosóficos, morais, bem como perfilhando projetos e interesses individuais divergentes. A este fato Rawls chama de pluralismo.

O pluralismo a que alude o mestre não é outro senão um pluralismo razoável, o qual, além de ser uma característica permanente da cultura de uma sociedade democrática, consiste, exatamente, na coexistência de diversas doutrinas e concepções de vida razoáveis. As doutrinas razoáveis possuem três características fundamentais, quais sejam: englobam os aspectos filosóficos, religiosos e morais mais relevantes da vida de uma forma relativamente consistente e coerente, sendo, por isso, resultado do exercício da razão teórica; emprestam, a uma prioridade específica, determinados valores, motivo por que são o corolário da razão prática; e, ainda que evoluam com o decurso do lapso temporal, são dotadas de estabilidade.[31]

O fato do pluralismo razoável torna-se suscetível de melhor compreensão quando se entrecruzam as idéias de pessoas dotadas de capacidades morais e sociedade bem ordenada. À noção de sociedade bem ordenada liga-se, imprescindivelmente, a idéia de estabilidade política, numa relação em que esta constitui um antecedente lógico da primeira. Porém, como lograr estabilidade política em uma sociedade na qual, em virtude de as pessoas serem detentoras de capacidades morais – conseqüentemente sendo, cada indivíduo, livre para ter e efetivamente exercitar sua particular convicção religiosa e filosófica, visão de mundo, perspectiva de vida  etc – elas agem de acordo com suas concepções de bem? Em outras palavras, como harmonizar estabilidade política com o fato do pluralismo? Em princípio, tal indagação parece subtrair qualquer pretensão de compatibilidade entre uma sociedade bem ordenada e pessoas prendadas com as referidas aptidões morais.

Porém, este impasse comporta solução nos seguintes termos. Foi dito, acima, que as capacidades morais que Rawls atribui aos indivíduos são, na verdade, duas: a primeira é a capacidade de perfilhar uma concepção de bem, que acabou de ser mencionada. A segunda é a capacidade de ter um senso de justiça, ou seja, compreender e agir segundo uma concepção pública de justiça. Rawls, então, ao dotar as pessoas desta segunda capacidade, chega finalmente à resolução desse conflito (sociedade bem ordenada e pluralismo), pois, muito embora possam os cidadãos ter sua própria concepção de bem, são eles capazes de ter um senso do que é publicamente justo, o que os conduz a interagir com outros indivíduos em conformidade com princípios que são manifestamente aprovados por todas as outras pessoas, os quais são os princípios da justiça pública.[32]

Portanto, dois resultados podem ser hauridos desta constatação: o primeiro é que, como existe compatibilidade entre aquilo que as pessoas consideram um bem com o que reputam como justo, ou seja, entre a concepção de bem e de justiça, o pluralismo existente numa sociedade democrática – reiterando, as diferentes concepções acerca da vida digna, convicções filosóficas, perspectivas de mundo – só pode ser razoável. O outro resultado é que, porque não demanda nenhum tipo de acordo entre as diversas concepções de vida adotadas, mas existe e atua independente e acima delas, a idéia de justiça que impera é a de uma justiça como imparcialidade.[33]

Atingindo este ponto da exposição sobre a doutrina de Rawls, pede-se vênia ao leitor para que se faça uma breve recapitulação do que foi explanado até aqui, com o fim de rever os principais conceitos, reordenar o pensamento e, então, preparar uma base mais sólida para conferir maior fluidez à explicação, ainda neste tópico, do próximo assunto. 

Foi afirmado que John Rawls, simultaneamente objetivando propor um novo contrato social e elaborar uma doutrina que sirva de alternativa ao utilitarismo, dispôs-se a estabelecer os princípios morais que devem reger as principais instituições sociais – ou a estrutura básica –  de uma sociedade democrática justa, isto é, uma sociedade cujas instituições procedam a uma distribuição eqüitativa das vantagens resultantes da cooperação social. Destarte, para a escolha de tais princípios, concebeu Rawls uma situação contrafática (hipotética), denominada posição original, em que representantes de cidadãos livres e iguais celebrariam um acordo lançando mão de um processo consistente na justiça procedimental pura, em virtude do qual eles podem ser identificados como pessoas racionalmente autônomas. Porque o são, não ficam adstritos à escolha de quaisquer critérios de justiça previamente existentes, assim como são livres para aquiescer a qualquer concepção de justiça proposta.

