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O médico e a indústria do dano

O médico e a indústria do dano

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A indústria do dano tem se instalado nos tribunais e começa a atingir a classe médica, em aventuras jurídicas sem fundamento com pedidos de dano moral e material por erro médico.

INTRODUÇÃO

Há vários anos o Poder Judiciário Brasileiro vem sendo assolado por um fenômeno conhecido como a "indústria do dano", que nada mais é que a busca incessante e muitas vezes desnecessária de prestação jurisdicional por indivíduos que alegam danos hipotéticos com pedido de indenizações infundadas e inconsequentes, em busca de dinheiro fácil. A conclusão é notória, o "jeitinho brasileiro" chegou ao judiciário.

A "indústria do dano" tem novo foco! Infelizmente os médicos desamparados legal e judicialmente são as novas vítimas da iníqua indústria.


1. O NOVO FOCO DA INDÚSTRIA DO DANO

Em seu exercício profissional, o médico se sujeita a praticar atos que resultem em responsabilidade ético-profissional, civil e penal, sendo possível incorrer, simultaneamente, nas três modalidades de responsabilização.

Nos últimos anos o número de processos contra médicos cresceu em escala alarmante. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, nos últimos dez anos o país teve um aumento de 1.600% no número de processos judiciais envolvendo médicos (civil e criminal).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais no ano de 2000 havia julgado 16 processos relativos a "erro médico". Já em 2014, encontramos no repertório jurisprudencial mais de 1300 decisões sobre este tema.

Ressalta-se que esses números estão aquém da realidade, pois não demonstram, por exemplo, os processos do dito "erro médico" nas 296 comarcas de Minas Gerais (ex: Nova Lima, Belo Horizonte, Betim, etc). Os números do TJMG apontam apenas os processos que seguiram para o tribunal por meio de recursos. Infelizmente não há apontamentos sobre o número de processos na primeira instância da justiça mineira.

O crescimento de denúncias contra médicos também é percebido pelos Conselhos Regionais. O CRMMG informa que o número de denúncias teve um aumento de 53% nos últimos anos. Em média chegam ao Conselho 5 denúncias contra médicos por dia. As áreas de urgência e emergência são alvo de aproximadamente 40% das denúncias, seguida pela obstetrícia com 30%.

O cenário para os profissionais da medicina não é dos melhores. Os números demonstram que o médico é a "bola da vez" da indústria do dano que assola o judiciário brasileiro, como veremos no decorrer deste artigo.


2. A INDÚSTRIA DO DANO X MEDICINA

Segundo MARCOS VINICIUS COLTRI a cada 4 médicos processados, 3 deles são processados injustamente, em verdadeiras aventuras jurídicas. Porém o resultado favorável na demanda não significa exatamente um ganho para o profissional, pois na prática 3 em cada 4 médicos processados pagam para provar sua inocência, pagam em média 25 mil reais, sem poder reaver a quantia gasta no processo. Isso porque a maioria esmagadora dos pacientes são protegidos pelos benefícios da justiça gratuita.[1]

Alex Pereira e Antônio Couto citam Miguel Kfouri (Culpa Médica e o ônus da prova), informando que 80% (oitenta por cento) das ações contra médicos são julgadas improcedentes, afirmando esta realidade é consequência do entusiasmo em proteger o paciente oferecendo fomentos imensuráveis para pedidos infundados de danos morais, gerando a realidade cruel de que em 100% dos processos o médico foi réu, muitas vezes em condições desiguais e no mais alto confronto com o maior dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana[2].

Como vemos na maioria destes processos do dito "erro médico" são compostos por pedidos infundados que consequentemente são julgados improcedentes. Infelizmente, a indústria do dano conta como fomentador o próprio sistema jurídico brasileiro, pois há diversos institutos protecionistas que possibilitam o paciente de levar ao judiciário uma espécie de "loteria jurídica".      

A medicina devido a sua álea de atividade conta com diversos fatores adversos que podem causar danos ao paciente, contudo, estes danos nem sempre são considerados "erros médicos". A profissão do médico é de alto risco, e o êxito de seu trabalho não depende exclusivamente dele mas também de múltiplos fatores que independem de sua vontade. Porém o paciente ao se deparar com o evento adverso, possibilitado pelo próprio sistema se aventura judicialmente em busca de dinheiro fácil.

O Professor Irany Novah Moraes ciente desta avalanche de ações infundadas contra médicos, escreveu celebre artigo sobre o "erro imaginário". Citando que o assunto em pauta deve ser bem estudado por estudiosos do direito, jornalistas e médicos, pois estes são os profundamente envolvidos na problemática do erro médico, assim afirma o autor, que a leitura fomentará ideias claras sobre o tema, para encontro da verdade em cada ocorrência.

