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A construção retórica da narrativa impessoal no âmbito da comunidade discursiva jurídica

A construção retórica da narrativa impessoal no âmbito da comunidade discursiva jurídica

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Um gênero textual pertencente à comunidade discursiva jurídica é a narrativa jurídica impessoal, que aqui é analisada sob a proposta da EPG (estrutura potencial do gênero), a fim de se traçar estrutura prototípica básica.

RESUMO: Este trabalho versa sobre um gênero textual pertencente à comunidade discursiva jurídica. Trata-se da narrativa jurídica impessoal, que aqui é analisada sob a proposta da EPG (estrutura potencial do gênero), a fim de se traçar estrutura prototípica básica deste gênero e de se oferecer ao escrevente uma orientação na formulação deste exemplar de texto. Tendo em vista que os gêneros textuais servem como “chaves” para o entendimento de como participar das ações da comunidade discursiva, o bom desenvolvimento destes torna a adequação às convenções estabelecidas mais facilitadas, e a inserção na comunidade, menos problemática, possibilitando-se o reconhecimento do indivíduo como sendo um operador do direito, de fato.    

Palavras-chave: comunidade discursiva, gênero textual, texto, sequência tipológica, EPG, narrativa jurídica impessoal. 


1.0 A noção de comunidade discursiva

Swales (1990)[2] propõe o conceito de comunidade discursiva utilizado por estudiosos que assumem uma perspectiva social em suas pesquisas. O autor propõe que para uma comunidade ser considerada como sendo uma comunidade discursiva, deve consistir em

um grupo de pessoas que se unem com objetivos que estão acima dos objetivos de socialização e de solidariedade, mesmo que estes também ocorram. Numa ‘comunidade discursiva’ as necessidades de comunicação de seus objetivos tendem a predominar no desenvolvimento e manutenção de suas características discursivas. (SWALES, 1990, p. 24 apud PIMENTA, 2007, p.38) aspas do autor

E ainda, pode-se dizer que as comunidades discursivas são

redes sócio-retóricas que se formam a fim de atuarem em prol de conjuntos de objetivos comuns. Uma das características que os membros estabelecidos dessas comunidades de discurso possuem é a familiaridade com determinados gêneros [textuais] que são usados no favorecimento desses conjuntos de objetivos. Em consequência disso, os gêneros são propriedades das comunidades de discurso; ou seja, os gêneros pertencem às comunidades de discurso e não aos indivíduos, a outros tipos de agrupamentos ou a comunidades de fala mais ampla. (SWALES, 1990, p.9 apud SILVEIRA, 2005, p.86)

Esses grupos, inicialmente concebidos, em Swales (1990), como verdadeiros e estáveis, marcados pelo consenso em suas posições, passam por uma revisão teórica em Swales (1992) e passam a abrigar a possibilidade de existência de conflitos internos. 

Essas comunidades discursivas recrutam seus membros por meio de persuasão, treinamento ou qualificação, e tendem a apresentar natureza centrífuga, uma vez que se inclinam a separar as pessoas em termos de ocupação ou de grupos de interesses.

De forma geral, tais comunidades apresentam, conforme Swales (1992), seis características que as identificam. São elas:

· Possui um conjunto perceptível de objetivos que podem ser reformulados pública e explicitamente e também em parte, podem ser estabelecidos por seus membros. Tais objetivos podem ser consensuais ou distintos, mas sempre relacionados;

· Possui mecanismos de intercomunicação entre os membros;

· Usa mecanismos de participação para uma série de propósitos tais como promover o incremento da informação e do feedback, para canalizar a inovação, para manter o sistema de crenças e de valores da comunidade e para aumentar o espaço profissional;

· Utiliza uma seleção crescente de gêneros no alcance de seu conjunto de objetivos e na prática de seus mecanismos participativos;

· Já adquiriu e continua buscando uma terminologia específica;

· Possui uma estrutura hierárquica explícita ou implícita que orienta os processos de admissão e de progresso dentro dela. (apud SILVEIRA, 2005, p. 88)

O conceito de comunidade discursiva prevê a evolução dos gêneros textuais e a expansão dos léxicos. Além disso, ao sujeito é facultada a participação em várias comunidades discursivas e, em cada uma delas, poderá operar com diferentes gêneros textuais que sejam adequados ao contexto discursivo.