Rawls, então, imagina a sociedade democrática – resultante deste acordo a-histórico supra mencionado – como um sistema eqüitativo de cooperação social cujos membros, em que pese o fato de serem sequazes de diferentes concepções e perspectivas de vida, religião, doutrinas etc – o que enseja a constatação do fato do pluralismo – vivem numa sociedade bem ordenada, vez que esta possui estabilidade política. Tal estabilidade é possível exatamente porque os cidadãos livres e iguais partilham um senso de justiça que os leva a aceitar princípios que transcendem suas concepções particulares de bem e, como resultado, os faz adotar determinadas posturas e agir em relação aos outros indivíduos pautados nesses princípios publicamente consentidos.

Por conseqüência, chega-se à conclusão de que o pluralismo existente na sociedade democrática não é outro senão um pluralismo razoável, pois, conforme afirmado, se harmonizam o bem e o justo (as idéias de bem e de justiça). Isto também conduz à idéia de justiça como imparcialidade, vez que os princípios de justiça escolhidos para governar a sociedade democrática vigem a atuam independentemente da existência da diversidade de doutrinas e concepções de bem particulares.

Acontece que, depois de tudo o que foi exposto até este momento, um questionamento pode surgir. O que garantiria que, no instante em que procedessem à eleição dos princípios de justiça que irão governar as estruturas básicas da sociedade democrática, os cidadãos, diante das contingências históricas, não escolheriam princípios que favoreceriam seus interesses pessoais e puramente egoísticos em detrimento dos interesses de seus pares? Na tentativa de oferecer um exemplo prático, poderíamos fazer o mesmo questionamento da seguinte forma:  o que iria assegurar que, na sociedade, uma pessoa que ocupasse a função de detentor dos meios de produção não se beneficiaria desta circunstância e escolheria um princípio, por ela reputado justo, segundo o qual não lhe seria necessário recolher nenhum tipo de tributo sobre o salário que paga a seus empregados, devendo estes suportar todo o ônus relativo às contribuições para a seguridade social?

Para resolver este problema, Rawls introduz a noção de véu da ignorância. Sobre esta concepção, afirma John Rawls que se trata de uma circunstância em que:

[...]ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia, como por exemplo a sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. [34]

Desta forma, o acordo a que tais indivíduos pretendem chegar – isto é, sobre os princípios de justiça reguladores do funcionamento da sociedade – será eqüitativo, a ponto de resultar em uma organização societal regulada por princípios justos, se a situação inicial também for dotada de eqüidade, pois se pressupõe que “a eqüidade das circunstâncias nas quais o acordo é atingido se transfere para os princípios de justiça escolhidos”.[35]

 Porém, para que o seja, deve a posição original revestir-se das características inerentes ao véu da ignorância, sendo certo afirmar que é ele que assegura a eqüidade do procedimento de deliberação, já que também garante a eqüidade da situação inicial. Ao imaginar esta situação de ignorância por parte dos indivíduos, busca-se impedir que eles escolham princípios que iriam satisfazer seus interesses mais imediatos caso tivessem plena consciência do papel que iriam desempenhar na sociedade.

Através desta concepção de uma posição original que, por estar caracterizada pelo véu da ignorância, se torna uma circunstância eqüitativa – já que as relações intersubjetivas que nela se processam apresentam-se dotadas de uma determinada simetria cognitiva quanto às contingências sociais – é que Rawls chega à noção de justiça como eqüidade. Esta noção “transmite a idéia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é eqüitativa”.[36]

Neste ponto, digressiona-se novamente com o intuito de se realizar uma célere análise comparativa entre a posição original rawlsiana e o estado de natureza tal como formulado por Thomas Hobbes.