O autor ainda adverte de maneira magistral :

É de bom alvitre que todos se inteirem bem do assunto, para que saibam discernir o falso do verdadeiro, sem se deixar levar pela emoção na interpretação de fatos publicados e geralmente até mesmo alardeados. (g.n.)[3]

O malogro dos resultados que às vezes lhe atribuem decorre do fato de o doente ou seus familiares projetarem nele seu inconformismo com a crueldade do destino e a limitação da medicina. O inconformismo do paciente com os resultados por ele esperados da medicina é sem dúvida um dos agravantes do aumento de denúncias contra médicos. Muitas ocorrência imputadas como erro médico nada mais é do que a evolução natural da doença, ou acidentes inevitáveis.

O autor Irany Novah cita:

 Muitos fatos atribuídos a erro médico, na verdade, não o são e podem ser arrolados como inconformismo. O que mais gera essa atitude é o paradoxo entre o enorme progresso contraposto a grandes limitações da medicina e sempre com desenvolvimento emocional.

Nestas circunstancias é que aparece, nos indivíduos psicologicamente mais fracos, a revolta contra o seu destino e o espírito de vingança ou de reivindicação. Eles projetam no médico suas angústias. Assim, nascem os impulsos de imputar ao médico a culpa que ele não tem e chamar de erro a limitação da medicina que não pode tratar tudo com êxito.[4]

Como ressalta IRANY NOVAH "esse ponto deve ficar claro para todos". [5]Ao adentrar em um hospital os ânimos e sentimentos estão aflorados, é natural que diante da morte ou doença de um ente querido, haja uma crise emocional do paciente ou de seus familiares que perturbe a interpretação dos fatos. Há limitações na medicina, mesmo que o médico tenha feito de tudo para salvar o paciente, este pode falecer por fatores aleatórios que independem da prudência e diligência do médico. Trata-se da limitação da medicina. A família emocionada muitas vezes procura lançar a culpa no médico ou no hospital pelo inconformismo com o resultado. Assim a análise das denúncias contra médicos merecem parcimônia.

Infelizmente o mero inconformismo do paciente ou de seus familiares encontra guarita para se transformar numa demanda contra o médico, a partir de institutos protecionistas oferecidos pelo próprio sistema jurídico ao paciente. Assim o evento adverso somado ao inconformismo, torna-se ação de responsabilidade civil contra o médico.

Para responsabilizar o médico não basta apenas o inconformismo com o evento adverso, é necessária uma clara separação entre o que seja real e imaginário. Para caracterização da responsabilidade médica é exigida três premissas: Existência de dano, Conduta culposa do médico e nexo de causalidade (ligação) entre a conduta e o dano. Requisitos que na grande maioria das vezes não são demonstrados no decorrer do processo judicial. Ora, na grande maioria das vezes o dito e clamado "erro médico" na visão do paciente nada mais é do que complicações, evoluções da doença, acidentes inevitáveis e riscos inerentes.

Porém os demandantes desta indústria não estão preocupados e nem procuram interação com o assunto, já que há diversos institutos que possibilitam a tentativa, transformando o processo judicial em loteria.

Como citado em artigo do ANADEM,

Em medicina, seja pela gravidade da doença seja pela inexatidão da ciência, morre gente mesmo. Mas, agora, num mundo onde os governos alimentam os "direitos dos coitadinhos", a "morte tem de ser culpa de alguém", "a morte tem de ser culpa dos "poderosos" e arrogantes médicos. A isto se ajunta o monetarismo, pragmatismo da vida moderna: "Vamos aproveitar e arrancar dinheiro de quem tem, o médico".[6]


3. OS FOMENTADORES DA INDÚSTRIA DO DANO: A LOTERIA JURÍDICA E O MÉDICO

O cenário para os profissionais da medicina não é dos melhores, os pacientes que se dizem vítimas de erros médicos percebendo a facilidade de qualquer aborrecimento se transformar em quantia monetária a título de indenização, embarcam na aventura jurídica possibilitada pelo próprio sistema.

Os institutos utilizados pela jurisprudência e doutrina promovem apenas a proteção do consumidor/ paciente. Assim a indústria do dano (com pedidos sem fundamento) assola os profissionais da saúde nos dias atuais.

São diversos os institutos jurídicos que propiciam o crescimento e a avalanche de processos judiciais com questões infundadas, como: a aplicação irrestrita e abstrata do Código de Defesa do Consumidor à relação entre médico e paciente; a mitigação de elementos indispensáveis para ensejar o dever de reparação em favor do paciente, como teorias de culpa presumida, obrigação de resultado, teoria da perda de uma chance e etc.; e principalmente o instituto da justiça gratuita concedido livremente sem comprovação pelo judiciário.        

