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Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida em face do meio ambiente ecologicamente equilibrado

Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida em face do meio ambiente ecologicamente equilibrado

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Sumário: 01. Introdução. 02. Aspectos médicos. 03. Aspectos religiosos. 04. Aspectos psicológicos. 05. Aspectos éticos. 06. Aspectos jurídicos. 07. Conclusão. 08. Bibliografia Básica.


01. Introdução:

O presente trabalho pretende abordar aspectos jurídicos da reprodução humana assistida em face do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Essa pretensão surge no sentido de se afastar a clássica discussão quanto a questão sucessória proveniente do direito civil, dando especial enfoque às questões éticas intrinsecamente ligadas às questões jurídicas, passando por uma abordagem dos aspectos médicos, religiosos e psicológicos.

Os progressos recentes e espetaculares da medicina e, em particular da biotecnologia, tornando realidade o sonho de milhões de pessoas estéreis – ter um filho – contribuíram para a transformação da família tradicional e atingiram a noção da concepção humana.

À medida que o desejo de ter filhos se vulgarizou e ficou facilitado pelo aperfeiçoamento de tecnologias e descobertas, inusitadas, o processo se tornou mais complexo e criou uma série de desafios aos estudiosos dos mais diversos campos do conhecimento.

Os progressos, em nível jurídico, não atingiram somente o casamento em si mesmo considerado, privilegiando a relação marido e mulher, mas afetaram a filiação que vincula uma criança a seu pai e a sua mãe e do ponto de vista ambiental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida.

A consideração destes aspectos justificam um estudo desta natureza e na realidade é o que se pretende levar à discussão com o presente trabalho.


02. Aspectos Médicos:

O que significa fertilização ou reprodução assistida? A princípio, qualquer ajuda dada a um casal para que alcance a gestação desejada pode ser denominada fertilização assistida. Esta ajuda pode ser representada pelo simples aconselhamento sobre o momento mais apropriado do ciclo menstrual para o casal manter relações sexuais, bem como pela utilização de técnicas laboratoriais altamente sofisticadas que permitam a fertilização de um óvulo por um único espermatozóide.

A história da humanidade sempre revelou uma intensa preocupação com a questão da fecundidade e, inversamente, temeu o risco da esterilidade, motivo de degradação no grupo familiar e social. As primeiras manifestações de arte, que remontam à época primitiva, representavam a mulher fecunda, grávida, capaz de gerar novos seres à exemplo da mãe natureza. (1)Desde as mais remotas épocas, a esterilidade foi considerada como um fator negativo, ora maldição atribuída à cólera dos antepassados, ora à influência das bruxas, ora aos desígnios divinos. A mulher estéril era encarada como ser maldito que precisava ser banida do convívio social. Para os judeus, a esterilidade era considerada como castigo de Deus.Em posição oposta, a fecundidade era olhada com intensa benevolência. À chegada dos filhos sempre foram vinculadas as noções de fortuna, riqueza, prazer, alegria, fartura, privilégio e dádiva divina.Faz parte da mentalidade humana, desde suas mais distantes origens, contrapor as noções de fecundidade e esterilidade, atribuindo a cada uma delas valores que necessariamente se contrapõem, se excluem, se radicalizam em princípios maniqueístas. À fecundidade está vinculada a noção de bem; à esterilidade, a noção de mal.Essas sensações vivenciadas de forma empírica pelos povos primitivos, ganham foros de autenticidade e legitimidade com a cultura clássica, representada pelos povos gregos e romanos.Em Roma, a esterilidade condenava a mulher à mais trágica posição, justificando mesmo o repúdio pelo marido. O que antes era vivido de maneira sensitiva, torna-se, em Roma, um elemento de rejeição institucionalizada.

A situação da esterilidade feminina (até o final do século XV era inadmissível a idéia de que pudesse ocorrer esterilidade masculina) não mudou muito na Idade Média. Apenas, com a descoberta de novos elementos terapêuticos, procurava-se curar o mal, quer pelo emprego de rudimentar farmacopéia (chás, ervas), quer pelo recurso – ainda dominante – das medidas acientíficas: uso de metais e pedras preciosas, invocações religiosas, rituais, flagelações, etc..

Só no final do século XVI (em 1590) o estudo da esterilidade conjugal ganhou foros de cientificidade com a invenção do microscópio, por Leenwenhoek. Em 1912, portanto mais de três séculos depois, Brackett conseguiu, pela primeira vez, cultivar embriões de mamíferos.E, a década de 70 vai marcar as descobertas decisivas capazes de garantir a evolução das procriações artificiais. Em 1971, Mastroiani consegue filmar, pela primeira vez, um óvulo. No mesmo ano, Hayashi, da Universidade de Toho, apresenta seu filme "Começo de vida", onde mostra todo o processo reprodutivo do ser humano.De 1970 a 1975 diversos cientistas realizam estudos da fertilização in vitro com óvulos humanos, formação de embriões com transferência para o útero, coleta de óvulos. Destacam-se as equipes de Brackett, Jacobson, Soupart e Strong (nos EUA), Edwards e Steptoe, Taylor, Craft e Collins (na Inglaterra), Lennart Nilson (na Suécia), Talbot, Lopata, Wood, Neil Moore e John Lecton (na Austrália).Em 20 de julho de 1978 nascia Louise Joy Brown, no General Hospital, na cidade de Oldham (Inglaterra), graças ao trabalho infatigável dos Drs. Steptoe e Edwards, que vinham se dedicando com afinco à pesquisa há mais de quinze anos. No mesmo ano nascia o segundo bebê de proveta do mundo, na Índia, pelo Dr. Saroj Kanti Bhattacharya, professor de ginecologia e obstetrícia da Univesidade de Calcutá.A partir de 1980 o nascimento dos bebês de proveta deixou de ser um caso extraordinário e ganhou foros de normalidade, à força da repetição. Mais de 20 clínicas espalhadas pelo mundo desenvolviam programas de fertilização.