A posição original introduzida por Rawls se afasta, de certa forma, do estado de natureza concebido por Hobbes, asserção que contraria, ainda que parcialmente, a opinião de outros autores. Segundo Ana Paula Barcellos, Rawls concebe o ser humano, em seu estado natural, como basicamente individualista, liberal, racional, e essencialmente só, bem como  possuidor de concepções próprias a respeito da justiça, do bem e da sociedade, estando, ademais, consciente dos objetivos individuais que almeja perseguir. Mais adiante, afirma que seu estado de natureza se assemelha ao do homem concebido por Hobbes.[37]  

Entretanto, deve-se notar que, segundo a antropologia hobbesiana, o estado de natureza correspondia a uma situação cuja característica mais marcante era a guerra de todos contra todos, e na qual predominava o medo de uma morte violenta. Nas palavras de Thomas Hobbes: “[...] durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”.[38]

Por isso mesmo é que o primeiro valor que se almejava, ao se transpor esta situação e se atingir o Estado Civil, era a segurança, não a justiça.[39] O que move o homem hobbesiano a celebrar um pacto com seus semelhantes objetivando instituir o governo civil é o desejo de proteção e defesa contra a superioridade do inimigo comum, bem como o medo do perigo e de não ser capaz de prover à sua autoconservação.

A favor da instituição de um Estado soberano como garantidor da segurança, Hobbes apresenta os seguintes argumentos:

E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, [...] se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.

Não é a união de um pequeno número de homens que é capaz de oferecer essa segurança, porque quando os números são pequenos basta um pequeno aumento de um ou outro lado para tornar a vantagem da força suficientemente grande para garantir a vitória [...].

Também não é bastante para garantir aquela segurança que os homens desejariam que durasse todo o tempo de suas vidas, que eles sejam governados e dirigidos por um critério único apenas durante um período limitado, como é o caso numa batalha ou numa guerra.

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que [...] possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. [...] Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.[40]

Portanto, difere a posição original rawlsiana do estado de natureza de Hobbes, uma vez que a teoria contratualista concebida nos moldes delineados por Rousseau e Kant, da qual Rawls mais se aproxima, não descreve o estado de natureza de forma tão pessimista quanto o do primeiro filósofo.  Os outros dois imaginam tal estado, apenas, como uma situação em que não há instituições elaboradas com o fim de  administrar os interesses individuais conflitantes e distribuir os bens resultantes da cooperação social de maneira eqüitativa. Esta é a razão pela qual pode-se imaginar que se aspira, acima de tudo, a princípios que, ao incidirem sobre a estrutura básica da sociedade, permitam a consecução desses fins específicos: os princípios de justiça.

Após esta breve digressão, ainda resta fazer um importante questionamento para finalizar este tópico: quais princípios, na posição original, seriam consensualmente escolhidos sob o véu da ignorância? Segundo Rawls, seriam dois. O primeiro afirma que “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras”. O segundo, por sua vez, diz que “as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”.

Ao afirmar que são dois os princípios de justiça escolhidos pelos contratantes na posição original, Rawls imagina a estrutura social nos moldes de uma fórmula bipartite em que podem ser distintamente visualizadas as partes às quais serão aplicados ambos os princípios. O sistema social, assim divisado, possui aspectos responsáveis por definir e garantir as liberdades básicas, e aspectos que determinam as desigualdades econômicas e sociais. Ao primeiro aspecto se aplicaria o primeiro princípio, e ao outro aspecto, o segundo.

Uma característica destes princípios que se afigura tão importante quanto o conteúdo que encerram é o fato de que estão ligados por uma regra de prioridade, que Rawls chama de ordenação serial. O enfoque dado através dessa regra é extremamente rígido, já que se estabelece um escalonamento hierárquico completamente destituído de mobilidade, não sendo, então, possível ao segundo princípio ascender ao primeiro nível da ordenação. Isto corresponde a dizer que não há lugar para uma inversão da prioridade estabelecida sob o argumento de que maiores vantagens econômicas compensam e justificam a violação das liberdades básicas asseguradas. A única hipótese em que uma restrição pode ser imposta a tais liberdades se dá quando ocorre um conflito entre liberdades, do que se pode inferir que não são elas absolutas.[41]

Segundo Rawls, esses dois princípios, de modo genérico, significam que a distribuição dos valores sociais, tais como renda, riqueza, liberdade, oportunidade etc, deve ser feita de maneira igualitária, ressalvando-se a hipótese em que eventual desigualdade na sua distribuição resulte em benefícios para todos. Logo, a injustiça é feita quando as desigualdades não trazem vantagens para todas as pessoas. Deve-se observar, porém, que esta melhoria da situação de todos não pode ocorrer com a subversão da ordem serial dos dois princípios de justiça escolhidos na posição original. Assim, ficaria excluída, por exemplo, a troca que gerasse maiores vantagens econômicas à custa de direitos políticos.[42]