Nesse âmbito, pode-se considerar que os operadores do direito formam uma comunidade discursiva jurídica, tendo em vista que esta, além de atender às seis características definidoras acima, ainda apresenta gêneros textuais que lhe são próprios, como: petição inicial, sentença, contestação, acórdão, intimação, resolução, decreto, averbação dentre muitos outros.

E, sendo o conceito de comunidade discursiva fortemente atrelado ao conceito de gênero textual, cabe aqui esclarecer o que se denomina, neste trabalho, de texto e de gênero textual.

2.0 O texto e os gêneros textuais

Hodiernamente muito se tem discutido a respeito das definições de gêneros textuais e de texto. Essa discussão advém das várias considerações teóricas e da interdisciplinaridade com que tais conceitos são analisados, proporcionando perspectivas de análise diferenciadas.

Todavia, algumas confusões e controvérsias podem aparecer na distinção entre texto e gênero. Em algumas delas, pode-se tomar os dois conceitos como sinônimos e, em outras, a distinção pode levar ao entendimento de tratar-se de coisas independentes.

É necessário, antes, que se considere que a noção de texto é mais abrangente que a de gênero. Pois os gêneros são, antes de tudo, textos.

Neste estudo, será adotado para definir texto, o conceito sociodiscursivo de Bronckart para quem “texto é toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e autossuficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação). Na medida em que todo texto se inscreve, necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero de texto” (BRONCKART, 2003, p.75). Não importando ser esse texto oral ou escrito, e acrescenta-se, verbal ou não verbal. E não importando também a extensão que apresente.

Assim, o conjunto de textos jurídicos, entendido como integrantes de uma comunidade discursiva, apresenta textos que são tipicamente escritos, como é o caso de uma petição inicial; outros orais, como é o caso da defesa realizada pelo advogado que, apesar de basear-se em algumas anotações escritas, constrói-se, de fato, é no momento da fala; outros, ainda, que são da esfera do não verbal, como é o caso do bater do martelo no início ou no final da sessão e da vestimenta adequada aos operadores do direito durante esse evento.

Perspectiva que se coaduna à proposta de Bittar, para quem a “linguagem jurídica se manifesta seja valendo-se de uma linguagem verbal, seja valendo-se dos elementos de linguagens não verbais [...]” (BITTAR, 2006, p. 167). Sendo o texto o lugar da convergência sígnica e de emergência do significado.

Afinal, conforme propõe a corrente discursiva, a linguagem sempre acontece em forma de texto, e, sendo texto, ocorre sempre na forma de um gênero. Gênero que apresenta, numa dada cultura, forma mais ou menos estabilizada.

De acordo com Swales (1990), a noção de gênero textual compreende

uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham um conjunto de propósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos membros especializados da comunidade discursiva e dessa forma passam a constituir o fundamento do gênero. Esse fundamento modela a estrutura do discurso e influencia e limita a escolha de conteúdo e estilo. O propósito comunicativo é o critério que é privilegiado e que faz com que o escopo do gênero se mantenha enfocado estreitamente em determinada ação retórica compatível com o gênero. Além do propósito, os exemplares do gênero demonstram padrões semelhantes, mas com variações em termos de estrutura, estilo, conteúdo e público-alvo. Se forem realizadas todas as expectativas em relação àquilo que é altamente provável para o gênero, o exemplar será visto pela comunidade discursiva original como um protótipo. Os gêneros têm nomes herdados e produzidos pelas comunidades discursivas e importados por outras comunidades. Esses nomes constituem uma comunicação etnográfica valiosa, porém normalmente precisam de validação adicional. (SWALES, 1990, p. 58 apud HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 114-115)

Dessa forma, os sujeitos organizam seu comportamento comunicativo parcialmente por meio do repertório de gêneros que emerge da ação dos sujeitos em determinadas ações socais.

Além disso, para Swales (1990), os gêneros apresentam, como primeira característica, a ideia de classe, ou seja, o gênero é uma classe de eventos comunicativos, constituído do discurso, dos participantes, da função do discurso e do ambiente onde o discurso é produzido e recebido.