Em 1984 a Sociedade Americana de Fertilidade apresentava um relatório sobre os aspectos éticos da fecundação in vitro. As conclusões da comissão prepararam a "legitimação" de uma prática até então encarada com desconfiança pelos segmentos mais conservadores da sociedade.

As bases lançadas em 1984 continuam válidas, com pequenas alterações até a presente data. Assim:- A FIV (fecundação in vitro) para os casos de infertilidade e esterilidade passou a ser considerada um procedimento ético;- Qualquer casal que se submeter ao recurso da fecundação in vitro deve ter assinado, previamente, um termo de consentimento adequado, envolvendo as várias fases do procedimento;

- É eticamente aceitável, a realização de exames científicos em conceptos doados para esta finalidade, desde que o exame seja feito antes da época do desenvolvimento em que, normalmente, ocorreria a implantação;- Não se permite que conceptos não transferidos se desenvolvam no laboratório por mais de 14 dias, e eles podem ser descartados sem exame científico;

- A criopreservação de conceptos com a finalidade de subseqüente transferência para a doadora só é aceitável sob certas condições (o concepto só pode ser mantido pelo mesmo tempo que a vida reprodutiva da doadora);

- Os conceptos não transferidos poderão ser doados a outro casal estéril, desde que doadores renunciem a qualquer reivindicação relacionada com a prole resultante, assegurando-se completo anonimato entre doadores e receptores, como ocorre nos processos de adoção;- O procedimento de doação de esperma é considerado ético e normal para as mulheres.

A possibilidade de procriar artificialmente aliada à revolução, por mais intensa que se tenha manifestado, afastou a hipótese da procriação, plenamente latente na sociedade atual, como o era na primitiva.

Assim, chegado o momento da procriação e não se concretizando o desejo do casal, uma estranha surpresa começa a dominar os espíritos diante da realidade.

A impossibilidade do projeto não realizado transforma a surpresa e inquietude numa progressiva angústia. Quando o desejo de ter filhos se manifesta e ele não é preenchido, inicia-se para o casal um período de provações com final nem sempre feliz. (2)

A liberdade da contracepção, tão natural neste final de século, revelou uma faceta inimaginável ao casal moderno; ela não confere igulamente a possibilidade de procriar.

A concepção, o poder de fecundar, apesar de todas as conquistas científicas, guarda segredos e permanece um mecanismo complexo. Se hoje dispomos do poder de inibir completamente, não dispomos na mesma proporção, da capacidade de a conduzir a termo em cada tentativa. Mais a idade avança, mais as chances de conceber se reduzem, tornando a espera ainda mais angustiante, pois o tempo se escoa inexoravelmente.

O processo de angústia, pelo fracasso no projeto de paternidade, como bem destacou EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE (3), "não é só ditado no ambiente restrito do casal, ou, em projeção mais larga, no ambiente familiar, mas - e aqui entra o componente irônico do problema - continua determinado pelo meio social" (4).

Se antigamente, a fecundação (por desconhecimento das técnicas contraceptivas) ocorria no primeiro ano de casamento, hoje, tal hipótese inocorre graças ao controle de natalidade, decorrente do melhor conhecimento da fisiologia da reprodução, permitindo separar a atividade sexual do fenômeno procriativo. Como bem concluiu JOÃO BATISTA VILLELA, "o impacto dessa ruptura sobre as ciências do comportamento talvez só encontre equivalente, dentro da cultura contemporânea, ao produzido pela fissão nuclear nas ciências da natureza." (5)

As necessidades de natureza econômica e a conseqüente atividade profissional não anularam, porém, a necessidade da filiação, mas, ao contrário, criaram um novo problema para a mulher: "ou elas adiam a reprodução para satisfazer outras necessidades, principalmente materiais, ou elas se revoltam contra a tradição para apoiar uma diferente imagem de si mesmas, como iguais aos homens, o que mudará sua experiência de vida, assim como a de seus companheiros. Assim, suas necessidades básicas permanecem insatisfeitas e são frequentemente substituídas por manobras práticas e decisões racionais em completa contradição comn seus desejos profundos." (6)

O sentimento de derrota é muito intenso quando o casal descobre "que sua decisão de conceber, na hora mais apropriada e racionalmente calculada, coloca-se contra sua incapacidade de completar esse desejo; isso rapidamente lhes dá uma sensação de fracasso." (7)

A recusa é a primeira reação do casal infértil ao problema insolúvel. A grande maioria de homens e mulheres apanhados na surpresa da revelação recusam-se a aceitar o diagnóstico dado pelo médico. Na realidade, a atitude nada mais é do que um meio de defesa que permite ao casal adaptar-se a uma nova situação traumatizante.

A confirmação do diagnóstico gera a raiva que mascara os sentimentos de intensa dor e angústia. A raiva é direcionada a pessoa que se encontra mais próxima do casal, no caso, o médico.

Já consciente da dura realidade, o casal se isola e se nega a dividir o problema com familiares ou amigos, o que é compreensível: a vergonha, o temor de ser objeto de pena e o medo dos conselhos inadequados acentua o isolamento.

Nesse sentido, a reprodução humana assistida surge como meio de satisfazer o desejo efetivo de ter filhos em benefício de um casal estéril. Considerada com circunspecção por alguns, com reservas por outros e mesmo com hostilidade por terceiros (em razão dos meios utilizados e das consequências que podem resultar para o interesse maior da criança e, o interesse dos pais), a reprodução humana assistida, apesar de excelentes resulatados alcançados, capazes de contornar a infertilidade, ainda provoca diversidade de opiniões, mas também, convergência sobre pontos essenciais, cuja validade continua sendo inegável: nem a inseminação artificial, nem a fecundação in vitro, nem a maternidade por substituição não curam a esterilidade que as motivam. São paliativos, são tratamentos capazes de dra filhos a quem a natureza os negou. Assim como a adoção, tradicionalmente admitida no terreno mais conservador e formal do mundo jurídico.

A reprodução humana assistida e o desenvolvimento de suas indicações se impõem a todos como um do dados do domínio técnico-científico, cujas consequências diretas são muito mais importantes do que aquelas que resultam da generalização da contracepção. Querer limitar ou interromper a evolução contínua deste domínio, é impossível. Corresponderia a pretender parar o movimento da terra.