Termina, aqui, a exposição sobre a doutrina de Rawls. Conforme a advertência exordial, não está no escopo deste artigo fazer um estudo abrangente do assunto versado, vez que a complexidade representada pelo pensamento filosófico rawlsiano requer considerações que jamais se conteriam nos lindes de um trabalho tão modesto. Antes, o intuito foi apenas de munir o leitor, ainda assim de modo bem simples, com alguns dos principais tópicos insertos em Uma Teoria da Justiça. O próximo item tem por objetivo tecer breves considerações a respeito da crítica desferida pelos comunitaristas à teoria de Rawls.


5 Algumas noções  sobre a crítica comunitária.  

Michael Walzer foi um dos filósofos pertencentes ao que se denomina Escola Comunitária – oposta à Escola Liberal – que, ao lado de outros doutrinadores tais como Michael Sandel, Charles Taylor e Alasdair MacIntyre, logrou produzir uma das críticas mais notáveis à teoria liberal de John Rawls. Antes de analisar em que, exatamente, a vertente comunitarista de Walzer se afasta do liberalismo rawlsiano, convém fazer alguns comentários sobre sua doutrina.

Em sua principal obra, Esferas da Justiça, Walzer estabelece como premissa que a sociedade humana é uma comunidade distributiva em que a pluralidade de bens que são produzidos e divididos entre seus membros é distribuída por essa mesma comunidade segundo uma multiplicidade de procedimentos, agentes e critérios.[43]

Portanto, assim como existem diversos bens socialmente produzidos e uma multiplicidade de procedimentos e agentes de distribuição, há também uma pluralidade de princípios da justiça. Cada bem social corresponde a uma diferente esfera distributiva, também denominada esfera da justiça, e dentro desta esfera apenas um critério é adequado para regular a sua distribuição. Exemplos de esferas da justiça são a educação, os cargos públicos, o dinheiro, a seguridade, dentre outros. Os diversos critérios de distribuição podem ser exemplificados com a necessidade, o merecimento, o livre comércio, a qualificação etc.

Articulando as esferas da justiça com seus respectivos critérios ou princípios distributivos, tem-se, a título de exemplo, que o justo critério para sofrer uma punição ou receber honrarias é o mérito; para se ter educação superior, o talento; assistência médica pública é fornecida mediante o critério da necessidade; a riqueza será adquirida pelos critérios da habilidade, do trabalho e da sorte no mercado.[44]

Walzer, então, postula que a distribuição dos bens sociais deve ser feita de maneira diversa, de um modo tal que cada bem seja distribuído, dentro da sua própria esfera distributiva ou da justiça, por razões diferentes e de acordo com agentes e procedimentos variados. O que ocasiona toda esta diferença – de bens, distribuição, procedimentos e agentes – é, segundo o filósofo, o particularismo histórico e cultural, de acordo com o qual os bens sociais adquirem significados diferentes em cada sociedade.[45]

O corolário dessa variedade de sentidos que os bens sociais possuem, em diversas sociedades, em razão particularismo histórico e cultural, é o fato de que a distribuição desses bens deve ser autônoma.[46] Assim, como cada bem social ou grupo de bens sociais se identifica com uma esfera distributiva específica em que somente um critério é apropriado, resulta que não pode haver uma invasão de uma esfera em outra. Desta forma, afigura-se totalmente inadequado que, por exemplo, o dinheiro adentre a esfera dos cargos sacerdotais, do mesmo modo que, no mercado de consumo, as qualidades exigidas para a vocação eclesiástica não podem representar qualquer vantagem. Eventual aplicação de critérios típicos de uma esfera em outra constitui uma injustiça.