Como segunda característica, está o fato de o gênero ter a função de realizar um objetivo ou objetivos. Assim, na comunidade discursiva jurídica, um acórdão, por exemplo, tem, como propósito comunicativo, o fato de tentar estabelecer concordância; uma averbação visa acrescentar elementos a um documento, declarando, corrigindo-o, ratificando-o; uma citação visa citar somente o réu ou acusado para comparecer ao juízo e apresentar defesa e uma intimação intima pessoas para que compareçam em juízo para prestar esclarecimentos ou para que atendam a algum pedido do juiz de Direito.

A terceira característica do gênero é a prototipicidade, pois um texto será classificado como sendo de um gênero se possuir os traços especificados na definição do gênero. Tomando os exemplares acima, tanto o acórdão, a citação, a intimação quanto a averbação apresentam uma forma-padrão que os permitem serem reconhecidos como tais.

A quarta característica diz respeito à lógica subjacente ao gênero, ou seja, cada gênero apresenta uma lógica de uso, não podendo, por exemplo, ser realizada uma averbação antes de existir um documento anterior que lhe justifique a sua existência. E uma denúncia só pode ser realizada pelo Ministério Público. Essa lógica, vinculada às convenções do discurso, estabelece restrições em termos de conteúdo, posicionamento e forma. O conhecimento das convenções de um gênero é, talvez, maior entre os indivíduos que lidam com ele profissional ou rotineiramente.

Por fim, a quinta característica é a terminologia elaborada pela comunidade discursiva para seu próprio uso. Assim, réu, querelante, acusado, suplicante, suplicado, requerente são exemplos de terminologias de sentido específico nessa comunidade.

Tomadas as características dos gêneros textuais como parâmetro, pode-se inferir que o desconhecimento do formato de composição, das convenções e dos propósitos comunicativos e da terminologia de um determinado gênero textual pode acarretar consequências sérias na área jurídica, pois os textos produzidos nesta área são os instrumentos para a própria operacionalização do Direito. Pode-se até mesmo dizer que

os variados gêneros textuais, característicos da área do Direito, são instrumentos sem os quais não pode haver a operacionalização do trabalho forense. Isto pode se tornar um problema grave, uma vez que o mau desenvolvimento desses gêneros (que formam as peças processuais) pode exercer influência direta no processo jurídico, inclusive na sentença jurídica proferida. É por meio da redação desses gêneros textuais que os fatos serão narrados e descritos e, ao serem narrados e descritos, (serão reconstituídos; verdades serão reconstruídas) e os fatos interpretados pelas partes envolvidas nos processos (PIMENTA, 2007, p. 27). Parênteses da autora

Perspectiva que justifica o interesse deste estudo em analisar e propor uma organização retórica, de acordo com a proposta das estruturas potenciais do gênero, para narrativa impessoal, nomeada por alguns de relatório jurídico. Entende-se que essa pode ser uma contribuição relevante para a elaboração desse gênero textual, especialmente por iniciantes nessa comunidade discursiva. Assim,

estudamos gêneros para compreender com mais clareza o que acontece quando usamos linguagem para interagir em grupos sociais, uma vez que realizamos ações na sociedade, por meio de processos estáveis de escrever/ler e falar/ouvir, incorporando formas estáveis de enunciados. (MEURER; MOTTA-ROTH, 2002, p. 12)

Todavia, antes de se deter à narrativa jurídica impessoal, propriamente dita, será realizada uma diferenciação entre gênero e sequência tipológica, a fim de eliminarem-se possíveis confusões em seu entendimento.


3.0 Sequências tipológicas e tipos textuais

Até alguns anos, era comum classificarem-se os textos como sendo narrativos, descritivos e dissertativos, simplesmente. Mas com os estudos sobre os gêneros textuais e as novas conceituações de texto, que propõem que estes se materializam socialmente na forma de gêneros, foi possível classificar e nomear um número infinito gêneros, como é o caso do: sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador, acórdão, averbação, atestado, contrato de aluguel, aviso, solicitação, declaração, ementa, procuração, termo de compromisso, alvará, ordem de serviço e assim por diante.