A reprodução humana assistida se inscreve num contexto médico, científico e sócio-cultural próprio à sociedades industrializadas. Mas é no terreno jurídico que a nova realidade cria maiores desafios aos estudiosos: ela desestabiliza o equilíbrio, sempre mais ou menos precário, do Direito.

Entre o fundamento voluntário e o fundamento biológico da filiação, entre as filiações de fato e as filiações de direito, a reprodução humana assistida impõe doloroso dilema de escolher se refugiar na meia-verdade ou na mentira. A cada estágio, para cada técnica, intervém a obsessiva ambiguidade de não se poder fazer desaparecer juridicamente a consideração da criança a nascer e não poder se definir seu interesse, na ignorância em que nos encontramos de seu futuro e o de seu pai e mãe.

A reprodução, que foi sempre tida com ato mais íntimo do casal, através da procriação artificial, é necessariamente lançada num ambiente de ampla participação, já que óvulos e espermatozóides são tratados extracorporeamente.

Quando o marido não tem espermatozóides, ou em número inferior ao necessário, pode-se recorrer ao doador anônimo de espermatozóides: é o caso da inseminação com doador, ou heteróloga.

Quando a mulher é atingida, ou seja, nos casos de esterilidade tubária, as trompas estão ausentes ou obstruídas e as tentativas, para restabelecer uma passagem, fracassam, recorre-se à fecundação in vitro.

O encontro do espermatozóide e do óvulo não ocorrerá na trompa, mas no laboratório, em um tubo ou em cultura laboratorial. A intervenção tem um só objetivo: garantir, durante dois dias, morada e alimento ao óvulo e aos espermatozóides. Se o encontro for fecundo, o embrião é transferido para o útero materno. Se tudo correr bem, o embrião permanecerá no útero durante nove meses. A este encontro fora do corpo humano é que se dá o nome de fecundação in vitro.

Quando os espermatozóides apresentam alguma deficiência torna-se necessário tratá-los, concentrá-los, auxiliá-los a transpor etapas de seu percurso até o útero: é o caso da inseminação intra conjugal, ou homóloga, no colo ou na cavidade uterina. Pode também ser a transferência direta dos espermatozóides, ou dos óvulos na trompa, também conhecida por GIFT (Gameta Intra Fallopian Transfer).

Os mesmos problemas possíveis no mundo masculino podem ocorrer na esfera feminina. Se a mulher apresentar ausência de óvulos (porque os ovários são desprovidos desde o nascimento, ou porque o estoque se esgotou muito rápido) pode-se recorrer aos óvulos, dados por outra mulher fecundados in vitro pelo esperma do marido da mulher estéril que, submentendo-se a um simples tratamento hormonal, poderá carregar o embrião (depois filho do seu marido) dando a luz, fazendo assim desaparecer a esterilidade do casal: é a doação de óvulos.

Da mesma forma é possível a doação de embriões a partir dos tratamentos de estimulação ovariana, que possibilitam a obtenção de diversos embriões. Estes embriões excedentes são congelados para se evitar que a transferência no útero, de mais de 3 ou 4 embriões, produza gravidezes triplas ou quádruplas. Os embriões congelados excedentes, que não forem utilizados pelo casal, podem ser doados a outros casais estéreis.

Finalmente, quando o útero que não tem condições de exercer sua função recorre-se à mãe de substituição (erroneamente chamada e conhecida por "aluguel de útero"). (8) O empréstimo de útero implica na existência de uma mãe portadora, o que gera um problema ético-jurídico do que propriamente científico ou médico. As convenções sociais tem dificuldade em transgredir com regras naturais e jurídicas que sempre atribuíram a qualidade de mãe à mulher que dá à luz e nunca a uma terceira.

Esta diferença de papéis, como destaca EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE (9), entre mãe gestadora e mãe portadora cria um intenso mal estar na ordem jurídica, uma defasagem entre a realidade e ficção que o mundo do Direito ainda não conseguiu apreender de forma satisfatória.


03. Aspectos Religiosos:

A difusão das novas tecnologias de intervenção sobre o processo da procriação humana (também entendida como reprodução humana assistida) gera graves problemas morais relativos ao respeito devido ao ser humano desde sua concepção, à dignidade da pessoa e à transmissão da vida.

A Igreja católica - como ocorreu na maioria das grandes alterações sociais do último século - desconheceu, inicialmente, a extensão desta evolução, ou simplesmente, na impossibilidade de apreendê-la integralmente, manifestou seu total repúdio às novas experiências.

Em um segundo momento, decorrente de reflexão amadurecida, posicionou-se apresentando ora tendência mais rigorosa, ora mais democrática. tais tendências são perfeitamente compreensíveis a partir do momento em que se leva em consideração a postura da Igreja católica frente ao casamento: o acento colocado sobre a função procreativa do casal afasta qualquer método artificial para atingir esse fim.

As procriações medicamente assisitidas ou reproduções assistidas (conhecidas pela sigla R.A.) tornaram possível uma procriação sem relação sexual graças ao encontro in vitro das células germinais retiradas do homem e da mulher. O que é tecnicamente possível, não é, porém, moralmente admissível. Ou melhor dizendo, a possibilidade técnica não tem o condão de atribuir moralidade a uma conquista de natureza médica, pelo menos na ótica da Igreja católica.

Se a procriação de uma nova vida só pode ser fruto do casamento, a fecundação artificial - fora do casamento - é pura e simplesmente condenada como imoral. Em decorrência, a condenação da inseminação artificial fora da união conjugal.

Não existe possibilidade de divergência de opiniões entre católicos: a criança concebida nestas condições é ilegítima. Para a Igreja católica a criança só tem direito de ser concebida, carregada, colocada no mundo e educada no casamento.