Portanto, em virtude da diversidade de significações atribuídas aos bens sociais, as respectivas distribuições somente podem ser axiologicamente julgadas quanto à sua justiça ou injustiça em relação ao significado social de cada bem. Logo, a justiça distributiva é atingida apenas por meio da interpretação desse significado. Para Walzer, “nós procuramos princípios internos para cada esfera distributiva”.[47]

Walzer faz uma importante distinção entre igualdade simples e igualdade complexa, afirmando que, na primeira, o bem social dominante não seria monopolizado por ninguém, mas igualmente distribuído por todos. Desta forma, pode-se imaginar uma sociedade em que, por exemplo, tudo está à venda e todas as pessoas têm a mesma quantidade de dinheiro, sendo este o bem dominante. Argumenta, contudo, que este regime de igualdade está fadado a desaparecer porque o desenvolvimento da conversão de bens, isto é, a livre troca no mercado, acabará resultando em desigualdades. Por exemplo, nesta sociedade imaginária em que os indivíduos são igualmente abastados, todos podem pagar pelos estudos de seus filhos, mas somente alguns irão investir em educação. Mais tarde, as pessoas irão perceber que gastar com educação se tornou um bom investimento, já que outros bens sociais são acessíveis apenas àqueles indivíduos que têm um certo grau acadêmico, o que fará com que todos passem a investir em educação ou, alternativamente, esta seja oferecida a todos por meio da implementação de um sistema tributário voltado a custeá-la. Então, a escola se transforma em um ambiente extremamente competitivo no qual o bem social dominante já não é mais o dinheiro, e sim o talento natural e as habilidades que as pessoas possuem ou desenvolvem em algumas áreas. Em conseqüência, o sucesso e o grau acadêmicos serão monopolizados por um grupo de pessoas talentosas, que, por sua vez, reivindicará que o bem social que controla deva ser dominante também fora da escola, devendo, assim, monopolizar cargos públicos, prerrogativas, riqueza etc, resultando numa desigualdade que somente poderia ser quebrada pela constrição do poder monopolizador das pessoas talentosas.[48]

No regime de igualdade complexa, ao contrário, há vários bens sociais que até são monopolizados – como realmente ocorre nas sociedades – mas não existe um bem dominante passível de ser convertido em outros bens, já que são eles distribuídos em esferas diferentes. Desta forma, muito embora haja pequenas desigualdades, estas não serão multiplicadas por meio do processo de conversão, pois este não ocorrerá. Haverá, portanto, diversos monopólios de bens sociais que serão mantidos dentro da esfera de competência e controle de pessoas comuns, conseqüentemente impedindo eventual conversibilidade.[49]

O regime de igualdade complexa, na visão de Walzer, se contrapõe ao que ele denomina tirania, em razão de estabelecer um conjunto de relações que impossibilita a dominação, pois que um indivíduo situado em uma esfera relativa a um bem social específico não é prejudicado em outra esfera referente a um bem diverso. Exemplificando, afirma Ricardo Lobo Torres, em sua interpretação da referida obra de Walzer, que:

O cidadão X pode ser escolhido, em vez do cidadão Y, para um posto político e então os dois serão desiguais na esfera política; mas não haverá desigualdade enquanto a posição de X não lhe der vantagens sobre Y em outras esferas – assistência médica, acesso às melhores escolas para os seus filhos e oportunidades empresariais. Assim sendo, o uso do poder político para obter acesso a outros bens é um uso tirânico.[50]

Após esta rápida exposição de alguns pontos da obra de Walzer, Esferas da Justiça, pode-se indagar sobre as divergências que existem entre sua doutrina e a de Rawls. Em verdade, não seria possível perscrutar e consignar, neste pequeno trabalho, a totalidade das diferenças entre ambas, motivo pelo qual foi escolhida somente uma especificidade.

Assim é que Walzer afasta-se de Rawls no que tange à sua concepção de pluralismo. Conforme foi explicitado, para Rawls o fato do pluralismo consiste na diversidade de concepções individuais sobre o bem, através das quais cada sujeito compromete-se com diferentes, e até conflitantes, doutrinas filosóficas, religiosas, morais, bem como possuem valores culturais e projetos pessoas de vida diversos.