São vários os institutos jurídicos aplicados em proteção paternalista ao consumidor e estes fomentam uma indústria do dano leviana em que seus percussores estão em busca de ganho fácil, alguns podem dizer que esse pensar seria menor, mas a realidade brasileira, demonstra claramente essa utilização, Miguel Kfouri em seu livro, traz a afirmação que 80% dos casos envolvendo médicos são julgados improcedentes. Portanto esses rigorosos institutos aplicados na responsabilidade civil médica demonstram que é excessiva a desvantagem na aferição de supostos erros médicos em detrimento dos profissional que necessitam ter sua dignidade auferida como o mesmo rigor, garantido pela Constituição.[7]

Os ilustres autores Antônio Ferreira e Alex Pereira ao concluírem citam de maneira magistral o dilema e a questão atual que cerca a responsabilidade do médico,

...na busca da verdade verdadeira, sempre sob o manto da ética que emana dos Princípios Constitucionais Brasileiros e trazê-los para a realidade única e completa dos autos, cuja maior preocupação e excelência é a sua individualidade. Pelo que gratuidades desmedidas e ao arrepio da constituição (falta de comprovação), inversão do ônus da prova no início da instrução processual, valor da causa manipulando para lesar o erário e desvinculado do pedido, exatamente para dar coragem aos trabalhadores da industria das indenizações e na banalização do Dano Moral, nos pedidos milionários, culpa presumida entre questões que envolvam somente pessoas humanas, servem para mascarar o feito e afastar o Julgador do rastro e do cheiro de justiça, beneficiando infratores, oportunistas da primeira e da última hora, aventureiros e trabalhadores da industria do dano.[8]

Os autores ainda concluem após análise de estatísticas levantadas que de cada 10 médicos 8 são julgados inocentes, ressaltam brilhantemente que,

seria forte mas não irreal afirmar que a paz social não poderá ser alcançada, vez que estamos protegendo o embuste, a improbidade e má-fé. O Estado-Juiz se coloca em verdadeiro "xeque-mate" e distribui a paz social apenando 8 (oito) justos para tentar punir 2 (dois) pecadores .[9]

Com os levantamentos percebemos que apenas 2 em cada 10 autores tinham compromisso com a ética e a boa-fé. Estes levantamentos e estatísticas demonstram claramente o clamor contra a indústria do erro médico.

Certo é que os médicos devem se preparar, pois infelizmente este é o cenário encontrado em nosso judiciário. O médico deve afastar a ideia do processo como "tabu" e buscar o máximo de segurança jurídica para seu exercício profissional.

Segundo RAUL CANAL atualmente cerca de 28.000 (vinte e oito mil) médicos brasileiros estão sendo processados, seja na esfera cível, ética ou criminal. [10]

Diante dos fundamentos expostos, conclui-se que o médico encontra-se em posição vulnerável e a mercê da indústria do dano. Assim se faz de essencial importância a quebra do "tabu" do processo, para se atentarem a nova realidade, e se adequar ao cenário encontrado. Buscando um agir de forma preventiva para evitar o processo, mas deve estar também preparado para enfrentar a demanda (os institutos de proteção ao paciente, o judiciário sentimental) quando citado como réu por "erro médico". Pois infelizmente o médico encontra-se desamparado nos processos, ora, a maioria das interpretações e entendimentos jurisprudenciais são a seu desfavor

É necessária uma reflexão pelo profissional para entendimento que a medicina vista como divina e sacerdotal acabou, hoje o médico é visto como um mero fornecedor de serviços e encontra-se como o novo foco da indústria do dano e da loteria jurídica.


REFERÊNCIAS

CANAL, Raul. Erro Médico e Judicialização da Medicina. Brasília. Gráfica e Editora Saturno. 2014.

COLTRI, Marcos Vinicius. O médico e o custo para provar sua inocência. Disponível em : <http://www.ducatri.com.br/diferencial/rcp.pdf>. Acesso em: 20 de agosto de 2014.

COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.

KFOURI NETO, Miguel. Culpa Médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: RT, 2002.

MORAES, Irany Novah. Erro imaginário. Disponível em: http://www.culturaesaude.med.br/content/erro-imaginario> Acesso em: 02/04/2014.

Como o Governo vem usando os pacientes para ajudá-lo a destruir a assistência médico-hospitalar não estatal. Disponível em < http://www.anadem.org.br/noticias/219-como-o-governo-vem-usando-pacientes-destruir-a-assistencia-médico-hospitalar-não-estatal/>. Acesso em: 24/10/2014.


Notas

[1] COLTRI, Marcos Vinicius. O médico e o custo para provar sua inocência. Disponível em : <http://www.ducatri.com.br/diferencial/rcp.pdf>. Acesso em: 20 de agosto de 2014.

[2] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010. p.2.

[3]MORAES, Irany Novah. Erro imaginário. Disponível em: http://www.culturaesaude.med.br/content/erro-imaginario> Acesso em: 02/04/2014.

[4] Ibidem.

[5] MORAES, IRANY NOVAH. op.cit.

[6] Como o Governo vem usando os pacientes para ajudá-lo a destruir a assistência médico-hospitalar não estatal. Disponível em < http://www.anadem.org.br/noticias/219-como-o-governo-vem-usando-pacientes-destruir-a-assistencia-médico-hospitalar-não-estatal/>. Acesso em: 24/10/2014.

[7] KFOURI NETO, Miguel. Culpa Médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: RT, 2002. p.182.

[8] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010. p.120

[9] Ibidem p.70

[10] CANAL, Raul. Erro Médico e Judicialização da Medicina. Brasília. Gráfica e Editora Saturno. 2014.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Amanda. O médico e a indústria do dano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4738, 21 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36673. Acesso em: 16 abr. 2024.