A inseminação artificial é considerada contrária ao direito e à moral, porque ultrapassa os limites do direito que os cônjuges adquiriram no contrato matrimonial, em especial, o de exercer plenamente suas capacidades sexuais naturais na realização natural do ato matrimonial. O contrato em questão não lhes confere o direito à fecundação artificial porque tal direito não está implícito, de nenhuma forma, no direito ao ato conjugal natural.

A Igreja católica e a protestante são exemplos mais flagrantes da oposição com relação ao tema da procriação artificial. Tal fato se deve a variação fundamental da postura de duas tradições religiosas frente aos fins do casamento. enquanto para a Igreja católica a função procriativa do casal é importantíssima - de forma que a vida do casal se reduz a processos biológicos - para a Igreja protestante sua dimensão racional e afetiva, ultrapassa, em muito, a função meramente procriativa.

Quanto à Igreja anglicana, ocupa uma posição especial em relação à matéria controvertida. Aproxima-se em muito, da posição católica e, ao mesmo tempo, afasta-se da teologia da Santa Sé. Com posições antagônicas; uma firme tendência majoritária e uma tendência dissidente.

A tendência majoritária aceita a inseminação entre marido e mulher (homóloga), após a tentativa da relação sexual normal, o que é considerado legítimo. E mais: na ausência de outra alternativa, a masturbação é admitida.

No caso, porém, da inseminação artificial heteróloga, a introdução de esperma estranho ao marido constitui uma ruptura do casamento. Como ocorre no catolicismo, a inserção deste elemento alheio ao casal, configura ruptura do casamento porque viola a união exclusiva do homem e da mulher.

Em oposição a esta tendência mais tradicional, uma tendência minoritária - mas cada vez mais crescente - entende que o objetivo procriativo pode conduzir a um maior desenvolvimento da tolerância.

Vale ainda citar a posição do judaísmo e da religião muçulmana sobre o tema. Para os judeus, o casamento e a procriação são as primeiras obrigações do homem. Homem e mulher judeus devem ter filhos. O objetivo máximo do casamento continua sendo o de produzir uma descendência legítima.

O judaísmo se opõe fundamentalmente à prática da inseminação artificial, vez que uma mulher judia, cujo marido é estéril, não pode se submeter a uma inseminação com o esperma de um terceiro. A inseminação de mulheres casadas pelo esperma de um doador estranho não poderia religiosamente criar laços de parentesco entre a criança e o marido.

A Igreja muçulmana submete-se rigorosamente aos ensinamentos tirados do Alcorão. O livro sagrado dos muçulmanos, dentro de um fatalismo radical, assim se refere à esterilidade: "Allah cria o que ele quer, ele concede a uns filhos, dá a outros crianças macho (...) Ele torna também estéril quem ele quer".

A inseminação não é uma via islâmica de procriação. O procedimento é incompatível com a instituição pelo legislador, assim como também o é com a dignidade humana.


04. Aspectos Psicológicos:

O desenvolvimento dos progressos técnicos e científicos determinadores de um novo domínio da reprodução humana levou psiquiatras e psicólogos a se interrogarem sobre os perigos e desafios que constitui o preço desta liberação frente à tradicional postura ética e religiosa da humanidade, bem como frente ao "pânico moral" (10) que ela suscita.

As novas técnica, desenvolvidas nos últimos anos, representam uma verdadeira revolução, na medida em que permitem, a procriação sem relação sexual, ao inverso da contracepção que permite a sexualidade sem procriação; a fecundação e o início do desenvolvimento do ser humano, fora do corpo da mulher, no laboratório; a possibilidade de transferir um embrião no útero de uma outra mulher que não forneceu o óvulo, e assim por diante.

A mera consideração destas novas possibilidades, ainda não esgotadas e, provavelmente, geradoras de novas técnicas e recursos, nos revela a extensão do problema, especialmente no terreno psicológico. A reprodução humana assistida tem se desenvolvido num contexto geral pleno de contradições. Ela provoca posições que alimentam um constante debate conflitual.

Tal estado de coisas é necessário, pois é a partir deste contexto contraditório que surgirão as soluções mais adequadas à controvertida matéria. Como se posiciona SÉRGIO FERRAZ (11) ao analisar a questão das manipulações biológicas, sob a ótica constitucional, "estamos a lidar com questões que, praticamente na sua totalidade, se revelam despidas, entre nós, de trato normativo infraconstitcional. Em nossa opinião não há qualquer inconveniência que assim seja: por uma parte, a doutrina jurídica a respeito, ainda é extremamente parca e incipiente (...) ademais, parece inexistir, sobre tudo isso, um mínimo de consenso social, que pudesse comportar soluções legislativas."

A reprodução humana assistida suscita um debate conflitual porque a entrada de um novo ser na vida e comunidade humanas deixa de ser natural, deixa de ser da ordem "dada" e ingressa na ordem do "feito"; torna-se um ato de vontade materializado, não mais na união corporal de dois seres, mas em técnicas, alheias ao controle do casal. Tal alteração na ordem natural dos acontecimentos provoca interrogações essenciais sobre o sentido e o valor de tais poderes, gerando na psiquê humana, uma série de conflitos.

Se a inseminação artificial homóloga não cria maiores problemas de ordem psicológica, já que a matéria manipulada é originária do marido e da mulher a inseminação heteróloga, com doador de esperma, estranho ao casal, é traumatizante e paradoxal, na medida em que permite o estabelecimento de uma aparente conformidade às normas sociais e individuais da filiação, independente da notória transgressão dessas normas.

As particularidades do contexto psicológico ligado a este modo de concepção - culpabilidade vinculada à transgressão - designam sem dificuldades, para muitos, a criança concebida por este modo ´alternativo´, como uma criança de alto risco, no seu desenvolvimento afetivo.

O desejo de filiação, portanto, é inato à natureza humana. Desde a infância até a velhice o homem espera perpetuar sua espécie através dos filhos. "O fantasma mais profundo da criança, qualquer que seja seu sexo é obter o poder de ter um filho, isto é, de possuir o poder do casal e, em todo caso, da mãe. Trata-se, pois, nem tanto de ter uma criança real, mas o de possuir o poder de gerá-la e, então, de se identificar à mãe na plenitude do seu absoluto." (12)

Em se tratando de meninas, as identificações com a mãe se desenvolvem através do brinquedo de bonecas. Quanto aos meninos, através do papel de pai. As identificações, pois, de ambos os sexos ocorrem na primeira infância.