Na visão de Walzer, todavia, o pluralismo se refere às diferentes identidades sociais e culturas religiosas e étnicas encontradas na complexa sociedade atual. Sob esta perspectiva, o filósofo privilegia a comunidade em detrimento do indivíduo, pois este se identifica com um ente culturalmente constituído.[51] Por não viver isolado da comunidade, como um ser descontextualizado, mas estar permanentemente inserido nela, não caberá ao indivíduo escolher, arbitrariamente, as concepções de bem existentes na sociedade e optar por um projeto pessoal de vida, mas será a comunidade que lhe fornecerá, em grande medida, sua identidade.[52]

Ademais, ao comprometer-se com o particularismo histórico e cultural, por não conceber o indivíduo como um ser a-social e fora de contexto, e identificar o pluralismo como uma diversidade de identidades culturais, opõe-se o comunitarismo à idéia de imparcialidade na elaboração de princípios de justiça como solução dos conflitos de interesses, rejeitando, outrossim, aspirações a regras universais de justiça, idéia afeta ao liberalismo. Como bem conclui Gisele Cittadino, “nada pode existir, segundo Walzer, para além destes particularismos sociais e culturais, senão fantasias abstratas, como a idéia de imparcialidade”.[53]

Relativamente à crítica que os comunitários fazem ao pensamento liberal genericamente apreciado, afirmam, peremptoriamente, que não se pode considerar como uma verdadeira sociedade aquela idealizada pelo liberalismo. Por assim dizer, denegam a realidade ôntica de uma sociedade que, diante da pluralidade de concepções morais existentes e dos valores e tradições muitas vezes conflitantes, seja governada e permaneça unida em virtude de regras e princípios normativos voltados à regulação da conduta individual e à garantia de que as pessoas escolham seu modo próprio de vida a partir de uma lista de opções.[54]

Ao revés, na sociedade segundo a visão comunitária, o bem de todos prepondera sobre o do indivíduo, sendo a preocupação com o bem comum o que norteia a sua governação. Além disso, não se afigura possível, para os comunitaristas, que se atinjam princípios de moralidade e justiça universais e abstratos pelo exercício da razão, pois não se chega aos fundamentos morais por meio da filosofia, já que estes se encontram na política.[55]

Sob a mesma perspectiva, a análise percuciente da sociedade em que se vive, de seus valores e tradições torna-se algo imprescindível para que se escolham quais regras devem ser adotadas com o fim de regular as estruturas desta sociedade. Com este argumento, rejeitam os comunitaristas a idéia segundo a qual seria possível conceber princípios de justiça adequados para ordenar as instituições sociais por meio de uma justiça processual.[56]

Em apertada síntese, estes seriam alguns dos argumentos proferidos pela escola comunitária para criticar ao liberalismo e a doutrina concebida por Rawls.


6 Conclusão

Permita-se concluir sumariando o que foi exposto em alguns dos tópicos deste artigo.

Conforme foi visto, o problema da justiça não é objeto de especulação das teorias políticas contemporâneas apenas. Antes, pode ser cronologicamente situado em uma época extremamente distante, sendo que as primeiras tentativas de conceituação desta virtude remontam aos filósofos pré-socráticos, muito embora a preocupação com questões éticas não estivesse no centro de suas elucubrações.

Apesar de alguns ramos do conhecimento, tais como a axiologia jurídica, terem conseguido sistematizar e, ao que tudo indica, até mesmo chegar a um certo consenso sobre determinados pontos relativos a essa virtude, nota-se que o mesmo não ocorre com as teorias políticas que se ocuparam da justiça enquanto atributo legitimador e justificador do aparato estatal.

Assim, no decorrer desta simples exposição, verificou-se que, no âmbito da filosofia política, várias foram as correntes doutrinárias que, com o objetivo de tentar oferecer um suporte teórico voltado à justificação moral do Estado, procederam à elaboração de distintas teorias da justiça. Somente neste artigo, foi feita menção a três diferentes modalidades dessas doutrinas, quais sejam, o utilitarismo, a teoria da justiça de Rawls e a vertente teórica comunitária.

Especificamente quanto à doutrina rawlsiana, afirmou-se que esta objetivou conceber um novo contrato social, muito mais generalizado e abstrato, por meio do qual seriam instituídos princípios de justiça cuja função é a de regular a estrutura básica da sociedade, consubstanciada nas suas instituições mais importantes. A justiça, assim concebida, erige-se, primitivamente, em virtude social, opondo-se à sua concepção tradicional de atributo moral prioritariamente regulador da ação individual.

Restou evidente que Rawls teve como intenção contrapor sua teoria ao pensamento utilitário dominante, que postula ser justa a ação que tem por objetivo a maximização da felicidade e do sistema de desejos individuais, sendo possível que tal princípio seja estendido à sociedade.