Se ao se classificar e nomear os gêneros, é encontrado um número infinito, o mesmo não ocorre com os tipos textuais. Estes estão relacionadas ao modo como o texto é organizado, com seu processo de construção teórica. Tem número limitado de categorias, dentre elas: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção.

Além disso, os tipos textuais são baseados em sequências tipológicas. Assim, conforme Marcuschi (2010, p. 23)[3], são definidas pela “natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas)”.

A diferença fundamental do tipo textual em relação ao gênero, portanto, é a sua menor variabilidade.

Para demonstrar as características prototípicas das sequências tipológicas, veja-se o quadro proposto por Werlich (1973), citado por Marcuschi (2010):

Bases temáticas

Exemplos

Traços Linguísticos

1.  Descritiva

"Sobre a mesa havia milhares de vidros."

Este tipo de enunciado textual tem uma estrutura simples com um verbo estático no presente ou imperfeito, um complemento e uma indicação circunstancial de lugar.

2.  Narrativa

"Os passageiros aterrissaram em Nova York no meio da noite.”

Este tipo de enunciado textual tem um verbo de mudança no passado, um circunstancial de tempo e lugar. Por sua referência temporal e local, este enunciado é designado como enunciado indicativo de ação.

3.  Expositiva

(a)    “Uma parte do cérebro é o córtex.”

(b)    “O cérebro tem 10 milhões de neurônios.”

Em (a) temos uma base textual denominada de exposição sintética pelo processo da composição. Aparece um sujeito, um predicado (no presente) e um complemento com um grupo  nominal. Trata-se de um enunciado de identificação de fenômenos.

Em (b) temos uma base textual denominada de exposição analítica pelo processo de decomposição. Também é uma estrutura com um sujeito, um verbo da família do ter (ou verbos como: "contém'', “consiste”, ”compreende”) e um complemento que estabelece com o sujeito uma relação parte-todo. Trata-se de um enunciado de ligação de fenômenos.

4.  Argumentativa

"A obsessão com a durabilidade nas Artes não é permanente."

Tem-se aqui uma forma verbal com o verbo ser no presente e um complemento (que no caso é um adjetivo). Trata-se de um enunciado de atribuição de qualidade.

5.  Injuntiva

"pare!”,seja razoável!"

Vem representada por um verbo no imperativo. Estes são os enunciados incitadores à ação. Estes textos podem sofrer certas modificações significativas na forma e assumer, por exemplo, a configuração mais longa em que o imperativo é substituído por um "deve". Por exemplo; "Todos os brasileiros na idade de 18 anos do sexo masculino devem comparecer ao exército para alistarem-se."

Fonte: Marcuschi (2010, p.29-30)

Já que se está tratando, neste trabalho, da comunidade discursiva jurídica, será feita uma demonstração dessas sequências tipológicas em um gênero textual pertencente a essa comunidade.

O gênero textual selecionado para a demonstração será uma petição inicial prototípica, da espécie ação de alimentos. Aliás, para que tenha validade no mundo jurídico, a petição inicial tem de atender aos requisitos dispostos no art. 282 do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº 5.869/1973), quais sejam: 1) "o juiz ou tribunal a quem é dirigida"; 2) "os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu"; 3) "o fato e os fundamentos jurídicos do pedido"; 4) "o pedido, com as suas especificações"; 5) "o valor da causa"; 6) "as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados" e 7) "o requerimento para a citação do réu".

Vê-se que a petição inicial é um gênero que segue formatos, convenções e propósitos ditados pela comunidade discursiva a que pertence. Sua aceitabilidade nessa comunidade depende, portanto, de adequar-se ou não ao estabelecido para gênero.

Segue abaixo o texto para a demonstração: 

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DE FAMÍLIA DA COMARCA DE[4]... 

W DE TAL, menor impúbere, representado por sua genitora FULANA DE TAL, brasileira, casada, do lar, residente e domiciliada na Rua Y, 43, apto. 507, nesta Cidade, vem, por seu Advogado abaixo-assinado (procuração anexa), propor AÇÃO DE ALIMENTOS em face de BELTRANO DE TAL, brasileiro, casado, autônomo, residente e domiciliado na Rua K, 94, nesta Cidade, pelos fatos e fundamentos abaixo declinados:

1. A suplicante é filha do suplicado, conforme comprovam os documentos em anexo.

2. Ocorre que apesar da relação jurídica existente entre as partes, o réu não lhe presta os alimentos indispensáveis à sua subsistência na forma da lei civil, razão por que está passando por privações.