Na puberdade, as mudanças físicas do corpo e a liberação das pulsões sexuais confrontam novamente o adolescente com a criança em potencial que ele poderia ter. o desejo consciente de ter e criar um filho surge na fase adulta e, de forma intensa, nos casais.

Se juntarmos a estes aspectos as imposições de ordem social e familiar pode-se bem avaliar no que implica, para o casal, a descoberta de uma esterilidade. A situação psicológica torna-se difícil pelo isolamento no qual é colocado o casal.

A esterilidade masculina atinge diretamente o homem naquilo que ele tem de mais profundo e provoca importantes repercussões psicológicas. Na mulher, a esterilidade também provoca reações psicológicas. As reações das pessoas que nos cercam, igualmente pesam sobre o casal.

O que ocorre é uma reação de reprovação em cadeia. Limitada, inicialmente, a uma pessoa, passa a atingir o casal, e daí, passa ao grupo familiar, envolvendo, num estágio derradeiro, a sociedade inteira.

Em uma sociedade como a nossa, extremamente centrada nas noções de virilidade e do papel reprodutor, a descoberta da esterilidade masculina provoca enorme desordem psíquica.

Conforme DIDIER DAVID, "A esterilidade fere como a morte, esta atinge à vida do corpo, aquela à vida através da descendência. Ela rompe a cadeia do tempo que nos vincula àqueles que nos precederam e àqueles que nos sucederão; é a ruptura da cadeia que nos transcende e nos liga à imortalidade. O homem estéril é um excluído, o tempo lhe está contado, a morte que o espera está sempre presente, a vida se abre sobre o nada. Sua rapidez, sua brutalidade, sua enormidade levam o homem, quase sempre, a negá-la, num primeiro momento." (13)

A esterilidade não coloca em cheque só a organização psíquica do indivíduo, mas atinge também o casal. Se a esterilidade é difícil de viver individualmente para o homem solteiro, ela é ainda mais ofensiva para o homem casado, que sofre em não poder dar a sua mulher a realização da gravidez e a alegria de ter um filho. Com efeito, a esterilidade priva-a de três sensações insubstituíveis: a gravidez, a criança e o estado de mãe.

A esterilidade se apresenta para o casal, para suas famílias e para a sociedade circundante, como uma doença, sempre grave e diversa na sua evolução; ora lenta, ora aguda, frequentemente irregular (14), conduzindo a uma cura com reforço do casal, ou bem, com sequelas, quando não, à ruptura. recorrendo à inseminação artificial heterológa ou a outros tratamentos de infertilidade, o casal passa a enfrentar e viver conflitos narcísicos e neuróticos potencializando fatores de vulnerabilidade, como também recursos para enfrentar os desafios da descoberta.

Dois caminhos se abrem para atingir o desejo de ter filhos: ou bem o casal recorre à adoção ou bem, à inseminação. Os dois são válidos, embora com cargas emotivas diversas e, certamente, efeitos pessoais totalmente distintos. Não há como se anular a validade do recurso à inseminação alegando, pura e simplesmente, que na inseminação há vaidade, ou que ao invés de se investir na inseminação, dever-se-ia fomentar a adoção, resolvendo, indiretamente, o problema social do menor abandonado.

Tais argumentos são totalmente impertinentes, visto que a questão do menor abandonado é um problema estatal, portanto público, enquanto o desejo de ter filhos através da inseminação artificial é uma questão pessoal, de ordem privada, de foro íntimo.

O Estado brasileiro tem incentivado com todo vigor o instituto da adoção com vistas a solucionar e tentar reduzir o número excessivo de menores abandonados. Ou seja, na impossibilidade de resolver o problema desloca-o à esfera privada, procurando liberar-se de uma questão crucial que permanece, eminentemente, pública.

Como bem asseverado por EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE (15), "não há egoísmo nenhum em querer ter seu próprio filho. Além disso, o ato de amor, apontado por alguns psicanalistas, quanto à adoção, ocorre igualmente - e, talvez, até em dose maior - nas inseminações artificiais, onde o casal renuncia integralmente sua privacidade no ato de procriação e aceita a participação de um terceiro estranho.


Aspectos Éticos:

Por mais que se discuta a questão da técnica médica, não podemos nos furtar das questões éticas e morais. O tema é carregado dessas questões, uma vez que o procedimento artificial induz a extensa utilização e manipulação de embriões, trazendo a possibilidade num futuro muito próximo da eugenia da prole e por consequência da espécie humana (16).

Portanto, antes de abordarmos particularmente os aspectos éticos da reprodução humana assisitida (17), cumpre destacar o que vem a ser ética (18) em sua concepção primordial. Ethos (com a letra eta) significa a morada do homem, o seu abrigo. E daí se deriva um uso metafórico que dá ao vocábulo o sentido de costumes, vistos estes como morada racional da vida humana. É fundamental não confundirmos ethos (costume racionalmente discutido) com hexis, que é puro hábito automatizado.

Entendamos, então, a ética como a discussão racional do ethos, que ultrapassa o nível prático-moral (individualizante) em direção ao nível teórico-ético (socializante e universalizante). Os temas fundamentais da ética são os da liberdade, da vontade e da responsabilidade.

É obvio que somos condicionados por valores da sócio-cultura. No entanto, embora condicionados, seguimos responsáveis pela qualidade da vida humana, individual e coletivamente. Já dizia Kant que o conceito mais originário da ética é o de respeito, desde que não se carregue esta última palavra com sentidos piegas.

O século XX tem contado de qualquer forma, com uma espécie de remanescentes que nunca abriram mão da dignidade e da qualidade do viver. Muito embora tenha sido um tempo de grandes conturbações, não existem só negatividades em nosso século.