A vertente teórica comunitária, por sua vez, se encarregou de elaborar a crítica à teoria da justiça rawlsiana, divergindo desta em vários pontos, dos quais citou-se como exemplo sua concepção de pluralismo, que não se identificaria com as diferentes concepções individuais acerca do bem, mas traduziria a diversidade de identidades sociais existentes na sociedade contemporânea.

Na crítica proferida contra o liberalismo em geral, aduzem os comunitários, dentre outros argumentos, que a idéia de sociedade governada por normas reguladoras da conduta individual, sem considerar o bem comum da coletividade, não enseja uma verdadeira comunidade. Igualmente, eventuais pretensões à elaboração de princípios morais abstratos e universais restam frustradas, já que tais princípios devem ser atingidos na prática política.

Conclui-se, portanto, em congruência com o que foi afirmado inicialmente. Muito embora não se possa negar o mérito e a grande contribuição das atuais teorias sobre a justiça, percebe-se que o debate sobre as concepções desta virtude, neste início de milênio, continua em aberto, não tendo sido, se é que um dia chegará a ser, objeto de consenso por parte, sobretudo, de filósofos  comprometidos com a elaboração de uma doutrina que justifique a existência de um ordenamento político-jurídico.     


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Notas

[1] DEL VECCHIO, Giorgio. A justiça. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 40: “É glória suprema da Filosofia itálica ou pitagórica o haver formulado, primeiro que qualquer outra, um conceito de justiça [...]. Esta doutrina foi o ponto de partida de Aristóteles, e é justamente às referências que ele lhe faz, que dela temos conhecimento.”

[2] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12o ed. São Paulo: Editora Ática, p. 34: “Período pré-socrático ou cosmológico, do final do século VII ao final do século V a.C., quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na Natureza.”

[3] Id. Ibid., loc. cit.: “Período socrático ou antropológico, do final do século V e todo o século IV a.C., quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é, a ética, a política e as técnicas (em grego, ântropos quer dizer homem; por isso o período recebeu o nome de antropológico).”

[4] VECCHIO, Del Giorgio apud FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos e Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2002, p. 148.

[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4a ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 20: “[...]uma ordem jurídica positiva é, quanto à sua validade, independente da norma de justiça pela qual possam ser apreciados os atos que põem as suas normas.”

[6] RENARD, G. apud  MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25a ed.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 124. “O direito não é somente fator de justiça, ele é fator de segurança. A justiça é apenas a metade do direito; a grande metade, se se quiser.”

[7] MONTORO, André Franco. op. cit., p. 129.

[8] Id. Ibid., p. 135.

[9] MILL, John Stuart. “Utilitarismo”. In: MORRIS, Clarence (org). Os Grandes Filósofos do Direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 367.

[10] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 25.

[11] Id. Ibid., p. 28.

[12] BARCELLOS, Ana Paula de. “O Mínimo Existencial e Algumas Fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy”. In: TORRES, Ricardo Lobo et. al. Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 24.

[13] RAWLS, John. op. cit., p. 7.

[14] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 82, onde afirma que “chamamos justos aqueles atos que tendem a produzir e a preservar, para a sociedade política, a felicidade e os elementos que a compõem. [...] e a lei bem elaborada faz essas coisas retamente, enquanto as leis concebidas às pressas as fazem menos bem. Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa [...].”

[15] MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?. São Paulo: Edições Loyola, 1988, p. 118, aduzindo que: “[...] a palavra ‘dikaiosyne’ é usada, segundo Aristóteles, em um de seus sentidos, para referir-se a tudo o que a lei exige, isto é, o exercício de todas as virtudes por cada cidadão em seus relacionamentos com os outros cidadãos. Essa exigência ampla e geral deve ser diferenciada do que é exigido por ‘dikaiosyne’ empregada num sentido mais restrito, como o nome de uma virtude particular. Nesse sentido a dikaiosyne é de dois tipos, distributiva e corretiva.”

[16] DEL VECCHIO, Giorgio. op. cit., p. 48.

[17] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. op. cit., p. 187.

[18] Id. Ibid., p. 197.

[19] MONTORO, André Franco. op. cit.

[20] RAWLS, John. op. cit., p. 11.