3. O suplicado encontra-se em situação estável, trabalhado atualmente como mecânico autônomo e percebendo a quantia aproximada de R$1500,00 (hum mil e quinhentos reais) mensais.

A Lei nº 5478/68, em seu artigo 2º, embasa a sua pretensão.

Artigo 2º- "O credor, pessoalmente, ou por intermédio de advogado, dirigir-se-à ao juiz competente, qualificando-se, e exporá suas necessidades, provando, apenas o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor, indicando seu nome e sobrenome, residência ou local de trabalho, profissão e naturalidade, quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que dispõe."

Com base no artigo 400 do Código Civil Brasileiro, a obrigação de alimentar estabelece parâmetro nas necessidades do suplicante.

Artigo 400 - "Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do suplicante e dos recursos da pessoa obrigada."

Da mesma forma, o fato do suplicado não participar com a manutenção necessária do suplicante, comete o crime de abandono material previsto no artigo 244 do Código Penal.

Ante o exposto, requer a V. Excia.:

a) a citação do suplicado para responder, querendo, aos termos da presente, até final, com a INTIMAÇÃO da data da audiência de conciliação e julgamento, tudo sob as penas da revelia;

b) a fixação, desde logo, da verba alimentícia provisória, na proporção dois salários mínimos, que deverá ser entregue à representante legal da autora, mediante recibo, até o quinto dia do mês subsequente ao vencido;

c) seja intimado o ilustre representante do Ministério Público;

d) seja ao final julgado procedente o pedido com a condenação do réu ao pagamento da pensão alimentícia, em caráter definitivo, na mesma proporção dos provisórios, ou seja, o equivalente a dois salários mínimos, que deverá ser entregue à representante legal da autora até o dia 05 de cada mês subsequente ao vencido, na residência desta, mediante recibo.

e) seja o réu condenado nas custas processuais e honorários de Advogado, na proporção de dez por cento sobre o valor da causa.

Dá-se à causa o valor de R$     

Termos em que

Pede deferimento

.............................................., de ............................de...............

...............................................

Advogado/ OAB

No exemplo de petição acima elencado, têm-se as seguintes sequências tipológicas:

Uma sequência injuntiva: funciona como uma convocação à leitura do “caso” apresentado.

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DE FAMÍLIA DA COMARCA DE...

 Uma sequência descritiva: atribui característica e atributos às partes envolvidas

W DE TAL, menor impúbere, representado por sua genitora FULANA DE TAL, brasileira, casada, do lar, residente e domiciliada na Rua Y, 43, apto. 507, nesta Cidade, vem, por seu Advogado abaixo-assinado (procuração anexa), [...]  BELTRANO DE TAL, brasileiro, casado, autônomo, residente e domiciliado na Rua K, 94, nesta Cidade, pelos fatos e fundamentos abaixo declinados.

 Uma sequência expositiva: define quem é a suplicante e o que está se propondo:

Propor AÇÃO DE ALIMENTOS em face de BELTRANO DE TAL.

A suplicante é filha do suplicado, conforme comprovam os documentos em anexo.

 Uma sequência narrativa: conta os fatos

 Ocorre que apesar da relação jurídica existente entre as partes, o réu não lhe presta os alimentos indispensáveis à sua subsistência na forma da lei civil, razão por que está passando por privações.

O suplicado encontra-se em situação estável, trabalhado atualmente como mecânico autônomo e percebendo a quantia aproximada de R$1500,00 (hum mil e quinhentos reais) mensais.

 Uma sequência argumentativa: ancora o solicitado em leis

A Lei nº 5478/68, em seu artigo 2º, embasa a sua pretensão.

Artigo 2º- "O credor, pessoalmente, ou por intermédio de advogado, dirigir-se-à ao juiz competente, qualificando-se, e exporá suas necessidades, provando, apenas o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor, indicando seu nome e sobrenome, residência ou local de trabalho, profissão e naturalidade, quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que dispõe."