Afinal a década de 1960 deu à luz a Ecologia, inicialmente interessada em investigações e denúncias relativas ao ecossistema - uma Ecologia Ambiental. Já na década de 1970, mais para o seu fim, chegou-se à Ecologia Social, interessada nos traumatismos e poluições do relacionamento institucional e pessoal. Registrava-se aí um avanço. Mas avanço maior surge no final da década de 1980 e início da presente, quando se principia a tratar da Ecologia Mental.

Contudo, devido ao mau uso da mídia, em particular da propaganda abusiva, por meio de videocassetes propagadores do caos ecológico, bem como à invasão no meio humano de valores do industrialismo (como o conceito de "produto descartável" que invadiu as relações interpessoais), temos cada vez mais urgência de estações de tratamento do lixo mental, vislumbrando-se aí, sérios avanços na direção de uma sociedade mais consciente de si (19).

No que tange à questão ética da reprodução humana assistida, cumpre fazer a seguinte reflexão: pode-se e deve-se desenvolver tudo que é científica e tecnicamente possível, em matéria de experiências sobre o homem, de utilização do corpo humano e da procriação?

A moral e o direito positivo estão suficientemente aptos a enfrentar estas novas questões? Ou as novas técnicas estão a exigir novas regras capazes não só de contornar os problemas daí decorrentes, como também estabelecer limites de aplicação dos novos conhecimentos?

Nas sociedades modernas, a esterilidade gera uma série de tratamentos terapêuticos. Como não se trata de uma doença, a opinião pública tem se questionado se ela merece um tratamento adequado, ou se, no atual estágio de evolução científica, deve-se recusar os progressos da pesquisa e limitar progressivamente seu avanço.

Provocar um nascimento através destas novas técnicas é um ato que suscita interrogação de ordem ética e, para responder estas interrogações, uma reflexão ética foi empreendida em numerosos países.

Depois do nascimento de Louise Brown, em 1978, na Inglaterra, os países industrializados reagiram institucionalmente, cada um a seu modo: os Estados Unidos, através de comissões nacionais do Governo; a Grã-Bretanha, através da constituição da comissão Warnock (20) que entregou seu relatório ao governo, em 1984; a Suécia, através da organização de grupos especializados (comissões sobre genética, sobre inseminação artificial, etc.); a França, pela criação - em 1983 - do Comitê Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde. O nascimento de Louise Brown representava um progresso considerável: a técnica, longamente explorada, abria novos horizontes à terapêutica da esterilidade e à ciência da embriologia.

Realmente, as procriações artificiais pertubaram nossas representações tradicionais dos modos de concepção e das estruturas de parentesco. A fecundação in vitro criou uma situação especialíssima na história da maternidade: pela primeira vez na história da humanidade, o começo da vida humana se encontra dissociado do corpo da mulher geradora.

E, em nossa reflexão, essa é a questão primordial que se deve debater, posto que a decisão de ter filhos, competência até então exclusiva do casal, passou, com o advento das técnicas já mencionadas, a estar dissociado da capacidade decisória do casal, visto que passou a ser conduzido a seu termo pela associação de um embrião estranho ou de um esperma alheio. Terceiros intervém: doadores de esperma e de óvulos, mulher que se presta à gestação do embrião, médicos e intermediários que, por razões diferentes, intervém neste nascimento, desde a concepção.

Portanto, no caso da fecundação in vitro, criou-se uma situação totalmente inédita para a qual não existe nenhuma legislação, ou quando muito, legislações previstas para circunstâncias diferentes. (21) Novas leis são necessárias para tratar tanto as novas técnicas que remediam a esterilidade e suas consequências, quanto os progressos da pesquisa no setor da embriologia.

Até recentemente era impossível separar o embrião do corpo da mulher. Entretanto, desde a Antigüidade, filósofos e teólogos se interrogam sobre este ser humano em formação. O direito romano e nosso direito civil atual lhe reconhecem uma certa personalidade, desde a concepção, sob a condição que se trate de uma criança nascida viva e viável. (22)

Os problemas éticos e jurídicos motivados pela utilização do embrião humano variam quer se trate de embrião vivo quer se trate de embrião morto. A origem dos mesmos é, nos dois casos, diferente: no primeiro caso, o embrião vivo é proveniente de uma fecundação in vitro; no segundo caso, o embrião pode ser resultado tanto de uma fecundação in vitro, quanto de uma interrupção voluntária ou espontânea da gravidez.

O termo embrião é aqui empregado englobando todas as etapas do desenvolvimento do zigoto, desde a fecundação do óvulo até o estágio fetal que ocorre na oitava semana de gravidez. (23) A palavra feto é empregada após esta fase, quando todos os principais órgãos estão formados.

Muito embora a matéria seja extremamente fértil do ponto de vista técnico-científico, gerando série infindável de discussões concernentes ao posicionamento ético inclusive relativo à questão do embrião excedente que é conservado por meio de congelamento (24), passaremos a discutir os aspectos jurídicos da reprodução humana assistida em face da constituição federal e do meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida.


Aspectos Jurídicos:

Do ponto de vista jurídico os progressos científicos oriundos da genética e da técnica aplicada à reprodução humana assistida permitiram ao homem dominar um setor até então regido pelas leis naturais.

O acesso, cada vez mais amplo do grande público a fórmulas inicialmente restritas a uma minoria, tem atingido em cheio os princípios seculares do Direito, demonstrando quão frágil é a estrutura de uma ciência que se passava por sólida, duradoura e inquestionável.

Sob esse aspecto e diante da nova problemática, não basta acenar com os argumentos da lacuna jurídica ou da incompletude da ordem jurídica; o judiciário, por meio do magistrado, tem obrigação de decidir os litígios que se apresentam a sua apreciação. (25) Sem questionar se o Direito deve ou não legislar sobre a matéria - e as questões estão aí para serem decididas - o juiz deve intervir delimitando a fronteira do admissível. A lei deve assegurar, guiar e modelar uma orientação social da prática médica, a fim de evitar possíveis abusos.