[21] RICOEUR, Paul. O Justo ou a Essência da Justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 71.

[22] Id. Ibid., p. 72.

[23] RAWLS, John. “O construtivismo kantiano na teoria moral.” In: Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 93.

[24] RAWLS, John. Justiça como Eqüidade: uma concepção política, não metafísica. In: Lua Nova, Revista de Cultura e Política, nº 25, 1992, p. 37.

[25] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. op. cit.,  p. 91.

[26] RAWLS, John. O construtivismo kantiano na teoria moral. op. cit., p. 58.

[27] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. op. cit., p. 92.

[28] RAWLS, John. O construtivismo kantiano na teoria moral., op. cit., p. 54:  “A autonomia completa é aquela dos cidadãos na vida cotidiana, que têm uma certa visão de si próprios, defendendo e aplicando os princípios primeiros de justiça a respeito dos quais se puseram de acordo.”

[29] O outro aspecto da autonomia racional diz respeito aos interesses superiores que servem de motivação para que os indivíduos, na posição original, escolham os bens primários que, por sua vez, possibilitarão o desenvolvimento e o exercício de suas faculdades morais, bem como a efetivação de suas próprias concepções de bem. Para maiores detalhes sobre autonomia racional e autonomia completa, ver RAWLS, John. Justiça e Democracia., op. cit., p. 45-77.

[30] CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3a ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 100.

[31] Id. Ibid., p. 80.

[32] Id. Ibid., p. 81.

[33] Id. Ibid., p. 82.

[34] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. op. cit.,  p. 147.

[35] RAWLS, John. O construtivismo kantiano na teoria moral. op. cit., p. 57: “Dado que a posição original situa as pessoas livres e iguais de maneira eqüitativa umas em relação às outras, a concepção de justiça, seja ela qual for, que elas adotarão será igualmente eqüitativa.”

[36] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. op. cit.,  p. 14.

[37] BARCELLOS, Ana Paula. op. cit., p. 24.

[38] MALMESBURY, Thomas Hobbes de. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 75.

[39] RICOEUR, Paul. op.cit., p. 67.

[40] MALMESBURY, Thomas Hobbes de. op. cit., pp. 103-105. Grifo nosso na palavra segurança.

[41] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. op. cit., p. 65.

[42] Id. Ibid., p. 67.

[43] WALZER, Michael. Spheres of Justice: a defense of pluralism and equality. Basic Books, 1983, p. 3: “Human society is a distributive community. That’s not all it is, but it is importantly that: we come together to share, divide, and exchange. We also come together to make the things that are shared, divided, and exchanged; […] And this multiplicity of goods is matched by a multiplicity of distributive procedures, agents, and criteria.”

[44] BOQUIMPANI, Eduardo Gonçalves. Rawls e seus críticos: revisitando a teoria da justiça. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 10, nº 40, jul-set. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 192.

[45] WALZER, Michael. op. cit., p. 6: “[…] different social goods ought to be distributed for different reasons, in accordance with different procedures, by different agents; and that all these differences derive from different understandings of the social goods themselves – the inevitable product of historical and cultural particularism.”

[46] Id. Ibid., p. 10.

[47] Id. Ibid., p. 19.

[48] Id. Ibid., p. 14.

[49] Id. Ibid., p. 17.

[50] TORRES, Ricardo Lobo. A Teoria da Justiça de Rawls e o Pensamento de Esquerda. In: Revista da Faculdade de Direito, nº 5. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p. 162.

[51] CITTADINO, Gisele. op. cit., pp. 85-86.

[52] BINENBOJM, Gustavo. “Direitos Humanos e Justiça Social: as Idéias de Liberdade e Igualdade no Final do Século XX”. In: TORRES, Ricardo Lobo et. al. Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 242.

[53] CITTADINO, Gisele. op. cit., p. 99.

[54] KUKATHAS, Chandran; PETTIT, Philip. Rawls: “Uma Teoria da Justiça” e seus Críticos. 1a ed. Lisboa: Gradiva, 1995, p. 114.

[55] Id. Ibid. loc. cit.

[56] Id. Ibid., p. 115.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Flaviano Ribeiro Quaglioz. A Teoria da Justiça segundo John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4614, 18 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34346. Acesso em: 25 abr. 2024.