Com base no artigo 400 do Código Civil Brasileiro, a obrigação de alimentar estabelece parâmetro nas necessidades do suplicante.

Artigo 400 - "Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do suplicante e dos recursos da pessoa obrigada."

Da mesma forma, o fato do suplicado não participar com a manutenção necessária do suplicante, comete o crime de abandono material previsto no artigo 244 do Código Penal.

 Uma sequência injuntiva: realiza o pedido

Ante o exposto, requer a V. Excia.:

a) a citação do suplicado para responder, querendo, aos termos da presente, até final, com a INTIMAÇÃO da data da audiência de conciliação e julgamento, tudo sob as penas da revelia;

b) a fixação, desde logo, da verba alimentícia provisória, na proporção dois salários mínimos, que deverá ser entregue à representante legal da autora, mediante recibo, até o quinto dia do mês subsequente ao vencido;

c) seja intimado o ilustre representante do Ministério Público;

d) seja ao final julgado procedente o pedido com a condenação do réu ao pagamento da pensão alimentícia, em caráter definitivo, na mesma proporção dos provisórios, ou seja, o equivalente a dois salários mínimos, que deverá ser entregue à representante legal da autora até o dia 05 de cada mês subsequente ao vencido, na residência desta, mediante recibo.

e) seja o réu condenado nas custas processuais e honorários de Advogado, na proporção de dez por cento sobre o valor da causa.

Dá-se à causa o valor de R$     

Termos em que

Pede deferimento

Feita essa exemplificação, necessária para o melhor entendimento do que são as sequências tipológicas, e de evidenciar-se a possibilidade de um gênero ser constituído por mais de uma dessas sequências, ainda que tal gênero apresente uma predominante sobre as outras, passa-se agora à narrativa jurídica impessoal.


4.0 A narrativa jurídica impessoal

A narrativa impessoal, também conhecida por relatório, constitui um dos gêneros textuais da comunidade discursiva jurídica. Diferentemente da sequência tipológica narrativa, nesta forma textual, a própria narrativa constitui um gênero. Embora, ao longo de seu texto, possa-se evidenciar a presença de sequências descritivas e argumentativas, favorecendo-se o desenvolvimento do contar os fatos. 

A narrativa jurídica impessoal “sintetiza todas as fases da lide”, conforme explica Lellis (2006, p. 1637). É uma narrativa sem o compromisso de representar qualquer das partes. Deve apresentar todo e qualquer fato importante para a compreensão da lide ou demanda processual, de forma imparcial.

É chamada de impessoal ou não valorada por tentar abster-se dos atributos e adjetivações próprias que podem caracterizar as partes e os fatos apresentados. Desta forma, tenciona-se a impessoalidade discursiva neste gênero. Embora possa ser questionada a possibilidade de uma forma discursiva ser impessoal – perspectiva que se endossa neste trabalho, uma vez que a própria seleção do que é importante ou não de ser mencionado atesta a pessoalidade da tarefa – ainda assim, este é o propósito desse gênero textual: apresentar/contar os fatos de forma impessoal.

Na narrativa jurídica impessoal, é preciso saber selecionar-se quais os fatos que merecem ser narrados, tendo em vista que nem todos os fatos são importantes para o reconhecimento do direito e acabam, quando elencados no texto, comprometendo a clareza, a objetividade e a lógica da narrativa.

E, se for o caso de a narrativa jurídica não deixar claro os fatos, podendo comprometer a compreensão e até mesmo a interpretação, o juiz ou sujeito competente pode solicitar ao relator que o reescreva, aditando-o para esclarecer pontos obscuros ou  de  difícil  compreensão. E em alguns casos, não atendida à qualidade desejável, ser até anulada.

Pois, como já se propôs, o jurista não lida com os fatos diretamente, mas com as palavras ditas sobre os fatos.

4.1 A estrutura potencial do gênero (EPG) da narrativa jurídica impessoal

A configuração contextual de um gênero textual permite fazer previsões sobre qualquer texto adequado a um determinado contexto, ou seja, qualquer texto que possa ser considerado um exemplo “em potencial” de um gênero específico, de acordo com Motta-Roth & Herbele (2005).