Contudo, o presente trabalho tem por escopo abordar o tema sob o enfoque do direito ambiental, afastando-se da clássica discussão quanto a questão sucessória proveniente do direito civil, bem como seus efeitos jurídicos, em especial o artigo 4º do Código Civil de 1916 que regulamenta os direitos do nascituro.

A questão que parece relevante, sob o ponto de vista ambiental, é o marco proveniente do advento da reprodução humana assistida, que trouxe esperanças a um grupo de casais (cada vez mais crescente), até então considerados irremediavelmente inférteis, permitindo-se o direito à sadia qualidade de vida, encartado de maneira principiológica no artigo 225, caput da Constituição Federal.

Sustentamos essa tese na medida em que as técnicas modernas de fertilização, já amplamente abordadas dentro dos aspectos médicos, contribuem para o melhoramento da qualidade de vida das pessoas de forma difusa, e por consequência, melhorando a vida dos indivíduos. Tem-se aí a possibilidade do ambiente ecologicamente equilibrado e essecial à sadia qualidade de vida.

Nesse sentido a capacidade humana de ordenar as relações a favor de uma vida digna é desafio da atualidade. E, seguindo a mesma linha de raciocínio adotada por CELSO ANTONIO PACHECO FIORILLO (26) o direito ao meio ambiente é voltado para a satisfação das necessidades humanas, resguardando-se uma visão sob a ótica antropocêntrica da matéria.

Logo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico, constitucionalmente protegido, não podendo ser desmembrado em parcelas individuais. Seu desfrute é necessariamente comunitário e reverte ao bem-estar individual.

O meio ambiente, enquanto bem jurídico, apresenta-se como garantia das condições básicas necessárias para a manutenção e desenvolvimento da vida em geral e da humana em particular, dessa forma deve ser preservado sob qualquer aspecto.

Nesse sentido, diante da argumentação até aqui desenvolvida, o que parece extremamente importante é a regulamentação legal da matéria, visto a ausência de legislação infra-constitucional.

Muito embora a lei 8.974/95 tenha estabelecido normas para uso de técnicas de engenharia genética e liberação do meio ambiente de organismos geneticamente modificados (OMGs), não tratou da manipulação e do armazenamento de embriões humanos enquanto fertilização assistida.

Portanto, na medida em que esta prática médica tem crescido de forma vertiginosa, o direito deve estar atento a essa evolução e de alguma forma regulamentar a aplicação dessas técnicas com respaldo nas questões éticas.

Contudo, essa regulamentação deve ser criteriosa, sob pena de atingir gravemente as liberdades individuais e os direitos do homem, posto que o direito de procriar é de cada um, e na hipótese de existência de erros nessa regulamentação, estar-se-ia diante da possibilidade de violação da intimidade do indivíduo, ferindo o disposto no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, que estabelece o seguinte:

"são invioláveis a intimidade, a vida privada a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."

Portanto, a limitação da aplicação e utilização de técnicas de reprodução humana assistida, deve ter sensibilidade e critério suficientes para acompanhar a evolução nesse terreno tão especializado da medicina.


Conclusão:

O que parece fundamental em toda a discussão aqui apresentada é que o silêncio legislativo sobre a matéria de relevância capital e a liberdade com que os tribunais vem se posicionando frente aos casos concretos, tem gerado uma indefinição, ou, falta de uma linha de conduta clara, precisa e objetiva, capaz de determinar a exata dimensão dada pelo Judiciário às novas possibilidades tecnológicas surgidas no campo da biomedicina.

Não restam dúvidas sobre a necessidade da intervenção das autoridades políticas e do legislador, pois o recurso incontrolado a estas técnicas, métodos e procedimentos pode conduzir à consequências imprevisíveis e perigosas para a sociedade civil.

A recente experiência de clonagem humana levada a efeito por dois pesquisadores da Universidade George Washington (Jerry Hall e Robert Stilman), nos Estados Unidos, comprovou à opinião pública atônita, o que pode ser feito, em nível particular, se o Estado não se posicionar imediatamente, ditando normas e preceitos firmes sobre o assunto.

O desenvolvimento da ciência é irreversível e necessário, desde que não viole normas éticas que desconsideram a dignidade humana.

A despeito das divergências que continuam permeando a complexidade do problema criado pelas procriações artificiais, a análise do estágio atual dos estudos comprovou uma unanimidade do conjunto em favor do respeito devido à pessoa humana. O respeito à pessoa humana justifica todas as intervenções do Direito.


Bibliografia Básica:

CABAU, Anne e SERNARCLENS, Myriam. Aspectos psicológicos da infertilidade, Insler e Lunifeld, Ed. Manole, São Paulo, 1988;

DAVID, Didier. L’insémination artificielle humaine. Aspects psycologiques, Editions ESF, Paris, 1984;

DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico", Max Limonad, São Paulo, 1997;

FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução, Antonio Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991;

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislação aplicável, Max Limonad, São Paulo, 1997;

___________________. Direito ambiental e patrimônio genético, Del Rey, Belo Horizonte, 1996;

GUICHENEY, M. e ROULLE, B.. La question du père ou le père en question, Fertilité Contraception, Sexualité, vol. 17, nº 7-8;

HANMER, J.. Reproduction trends and the emergence of moral panic, Sociedade de Ciência Médica, vol. 25;

LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995;

MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro, Malheiros, São Paulo, 3ª edição, 1997;

RIZZARDO, Arnaldo. Fecundação artificial, Revista AJURIS, nº 52, ano XVIII, 1991;

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, Malheiros, São Paulo, 2ª edição, 2ª tiragem;

VILLELA, João Batista. Desbiologização da paternidade, Revista Forense nº 71.


Notas

1. As primeiras manifestações artísticas do homem se expressaram na escultura e na pintura de mulheres grávidas (Vênus de Lespurgne, Vênus de Brassempouy, Vênus de Savinhano, Vênus de Laussel). A representação que os homens faziam do corpo feminino expressa a origem de sua perplexidade diante da fecundidade. Todo o realce das formas é dado ao ventre (origem de um novo ser), nádegas e seios (elemento sensual e de fertilidade) enquanto a cabeça e as pernas não passam de prolongamentos disformes do tronco. Na Vênus de Savinhano, por exemplo, a cabeça se alonga de forma indefinida e, em outras "Vênus", o rosto se dilui numa massa informe, o que nunca ocorre com o ventre e seios, dando uma imagem nítida de preocupação com os elementos da fertilidade. A mulher devia ser equiparada à terra e a todo seu misterioso e indecifrável poder de gerar, de criar, de dar vida.

2. "Os especialistas da reprodução são requisitados para preencher esta falta insuportável e escandalosa. Dos testes de Hünhner em espermograma, ou de curva da temperatura em histerografia (radiografia do útero) o responsável é revelado: o homem. Qualquer que seja o enunciado do veredicto, a esterilidade atinge o indivíduo na sua própria identidade. O ´eu não entendo mais nada´ traduz o ferimento narcísico profundo, e a 1revelação suscita reações negativas (angústia, agressividade, depressão, etc.)" - GUICHENEY, M. E ROULLE, B. "La question du père ou le père en question", in "Feretilité. Contraception, Sexualité", vol. 17, nº 7-8, p. 629.

3. Eduardo de Oliveira Leite. Procriações Artificiais e o Direito, RT, São Paulo, 1995, p. 22.

4. Nesse sentido deve-se discutir a aplicação do artigo 225 "caput" da Constituição Federal.

5. Cfr. João Batista Villela. Desbiologização da paternidade, Revista Forense nº 71, Rio de Janeiro, p. 49.

6. Cfr. Anne Cabau e Myriam Senarclens. Aspectos psicológicos da infertilidade, Insler e Lunifeld, Ed. Manole, São Paulo, 1988, p. 691.

7. Cfr. Anne Cabau e Myriam Senarclens, in op. cit., p. 692.

8. Foi adotada a expressão "mãe de substituição", para se evitar a expressão "aluguél de útero" que faz erroneamente pressupor que a técnica passa, necessariamente pela pecúnia, pela remuneração, induzindo a sociedade à idéia de que a mãe que carrega a criança em seu ventre, sempre recebe algum valor em dinheiro. Ledo engano, visto que a realidade tem demonstrado, na maioria dos casos, a substituição por mera benevolência, amizade ou vínculo de afeto à mulher estéril.

9. Eduardo de Oliveira Leite, in op. cit., p. 28.

10. HANMER, J. in "Reproduction trends and the emergence of moral panic", Sociedade de Ciência Médica, vol. 25, pp. 697/704.

11. Sérgio Ferraz. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991, p. 51.

12. M. Soulé. L´enfant dans la tête; l´enfant imaginaire, Editions ESF, Paris, 1982, p. 18.

13. Didier David. L´insémination artificielle humaine. Aspects psychologiques, Editions ESF, Paris, 1984., p. 103.

14. Didier David, in op. cit., p. 104.

15. Eduardo de Oliveira Leite, in op. cit., p. 104.

16. Essa possibilidade tanto positiva quanto negativa, traz certo temor aos especialistas da área de reprodução humana, uma vez que os embriões poderiam ser selecionados baseando-se em questões triviais, como a cor dos olhos, por exemplo. Isso seria possível graças ao chamado "screening genético pré-implantatório". Por outro lado, essa técnica poderia, ao invés de interromper uma gestação já estabelecida, por exemplo, de um embrião portador da síndrome de down, identificar os embriões que estejam livres de doenças para serem transferidos ao útero.

17. Procuramos dar destaque à questão ética, tendo em vista que se encontra em região limítrofe à questão jurídica. Não há como separá-las.

18. "Ética (gr. ethike, de ethikós: que diz respeito aos costumes) (...) Diferentemente da moral, a ética está mais preocupada em detectar os princípios de uma vida conforme à sabedoria filosófica, em elaborar uma reflexão sobre as razões de se desejar a justiça e a harmonia e sobre o meio de alcançá-las". Dicionário de Filosofia, Marcondes, D. & Japiassú, H., Rio de Janeiro, Zahar, 1990.

19. Não há como escapar de um enfoque antropocêntrico do direito ambiental, como apregoado por Celso Antonio Pacheco Fiorillo de forma contundente em seus trabalhos acadêmicos.

20. O célebre relatório, "Report of the Committee of Inquiry into Human Fertilisation and Embriology", elaborado sob a coordenação de Mary Warnock.

21. Será oportunamente abordado dentro dos aspectos jurídicos.

22. Dipõe o artigo 4º do Código Civil de 1916: "A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."

23. O que parece fundamental para a comunidade científica é a definição do momento do início da vida humana, uma vez que esta informação constitui a base de todas as discussões éticas e legais da manipulação e destino dos embriões na utilização de novas técnicas de reprodução assistida. Esta definição é importante para todos aqueles, que de forma minoritária, consideram o momento da fertilização, ou seja, o processo evolutivo do primeiro contato do espermatozóide com a superfície externa do óvulo o iníco da vida.

24. Só em França estima-se em 17.000 embriões conservados, sendo que 300 a 400 estão "sem projeto parental", quer porque o desejo de ter filhos já foi satisfeito, quer porque ocorreu o abandono do projeto parental, pela separação do casal, por exemplo - Apud, Marie-Oldile Alnot, in "Les CECOS et les embryons humains, Revista "La tribune des CECOS", novembro de 1991, nº 4 p. 8-9.

25. Artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil de 1916: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito."

26. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, in op. cit., pp. 47/48.


Autor

  • Ecio Perin Junior

    Ecio Perin Junior

    Head of the Business Reorganization Team; Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar, Advogados e Consultores Legais; Doutor e Mestre em Direito Comercial pela PUC/SP; Especialista em Direito Empresarial pela Università degli Studi di Bologna; Presidente e sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial – IBRADEMP; Membro Efetivo da Comissão de Fiscalização e Defesa do Exercício da Advocacia da OAB/SP

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERIN JUNIOR, Ecio. Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida em face do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3510. Acesso em: 25 abr. 2024.