Os traços específicos de um contexto permitem predizer a sequência e a recorrência de certos elementos textuais obrigatórios e opcionais da estrutura potencial do gênero (EPG) e vice-versa. Todavia, uma EPG não é um plano rígido, podendo ocorrer variações. Segundo as autoras mencionadas acima, o principal objetivo da EPG é:

dar conta do leque de opções de estruturas esquemáticas específicas potencialmente disponíveis aos textos de um mesmo gênero (Hasan, 1994, p.145), de tal forma que as propriedades cruciais de um gênero possam ser abstraídas e qualquer exemplar desse gênero possa ser representado (MOTTA-ROTH; HEBERLE, 2005, p. 19). Referência das autoras

Hasan (1989, p.55 apud MOTTA-ROTH; HEBERLE, 2005, p. 18) propõe que dentro de uma EPG essas variações ocorrem dentro de limites de acordo com as seguintes considerações:

  1. Que elementos devem ocorrer em cada exemplar de um determinado gênero? (elementos obrigatórios)
  2. Que elementos podem ocorrer, embora não precisem estar presentes em cada exemplar de um determinado gênero? (elementos opcionais)
  3. Que elementos podem ocorrer mais de uma vez ao longo do texto? (elementos iterativos)
  4. Que elementos têm uma ordem fixa de ocorrência se comparados a outros elementos?
  5. Que elementos têm uma ordem variável de ocorrência se comparados a outros elementos?

Com base nessas proposições sobre EPG e na observação de algumas narrativas jurídicas impessoais, chegou-se ao seguinte esquema textual, que se acredita ser representativo da estrutura desse gênero:

EPG do relatório jurídico ou Narrativa Jurídica imparcial 

Movimento 1: Caracterização/ identificação do fato gerador em ordem cronológica

Passo 1: Quem? Quem são os envolvidos na lide? e/

Passo 2: O quê? Qual o fato gerador do conflito? e/

Passo 3: Quando? Onde e quando os fatos ocorreram? e/

Passo 4: Como? Como se desenvolveu o conflito? e/

Passo 5? Por quê? Por que ocorreu o conflito de interesses? e/ou

Passo 6: Quais as consequências dos fatos narrados? e/ou

 

Movimento 2: Detalhamento do fato gerador/ contextualização do fato

Passo 7: Destaque para detalhes importantes em cronologia linear e/ou

Passo 8: Polifonia: outras partes e/ou, outras provas e/ou, outras testemunhas

 

MOVIMENTO 3: FECHAMENTO

Passo 9: Dar um fecho à narrativa/ em que “pé” as coisas estão?

Além disso, todos os fatos relevantes do caso concreto devem ser narrados no pretérito (firmou, alegou, descobriu...) e na 3ª pessoa (ela, ele, elas, eles). Deve ocorrer, pelo menos em tese, a ausência de opinião, de posicionamento ou de valoração por parte do relator.

O movimento retórico pode ser entendido como o modo como o texto realiza os propósitos comunicativos. No esquema proposto, os três movimentos constituem as partes obrigatórias, os passos que apresentam “e” são obrigatórios, embora possam apresentar variação na ordem, desde que não quebre a cronologia dos fatos, e os que apresentam “e/ou” podem alternados entre si.

Veja-se um exemplo de narrativa jurídica impessoal[5] prototípica que segue todos os movimentos retóricos e também os passos obrigatórios, mas que não apresenta os elementos do passo 8, “testemunhas” e “outras provas”, já que estes são passíveis ou não de compor a EPG da narrativa jurídica impessoal:

Marcelo e Camila são casados há 10 anos. Em 01 de novembro de 2008, quando Camila digitava um trabalho da faculdade no computador utilizado pelo casal, ficou estarrecida: encontrou uma série de e-mails comprometedores, armazenados pelo marido, na máquina da família.

Descobriu que, no período de 12 de fevereiro de 2008 a 30 de outubro de 2008, seu marido, usando o apelido “homem carente de meia idade”, trocava quase diariamente mensagens de natureza erótica com uma mulher que assinava “cheia de amor pra dar”.

Ao ler as mensagens, constatou que o marido se declarara diversas vezes para a internauta, com quem construía fantasias sexuais e praticava sexo virtual. A situação ficou ainda mais grave, porque, nessas ocasiões, Marcelo fazia comentários jocosos sobre o desempenho sexual de Camila e afirmava que ela seria uma pessoa "fria" na cama.

Por conta de todos esses fatos, Camila se separou de Marcelo. Cerca de quatro meses após a separação, ajuizou ação de reparação por danos morais em face do ex-marido, na qual pediu indenização no valor de 20 mil reais. Em síntese, alegou na Petição Inicial que: a) o ex-marido manteve relacionamento com outra mulher na constância do casamento; b) a traição foi comprovada por meio de e-mails trocados entre o acusado e sua amante; c) a traição foi demonstrada pela troca de fantasias eróticas (sexo virtual) entre os dois; d) precisou passar por tratamento psicológico para superar a dor que sofria; e) foram violados sua honra subjetiva e seu direito à privacidade no casamento.

Em sua defesa, o ex-marido alegou a improcedência do pedido sustentando o seguinte: a) sexo virtual não caracteriza traição; b) houve invasão de privacidade e violação do sigilo das correspondências; c) os e-mails devem ser desconsiderados como prova da infidelidade; d) não difamou a ex-esposa, ao contrário, ela mesma denegria sua imagem ao mostrar as correspondências às outras pessoas.

Em entrevista à imprensa, a autora afirmou que não houve violação de sigilo das correspondências. Para ela, não está caracterizada a invasão de privacidade porque os e-mails estavam gravados no computador de uso da família e os cônjuges compartilhavam a mesma senha de acesso. "Simples arquivos não estão resguardados pelo sigilo conferido às correspondências", concluiu.


Considerações finais:

O estudo dos gêneros textuais, de sua tipologia e das estruturas potenciais do gênero pode levar a um melhoramento na qualidade dos textos produzidos, especialmente, pelos iniciantes na comunidade discursiva jurídica, uma vez que possibilita a percepção dos movimentos retóricos e dos passos que compõem determinado texto.

Tendo em vista que os gêneros textuais servem como “chaves” para o entendimento de como participar das ações da comunidade discursiva, o bom desenvolvimento destes torna a adequação às convenções estabelecidas mais facilitada, e a inserção na comunidade, menos problemática, possibilitando-se o reconhecimento do indivíduo como sendo um operador do direito, de fato.

Além disso, busca-se a fuga aos modelos e fórmulas já preparadas nos manuais de redação forense, que, não raro, propiciam a proliferação de textos com uma linguagem em desuso, farta da condenável prolixidade e do juridiquês, combatido até mesmo pela Associação dos Magistrados Brasileiros.

A EPG, embora sirva para orientar, não é um engessamento da linguagem, mas uma proposta de evidenciação da estrutura do gênero textual, para que, a partir de seu conhecimento, possa-se elaborar o texto com a qualidade composicional desejável.


Referências bibliográficas:

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SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Análise de gênero textual: concepção sócio-retórica. Maceió: EDUFAL, 2005. 


Notas

[1] Em alguns manuais, esse gênero é nomeado como relatório jurídico. Optou-se, no entanto, por manter a nomeação de narrativa impessoal.

[2] Devido a não existência de obras de John Swales traduzidas para o português e ao embate teórico travado nos estudos que lidam com os conceitos de gêneros textuais, no qual um simples erro de tradução pode colocar em questão certos pressupostos, optou-se pelo trabalho com traduções de trechos realizados por autores cientificamente reconhecidos na área dos estudos teórico e prático dos gêneros textuais, no Brasil.

[3] Compreensão que vai ao encontro do entendimento de John Swales (1990), Jean-Michel Adam (1990), Jean Paul Bronckart (1999), de acordo com afirmação de Marcuschi (2010, p. 23).

[4] Modelo de ação de alimentos retirado de um manual de petições sem autoria definida.

[5] Modelo retirado de manual de orientação de como se elaborar uma narrativa jurídica impessoal.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Magna. A construção retórica da narrativa impessoal no âmbito da comunidade discursiva jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5028, 7 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35940. Acesso em: 28 mar. 2024.